CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A LEI Nº 13.546/2017 (CRIMES COMETIDOS NA DIREÇÃO DE VEÍCULOS AUTOMOTOR

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Leonardo Schmitt de Bem Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano (Itália) Doutor em Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) Mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal) Professor Adjunto de Direito e Processo Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)

João Paulo Orsini Martinelli Pós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo Professor de Direito Penal do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP/SP) Membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SP e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) Advogado criminalista

COnSideraçõeS CrítiCaS SOBre a Lei nº 13.546/2017 (CriMeS COMetidOS na direçÃO de VeíCULOS aUtOMOtOreS) CrItICAL COnSIDErAtIOnS On LAw 13.546/2017 (CrIMES COMMIttED In tHE DIrECtIOn OF AUtOMOtIVE VEHICLES) COnSIDErACIOnES CrítICAS SOBrE LA LEy nº 13.546/2017 (CríMEnES COMEtIDOS En LA DIrECCIÓn DE VEHICULOS AUtOMOtOrES)

Resumo: Este texto tem a finalidade de apresentar algumas implicações da nova Lei nº 13.546/2017 em relação aos aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. Novamente, como é praxe neste setor social, as mudanças acarretarão muitas dúvidas e poucas certezas. Embora a péssima técnica adotada na proposição dos dispositivos legais, as considerações a seguir apresentadas poderão auxiliar os intérpretes judiciais em suas decisões. Inicia-se com a apresentação do itinerário do projeto de lei no Congresso Nacional para, em seguida, destacar que muito pouco da proposição originária foi, de fato, convertido em lei. Na sequência, comenta-se a qualificadora do crime de homicídio culposo de trânsito e, em especial, voltam-se os olhares à eterna discussão entre culpa consciente e dolo eventual. Finaliza-se o ensaio com pontuais considerações sobre as outras mudanças típicas. Palavras-chaves: Trânsito, homicídio, lesões, racha. LEOnArDO SCHMItt DE BEM / JOÃO PAULO OrSInI MArtInELLI

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Abstract: This text aims to present some implications of the new Law 13,546/2017 in relation to the criminal aspects of the Brazilian Traffic Code. Once again, as it is customary in this social sector, the changes will imply many doubts and few certaincies. Although the bad technique adopted in the proposition of the legal provisions, the following considerations can help judicial interpreters in their decisions. It begins with the presentation of the itinerary of the bill in the National Congress to, then, highlight that very litthe of the original proposition was in fact converted into law. Next, we comment the qualifier of the involuntary manslaughter in traffic and, in particular, we take a glance at the eternal discussion about "culpa consciente" e "dolo eventual". This essay is finalized the punctual considerations on other changes in legal devices. Keywords: Traffic, homicide, injuries, street racing.

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Resumen: Este texto tiene por finalidad presentar algunas de las implicaciones de la reciente Ley nº 13.546/2017 con relación a los aspectos criminales del Código de Tránsito y Seguridad Vial Brasileño. Nuevamente, como suele ocurrir en ese sector social, los cambios acarrearán muchas dudas y pocas certezas. A pesar de la pésima técnica adoptada en la proposición de los dispositivos legales, las consideraciones presentadas a continuación podrán servirles de auxílio a los intérpretes judiciales en sus decisiones. Empieza con la presentación del itinerario del proyecto de ley en el Congreso Nacional para, posteriormente, evidenciar que muy poco de la proposición original fue, de hecho, convertido en ley. Después, se comenta la calificación del crimen de homicidio involuntario de tránsito y, en lo particular, el enfoque gira hacia la eterna discusión entre culpa consciente y dolo eventual. El ensayo concluye con consideraciones puntuales sobre los otros cambios típicos. Palabras clave: Tránsito, homicidio, lesiones, carreras callejeras (“picadas”).

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PaSSO a PaSSO: dO PrOLiXO trÂMite LeGiSLatiVO À SançÃO PreSidenCiaL¹

A deputada Keiko Ota (PSB/SP) apresentou no dia 15 de maio de 2013 proposta de alteração de artigos da Lei nº 9.503/1997, que instituiu o Código de trânsito Brasileiro (CtB). Em sua justificativa, aduziu que a proposição visava estabelecer tolerância zero e punição definitiva para quem bebe e dirige. nos dizeres da parlamentar, com o fim de conscientizar quem desconsidera a educação de trânsito, as sanções ideais consistiriam na prestação de serviços à comunidade e no pagamento de multa. na sequência, a título de informação, enumeramos os preceitos do PL nº 5.568/2013 que correlacionam direção e álcool: 1. Pena de cinco a oito anos de reclusão ao homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor se o agente dirigir em via pública e estiver sob a influência de qualquer concentração de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos (art. 2º, § 2º). 2. Aumento de um terço à metade da sanção do crime de lesão corporal culposa de trânsito, se o agente dirigir em via pública e estiver sob a influência de qualquer concentração de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos (art. 4º, § 1º). 3. nova redação ao crime de embriaguez ao volante, proibindo a condução de veículo automotor, em via pública, sob a influência de álcool ou de qualquer substância psicoativa que determine dependência. A pena mínima cominada foi elevada para um ano (art. 5º). 4. revogação da infração do art. 165 do CtB (art. 6º). 5. Possibilidade de utilização de qualquer prova em direito admitida com o fim de comprovar os notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. (BrASIL, 2013) A Mesa Diretora da Câmara dos Deputados determinou a apensação da proposta ao PL nº 5.512/2013, que dispunha sobre a fixação de um índice tolerável de alcoolemia na direção de veículos automotores. Em seguida, a deputada Ota requereu o desapensamento sob a alegação de que os projetos eram contrapostos. O pleito foi indeferido nos termos do art. 142 do regimento Interno, pois o objeto das iniciativas seria correlato. A proposta originária foi arquivada em 31 de janeiro de 2015, pois se encontrava em tramitação quando finda a legislatura. Em seguida, no início de fevereiro, houve pedido de desarquivamento aceito pela Mesa Diretora. O deputado Hugo Leal (PSB/rJ) foi designado pelo plenário para proferir parecer pela Comissão de Viação e transportes (CVt). Em seu voto, rejeitou o PL nº 5.512/2013 sob o argumento de evidente retrocesso no que tange à segurança do trânsito. Por sua vez, apresentou Substitutivo ao PL nº 5.568/2013. Propôs (BrASIL, 2015):

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http://www.camara.gov.br/proposicoesweb/fichadetramitacao?idProposicao=576699 LEOnArDO SCHMItt DE BEM / JOÃO PAULO OrSInI MArtInELLI

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1. Inclusão de § 3º ao art. 291 do CtB, limitando em cinco anos a pena concretamente aplicada a alguns crimes para fins de substituição por sanções alternativas. Depois, apresentou Subemenda para alterar a expressão “cinco anos” para “quatro anos”. 2. Inclusão de § 4º ao art. 291 do CtB, invocando especial atenção do julgador na valoração da culpabilidade e das circunstâncias e consequências do crime quando da fixação da pena-base. 3. Pena de quatro a oito anos de reclusão ao crime de homicídio culposo de trânsito, se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência. 4. Pena de três a seis anos de reclusão ao crime de lesão corporal culposa de trânsito, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal grave. 5. Inclusão da elementar “ou praticar exibição e demonstração de perícia em manobra de veículo” ao tipo legal do art. 308 da Lei nº 9.503/1997.

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Pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) fora designado o deputado Efraim Filho (DEM/PB). Em parecer, igualmente rejeitou o PL nº 5.512/2013 e ofereceu novo Substitutivo ao PL nº 5.568/2013 por não entender razoável e proporcional os aumentos de pena apresentados na proposta originária e no Substitutivo da CVt. nesse sentido, destacam-se as principais mudanças (BrASIL, 2015): 1. Fixação da pena de reclusão de três a oito anos para a figura qualificada de homicídio culposo, quando o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência. 2. Fixação da pena de reclusão de dois a cinco anos para o crime de lesão corporal culposa, se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave. Após idas e vindas pelas Comissões, em Plenário foram apresentadas emendas. na primeira, o deputado Laércio Oliveira (SD/SE) pretendia a cominação de pena mais gravosa (cinco anos) ao indivíduo que provoca homicídio culposo de trânsito sob o efeito de álcool. na segunda, o deputado André Figueiredo (PDt/CE) pretendia extirpar do texto a limitação de substituição penal. Ambas foram rejeitadas. na sequência, em votação em turno único, o Plenário aprovava um Substitutivo único ao PL nº 5.568/2013. O PL nº 5.568-A/2013 apresentava a seguinte redação final (BrASIL, 2015): 1. Inclusão dos §§ 3º e 4º ao art. 291 do CtB, o primeiro limitando em quatro anos o quantum de privação de liberdade passível de ser substituída, desde que atendidos os demais pressupostos do art. 44 do Código Penal, para determinados delitos, e o segundo invocando especial atenção por parte do magistrado, na fixação da pena-base, de três circunstâncias judiciais.

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2. Previsão de pena privativa de liberdade de reclusão de quatro a oito anos e de penas acessórias à modalidade qualificada de homicídio culposo, quando o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. 3. Previsão de pena privativa de liberdade de reclusão de dois a cinco, sem prejuízo das sanções acessórias, ao crime de lesão corporal culposa de trânsito, se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima. 4. Inclusão da elementar “ou praticar exibição e demonstração de perícia em manobra de veículo” ao tipo legal do art. 308 da Lei nº 9.503/1997. Encaminhou-se, em seguida, ao Senado Federal, sendo designado Aloysio nunes (PSDB/SP) como relator. Posicionou-se favorável à aprovação do Projeto da Câmara em julho de 2016. O senador Antonio Anastasia (PSDB/MG) apresentou duas propostas com a finalidade de emendar o PL. na primeira, pretendia modificações de cunho qualitativo e quantitativo quanto à qualificadora do homicídio culposo de trânsito. In verbis (BrASIL, 2017): Art. 302. § 2º. Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (nr)

A alteração qualitativa cinge-se à expressão “capacidade psicomotora alterada” – que seria suprimida – de sorte que apenas a “influência” do álcool ou de outra substância psicoativa diversa já seria suficiente à configuração do crime. Sob o aspecto quantitativo, o aumento do limite mínimo de pena (cinco anos) foi proposto para evitar o cumprimento inicial da privação de liberdade em regime aberto. na segunda proposta de emenda, entendendo que a chamada “tolerância zero” é a que melhor atende aos interesses da sociedade, ofertou o acréscimo ao PL nº 5.568/2013 de nova redação ao crime de embriaguez ao volante: Art. 306. Conduzir veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. Penas – detenção, de um a três anos, multa e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

À configuração do crime não seria necessário comprovar que o condutor estava com sua capacidade psicomotora alterada, é dizer, a condução sob influência de qualquer concentração de álcool ou de outra substância psicoativa seria suficiente para a incidência de responsabilidade penal. Haveria equiparação com o art. 165 do CtB. Houve aprovação pelo plenário do Senado Federal em 24 de novembro de 2016, mas a Comissão Diretora apresentou Parecer nº 910/2016 propondo três emendas (BrASIL, 2016b):

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1. A supressão da expressão “no § 2º do art. 302” constante do § 3º do art. 291, fundamentando-se no fato de que o parágrafo foi revogado pela Lei nº 13.281/2016, de 4 de maio. 2. A renumeração do § 2º do art. 302 para § 3º, pois a LC nº 95/1998 veda o reaproveitamento de número de preceito revogado; o aumento de quatro para cinco anos da pena mínima do crime de homicídio culposo qualificado e a abolição da expressão “capacidade psicomotora alterada”. 3. A alteração da redação do art. 306 suprimindo a expressão “capacidade psicomotora alterada” e destacando que “qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou de ar alveolar sujeita o condutor às penalidades previstas no caput”. Antes de apreciação das três emendas pelo plenário da Câmara dos Deputados, em regime de urgência, determinou-se vista à CVt e, em seguida, à CCJC. Pela primeira, sob a relatoria do deputado Hugo Leal, apresentou-se parecer ao PL nº 5.568-B/2013 acatando as duas primeiras emendas. Com efeito, ajustou-se o texto do PL à atual redação da Lei nº 9.503/1997 e reputou-se “razoável” o aumento para cinco anos da pena mínima do homicídio culposo qualificado diante da similitude de risco para uma das formas qualificadas do crime de racha (art. 308, § 2º). A Emenda nº 3 do Senado foi rejeitada, pois a nova redação do art. 306 igualaria o delito à infração administrativa do art. 165 do CtB, contrariando, assim, o princípio da intervenção penal mínima. A deputada Christiane de Souza yared (Pr/Pr) apresentou voto em separado, pro-

100 pugnando pela aprovação integral das emendas. Devolvido para reexame pelo relator, o parecer inicial não foi alterado, razão pela qual a parlamentar solicitou a retirada de seu voto. no dia 17 de maio de 2017, em reunião Deliberativa Ordinária, por unanimidade, foi aprovado o parecer do deputado Hugo Leal, sendo publicado dois dias depois. Pela CCJC, a relatoria ficou a cargo do deputado Capitão Augusto (Pr/SP), votando-se pela constitucionalidade, juridicidade e adequação de técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação do PL e das três emendas do Senado Federal. Especificamente, enfatizou que a elevação da pena mínima cominada à qualificadora do crime de homicídio culposo de trânsito era adequada, porquanto o grau de reprovabilidade da conduta era semelhante à previsão do crime de racha qualificado pelo resultado morte (art. 308, § 2º). no que se refere ao art. 306, apoiando-se nos anseios sociais de intolerabilidade do “casamento” direção e álcool, matizou que o endurecimento penal era medida de aprimoramento do Código de trânsito. Discordando parcialmente do voto do relator, o deputado Hugo Leal apresentou voto em separado perante à CCJC, matizando o seu receio de que a “Lei Seca”, que hoje é administrativa, se tornasse também criminal. Dias depois, em outro arrazoado, o deputado Capitão Augusto declarou que a Emenda nº 1 se apresentava com má técnica legislativa e que a Emenda nº 3 acabaria por criar situações de enfraquecimento da Lei Seca. no voto complementar, ainda propôs nova redação ao § 3º do art. 291 do CtB. A deputada Keiko Ota, no final de novembro de 2017, apresentou requerimento de urgência para apreciação da proposição. na mesma data, na CCJC, o deputado Capitão Augusto ofereceu Subemenda de redação à Emenda nº 2 do Senado ao PL nº 5.568-B/2013.

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Em sessão deliberativa extraordinária, ocorrida em 5 de dezembro, o deputado Júlio Delgado (PSB/MG) foi designado relator para proferir parecer final pela CCJC. na ocasião, houve discussão da matéria, porém o parecer do deputado Capitão Augusto foi totalmente ratificado, sendo o texto aprovado pelo plenário da Câmara e encaminhando à sanção presidencial. Pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei foi transformado na Lei Ordinária nº 13.546/2017, com veto parcial a seguir analisado. Em 20 de dezembro de 2017 foi publicada no Diário Oficial da União, página 10, coluna 2.

da PrOPOSta OriGinÁria À Lei OrdinÁria: O QUe PerManeCeU inaLteradO?

Da cronologia apresentada no tópico anterior, infere-se que apenas um aspecto da proposição da deputada Keiko Ota foi, de fato, inalterado e, como tal, pode-se dizer que a vontade perseguida pela parlamentar corresponde infimamente ao fim objetivo da nova lei ordinária. A intenção legislativa originária de estabelecer a “tolerância zero” na esfera criminal esvaiu-se entre as propostas de substitutivos e suas respectivas emendas. O ponto similar diz respeito à pena cominada ao crime de homicídio culposo de trânsito em sua forma qualificada, é dizer, reclusão de cinco a oito anos. Permitindo-nos postergar a apresentação de críticas à desproporcionalidade sancionatória em outro tópico, registramos que a respectiva qualificação, desde que respeitadas certas regras tradicionais de fixação da pena, afastará a determinação do regime aberto e possibilitará a incidência do regime fechado para início do cumprimento da pena privativa de liberdade. Em nenhum momento, porém, para esse ou outro delito, a deputada impôs óbice para a incidência de pena alternativa à privação de liberdade. Pelo contrário, registrou na justificativa do PL nº 5.568/2013 que a prestação de serviços à comunidade se revelava uma sanção ideal a quem desconsiderava a educação de trânsito. O alcance deste escopo, no entanto, decorreu apenas com o veto presidencial ao § 3º do art. 291 do CtB acrescido pelo Substitutivo aprovado no plenário da Câmara dos Deputados². Este parágrafo propunha um limite quantitativo de pena privativa de liberdade concretamente aplicada para alguns crimes, para fins de substituição por penas restritivas de direitos. Isto é, a pena privativa de liberdade imposta ao condenado pelo novo crime de homicídio culposo qualificado de trânsito, pelo novo crime de lesão corporal culposa qualificada de trânsito e pelas formas qualificadas do crime de racha, para ser substituída por penas restritivas de direitos, não poderia superar quatro anos, atendidas as demais condições legais dos incisos II e III do art. 44 do Código Penal. Uma interpretação judicial deveria levar em atenção a regra do art. 12 do Código Penal, isto é, a regra especial (§ 3º) prevaleceria sobre as regras gerais (art. 44, I) quanto aos fatos tipificados na Lei de trânsito. Ocorre que este parágrafo foi vetado, porquanto 2

O acréscimo do § 3º decorreu do Substitutivo ao PL apresentado pelo Deputado Hugo Leal (PSB-rJ). LEOnArDO SCHMItt DE BEM / JOÃO PAULO OrSInI MArtInELLI

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apresenta incongruência jurídica, sendo parcialmente inaplicável, uma vez que, dos três casos elencados, dois deles preveem penas mínimas de reclusão de cinco anos, não se enquadrando assim no mecanismo de substituição regulado pelo Código Penal. Assim, visando-se evitar insegurança jurídica, impõe-se o veto ao dispositivo.³

O mecanismo de substituição referido no texto do veto se relaciona com o inciso I do art. 44 do Código Penal que, numa síntese, considera a natureza do crime praticado, a quantidade de pena aplicada e a modalidade de execução da infração (BrASIL, 1940). O veto destaca, implicitamente, o delito de homicídio culposo de trânsito qualificado (art. 302, § 3º) e o delito de racha qualificado pelo resultado morte (art. 308, § 2º), porque em ambos a pena (privativa de liberdade) mínima cominada é de cinco anos. A partir desses esclarecimentos é possível verificar a imprecisão do conteúdo do veto. Em primeiro lugar, pois qualquer que seja a pena privativa aplicada ao condenado, sendo o crime culposo, admite-se a substituição (art. 44, I, parte final). Essa regra não encontra óbice no CtB e, como tal, deverá ser respeitada para os crimes previstos nesse diploma legal. é para os crimes dolosos que há limitação do quantum de pena.

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Em segundo lugar, mesmo antes da promulgação da novel lei, o delito de racha qualificado não admitia a substituição. Sendo uma figura preterdolosa, há dolo do agente dirigido, por exemplo, à participação, em via pública, de competição automobilística não autorizada. O resultado morte sobrevém por culpa. Ou seja, o dolo do agente se restringe apenas à participação no racha. E a presença desse elemento (o dolo), ainda que não se trate exclusivamente de crime doloso, a nosso ver, por si só impede a incidência penal alternativa, até porque, provavelmente, a pena final ficará além de quatro anos. Se não for o bastante, deve-se considerar o fato de que, regra geral, o resultado morte deriva de uma conduta violenta. nesse caso, embora a vis corporalis não constitua elementar do tipo legal do § 2º do art. 308 do CtB, a substituição igualmente é obstada tendo em vista a ocorrência da violência por meio instrumental. O objeto contundente é o veículo automotor. A violência, assim, não é elementar explícita do delito, como ocorre, por exemplo, no roubo, porém, é meio para a prática do crime. E a regra do inciso I do art. 44 do Diploma Penal afasta a conversão da pena quando o crime é “cometido com violência”, independentemente de ser ou não elementar do tipo. Interpretando-se o conteúdo do veto presidencial a partir desses esclarecimentos, admite-se que o agente condenado por crime culposo de trânsito seja beneficiado com a substituição da privação de liberdade por outra espécie de pena. Portanto, no homicídio culposo qualificado e na lesão corporal culposa qualificada, após o término da dosimetria, provavelmente a substituição seguirá a regra do § 2º do art. 44 do Código Penal. Advindo uma única pena restritiva de direito, diante da especialidade do CtB, deverá incidir a pena de prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas em qualquer das atividades elencadas nos incisos do art. 312-A com redação dada pela Lei nº 13.281/2016. Em caso de cumulação, deverá ser imposta conjuntamente com a interdição de direito prevista no inciso III do art. 47 do Código Penal (art. 57). 3

Mensagem nº 538, de 19 de dezembro de 2017.

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Assim, embora sejamos contrários à reconsideração de algumas diretrizes após o término da dosimetria por manifesta violação ao princípio do ne bis in idem (MArtInELLI; DE BEM, 2018, p. 905), eventual não substituição penal somente sucederá se houver valoração negativa das circunstâncias judiciais do inciso III do art. 44 do Código Penal4, pois, havendo condenação por crime culposo, o agente até poderá ser reincidente, mas não em crime doloso (art. 44, II).

a FiXaçÃO da Pena-BaSe nOS CriMeS de trÂnSitO

Por meio do Substitutivo ao PL nº 5.568/2013 ofertado pelo deputado Hugo Leal, também foi incluído o § 4º no art. 291 do Código de trânsito. O dispositivo estipula regra relacionada à fixação da pena-base, invocando uma especial atenção do julgador quanto à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime5. O proponente não apresentou qualquer justificativa para sua inclusão, e tampouco houve discussão a respeito no plenário da Câmara dos Deputados. A lacuna relacionada à novel previsão, com efeito, ensejará uma série de interpretações, pois, apenas para ilustrar, o que se deve entender pela expressão “dando especial atenção”? no palco da especulação será possível sugerir que as circunstâncias referidas no § 4º do art. 291 sejam valoradas de forma preponderante sobre as demais diretrizes consignadas no art. 59 do Código Penal. no campo das ideias, por sua vez, é dever indicar que o procedimento de determinação da pena-base deve pautar-se na missão constitucional de redução de danos ao apenado. Adotando-se a última orientação, o contorno da culpabilidade na fixação da pena-base deverá ser realizado pelo conteúdo do injusto e pautado no maior ou menor esforço do agente para alcançar uma situação de vulnerabilidade. Assim, a contrariedade ao dever de cuidado será aferida na análise da tipicidade e, no momento da fixação da pena-base, o julgador deverá, proporcionalmente, avaliar a culpa inconsciente de forma mais branda à culpa consciente, pois, naquele contexto, há um menor esforço despendido pelo condutor para se autoinserir em situação de vulnerabilidade (rOIG, 2013). no tocante às circunstâncias do crime, trata-se de critério residual, pois apenas poderão ser consideradas pelo julgador aquelas que não constituem elementares do crime (resta vedada, portanto, qualquer consideração à embriaguez do condutor), ou categorias das circunstâncias legais – art. 298, CtB – ou causas de aumento de pena – art. 302, § 1º e art. 303, § 1º, CtB). Deve-se evitar uma dúplice valoração negativa. relevante afirmar, ainda, que o julgador deverá excluir quaisquer circunstâncias que não possuem conexão direta com o delito, como, por exemplo, a conduta processual do acusado. também será dever do sentenciante preservar a fundamentação do ato decisório. Logo, deve apresentar um elemento concreto que, efetivamente, evidencie a real necessidade de exasperação da pena, e não optar somente por dados vagos para justificar a exasperação . 4

O legislador não mencionou as consequências do crime na redação do inciso III do art. 44, de sorte que, mesmo valorada negativamente, essa circunstância não impedirá a substituição. 5 § 4º. O juiz fixará a pena-base segundo as diretrizes previstas no art. 59 do Código Penal, dando especial atenção à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime. LEOnArDO SCHMItt DE BEM / JOÃO PAULO OrSInI MArtInELLI

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naquilo que é pertinente às consequências do crime, reforça-se que o julgador não pode sopesar a pena-base considerando a morte do agente ou a gravidade das lesões corporais sofridas pela vítima, pois essas consequências, por serem inerentes aos tipos (são elementares que diferem esses tipos penais de outros), foram previamente aferidas pelo legislador quando da cominação dos limites de pena. Deve-se ter enorme cuidado nessa avaliação, porque é possível dar início a uma cadeia sem fim e chegar a resultados distantes da conduta ofensiva praticada. nesse aspecto, as consequências não abrangidas pelo âmbito de proteção da norma penal deverão ser desconsideradas (FrISCH apud tEIXEIrA, 2017, p. 31). numa síntese, sem desconsiderar alternativas de interpretação quanto à dosimetria da pena-base, mas valendo-se da ausência de justificativa prévia no tocante à inserção do respectivo parágrafo e, assim, da impossibilidade de se alcançar a vontade perseguida pelos legisladores, deve-se reforçar que o julgador realize a individualização de cada circunstância (constitucional) de maneira particularizada.

a FiGUra QUaLiFiCada dO CriMe de HOMiCídiO CULPOSO de trÂnSitO

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A redação da modalidade qualificada de homicídio culposo de trânsito adquiriu contornos bastante diversos desde a proposição originária6 até sua promulgação em lei7. A diferença relevante não está, no entanto, na eleição do núcleo da infração, até porque conduzir, para fins legais, significa dirigir, mas sim na supressão do substantivo deverbal “estiver” e do elemento normativo “qualquer concentração”. Vimos que a intenção da deputada Keiko Ota foi estabelecer tolerância zero por meio da incriminação. no caso, bastaria a mera ingestão de bebida alcoólica ou o simples uso de drogas, independentemente de qualquer alteração psíquica ou motora do condutor. A nosso ver, porém, a escolha do termo “estiver” transmitia um sentido contraditório ao seu propósito, pois passaria a ser imperativo aferir certo estado temporário do agente, é dizer, sua permanência sob a influência de álcool ou de outra substância de efeitos análogos. Parece-nos, inclusive, que na redação final da Lei nº 13.546/2017 se transferiu a importância de qualquer circunstância pessoal para uma circunstância fática, de sorte que nem mesmo a proposição do Substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados vingou,8 pois foi suprimida a expressão “capacidade psicomotora alterada”. Assim, a circunstância fática relevante reside justamente na influência que o álcool ou qualquer outra substância provoca na forma como o agente conduz o veículo automotor. 6

no homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena será de reclusão de 5 a 8 anos, se o agente dirigir veículo automotor em via pública e estiver sob a influência de qualquer concentração de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos. 7 Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - reclusão, de 5 a 8 anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. 8 A pena é de reclusão, de quatro a oito anos, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.

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Essa interpretação poderá causar dissabores, todavia. Quando a redação originária foi alterada, em contextos com resultado morte, a ingestão prévia de qualquer quantidade de álcool ou substância de efeitos análogos não deixou de ser relevante, porém, sob pena de um alargamento incontrolável da forma qualificada, será imprescindível comprovar se a quantidade ingerida contribuiu para o evento fatal em razão de uma condução anormal por parte do motorista. Cumprirá a acusação comprovar se o risco criado pelo agente – e posteriormente realizado – decorreu do efeito do álcool na própria condução. Vale sempre lembrar que o dogma da ofensividade impõe a necessidade de prova do risco criado tanto para figura simples quanto para a qualificadora. O que é necessário entender é que nem todo acidente com morte e que envolve um condutor que fez a ingestão prévia de álcool será provocado pela influência da bebida. não obstante possíveis outros contextos, imagine um motorista que, após deixar um bar, ao desviar de um buraco na via de trânsito, envolve-se em colisão adentrando na contramão. Pelo exemplo, imputar ao agente a figura qualificada do crime de homicídio culposo seria burlar o princípio da legalidade. Diferente seria se esse condutor, após invadir a faixa de trânsito contrária para esquivar o buraco, não retornasse a sua pista de rodagem em razão da influência do álcool, vindo a colidir frontalmente com outro veículo. Seria vergonhoso negar a sanha punitivista do legislador, mas mais vergonhoso seria essa imagem refletir automaticamente nas decisões judiciais. Por isso, há necessidade de os magistrados restringirem a incidência da qualificadora apenas se comprovado que o acidente decorreu da influência do álcool na condução. Se optarem por caminho diverso, a tolerância zero na esfera criminal será inaugurada pelo próprio Judiciário, e iniciar-se-á uma trajetória sem volta para a responsabilidade penal objetiva. Sobre a cólera punitivista, aliás, muito se discutiu no itinerário legislativo do PL nº 5.568/2013, mormente sobre a margem mínima de pena que deveria compor o preceito secundário da norma penal. A sugestão inicial, aliás, foi resgatada pelo Senado Federal,9 pois as proposições alternativas dos deputados Hugo Leal e Efraim Filho (Substitutivos) a fixavam em patamar menor, respectivamente, quatro e três anos. Sobre essas oscilações, se nos permitem um breve regresso, é dever recordar que a Lei nº 12.971/2014 havia proposto três qualificadoras ao delito de homicídio culposo de trânsito, sendo uma delas muito semelhante à previsão atual.10 À época, porém, o legislador se limitou a alterar a espécie de privação de liberdade, é dizer, passou a sancionar a forma qualificada com pena de reclusão, de dois a quatro anos. Por questão diversa, o dispositivo foi revogado dois anos depois pela Lei nº 13.281/2016, de 4 de maio11.

9

Pela proposta de emenda apresentada pelo Senador Antonio Anastasia (PSDB/MG). Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente. 11 Art. 6º. revogam-se o inciso IV do art. 256, o § 1º do art. 258, o art. 262 e o § 2º do art. 302, todos da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. 10

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Essa lembrança é a prova viva do desrespeito ao princípio da proporcionalidade. ressuscitou-se uma das qualificadoras, se o crime de homicídio culposo for praticado por agente influenciado pelo álcool, porém, inacreditavelmente com a pena mínima de cinco anos. é patente a violação à proibição de excesso, pois a pena mínima foi elevada em três anos depois da revogação do referido dispositivo. E a violação será ainda mais manifesta se, em interpretação sistemática, compararmos o mínimo cominado à presente infração com o mínimo previsto aos demais casos de homicídio culposo não causados na direção de veículo automotor, isto é, um ano de detenção (art. 121, § 3º do Código Penal). Mesmo assim, não podemos olvidar que houve vozes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal que exigiram que a pena mínima da infração correspondesse àquela prevista para o crime de racha com resultado de morte. A equiparação, com efeito, afastaria a fixação do regime aberto para início de cumprimento da pena. A paridade sancionatória ocorreu, sendo que o parâmetro adotado se restringiu ao resultado das condutas (morte). Essa fórmula seguiu a mesma orientação dada Lei nº 12.971/2014.

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Mesmo diante dessa interpretação, é impossível não observar a proximidade entre a pena mínima da figura qualificada do homicídio culposo de trânsito com a pena mínima cominada ao homicídio doloso tipificado pelo Código Penal. A moderação foi totalmente abandonada, pois a diferença perfaz apenas um ano. O mais grave, porém, estará por vir, porque o excesso de proibição do novo § 3º do art. 302 do CtB será encoberto a partir de discursos de descumprimento do dever legal de proteção penal no que respeita à infração do art. 121 do CP. Em outros termos, sob a alegação de proteção insuficiente, não tardará a ocorrência de reivindicações pela elevação das margens penais do último delito. nosso legislador se apoiou no desvalor da ação exclusivamente pela embriaguez, deixando de lado o elemento subjetivo dolo, que assume contornos mais graves que a culpa. Mais além da mudança quantitativa de pena, a novel previsão também modificou a espécie de privação de liberdade quando da incidência da figura qualificada. Ao prever a pena de reclusão, como na Lei nº 12.971/2014, a pretensão do legislador foi permitir ao juiz determinar, se condenado o condutor, o regime fechado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade. E para fortalecer esse anseio, como novidade, acrescentou o § 4º ao art. 291 do Código de trânsito, que dispõe sobre uma valoração especial de três circunstâncias judiciais que, posteriormente, ignorando-se a violação ao bis in idem, serão reconsideradas para determinação do regime inicial de cumprimento de pena. As sanções acessórias de proibição de realização do processo de habilitação ou sua suspensão não constavam da proposição originária, sendo previstas pelo Substitutivo. Cumpre advertir que o magistrado apenas poderá aplicar a pena de proibição para obstar que o agente, ainda não habilitado, obtenha o acesso ao processo de habilitação, e pode aplicar a pena de suspensão ao agente que praticou o delito durante o estágio probatório, impedindo-o de obter a Carteira nacional de Habilitação. é inconteste que, ao motorista que já possui habilitação definitiva nada poderá ser obstado pelo magistrado, sendo que a imposição desta pena configuraria violação ao princípio da legalidade (DE BEM, 2015, p. 208).

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nOVO CaPítULO SOBre a diSCUSSÃO entre CULPa COnSCiente e dOLO eVentUaL

Aos membros do Ministério Público sempre causou perplexidade abrir o Código de trânsito e constatar que a sanção mínima cominada ao crime de homicídio culposo era reduzida se comparada àquela prevista ao homicídio doloso tipificado pelo Código Penal. Essa realidade colaborou – e ainda colabora – à conversão (quase) automática da natureza do perigo conscientemente criado no trânsito que, regra geral, é culposa. O efeito dessa insatisfação ministerial é claramente percebido na elasticidade que o instituto do dolo eventual perfaz, é dizer, mesmo as hipóteses de consumo moderado de álcool pelos motoristas – o que ensejaria uma responsabilidade pelo crime de trânsito – engrossam as estatísticas da moldura dolosa. Logo, o critério matemático da quantidade de pena (mínima) substitui mecanicamente as orientações teóricas que procuram traçar os limites entre culpa consciente e dolo eventual (DE BEM, 2015, p. 143-153). Em outros termos, os esforços teóricos são ignorados e/ou substituídos por métodos simplórios, à moda brasileira, praticamente reconhecendo a desnecessidade de teoria do delito. Vinte anos depois da promulgação da Lei nº 9.503/1997, ao menos no contexto de homicídios culposos provocados por condutores sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que cause dependência, a pena mínima da infração foi elevada para cinco anos, aproximando-se muito da margem mínima do homicídio doloso. O curioso é que a insatisfação permanece, mas agora sob outro foco, é dizer, já se ventilou que a pena mínima cominada à infração do art. 121 do Código Penal é demasiado baixa (CUnHA, 2017). Se o coro do discurso da impunidade voltar à tona, não tardará para o legislador propor o aumento da pena mínima do homicídio doloso. Quando o efeito cascata ocorrer, a “discussão” sobre a distinção entre culpa consciente e dolo eventual será reavivada, mas, infelizmente, resgatando-se o simplório critério matemático, como se o Direito fosse uma ciência exata. Ou seja, novamente se reputará diminuta a pena mínima do delito culposo (agora do § 3º do art. 302) e, por isso, as denúncias contemplarão a prática do homicídio doloso considerando sua nova (e expressiva) pena mínima. Essa “técnica” acusatória sempre gerou insatisfação nos advogados militantes na seara criminal, pois o combate teórico poderia ser perdido com números. A nova previsão legal, porém, parece ter afastado esse descontentamento. Isso porque há tese defensiva de que a regra geral passou a ser regra absoluta, a ponto de não ser mais possível configurar o dolo eventual nos casos de mortes provocadas por condutores embriagados. Em termos distintos, já que a influência do álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência passou a constituir elementar do tipo legal, sendo um tipo culposo, a responsabilização penal em caso de morte seria única e, nesse sentido, pelo crime qualificado de homicídio culposo de trânsito. A vingar a tese, estar-se-ia diante de uma novatio legis in mellius, que comportaria a revisão das condenações pretéritas por dolo eventual e emendas de inúmeras denúncias já ofertadas.

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Essa interpretação poderá ser aceita por qualquer julgador. Esclarecemos, aliás, que não é a primeira vez que ela é realizada. Quando uma comissão de juristas instituída pelo Senado Federal apresentou o relatório final do Anteprojeto do novo Código Penal, ventilou-se que a causação de morte na condução de veículo automotor sob a influência de álcool caracterizava hipótese de culpa temerária, consagrando-se, assim, um tipo de culpa substancialmente elevado (gravíssima), de sorte que se pretendia sancionar os condutores com pena de prisão de quatro a oito anos.12 À época, os proponentes mantiveram a regra geral de que os crimes de trânsito são culposos e o contexto de homicídio no trânsito em razão da influência de álcool não mais comportaria exceção. Havia gritante impropriedade, porque não era crível sustentar o abandono do instituto do dolo eventual, mormente em situações de manifesto desprezo pela vida das demais pessoas da parte dos condutores de veículos automotores. Vingando a proposta da Comissão, crimes claramente dolosos em determinados contextos seriam convertidos em crimes culposos (DE BEM, 2015, p. 504). Atenta a essa consequência, uma Comissão temporária de Estudo da reforma do Código Penal suprimiu o elenco casuístico que constava do § 6º do art. 121 do PLS nº 236/2012 e que incluía a hipótese anotada.13

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Por evidente essa exclusão não induziu nenhum raciocínio de que o homicídio se transmudou automaticamente em doloso, porém afastou a presunção absoluta de que os condutores revelavam uma atitude censurável somente do ponto de vista da leviandade, isto é, como “se não tivessem refletido suficientemente” (LOGOZ apud BItEnCOUrt, 2014, p. 386) e, assim, incidiam em descuido perante a norma de proteção. Em síntese, a Comissão temporária evitou que a figura do dolo eventual fosse afastada precipitadamente da seara do trânsito, como se houvesse uma categoria de crimes imunes à modalidade dolosa. O mesmo deverá ocorrer para combater a tese que assimila a hipótese de morte causada por agente que conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência como caso automático a ser sancionado pelo § 3º do art. 302 da Lei de trânsito. Já é impertinente reavivar a culpa temerária para fulminar anos de estudos que, inclusive nas hipóteses de embriaguez ao volante, buscaram traçar a distinção entre culpa consciente e dolo eventual,14 porém é ainda mais descabido sustentar a exclusão legal do dolo eventual no contexto retratado. não é incorreto sustentar que a nova regra fortalece a frente jurisprudencial que reputa culposo o perigo conscientemente criado pelo agente que conduz sob a influência de álcool, mas é inexato defender que a culpa será a única forma de responsabilização do agente em casos de acidentes fatais. Por isso, recebe-se com cautela decisão proferida pelo Superior tribunal de Justiça (StJ) de que a embriaguez, por si só, não caracteriza dolo eventual.15 Para nós, a depender da quantidade de bebida alcóolica que é ingerida pelo agente, independentemente de outra particularidade, não existiria óbice para caracterização do dolo eventual.

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Art. 121, §§ 5º e 6º do PLS nº 236/2012. A outra situação legal de culpa gravíssima se referia à participação, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente. 14 Como exemplo, dentre inúmeros outros, de esforço para distinguir dolo e culpa: Ingeborg Puppe (2004). 15 6ª turma, recurso especial nº 1.689.173/SC, rel. Min. rogério Schietti Cruz, j. 06/12/2017. 13

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Embora a intenção não seja matematizar o direito penal de trânsito, por evidente, as oscilações etílicas em cada condutor podem traduzir situações concretas indicadoras de condutas distintas e, portanto, passíveis de reprovações plurais (DE BEM, 2015, p. 154). Claro que a exigência de qualquer elemento adicional poderá reforçar a existência de dolo de homicídio, contudo a ausência desse elemento não pode levar automaticamente à exclusão do dolo. reprovar de forma idêntica quem consome uma quantidade moderada de álcool (uma dose) e em seguida conduz um veículo e outro condutor que fez preteritamente consumo abusivo de bebida alcoólica (embriaga-se por completo) é ignorar totalmente a razoabilidade (JAKOBS, 1997, p. 334). Em síntese, os homicídios verificados no trânsito não podem ser classificados de forma automática como dolosos ou culposos, qualificados ou não. Apenas a partir de uma análise objetiva é possível obter a melhor categorização. O ideal, inclusive, seria seguir os postulados de alguma teoria cognitiva.16 no entanto, nada obsta que a decisão judicial desagrade uma das partes. é justamente por isso que a aplicação da culpa consciente ou, então, do dolo eventual revela-se um dos problemas penais mais tormentosos. Para não agravar a busca por uma solução, é indispensável afastar-se do universo psíquico do motorista, ou seja, deve-se retirar do condutor a competência de definição de que modo atuou no caso concreto. Como ele raramente confirmará a aceitação prévia do resultado fatal, não há sentido livrá-lo de possível responsabilização dolosa concedendo exclusiva atenção à ausência de seu consentimento. Uma conclusão nesse sentido estaria respaldada em simples presunção. Esse é o efeito de se adotar uma teoria volitiva visando a diferenciação das duas figuras. Esse foi o caminho seguido no julgado do StJ. Para fugir do natural subjetivismo, deve-se rever o reinado da teoria volitiva para destacar o primado de teoria cognitiva. Com efeito, o principal elemento do dolo passará a ser o conhecimento do agente, e não mais sua vontade psicológica. A partir dessa guinada hermenêutica, é dever identificar os elementos sobre os quais a consciência do motorista precisa incidir para que sua conduta seja reprovada como dolosa. O principal elemento, sem dúvida, diz respeito à quantidade de bebida alcóolica ingerida previamente à condução. Embora não haja a definição legal de percentual único que, se ultrapassado, influencie seriamente a condução do veículo automotor, o condutor sabe que quanto maior for o consumo etílico, independentemente de suas características pessoais, maior será a qualidade do risco conscientemente criado ao conduzir. é por isso que a qualidade do risco criado pelo condutor deve se sobrepor à sua suposta indiferença ou confiança, pois assim se permite ao intérprete avaliar melhor o que passa na cabeça do agente para concluir se houve dolo eventual ou culpa consciente. nessa linha, seja porque há uma representação relativamente grande de o evento fatal ocorrer, seja porque o perigo criado representa, em si, método idôneo para provocar uma morte, torna-se indiferente analisar a confiança do motorista na não ocorrência do resultado. Essa análise cognitiva não altera a interpretação pretoriana de que o homicídio no trânsito é, em regra, cometido culposamente, pois apenas a presença de circunstâncias especialmente perigosas como, por exemplo, na linha trilhada, a ingestão de quantidade elevada de bebida alcóolica, ocasionará uma alteração para a figura dolosa. 16

Sobre a crise dos conceitos volitivos de dolo, pode-se conferir: MArtInELLI, J. P. O.; DE BEM, L. S. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo:: Saraiva, 2018. p. 466 e ss. LEOnArDO SCHMItt DE BEM / JOÃO PAULO OrSInI MArtInELLI

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a FiGUra QUaLiFiCada dO CriMe de LeSÃO COrPOraL CULPOSa de trÂnSitO

Com a promulgação da Lei nº 13.546/2017, infere-se que a redação final do § 2º do art. 303 do CtB17 é bastante diversa à do Projeto de Lei nº 5.568/2013.18 A intenção da deputada Keiko Ota, novamente, cingia-se à intolerância total ao consumo de álcool ou de qualquer outra substância de efeitos análogos. A redação típica por ela proposta, porém, ganhou contornos distintos no Substitutivo do PL nº 5.568/2013, posteriormente aprovado no plenário da Câmara dos Deputados. Sem nenhuma emenda proposta no Senado Federal, o § 2º do art. 303 do CtB foi sancionado com redação típica semelhante à previsão do crime de embriaguez ao volante (art. 306). não será suficiente a mera ingestão de álcool (ou de outra substância que cause dependência) pelo condutor do veículo automotor para fins de punição, pois se exige que o consumo pretérito altere a sua capacidade psicomotora e, assim, diminua suas faculdades de percepção, autocontrole e reação durante a condução (VICEntE MArtínEZ, 2006, p. 185). Sendo um requisito elementar do tipo legal, será dever ministerial indicá-lo na denúncia. Para tanto, será imprescindível comprovar – e não apenas presumir – a efetiva afetação pela substância.

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nesse aspecto, é essencial fazer uso da interpretação sistemática, ou seja, cotejar a norma penal em análise com outra norma do sistema jurídico. A mais indicada é o atual § 1º do art. 306 do CtB, de sorte que a alteração da capacidade psicomotora poderá ser constatada em razão de o agente exceder um limite quantitativo – inc. I – ou, ainda que não o exceda, por um conjunto de sinais disciplinados pelo Conselho nacional de trânsito (Contran) – inc. II. Ademais dessa constatação, é necessário que se estabeleça o efeito que o álcool ou qualquer outra substância psicoativa provocou na própria condução realizada pelo agente, visto que a responsabilidade pelo acidente de trânsito deve ser exclusiva do condutor ou, no mínimo, que ele concorra em responsabilidade com a própria vítima. relevante precisar o alcance da expressão “em razão da influência” constante do dispositivo, porque não será suficiente certo nível de álcool ou de drogas à configuração típica, mas que tal substância psicoativa influencie realmente a condução do veículo pelo agente. Provocar acidente em razão da influência do álcool não é a mesma coisa que conduzir o veículo embriagado. Além do conjunto de elementos normativos anteriormente destacado, a descrição típica exige a ocorrência de um resultado lesivo de natureza grave ou gravíssima. nesse ínterim, desponta violação ao princípio da legalidade, pois a exigência de um mandato de certeza, como garantia material, perde-se diante de ofensa à taxatividade. O conteúdo da proibição e seus contornos não se revelam inequívocos e exaustivos quando o legislador se 17

A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima. 18 na lesão corporal culposa de trânsito cometida na direção de veículo automotor, aumenta-se a pena de um terço à metade, se o agente dirigir veículo automotor em via pública e estiver sob a influência de qualquer concentração de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos. rEVIStA DO MInIStérIO PúBLICO DO EStADO DE GOIáS


socorre de uma cláusula geral. Quando a lesão corporal culposa será grave ou gravíssima? não é possível saber com segurança o que a construção legal pretende castigar, ao contrário do Código Penal, que faz a distinção entre as modalidades taxativamente. Essa indeterminação legal não implicaria uma automática declaração incidental de inconstitucionalidade do dispositivo, mas ensejaria, em caso de condenação, o dever judicial de adoção de sentença com perfil restritivo, é dizer, desconsiderando o desvalor do resultado como elemento do tipo qualificado para sopesá-lo somente na determinação da penabase. Os dois elementos normativos, isoladamente, afastariam a incidência do tipo culposo básico, sendo que a ponderação sobre a gravidade do resultado lesivo em si seria realizada – com razoabilidade – quando da determinação da pena-base. Distante desse entendimento, provável que surgirão vozes propondo a definição das hipóteses de gravidade da lesão corporal através dos §§ 1º e 2º do art. 129 do Código Penal. Essa alternativa deverá ser recebida com cautela, a uma, porque os dois parágrafos se referem à conduta dolosa e não culposa; a duas, pois o desvalor de ação de um injusto culposo não se altera em razão do resultado que é produzido, até porque não haveria um excesso culposo de violência culposa; por último, em determinados contextos, a situação de culpa inconsciente em relação ao resultado mais grave poderia ficar excluída. Parece-nos que a distinção entre as modalidades de lesão no Código Penal só é aplicável simultaneamente quando o desvalor da ação estiver fundado no dolo, e não na culpa. À margem dessa importante discussão, esclarece-se que na proposição originária não houve previsão de circunstância qualificadora ao crime de lesão corporal culposa de trânsito. A deputada Keiko Ota somente propôs simples causa de aumento com quantum variável de um terço à metade. A majoração incidiria na última fase da dosimetria, após o juiz alcançar a pena provisória com a avaliação das circunstâncias legais, se existentes. A qualificação, em si, decorreu do Substitutivo apresentado pelo deputado Hugo Leal. As margens penais por ele consignadas (três a seis anos de reclusão), porém, foram reputadas desproporcionais pelo deputado Efraim Filho. O plenário da Câmara, quando da votação do Substitutivo, aprovou o dispositivo com novos limites, é dizer, reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das demais penas (acessórias) cominadas à infração. é necessário reconhecer que o legislador pensa que a norma penal incriminadora apenas cumpre a sua finalidade se prever penas excessivas à conduta proibida. é por isso que discutir o arbítrio legislativo quanto à cominação de penas desproporcionais é medida urgente. Que fique bastante claro que não duvidamos da legitimidade do delito, contudo é impossível calar-se diante de gritantes e múltiplos excessos. toda e qualquer alteração da lei penal deve considerar a legislação como um todo para evitar desproporcionalidades e falta de alinhamento dogmático entre os dispositivos. Para iniciar, observe que a pena mínima cominada à forma qualificada do delito é maior que a pena mínima prevista para o crime de homicídio culposo fora dos casos de trânsito – art. 121, § 3º (BrASIL, 1940) –, isto é, um ano de detenção. Se não fosse o bastante, aquela infração é apenada com reclusão e, como tal, pode-se determinar o regime fechado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade – art. 33, caput (BrASIL, 1940).

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A desproporcionalidade continua presente se compararmos o mínimo cominado à modalidade qualificada da lesão corporal culposa de trânsito com a sanção consignada à qualificadora do § 1º do art. 129 do Código Penal. Ainda que a forma de execução possa ser diferente (porém nada obsta que um motorista se embriague preordenadamente com o fim de atropelar específica pessoa), a pena da primeira infração corresponde ao dobro da lesão corporal dolosa. A ofensa à proporcionalidade reside na desconsideração da natureza da infração, porquanto um delito doloso não pode ser sancionado menos gravemente que um crime culposo sendo idêntico o objeto de proteção. não obstante seja acertado afirmar que no comportamento culposo também existe uma relação gradual de violação do bem jurídico e, assim, como matiza Cássio Honorato (2007, p. 464), “quanto maior a lesão produzida na vítima, maior deveria ser a pena imposta ao agente”, isso não basta para que se desconsidere a natureza delitiva. Aliás, como dito anteriormente, o juiz deverá valorar esses níveis de ofensa quando da fixação da pena-base, nas considerações sobre a consequência do delito (circunstância judicial do art. 59 do Código Penal).19

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A título de conclusão, duas notas finais. Primeiramente, a influência do álcool ou de drogas na pessoa do condutor e na sua forma de dirigir já seria passível de punição pela incidência do tipo legal fundamental (art. 303, caput). Porém, o legislador especificou esse contexto na redação do novo parágrafo, devendo a norma especial afastar a geral.20 Em segundo lugar, não será mais possível falar de um concurso de crimes entre a lesão corporal culposa (art. 303, caput) e a embriaguez ao volante (art. 306). Isso porque, além de continuar constituindo uma infração autônoma, o crime de perigo passou a qualificar o delito de dano, razão pela qual, verificando-se o resultado lesivo, aplicar-se-á somente a norma principal do § 2º do art. 303, com redação dada pela Lei nº 13.546/2017.21

a nOVa redaçÃO dO CriMe dO art. 308 dO CÓdiGO de trÂnSitO

O caput do art. 308 do Código de trânsito passou a vigorar com redação distinta a partir da promulgação da Lei nº 13.546/2017. O legislador incluiu no preceito primário nova conduta: “participar na direção de veículo automotor, em via pública, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada” (BrASIL, 2017).22

19

Por certo, mantida a gravidade do resultado lesivo em si como elemento do tipo qualificado, sob pena de incidência do odioso bis in idem, essa consequência não poderá influir na dosagem da pena-base. 20 Seguindo nossa proposição, a partir da adoção de sentença com perfil restritivo, a gravidade do resultado lesivo em si não seria um elemento especializante da norma penal. 21 A nosso ver, o aparente conflito entre os tipos legais seria resolvido pelo princípio da subsidiariedade, pois as infrações (art. 303, § 2º e art. 306, ambos do CtB) descrevem violações relativas ao mesmo bem jurídico, mas em níveis distintos. no entanto, caso seja aplicado o princípio da consunção ou absorção, como é a tônica nos tribunais estaduais (e superiores), o resultado final não será modificado. 22 O acréscimo é semelhante ao proposto ao crime de homicídio culposo de trânsito pela Lei nº 12.971/2014, atualmente revogada, se a morte decorria de participação do agente em manobras arriscadas (art. 302, § 2º). O legislador previa à forma qualificada pena de reclusão de dois a quatro anos. rEVIStA DO MInIStérIO PúBLICO DO EStADO DE GOIáS


Sabe-se que alguns condutores circulam nas vias públicas de trânsito realizando manobras bruscas ou arriscadas. Indiferente à motivação, valem-se do veículo automotor para exibição ou demonstração de habilidades incompatíveis com a segurança no trânsito, como, por exemplo, conduzindo em zigue-zague, isto é, alterando a direção do automotor de forma sinuosa, como se o veículo estivesse dançando no asfalto. Há perigo de colisão, mormente se a manobra é realizada por caminhoneiros, pois a carroceria pode invadir a pista contrária, gerando risco aos condutores que trafegam em sentido oposto. O perigo, aliás, não se presume. tratando-se de crime de perigo concreto, faz-se necessário comprovar que a conduta do condutor gerou, efetivamente, um dano potencial à incolumidade pública ou privada (isto é, risco aos bens jurídicos protegidos). Atente-se que é a potencialidade de dano que distingue o delito da correlata infração administrativa do art. 175 da Lei nº 9.503/97, pois, nesse contexto, o legislador não exige o resultado de perigo concreto decorrente, por exemplo, de uma derrapagem ou arrancada brusca. Excepcionando os casos de competições esportivas,23 a participação dos agentes em demonstração de perícia ou exibição em manobras com veículo automotor ocorre na clandestinidade, sem a autorização da autoridade competente. Em alguns casos, ademais, os agentes se valem de rodovias para realização das condutas arriscadas. Exemplifique-se com as pranchas dos motociclistas e as quebras da asa dos caminhoneiros. Os malabarismos efetuados com motos e sobre elas podem gerar situação de risco a terceiros. Muitos transitam apenas em uma das rodas, empinando-as. Outros, em motos de porte reduzido, mas alteradas para ganhar velocidade não compatível com a máxima atestada pelo fabricante, enquanto pilotam com uma das mãos, flutuam nos assentos com corpos e pernas soltas no ar, naquilo denominado como “prancha”. A quebra da asa, prática extremamente arriscada, trata-se de manobra realizada em alta velocidade na qual o motorista tira as rodas do caminhão da pista contorcendo a carroceria, ou seja, ele força um possível tombamento virando completamente a direção para um lado, mas, quando o caminhão está prestes a tombar, gira abruptamente o volante para o sentido contrário para a carreta voltar ao chão. nos centros urbanos, por sua vez, é comum o cavalo de pau, que consiste numa freada brusca com giro simultâneo de direção do veículo automotor, fazendo-o derrapar e dar meia volta até parar em posição invertida. Há ainda quem realize a manobra girando em torno do eixo dianteiro (sob uma das rodas) em voltas de 360 graus, formando riscos circulares na pista. As consequências podem ser, inclusive, fatais.24

23

Art. 67 da Lei nº 9.503/1997. Aliás, se da prática do crime previsto no caput do art. 308 resultar morte, e as circunstâncias da conduta demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade será de reclusão de cinco a dez anos (art. 308, § 2º). 24

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COnSideraçõeS FinaiS

Virou tradição, nova lei de trânsito! não se trata de enredo carnavalesco, senão é o resultado da inflação legislativa nesse setor social. Em pouco mais de dez anos foram promulgadas seis leis com reflexos penais no trânsito. Quiçá nenhuma outra legislação recebeu tantos (maus) reparos como a Lei nº 9.503/1997 (CtB). Em cada mudança há uma nova leva de textos e vídeos explicativos provenientes dos mais diversos nichos jurídicos. A última alteração já chamou a atenção de vários operadores de direito. A verdade, no entanto, é que pouco se aproveita das explicações ofertadas, seja pela sucessão de erros na análise dogmática da Lei nº 13.546/2017, seja pela sua diminuta interpretação constitucional. A pretensão neste texto, assim, não foi somente censurar o legislador com sua nova proposta legal simbólica, mas também alertar os leitores de algumas interpretações realizadas à margem das melhores técnicas. Essas considerações, apenas iniciais, servem como orientação aos acadêmicos e operadores do direito e visam, efetivamente, substituir as dúvidas por certezas. Esperamos ter logrado êxito!

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