A teoria dos princípios e o suporte fático

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Bruno Moraes Faria Monteiro Belem* A teoriA dos princípios e o suporte fático dAs normAs de direitos fundAmentAis ThE ThEOry OF PrinCiPLES AnD ThE FACTUAL SUPPOrT OF ThE FUnDAMEnTAL riGhTS TEOrÍA DE LOS PrinCiPiOS y EL APOyO FáCTiCO DE LOS DErEChOS FUnDAMEnTALES

Resumo: As regras são aplicadas na forma do “tudo ou nada”, ou se aplicam ou não se aplicam na sua completa extensão. Por outro lado, os princípios apresentam uma aplicabilidade variável, condicionada pela importância que se lhe é atribuída no caso concreto. A partir da distinção estrutural entre regras e princípios se visualiza a importância de se examinar o suporte fático das normas de direitos fundamentais. A configuração do suporte fático das normas sobre direitos fundamentais influencia diretamente na sua forma de aplicação, na própria possibilidade de restrição aos direitos fundamentais e na possibilidade de haver colisões entre estes. A adoção de um modelo que assimile um suporte fático amplo das normas de direitos fundamentais de liberdade exige do Estado um maior esforço argumentativo para a restrição de direitos fundamentais. Abstract: The rules are applied in the form of "all or nothing", they are applied or not apply in its full extent. On the other hand, the *Especialista em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito Constitucional pela UFG. Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-GO. Professor de Direito Constitucional (Uni-Anhanguera).Procurador do Estado de Goiás e Assessor Técnico na Secretaria de Estado da Casa Civil.

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principles have a variable applicability, which is conditioned by the importance that is assigned to it in this case. From the structural distinction between rules and principles emerges the importance of examining the factual support of fundamental rights standards. The configuration of the factual support of the standards on fundamental rights has a direct influence on your application form, the very possibility of restricting the fundamental rights and the possibility of collisions between such fundamental rights. The adoption of a model that assimilates a broad factual support standards of fundamental rights requires from the State a greater effort to create restriction on fundamental rights. Resumen: Las reglas se aplican en forma de "todo o nada", o se aplican o no se aplican en toda su extensión. Por otro lado, los principios tienen una aplicación a una variable, que está condicionada por la importancia que se le asignan en este caso. A partir de la distinción estructural entre reglas y principios se permite ver la importancia de examinar el apoyo fáctico de las normas de derechos fundamentales. La configuración del apoyo fáctico de las normas sobre los derechos fundamentales tiene una influencia directa en su formulario de solicitud, la posibilidad de restringir los derechos fundamentales y la posibilidad de colisiones entre esos derechos fundamentales. La adopción de un modelo que asimile un suporte fáctico amplio de las normas de los derechos fundamentales de libertad requiere del Estado un mayor esfuerzo argumentativo para la restricción de los derechos fundamentales. Palavras-chaves: Teoria, direitos fundamentais, suporte fático. Keywords: Theory, fundamental rights, factual support. 334


Palabras clave: Teoría, derechos fundamentales, apoyo fáctico.

introduÇÃo

no Direito, a partir da segunda metade do século XX, percebe-se uma forte aproximação entre ética e direito, do que resultou a relação direta entre valores, princípios e regras, assim como a edificação da teoria dos direitos fundamentais sobre a ideia de dignidade da pessoa humana. nesse contexto de supremacia dos direitos fundamentais, os olhos se voltam para os deveres fundamentais do Estado de respeitar, proteger e promover os direitos de liberdade ou as liberdades públicas (direitos de primeira dimensão ou geração) e também os direitos sociais, econômicos e culturais (direitos de segunda dimensão ou geração). A participação do Estado, seja através do dever de respeitar – fundamentalmente ligado a obrigações negativas (um não fazer) –, seja através dos deveres de proteger e de promover, essencialmente relacionados com obrigações positivas (um fazer) –, tem como foco alcançar uma transformação social e permitir a emancipação de parcela da sociedade. num ou noutro ambiente, o discurso acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fundamentais e do reencontro com a Ética deve ter repercussão sobre o ofício dos advogados, públicos ou privados, juízes, promotores de justiça, vale dizer, dos operadores do Direito em geral, assim como sobre a atuação do Poder Público e sobre a vida das pessoas (BArrOSO; BArCELOS, 2003, p. 337). O objetivo deste breve ensaio é, através da análise da estrutura das normas de direitos fundamentais, designadamente daquelas que definem direitos de liberdade (liberdades públicas), 335


contribuir para a compreensão da dinâmica entre o reconhecimento de tais direitos e a sua eficácia ou efetividade. num exercício de delimitação negativa do objeto desta exposição, deve-se advertir que o enfoque que pretendo adotar será o jurídico-dogmático. Por isso, não serão objeto deste trabalho a análise dos fundamentos filosóficos ou políticos que sustentaram o reconhecimento das normas de direitos fundamentais como princípios e do papel que o valor da dignidade da pessoa humana possui nessa nova realidade.

o modeLo dos direitos fundAmentAis enQuAnto princípios

não se pretende, aqui, realizar uma distinção detalhada entre regra e princípio. Assume-se como certa uma diferenciação qualitativa, que leva em conta a forma de aplicação de cada uma dessas espécies normativas – sendo certo que tal distinção decorre da estrutura normativa que cada qual ostenta. Assim, as regras garantem direitos ou impõem deveres definitivos, passo que os princípios garantem direitos ou impõem deveres prima facie, ou seja, situações protegidas nos limites da existência de uma outra norma de mesmo grau hierárquico em sentido contrário. Essa distinção leva em conta a forma através da qual a norma é aplicável. Disso decorre que, a partir da simples verificação dos pressupostos fáticos e jurídicos selecionados pelo legislador na regra, esta automaticamente deverá produzir os seus efeitos, pois expressam mandamentos de definição. A norma que determina a cobrança de iPVA sobre a propriedade de veículo automotor aéreo, aquático ou terrestre, quaisquer que sejam as suas espécies, por exemplo, é uma regra. Por isso se diz que as regras são aplicadas na forma do 336


“tudo ou nada” (DWOrKin, 2002), ou se aplicam ou não se aplicam na sua completa extensão. Por isso se fala do conflito entre duas regras, ou seja, se duas regras prevêem consequências diferentes para o mesmo ato ou fato, uma delas deve necessariamente ser afastada do ordenamento (seja pelo critério hierárquico, cronológico ou da especialidade). Enquanto a dimensão fundamental das regras é a da validade, a dos princípios, segundo ronald Dworkin, é a do peso. isto é, os princípios apresentam uma aplicabilidade variável, que é condicionada pela importância que se lhe é atribuída no caso concreto. Com base nessa distinção, robert Alexy (2000), na sua teoria dos princípios, afirma que os princípios são mandamentos de otimização, ou seja, normas que exigem que algo (a sua consequência jurídica) seja realizado na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas. Daí que a verificação dos pressupostos fáticos e jurídicos selecionados pelo legislador em determinado princípio implica que os efeitos nele estabelecidos sejam implementados na maior extensão possível, segundo as condições do caso concreto. isso porque, ainda segundo Alexy, ao contrário do que ocorre no conflito entre regras, o caso de colisão entre princípios deve ser solucionado através da fixação de relações condicionadas de preferência entre eles, técnica denominada de sopesamento, ponderação ou proporcionalidade em sentido estrito. Por exemplo, para se saber se a cobrança de estacionamento em centros comerciais é constitucional – desconsiderada aqui a questão atinente à competência legislativa – é possível vislumbrar uma colisão entre a norma-princípio que define a livre iniciativa e o direito de propriedade e a norma-princípio que define a liberdade de locomoção e o interesse estatal no planejamento urbano e na organização do trânsito. no caso de limitações estabelecidas pela municipalidade ao direito de construir, pode-se identificar uma colisão entre a norma-princípio do 337


direito fundamental de propriedade e da livre iniciativa e o interesse coletivo em se promover o adequado ordenamento territorial e do controle de impactos de vizinhança e de trânsito. nesses dois casos, deixando-se de lado normas sobre competência legislativa, tem-se que a validade ou a invalidade da intervenção estatal decorrerá de um juízo ponderativo realizado a partir de condições de preferência, ou seja, condições a favor de um ou de outro interesse em dado caso concreto. Aqui não se pretende analisar a norma da proporcionalidade como método para a solução de colisões entre princípios, o que se almeja é tão somente sinalizar para a distinção que há entre regras e princípios. É com foco nessa distinção que a teoria dos direitos fundamentais, à moda alexyana, considera que os direitos fundamentais têm, em sua maioria, estrutura de princípios, pois exigem que algo seja realizado na maior medida possível, segundo as condições fáticas e jurídicas do caso concreto. A partir dessa premissa, ou seja, da distinção estrutural entre regras e princípios, se visualiza a importância de se examinar o suporte fático das normas de direitos fundamentais.

o suporte fático dos direitos fundAmentAis

noções introdutórias A configuração ou a extensão do suporte fático das normas sobre direitos fundamentais influencia diretamente na sua forma de aplicação – subsunção, sopesamento, concretização, etc.; nas exigências de fundamentação nos casos de restrições a direitos fundamentais; na própria possibilidade de restrição a direitos fundamentais e na possibilidade de haver colisões entre tais 338


direitos fundamentais. A verificação desses fatores, que às vezes é tida como pacífica em muitos trabalhos e decisões judiciais, depende sempre de uma precisa determinação do conceito de suporte fático. A adoção de um modelo geralmente é feita de forma imperceptível ou mesmo involuntariamente, mas produz consequências do ponto de vista metodológico e prático relevantíssimas. Aqui o suporte fático será, numa concepção restritiva, adotado apenas para simplificar o discurso, considerado como sinônimo de âmbito de proteção1. A definição do âmbito de proteção de um direito fundamental responde à seguinte indagação: quais atos, fatos, estados ou posições jurídicas são protegidos pela norma que garante o referido direito? (SiLVA, 2010, p. 72) É através do exame do suporte fático do direito de liberdade de manifestação artística, por exemplo, que podemos saber se tal direito protege a conduta do artista que deseja pintar um muro colocando um cavalete no meio de uma esquina movimentada, restringindo, com isso, o trânsito de pedestres ou mesmo de veículos. É por meio do exame do suporte fático do direito de propriedade e da livre iniciativa que se pode perquirir se a vedação da cobrança de estacionamento em centros comerciais privados ou a imposição de limitações de altura ao direito de construir edifícios em determinadas áreas da cidade seriam inconstitucionais. É a partir da extensão que se queira dar à liberdade de expressão que se pode concluir pela validade ou invalidade do ato estatal que impede a publicação de um livro contendo ideias antissemitas. É ainda segundo o entendimento que se adote acerca do suporte fático da liberdade religiosa que se pode avaliar a constitucionalidade de uma lei que proíbe discursos ou pregações supostamente homofóbicas.

não se ignora, contudo, que o âmbito de proteção, entendido como aquilo que se pretende proteger com determinada norma jurídica, é um dos elementos do suporte fático, ao lado da intervenção. Para mais desenvolvimentos, cf. Silva (2010, p. 68 e ss.).

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Os exemplos fornecidos dizem respeito às liberdades públicas, que têm como função primordial proteger algo contra intervenções indevidas. nesse caso, a consequência jurídica da norma garantidora, que é a cessação da intervenção no âmbito de proteção do direito fundamental, somente é produzida se houver um ato interventivo ilegítimo no âmbito de proteção da mesma norma2. não se esquecer de que aqui essa construção refere-se às liberdades públicas como direitos de defesa, ou seja, em referência à dimensão negativa dos direitos fundamentais, vale dizer, a dignidade da pessoa humana como limite às intervenções positivas do Estado. Fica de fora, nessa breve exposição, o estudo da dignidade da pessoa humana como tarefa, ou seja, na sua dimensão positiva, isto é, como o direito a prestações materiais ou jurídicas em favor das pessoas (SArLET, 2007, p. 378). Essa percepção exige a definição do que é esse algo, qual a sua extensão e quais os tipos de possíveis intervenções. Assim, como definir o suporte fático de normas que garantem a liberdade de expressão ou o direito à privacidade? Tanto aquilo que é protegido (a livre expressão do pensamento ou o direito à intimidade), como aquilo contra o quê se protege (uma intervenção, estatal ou privada) fazem parte do suporte fático dos direitos fundamentais (SiLVA, 2010, p. 71). Do ponto de vista prático, a inclusão ou a exclusão de determinada conduta do âmbito de proteção de dada norma de direitos fundamentais influencia o método de interpretação e 2 Virgílio Afonso da Silva esclarece que o suporte fático de um direito fundamental deve conjugar todos os elementos que, quando preenchidos, dão ensejo à realização da consequência jurídica da norma que garante esse direito, seja ela uma norma de direito fundamental de liberdade seja ela uma norma de direito fundamental social. Consoante o pensamento do mesmo autor, com relação às normas de direitos sociais, na sua dimensão positiva, tanto o conceito de âmbito de proteção como o de intervenção devem ser alterados. O âmbito de proteção então passa a ser composto pelas ações estatais que fomentem a realização desse direito (direito à saúde, por exemplo). A intervenção, por seu turno, deve ser entendida como uma ação estatal promotora, ou seja, um agir. Já o que deve ser fundamentado é uma omissão ou uma ação insuficiente, e não mais uma ação dita como restritiva (cf. SiLVA, 2010, p. 72 e ss.).

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aplicação do direito e depende do modelo de suporte fático adotado. Essa opção reflete, de maneira especial, na fundamentação do ato de intervenção estatal e, em consequência, no ônus argumentativo do autor deste ato. Para saber se tais condutas são protegidas pela referidas normas sobre direitos fundamentais pode-se adotar um de dois modelos básicos: i) ou se inclui no âmbito de proteção toda ação, fato, estado ou posição jurídica que tenha qualquer característica que, isoladamente considerada, faça parte do “âmbito temático” ou do “âmbito da vida” de um dado direito fundamental (modelo do suporte fático amplo); ii) ou, ao invés disso, se realiza previamente uma espécie de triagem capaz de excluir algumas condutas que se acredita não serem protegidas pelo direito (modelo do suporte fático restrito) (SiLVA, 2010, p. 78). A adoção de um ou de outro modelo repercute diretamente no método de interpretação e aplicação do direito utilizado para se saber se dada intervenção estatal deverá ser considerada uma mera restrição – fundamentada constitucionalmente – ou uma violação. A depender do modelo adotado, não é possível sequer assimilar a ideia de restrição, de modo que qualquer intervenção, nesse caso, deverá ser tida como mera delimitação do direito fundamental em causa. Para se compreender o que acaba de ser afirmado, é preciso examinar os dois modelos de suporte fático das normas de direitos fundamentais: o restrito e o amplo.

Suporte fático restrito Através desse modelo se excluem, a priori, determinadas condutas do âmbito de proteção dos direitos fundamentais. na jurisprudência do STF aparece, com frequência, ainda que sem referência expressa a uma teoria sobre o suporte fático dos direitos 341


fundamentais, argumentos que se baseiam em uma exclusão inicial de alguma ação, estado ou posição jurídica do âmbito de proteção de certos direitos. Assim, é possível citar o caso em que o min. Celso de Mello afirmou que a “cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar” não pode proteger a prática de atos ilícitos, como os delitos contra a honra3. O min. Moreira Alves declarou que práticas de discriminação contra judeus ou outros grupos étnicos ou religiosos não estão incluídas no âmbito de proteção do direito à liberdade de expressão4. Ou seja, para ele, o direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que impliquem ilicitude penal. Adepto do modelo de suporte fático restrito, José Carlos Vieira de Andrade (2004, p. 294) traz, ainda, os seguintes exemplos: i) a liberdade religiosa não protege a conduta de efetuar sacrifícios humanos ou de furtar o material necessário à execução de uma obra de arte. nos três exemplos mencionados anteriormente parte-se de uma concepção restrita do suporte fático dos direitos fundamentais, do que resultou o argumento de que não há que se falar em restrição a direitos, nem em sopesamento de princípios, mas apenas em delimitação do âmbito de proteção da norma. O problema é revelar os critérios utilizados para se fixar os limites de cada direito fundamental, ou seja, onde começa o direito de um e onde termina o direito do outro. A partir desse modelo ficam, desde logo, excluídas algumas condutas do âmbito de proteção dos direitos de liberdade. Em outras palavras, o modelo de suporte fático restrito, que comprime o âmbito de proteção de dado direito fundamental, tem o expresso objetivo de evitar colisões entre direitos fundamentais e, com isso, excluir o sopesamento como forma de interpretar e aplicar o direito (SiLVA, 2010, p. 89). 3 4

hC 70814 / SP, Primeira Turma, relator: Min. Celso de Mello, DJ 24-06-1994. hC 82.424 / rS, Plenário, relator: Min. Moreira Alves, DJ 19-03-2004.

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Por isso que aceitar os pressupostos teóricos da teoria dos princípios nos moldes desenvolvidos por Alexy implica, necessariamente, a rejeição das teorias restritas sobre o suporte fático, pois neste modelo os limites (e não as restrições) seriam internos ao próprio direito, e não externos. Admitir o método da ponderação como meio de solucionar colisões entre direitos pressupõe a adoção da ideia de que as normas com estrutura de princípios são mandamentos de otimização e, por isso, sujeitas a restrições externas. Virgílio Afonso da Silva (2010, p. 96) tece profundas críticas ao modelo de suporte fático restrito. O autor denuncia, em primeiro lugar, o conservadorismo fomentado por tal modelo, na medida em que um enfoque originalista ou histórico-genético faz com que a proteção dos direitos fundamentais fique represada ao contexto em que ocorreu a promulgação da Constituição, impedindo a atualização do âmbito de proteção dos direitos fundamentais a uma realidade cambiante. Além disso, meio que por intuição, o modelo de suporte fático restrito produz uma exclusão a priori e em abstrato de certas condutas, que não ficariam protegidas pelo direito. A conduta de se mostrar as nádegas em público é um bom exemplo. Em abstrato tal conduta poderia ser considerada ilícita, mas, de acordo com as circunstâncias fáticas verificadas no caso do diretor de teatro Gerald Thomas, o STF a considerou protegida pela liberdade de expressão, motivo por que não vislumbrou a ocorrência de ilícito penal. Outra crítica que se faz à teoria do suporte fático restrito diz respeito à fragilidade na distinção entre regulação (intervenção no meio) e restrição (intervenção no conteúdo), em se tratando, por exemplo, da liberdade de reunião. Assim, não seria possível afirmar, sem grandes ressalvas, que intervenções na forma de exercício deste direito fundamental não possam implicar relevantes restrições ao seu conteúdo, o que poderia ocorrer 343


caso a Administração resolvesse pura e simplesmente proibir reuniões e debates públicos no centro da cidade e durante o dia. Tal “regulamentação” poderia ser vista como uma “restrição”, muito embora versasse tão somente acerca do local e do horário.

Suporte fático amplo A grande diferença entre o modelo de suporte fático restrito e o de suporte fático amplo é que o primeiro parte da definição daquilo que é definitivamente protegido, excluindo-se outras condutas que, por outro lado, são definitivamente desprotegidas; ao passo que o segundo modelo define apenas aprioristicamente o que é protegido prima facie e, feito o sopesamento, poderá ser protegido definitivamente. O primeiro pergunta: o que é protegido definitivamente por esse direito? O segundo pergunta: o que é protegido prima facie por esse direito? nesse caso não se confundem a restrição permitida e a violação. Esta, por não ter passado no teste da ponderação entre os bens ou interesses em causa, deve ser afastada pelo aplicador do direito. Os defensores do modelo de suporte fático amplo dizem que as exigências que ele impõe à argumentação implicam um maior grau de proteção aos direitos fundamentais (SiLVA, 2010, p. 111). isso porque se amplia o âmbito de proteção e, com isso, transforma em restrição (externa) o que antes era uma mera delimitação (interna). no julgamento da ADi n. 2.566, o STF apreciou a constitucionalidade de lei que vedava o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária5. Segundo os pressupostos do modelo de suporte fático amplo, se chega à conclusão de que a liberdade de expressão protege a conduta de fazer proselitismo. Com o mesmo raciocínio, a liberdade de expressão protege, prima facie, 5

ADi 2566 MC/DF, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 27-02-2004.

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inclusive, a manifestação de pensamentos caluniosos. A adoção de um modelo de suporte fático amplo não inviabiliza as restrições aos direitos fundamentais, mas apenas impõe um maior ônus argumentativo para as intervenções estatais. Dessa forma, o que se tem é um reforço dos direitos de liberdade através da realização de uma garantia mais eficaz. Assim, a relação entre os direitos e seus limites ou restrições fica subordinada à regra da proporcionalidade, tema que refoge aos limites impostos a esta apresentação. Cumpre assentar apenas que a norma da proporcionalidade constitui um método de interpretação e aplicação do direito compatível e coerente com a teoria dos direitos fundamentais enquanto princípios. Em suma, um modelo que se baseia na redução a priori do âmbito de proteção de direitos fundamentais tende a significar também uma garantia menos eficaz desses direitos na atividade legislativa e na atividade juridicional, pois exclui da exigência de fundamentação uma série de atos que inegavelmente restringem direitos, ainda que de forma legítima.

repercussÕes práticAs e metodoLÓGicAs dA AdoÇÃo de um modeLo de suporte fático AmpLo

A principal repercussão metodológica produzida pela adoção de um modelo de suporte fático amplo das normas de direitos fundamentais de liberdade é a adoção da ponderação como forma de solução das colisões entre direitos fundamentais ou entre um dado direito fundamental e outro interesse qualquer igualmente protegido por normas constitucionais. isso porque, partindo do pressuposto de que o direito fundamental tem estrutura de princípio, admite-se que ele deve 345


proteger um rol extensivo de condutas. na solução da colisão, então, o aplicador deverá decidir se o grau de restrição a um dado direito fundamental de liberdade (direito de propriedade e à livre iniciativa no caso da vedação de cobrança pelo estacionamento ou no caso de limitações ao direito de construir) é justificado pelo grau de satisfação de outro direito ou interesse (direito de locomoção dos demais indivíduos, planejamento urbano, segurança no trânsito, etc.). Por isso, considera-se a adoção do modelo de suporte fático amplo mais coerente com a teoria dos direitos fundamentais como princípios que, dada a sua morfologia, devem ser realizados na maior medida possível, de acordo com as condições fáticas e jurídicas no caso concreto. Ao contrário das teorias que se baseiam em um suporte fático restrito para os direitos fundamentais, um modelo baseado no suporte fático amplo não se preocupa com o que deve ou não ser incluído no âmbito de proteção de uma dada norma de direitos fundamentais e com a extensão do conceito de intervenção estatal, mas com a argumentação possível no âmbito da fundamentação constitucional das intervenções (SiLVA, 2010, p. 94). nesse caso, o que ocorre é um deslocamento do foco da argumentação: em vez de se focar no momento da definição daquilo que é protegido e daquilo que caracteriza uma intervenção estatal, há uma concentração da argumentação no momento da fundamentação da intervenção.

concLusÃo

A adoção de um modelo que assimile um suporte fático amplo das normas de direitos fundamentais de liberdade exige 346


do Estado um maior esforço argumentativo para a restrição de direitos fundamentais, seja qual for o âmbito de atuação, se jurisdicional, administrativo ou legislativo. Daí se falar, na linha do que defende o professor Juarez Freitas, no direito a uma boa administração através do reforço da motivação dos atos estatais, nomeadamente as intervenções tidas como restritivas. A adoção de um modelo de suporte fático amplo, que se mostra coerente com a utilização da ponderação como método de interpretação e aplicação do direito, a um só tempo impõe um maior ônus argumentativo nas atividades interventivas do Estado e, por consequência, permite uma maior controlabidade da atividade estatal. Ao fim e ao cabo, o que se pretende é fazer com que as restrições aos direitos fundamentais sejam devida e suficientemente fundamentadas, sendo certo que a melhor prova da ausência de motivação válida de uma intervenção estatal é que ela sirva a qualquer decisão, o que vale por dizer que não serve a nenhuma.

referÊnciAs

ALEXy, robert. On the structure of legal principles. Ratio Juris, v. 13, n. 3, p. 294-303, 2000. ______. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. AnDrADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2004. BArrOSO, Luís roberto; BArCELOS, Ana Paula. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios 347


no direito brasileiro. in: BArrOSO, Luís roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. rio de Janeiro: renovar, 2003. p. 327-378. DWOrKin, ronald. Taking rights seriously. Cambridge: harvard University Press, 2002. SArLET, ingo. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucinal (RBDC), n. 9, p. 361-388, jan./jun., 2007. SiLVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2010.

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