Revista DESMANCHE - 01ª Ed. 2020

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capa (obra da artista) Leila Danziger

Sobre a diferença entre estar exposto e estar incluído. A cidade dos fios de cobre. A greve do negativo e a revolta contra a história. Diário da República de Saló. Epitáfios. Desmonte geral. Tensões. Um antigo casarão da rua Manaus nos escolheu. A Estação das Canetas. Esgotamento.



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Sobre a diferença entre estar exposto e estar incluído Juliano Pessanha Poema I Poema II

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A cidade dos fios de cobre Breno Silva

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A greve do negativo e a revolta contra a história Jean-Michel Heimonet Tradução Lívia Drummond

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Diário da República de Saló Washington Drummond

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Resistir-por-ninguém-e-pornada Leila Danziger

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Desmonte geral Lucio Branco

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Tensões Frederico Canuto

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Um antigo casarão da rua Manaus nos escolheu Priscila Musa

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A Vida de Clarice Lispector

Geraldo Santos

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A Estação das Canetas

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Epitáfios Cristiano Luis, Breno Silva e João Castilho

Marcelo Ariel

Esgotamento Simone Cortezão


Neste ensaio, pretendese esclarecer a diferença antropológica fundamental, a saber, a diferença sloterdijkiana entre estar exposto e estar incluído. No aforismo intitulado “Passageiro”, Kafka escreve:

Estou em pé na plataforma do bonde elétrico e totalmente inseguro em relação à minha posição neste mundo, nesta cidade, na minha família. Nem de passagem eu seria capaz de apontar as reivindicações que poderia fazer, com direito, na direção que fosse. Não posso de modo algum sustentar que estou nesta plataforma, que me seguro nesta alça, que me deixo transportar por este bonde, que as pessoas se desviam dele ou andam calmamente ou param diante das vitrines. É claro que ninguém exige isso de mim, mas dá no mesmo. O bonde se aproxima de uma parada, uma jovem se coloca perto dos degraus pronta para descer. Aparece tão nítida para mim que é como se eu a tivesse apalpado. Está vestida de preto, as pregas da saia quase não se movem,

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a blusa é justa e tem uma gola de renda branca fina, ela mantém a mão esquerda espalmada na parede do bonde e a sombrinha da mão direita se apoia no penúltimo degrau mais alto. Seu rosto é moreno, o nariz levemente amassado dos lados termina redondo e largo. Ela tem cabelos castanhos fartos e pelinhos esvoaçando na têmpora direita. Sua orelha pequena é bem ajustada, mas por estar próximo eu vejo toda a parte de trás da concha direita e a sombra da base. Naquela ocasião eu me perguntei: como é que ela não está espantada consigo mesma, conserva a boca fechada e não diz coisas desse tipo? (KAFKA, 1991, p. 37-38)


Juliano Garcia Pessanha

Esse fragmento kafkiano é interessante como documento sobre o não estar incluído e a exterioridade. O narrador em primeira pessoa diz da condição desassossegada de quem não tem lugar nem familiaridade com o mundo. É como se alguém, ao começar a redigir algumas linhas, visse o sentido das palavras desaparecer e sua materialidade crescesse com a brancura do papel, até que a pessoa em questão já não soubesse mais situar-se em relação à tarefa que estava realizando. Uma experiência desse tipo é aquela descrita por Heidegger como a da visita da angústia. Na visita da angústia, a familiaridade do sentido se esvai, e o ente emerge na estranheza. O filósofo de Freiburg dignificou essa posição e deu a ela uma cidadania filosófica na mesma medida em que mostrou que nascia aí uma outra relação com a linguagem. Na sua esteira, pensadores como Blanchot se detive-

ram nesse espaço do desastre. Um espaço de pura exterioridade onde está ausente qualquer intimidade. Para Blanchot, aí nesse lugar, de onde Kafka diz, já não é o “eu” que fala e se exprime, mas o ser: “Aí onde ele está, só fala o ser – o que significa que a palavra já não fala mais, mas é, mas consagra-se à pura passividade do ser” (BLANCHOT, 1988, p. 21). Esse lugar é um outro de qualquer mundo, e o poeta é aí conduzido pela exigência da obra. A exigência da obra arranca o escritor do mundo e o coloca fora, num lugar exterior e distante daquele onde vigora a digital e a pertença ao sentido (província da cultura). Para a esferologia sloterdijkiana, entretanto, a superação da posição antropológica pela visita do ser ou pela exigência da obra depende da catástrofe e do desencontro antropológicos: “Man’s calamities are Being’s opportunity” (SLOTERDIJK,

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Sobre a diferença entre estar exposto e estar incluído


2011, p. 28). Sloterdijk considera que não há superação da posição antropológica, mas apenas diferença antropológica, e a diferença importante é aquela entre o residir no partilhado e a catástrofe esferológica1, afinal, quem é o habitante desta região “onde a impossibilidade já não é privação, mas afirmação”? (BLANCHOT, 1988, p. 296). Quem é o rapaz do bonde, o perplexo com a janela escancarada? Ali onde o porta-voz da exterioridade diz de uma insegurança radical de sua posição neste mundo e de um não saber qual reivindicação fazer, a moça do bonde cuja presença é motivo de uma indagação sem fim por parte do rapaz poderia dizer que está tranquila, ruminando a última conversa com seu noivo e algumas exigências que faria no trabalho. Se o rapaz está desprovido de mundo e de interioridade é porque seu gesto primeiro foi vomitar e recusar o leite materno. Seu gesto foi um gesto-não!2 Já para ilustrar com a moça a posição incluída, a posição de quem se “instalou buscando segurança, como mansa habitante da normalidade e como inquilina de seus centros de tranquilidade e sossego” (SLOTERDIJK, 2003, p. 92), pode-se afirmar que ela teria interioridade e localização porque, quando bebê, ao tomar o leite, tivera o corpo tomado por ele e incluíra-se no interior de um outro que lhe ofertara lugar, tendo podido assim ganhar território e “uma certa comodidade distendida” (id., ibid.). Desse modo, enquanto o rapaz, na falta de teto e de chão, na falta dessa imersão na ambiência do outro, se pergunta o que se passa com a moça e como é que ela não está espantada consigo mesma, a moça, incluída “extaticamente com outros [...] no comum habitat do mundo” (id., ibid., p. 86), se perguntaria por que aquele rapaz que tanto olha para ela não está sossegado e por que é que está assim tão espantado e com a janela escancarada? Ao se tomar o fragmento kafkiano como um informe sobre o não estar incluído e a exterio-

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ridade, surpreende que essa posição extrema tenha se tornado quase paradigmática na filosofia francesa do pós-guerra. Este exemplo seria dignificado por Deleuze como o de um desterritorializado sem órgãos; o de alguém que corre por uma linha de fuga numa movimentação anômala, que difere de qualquer determinação identitária. Já para Lacan, o mesmo fragmento tornaria claro o que é estar fora da posição subjetiva e desconhecer a consistência ilusória do eu (Moi): é a posição de um dizente “fala-ser”, pois, tocado pela extimidade e exposto ao abismo, diz sem a gordura do sentido. É alguém “no limiar do silêncio e da letra”, conforme o título de um livro de Maria Lúcia Homem (2012), teórica lacaniana, sobre Clarice Lispector. Já Bataille leria a posição de alguém efetivamente abandonado ao não saber. E é na angústia do não saber, “na ruptura de qualquer possível” (BATAILLE, 1992, p. 66), que o homem aberto se descobre uma súplica. Quanto a Foucault, pode-se até esquecer do seu fascínio por Blanchot e Bataille na sua fase formativa. Basta lembrar que sua posição nietzschiana faz da exterioridade o lugar por excelência do pensador genealógico-desconstrutivo. Se, por meio de Foucault, “o Dionísio se tornou arquivista” (SLOTERDIJK, 2012c, p. 107), é porque a exterioridade garante a possibilidade de enxergar os acontecimentos, os clarões contingentes que abrem os horizontes “das ordens possíveis” (id., ibid., p. 108). Não seria difícil explorar um pouco mais os tópicos desta lista e mostrar que todos eles remetem a Heidegger e a Nietzsche. Cumpre notar apenas que a obsessão constante por esvaziar o “sujeito” e ultrapassar a herança da filosofia da modernidade acaba conduzindo ao elogio semibudista do self negativo. Essas filosofias acabam por recomendar posições nas quais é impossível e impraticável viver a não ser para quem seja um escritor vanguardista, mas, ao mesmo tempo, produtivo academicamente. Tais


mundo estivesse em estado terminal e carecesse de revolução e de superação, e os filósofos fossem os heroicos guardiões de novas lufadas epocais. Se o chamado ético de Heidegger arrastou muitos para o outro lado do entre, em que o fundamental é expor-se ao descontínuo e ao incessante da irrupção do ser – o que envolve uma posição extravagante no limiar e na borda das culturas (o acontecimento do ser equivale ao grau zero da hermenêutica) –, a obra de Sloterdijk realiza uma migração para o outro lado do entre, o que implica uma virada de Stimmung e em um maior amigamento do mundo. Pensar os vários mundos por dentro, os mundos nos quais o ser humano se sustentou e encontrou lugar, e ainda assim o segue fazendo, é o legado do culturólogo e mega-abraçador de mundos, Peter Sloterdijk. Após a sua descrição dos processos morfogenéticos implicados na formação dos vários mundos desde a “pré-história” até a pós-história, muito da filosofia anterior soará ultrapassado. A memória monstruosa e a visão hiperbólica situam as questões da modernidade e da experiência do presente a partir de quadros muito mais amplos e exigentes que os até hoje praticados. A analítica do espaço e da forma, empreendidas por Sloterdijk – a sua resposta exaustiva à pergunta: onde estamos quando estamos onde estamos? –, trazem para a filosofia “uma forma filosófica nova do pensamento, do mundo e até mesmo da existência” (WERNTGEN, 2009, p. 223). Ainda é cedo para avaliar o impacto da renovação sloterdijkiana da filosofia. Não se trata apenas do efeito óbvio sobre a Teoria Crítica alemã, como atestam as polêmicas tanto com Habermas em 19994 quanto com Honneth em 20095. Tão interessante quanto este debate com os representantes das últimas gerações da Escola de Frankfurt é a questão do impacto sobre a filosofia francesa do pós-guerra. Na medida em que o pensamento imunológico reposiciona a obra de Heidegger e a de Nietzsche,

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posições tornaram-se hoje assunto de guetos e de especializações acadêmicas, maiormente na subcultura teatral e psi. O interessante em Sloterdijk é que em sua obra ele joga fora o sujeito moderno, mas não cai na dignificação do vazio, da desterritorialização, da impessoalidade poética ou da exterioridade, pois coloca no seu lugar o conceito de self ou de si mesmo3 revigorados pela tradição da psicanálise inglesa do grupo do meio (middle group). Essa operação sloterdijkiana é dotada de grande relevância, pois, com ela, o mais francês dos filósofos alemães supera e põe em xeque seus predecessores franceses. Não há dúvida de que a esferologia, ao trazer para o interior da filosofia fenômenos e conceitos inteiramente novos, logra circunscrever e relativizar o âmbito da experiência filosófico-literária francesa. Essa circunscrição é superadora, pois os fenômenos esféricos e a inclusão do nascimento e dos bebês no interior do discurso filosófico são algo inconcebível para as crianças de Heidegger e os meninos de Nietzsche. Sloterdijk inaugura assim um novo paradigma para a filosofia do século XXI e renova as bases da conversação filosófica. Uma conversação mais ampla, mais aberta, mais complexa e menos extremista, aristocrática e vanguardista. Visto de hoje, o programa francês parece um tanto ingênuo e mal se entende como é que homens inteligentes podiam realmente acreditar que se mudaria de época ou de homem numa única década. A operação sloterdijkiana de transição paradigmática pode ser denominada de passagem ontotopológica de um lado para o outro do entre (Zwischen). Essa viragem é responsável por um deslocamento sui generis na filosofia contemporânea. Ela inibe o acento dominantemente ontomaníaco das filosofias recentes, que, na sua devoção ao evento (Ereignis), tendem a desprezar a continuidade do mundo instituído, seu “barulho” e a falta de intensidade. Para o pensamento do evento, é como se o


e o pensamento francês é fundamentalmente uma operação a partir de leituras desses dois filósofos alemães6, a virada esferológica termina por problematizar e mostrar o esgotamento de grande parte das questões que compõem o “programa francês”, segundo a expressão de Alain Badiou (2015). Nesse sentido, a lição de Sloterdijk é a de que a filosofia não pode se aliar apenas ao rapaz do bonde. É óbvio que ela pode e deve pensar a não integração e a desintegração em suas formas mais variadas, mas se ela escutar apenas os desertores, os artistas, certas crianças e as singularidades, nada poderá compreender do integrar-se aos espaços no mundo. Este não é uma democracia ontológica, e as hermenêuticas filosóficas da singularidade são insuficientes até no campo psi. Cabe à filosofia não pensar apenas os espaços do acompanhamento microesferológico, mas o grande espaço do mundo globalizado. É preciso que surjam filósofos à altura das complexidades imensas do mundo contemporâneo. Esses filósofos aguardados por Sloterdijk são seres já curados tanto da deserção quanto do desejo de revolução7. Filósofos capazes de transitar por vários mundos e várias épocas e que possam compreender e dialogar com os verdadeiros revolucionários na revolução cronificada da atualidade: designers, consultores e arquitetos. Assim sendo, a filosofia antropológica dos lugares – a esferologia sloterdikiana – despede-se tanto da rebeldia ingênua quanto do páthos da Teoria Crítica. Isso se deve fundamentalmente ao fato de que Sloterdijk parte da topofilia bachelardiana. Começar topofilicamente é começar da vida bem posicionada e do lugar alcançado. Como a instalação “de lugares para um estar-consigo logrado” (SLOTERDIJK, 2009a, p. 408) depende de encontros sintônicos com o aliado, o fenômeno da alienação não tem prioridade temporal nem lógica sobre o fenômeno do bom posicionamento. Nas palavras de Sloterdijk:

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O escândalo de uma teoria da consciência feliz em meio ao culto à infeliz se dilui enquanto se admite que uma teoria positiva da posição íntegra é toda uma dimensão mais rica que uma teoria crítica, que adquire forma como sintoma de um transtorno da capacidade de participação. (id., ibid.) É ao longo de Esferas II, ao reconstruir a história das formas de autoarredondamento e autoclimatização feitas por esses criadores de lugar que são os seres humanos, que Sloterdijk se depara com o momento em que surgem as experiências de alienação e distanciamento. De início, a experiência de estar contido em um interior, em uma magnitude uterotécnica e autoprotetiva, prescinde de muros e paredes. Inúmeros grupos criaram incubadoras sem paredes de solidariedade esférica. Os muros e as paredes surgem como magnitudes vivas que trabalham pela animação do espaço interior. Mas quando as paredes se tornam estranhas, monumentais, quando não sugerem nada, e sua coordenação com um espaço interior próprio já não é conseguida por todos, mas apenas por alguns privilegiados, então aparece a necessidade de distinguir os muros (id., 2004a, p. 198). Essa experiência acontece tanto em relação ao muro dos outros, dos inimigos, quanto aos intramuros, isto é, os muros no interior da própria cultura, como é o caso das grandes sociedades hierárquicas. Nesse contexto, alguns dos que estavam juntos dentro começam a experimentar um estranhamento em relação às “próprias paredes” (id., ibid., p. 199). O envoltório antes animador e próprio desaparece, e a vida que se experimentava como viva e consigo mesma naquele interior passa a sentir-se num cárcere ou numa “cápsula


em confirmar constantemente o caráter lúgubre do cenário do mundo, no qual os aspectos da felicidade perdida e esperada só podem pintar- se de escuro. Ela pinta um quadro de grande austeridade [...] dominada pelos arcontes modernos, os malignos administradores do mundo sem vida: a abstração da troca, o despotismo, a frieza burguesa (id., ibid., p. 159). Se estar no mundo equivale a estar em um corredor polonês ou em um campo de concentração, então o verdadeiro só brilha no instante em que a individualidade escapa das garras da máquina do todo. Para Sloterdijk, Adorno repete ad nauseam o mantra gnóstico e põe todos os seus “operadores lógicos” a serviço de uma “cena invariável” (id., ibid., p. 167). O ferrão crítico da Teoria Crítica é apenas um outro nome para o elemento

messiânico9. Na Teoria Crítica, Jerusalém e Atenas entram num arranjo no qual a salvação se torna capítulo da epistemologia. Enquanto teorias tradicionais fixam os indivíduos na grelha do universal, a teoria que se apresenta “como crítica pretende invalidar as identificações existentes e resgatar as coisas singulares das garras da razão registradora” (id., ibid., p. 157). O interessante é que nessa versão adorniana do Ge-Stell heideggeriano, o mundo criticado, o existente, em vez de aparecer como algo cada vez mais mobilizado e desrealizado, aparece sempre descrito com imagens de solidez, petrificação e rigidez. Esse é um dos exemplos dados por Sloterdijk, que mostra que a Teoria Crítica envelheceu e que a sua síntese particular de sociologia, messianismo e estética radicalizada já não serve mais como relógio epocal. A ideia do todo como fortaleza dura, a “jaula de ferro” weberiana de cujos tentáculos devemos salvar o individual, caducou, porque as formações modernas são elas próprias caóticas e intangíveis. Não há muito a ser quebrado quando se lida com estruturas disparatadas, como redes e espumas, com turbulências e derivas indeterminadas, com tentativas de ordenação cindidas por grandes forças centrípetas e em estado de crônica excitação devido aos riscos imanentes de sofrer catástrofe (id., ibid., p. 166). Sloterdijk considera que, quando Adorno e Horkheimer adotavam o termo “o existente”, mesmo para o mundo tendencialmente virtual e flexível, é porque usavam o idioma gnóstico e praticavam a “metafísica negativa como crítica do mundo” (id., ibid., 165). Falavam mais como gnósticos redivivos do que “como sociólogos” e “homens do seu tempo” (id., ibid.).

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estranha” (id., ibid., p. 200). Ao não se sentir mais amparada e protegida, a vida começa a sonhar com uma evasão e articulará em esquemas gnósticos toda a sua reserva “frente ao ser no mundo” (id., ibid., p. 199). O sentimento de estranheza radical e de que a alma é uma exilada caída no cárcere do mundo é a equação gnóstica fundamental. A compreensão do mito gnóstico que diz dessa alma que anseia por algo “outro” é um capítulo importante na obra de Sloterdijk8, pois as “teses gnósticas” servem como chave hermenêutica para decifrar o páthos do par abandono-redenção presente em vários discursos filosóficos que não se apoiam no “cantus firmus do Ser” (id., 2011, p. 161). É o caso da primeira geração da Teoria Crítica. Enquanto na gnose antiga há narrativas que contam deste ser-jogado e destas práticas ascéticas que reconduzem a alma à alegria e à liberação, a gnose moderna encarnada no pensamento de Adorno se contenta


Essas breves considerações sobre a Teoria Crítica não podem ser concluídas sem a lembrança de que Sloterdijk só acertou o seu relógio epocal ao longo do percurso e que ele próprio se utilizou do termo crítica e usou conceitos como o de alienação para referir-se a processos inquietantes (é importante lembrar que Sloterdijk começou sua vida intelectual imerso nas obras de Adorno e Bloch!). Um exemplo disso é o livro A mobilização infinita, de 1989, no qual Sloterdijk tenta ainda uma crítica da cinética política, o que representa uma tentativa de Teoria Crítica alternativa. Nessa obra, a modernidade é compreendida como um ser-para-o-movimento sem fim, o que equivale a um ser-para-a-aniquilação. Ele propõe então uma crítica da mobilização em termos de exercícios de desmobilização. A resposta à pergunta: “Há sequer para nós uma possibilidade de resultar das energias do sujeito alguma outra coisa que não seja aceleração, enriquecimento, pesquisa e aquisição de poder no mundo exterior?” (id., 2002a, p. 65). Responder positivamente a essa pergunta é estar implicado na diferença entre movimento para mais movimento e movimento autêntico. Como escapar da catástrofe mobilizadora? A alternativa metafísica, com suas receitas imobilistas e eternizantes, não oferece antídotos contra a aceleração da cultura histórica no seu deslocamento de Titanic até o iceberg Tchernobyl, mesmo porque é a própria cinética da metafísica que se converte em cinética moderna. “A antiga metafísica, enquanto paixão pela imobilização e pela autoconcentração, é a acumulação originária da subjetividade que, na modernidade, se atira à frente como mobilização passional” (id., ibid., p. 99). Não é difícil imaginar que o diagnóstico da modernidade em termos cinéticos leva a um amigamento maior com a escola de Freiburg do que com a de Frankfurt, apesar do uso do termo crítica. Para Sloterdijk, a teoria frankfurtiana não é desmobilizadora porque, como estética negativa,

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ela se desencontra do fator crítico, porquanto argumenta de maneira latente sem referência ao mundo; como teoria da ação, renuncia à diferença em relação ao seu objeto, na medida em que o procedimento comunicativo atua, manifestamente, como princípio de mobilização (id., ibid., p. 98). Já com essas poucas palavras dirigidas a Adorno e Habermas, Sloterdijk, o então autointitulado “heideggeriano de esquerda”, antecipa as polêmicas futuras com Habermas e Honneth, tão previsíveis quanto às de Luckács com Nietzsche e de Adorno com Heidegger.10

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“Só nas catástrofes, quando todos os habitats explodem e se torna patente a nudez do exterior é que os mortais talvez possam ser ‘contidos no nada’, como diz Heidegger, mas, regra geral, o que se lhes aplica é a lei da residência no espaço partilhado, o princípio de que as esferas formam a sua própria espessura” (SLOTERDIJK, 2007, p. 119). Veremos, no adendo II, como a psicanálise winnicottiana traça a gênese da profundidade e da interioridade humana. Por outros caminhos, penso que um movimento semelhante se dá nas obras de Charles Taylor e de Paul Ricouer. Ambos utilizam a noção de self e de si-mesmo. A reconstrução detalhada desta polêmica encontrase no texto “Sobre as Regras para o parque humano de Sloterdijk”, de José Oscar de A. Marques, que é também tradutor do livro comentado, bem como de outras obras do filósofo alemão. O livro Die nehmende Hand und die gebende Seite (2010) é resultado da polêmica com Honneth em torno da obrigatoriedade do fisco e da doação voluntária. Quem assim o coloca é um digno representante dessa tradição: Alain Badiou em A aventura da filosofia francesa no século XX (2015). Uma interessante discussão sobre o tema da revolução encontra-se em Essai d’intoxication volontaire (SLOTERDIJK, 1999c, p. 57-67). Nessa entrevista, Sloterdijk recorda o ambiente revolucionário nos seus anos de formação na Alemanha. Em O sol e a morte, ele conta que “era um adepto mais ou menos típico da velha Escola de Frankfurt e da cena alternativa dos anos 70, tomava parte nesse complexo depressivo e agressivo que então se manifestava como esquerda” (id., 2007, p. 18). “Nessa época vivíamos na ilusão de que era fácil mudar o tom vital da sociedade ao abrigo de uma ética da amizade


e da amabilidade. Era a época da ofensiva dos pequenos grupos sonhadores” (id., ibid., p. 17). 8. Sloterdijk publicou com Thomas Macho Weltrevolution der Seele: Ein Lese- und Arbeitsbuch zur Gnosis von der Spätantike bis zur Gegenwart (1993). O livro contém “algo como uma dedução metafísica do ‘princípio da esquerda’ e, ironicamente, também uma pré-história da Escola de Frankfurt, uma linha fina e intrincada que vai de Alexandria ao Instituto de Investigação Social e passa pelo Auditório VI da Universidade Johann Wolfgang Goethe” (SLOTERDIJK, 2007, p. 26). 9. Um dos exemplos que comprovam o elemento messiânico é a famosa passagem citada por Sloterdijk do último aforismo de Minima Moralia. Cita-se aqui seu trecho inicial: “Da filosofia só cabe esperar, na presença do desespero, a tentativa de ver todas as coisas tal como se apresentam do ponto de vista da redenção. Não tem luz o conhecimento senão aquela que se irradia sobre o mundo a partir da redenção: tudo mais se esgota na reprodução e se limita a peça da técnica. Caberia construir perspectivas nas quais o mundo se ponha, alheado, com suas fendas e fissuras à mostra tal como alguma vez se exporá indigente e desfigurado à luz messiânica” (ADORNO, 2008, p. 245). 10. Sobre tal questão remeto ao texto de Jean-Pierre Couture “A Public Intellectual”, no qual é feito um “mapa das colisões intelectuais no céu da Alemanha” (COUTURE, 2012, p. 103).

ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Trad. Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Azougue, 2008. BADIOU, Alain. A aventura da filosofia francesa do século XX. Trad. Antônio Teixeira e Gilson Iannini. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. BATAILLE, Georges. A experiência interior. Trad. Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Ática, 1992. BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 1988. COUTURE, Jean-Pierre. “A Public Intellectual”. In: ELDEN, Stuart (org.). Sloterdujk Now. Cambridge: Polity, 2012. KAFKA, Franz. A contemplação e o foguista. trad. Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1991. SLOTERDIJK, P. Essai d’intoxication volontaire. Trad. Olivier Mannoni. Paris: Calmann-Lévy, 1999c. WERNTGEN, Cai. “Denken am Nullpunkt der Geschichte: Notizen zur Philosophie Peter Sloterdijks”. In: Die Vermessung des Ungeheuren. Munique: Wilhelm Fink, 2009. ___. Die nehmende Hand und die gebende Seite. Berlim: Suhrkamp, 2010. ___. Esferas I. Trad. Isidoro Reguera. Madri: Siruela, 2003. ___. Esferas III. Trad. Isidoro Reguera. Madri: Siruela, 2009a. ___. O sol e a morte. Trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Lisboa: Relógio D’Água, 2007. ___. Sin salvación: tras las huellas de Heidegger. Trad. Joaquín Chamorro Mielke. Madri: Akal, 2011. ___. Temperamentos filosóficos: um breviário de Platão a Foucault. Trad. João Tiago Proença. Lisboa: Edições 70, 2012c. HOMEM, Maria Lucia. No limiar do silêncio da letra: traços da autoria em Clarice Lispector. São Paulo: Edusp/Boitempo Editorial, 2012.

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REFERÊNCIAS


Poema I as matilhas que me cortam não se cruzam sou uma ode das carnificinas os rios que me atravessam não se misturam sou o ninho das rasgaduras os seres que me povoam não se suportam sou a oração de evitar a faca

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Poema II um bando de lobos uivantes uma matilha de cães selvagens é o amor rasgam, cortam e devoram aquilo que cai no seu território

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Juliano Garcia Pessanha


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Foto: Matheus Sรก Motta


Já se sobrepuseram tantas noites que não sei precisar ao certo a data do fato insubordinado que segue escrito. Ele parte de uma experiência rápida de uma paragem na cidade. E se a paragem fosse cotidiana, talvez passaria despercebida no clima de uma cidade grande, gordurosa e suada num fim de tarde virado abruptamente em noite. Sem o menor intervalo, parte de um interesse vago de conversa, de uma comunicação precária começada por sinais de fogo. Da ignição do pensamento vieram primeiro os odores e a fuligem.

Passava na calçada rente aos muros do sistema de metrô fatiando a cidade em duas. Havia adiante uma cortina de fumaça de um fogareiro improvisado em latas de tinta. A fumaça marcava o início da noite abrupta e o portal diáfano para minha travessia que ainda passaria por pistas largas sobrepostas por viadutos, ambos lotados de automóveis loucos para estacionarem em casa depois de um dia exaustivo para seus donos. Seguia a pé naquela calçada estreita e atravessando a cortina de fumaça inevitável na esquina, diante da primeira autopista que eu teria que atravessar, encontrei-me com o fazedor de fogos prestes a cozinhar. Como a travessia estava dificultada pelo excesso de carros afoitos e no aperto da calçada aproximando os corpos, o fazedor de fogos provocou uma conversa rala, apesar de não parecer incomodado com o trânsito, resmungou algo nesse sentido, talvez, desejando que eu saísse logo dali. Dizia algo questionando a invenção da roda. Não lembro bem o que me disse, mas concordei timidamente com o “típico pensamento dos homens

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fazedores de fogos” acenando com a minha cabeça pesada – me veio esse título em frase para uma categoria de pessoas inventivas pressentindo o que sucederia num lampejo de pensamento. A conversa rendeu mais alguns minutos, o tempo da brecha no trânsito para a correria do pedestre, mas, adianto ao leitor, talvez por intoxicação da fumaça dos carros envenenados, o tempo daqueles breves minutos mensuráveis entrou em outra dimensão difícil de se expressar numa viagem reflexiva começada a dois.ww O outro dessa viagem no mesmo lugar se apresentou acenando a mão: “Antenor”. Respondi cumprimentando-o sem aperto de mãos numa saudação parecida àquelas dos extraterrestres de filmes de ficção científica com os dedos ajuntados como se fossem três. Ele estava sentado num paralelepípedo ao lado do fogareiro preparando o cozimento. Ao seu lado havia um carrinho de supermercado sem alimentos e abarrotado de fiações. Eram fios das mais variadas espessuras, uns desencapados e outros não, emaranha-


Breno Silva

dos, alguns saindo para fora do carrinho, dando a impressão de uma aranha metálica. Era difícil precisar a idade daquele homem – talvez a da pedra –, apesar de aparentar idade avançada, não tinha rugas, mas dois grandes sulcos nas laterais da face, cânions que iam da boca aos olhos sorumbáticos e meio exorbitantes. Os sulcos provocavam uma área de sombra sobre a vegetação rala de sua barba por fazer e eram reforçados pela luz alaranjada artificial do vapor de sódio mesclada à azul-escura irrompendo com a chegada da noite. Esse homem do sertão imaginário euclidiano em seu primeiro movimento era extremamente pausado, me dando tempo suficiente para uma tentativa rápida de decifrar a sua esfinge pousada em meu ombro. E o seu nome Antenor, o que por proximidade gráfica me remetia às antenas avistadas nos prédios da área central da cidade logo após a linha do metrô. As antenas, antes de serem instrumentos de captação e de emissão de ondas eletromagnéticas invisíveis, eram nomes dos mastros das embarcações das antigas rotas mediter-

râneas, captando os ventos – outros invisíveis –, e que com o tempo, mais ou menos a favor, se desviaram para reconhecer as novidades do mundo. As antenas dos prédios ao redor começaram a piscar luzes vermelhas no instante adivinhatório no qual eu as mirava, como um alerta precário para não nos acidentarmos naquela viagem a dois. Um som de avião passando nos imantava sutilmente. Essas aeronaves que chegam a superar a velocidade do som costuram as cidades em que passam numa só, insistindo em fazer dessa em que estávamos e das outras a mesma cidade. Antenor desmancha aquilo mesmo enunciado em seu nome na tentativa de decifração: elementos de sistema de transmissão. Trabalha à noite e, assim como o seu nome adere ao serviço do desmanche, seu semblante e seu corpo aderem à condição noturna: boca de poucas palavras e de murmúrios, camuflagem noturna aderindo sua pele, que vai escurecendo à medida em que se mescla às sombras dos becos, ao cinza das grandes vias urbanas que percorre, para o

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A cidade dos fios de cobre


refinamento do destecido e do descanso. Me disse desviando da conversa de contato com a mão no chapisco do muro: “o ouro é o cobre, é isso que reluz”. Isso que ele destece no desmanche de equipamentos eletrônicos descartados, obras de reformas e de demolição, mas principalmente da fiação pública. Seguindo a sua mão de ossatura sobressaindo passei os olhos pela sua roupagem coberta de dobras alojadoras de restos. Dormia de dia em lugares movimentados e operava à noite. De voz crespa e cabelos arrepiados como cem mil antenas, trabalhador do resto, ele se convertia em uma formiga dourada acordando do sonho em busca das migalhas metálicas arruinando a cidade aranha1. Na sua noite os sinais da cultura se apagavam ao puxar os fios da iluminação pública. Como um anti-Ariadne, ele emaranhava a rota garantidora de sentido labiríntico para a cidade apaziguado na marcação luminosa. Às vezes, como me disse, se refugiava na mata do metrô e em terrenos baldios de mato invasivo e ruínas premeditadas. Raramente se refugia no alto da serra que cerca a cidade, se camuflando na terra vermelha. Observa de perto as alterações da cidade e me disse que o que mais o atrai são os incêndios, ao que completa: “não na mata, na cidade”. O meu pensamento, num recuo tsunâmico sobre os tempo – o daquele instante, o desta escrita – me levaram à seguinte passagem de Bataille enunciando, dentre os vários impulsos sociais dos dispêndios improdutivos, “o prazer dos loucos assistindo a um incêndio durante a noite.”2 Os fios de cobre são retirados por ele de equipamentos de iluminação pública e também de postes de trânsito – antenas que não acompanham as navegações que possibilitam; quando são de

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controladores que sincronizam os sinais, causam o caos nas ruas e avenidas, apagando sinais de trânsito cuja manutenção demora horas. Os dados oficiais da cidade relatam que a quantidade de furtos desses fios aumentou 1.573% em um ano, passando de 825 m de fiação no ano passado para 13.805 m neste ano, significando que atualmente entre cinco e oito semáforos por dia ficam sem funcionar na cidade. Nos ferros-velhos, o cobre misto sai a cerca de R$15,00 o quilo. Daí o grande interesse dessa modalidade que ameaça a infraestrutura urbana, como subestações elétricas, torres de celular, linhas de telefone, linhas férreas, obras, casas vazias, prejudicando o fornecimento de energia, água, telecomunicações e transporte. Apagando sinais de trânsito Antenor me transmite algo que escapa, que desaparece na falta de iluminação. Aproximando a conversa do contato, me disse que seu pai gostava de mitologia e a inspiração para o seu nome vem do ancião troiano e de um escultor grego antigo. O primeiro foi conselheiro do rei Príamo e amigo dos gregos antes da Guerra de Troia. Mas foi considerado traidor, pois durante o saque de Troia os gregos penduraram em sua porta uma pele de leopardo, indicando que a sua casa devia ser poupada. No texto atribuído a Dares da Frígia do século I d.C., História da destruição de Troia, Antenor auxiliou os inimigos a entrarem em Troia. Depois de terminada a guerra, Antenor liderou um contingente de 2.500 troianos sobreviventes, partindo para a Itália, onde fundou a cidade de Pádua. O segundo, de existência mais material, atuou esculpindo mármores no século VI a.C. Que estranha aderência do nome aos atos das pessoas, pois não seria ele um traidor da cidade provocando o caos com o seu trabalho de arrancar


dos smartphones, que funcionam em sua maioria mesmo quando desligados. Ameaçados pela multidão com a marcação de microeletrochoques e ao mesmo tempo possibilitando a distinção na miríade das diferenças, até os mesmos, esses em situação parecida de superexposição telemática, são vistos como outros. Assim, dificilmente um amigo descendente do burguês dos salões convida outro para visitar a sua casa. E menos ainda um não convidado aparece inesperadamente, diriam: “isso é atitude de usurpadores das propriedades”. O extremismo emburguesado contemporâneo mergulha essa comunidade dos atingidos telemáticos numa extrema solidão, em um salão esvaziado, sem suvenires, sem espelhos, mas com internet da melhor qualidade. Nas ruas, dormindo de dia e trabalhando à noite, Antenor não possui espelhos e se reconhece em outras pessoas que lhe oferecem as medidas de seu rosto e a profundidade dos seus sulcos. São outros em situação de rua, passantes no Centro convulsivo às seis da tarde e, nas variantes de intensidades, aqueles homens sentados em bares descolados que frequentava. Mais do que uma recaída, era um esforço de apagamento, me disse que “sentia uma afeição desinteressada pelas criaturas cheias de si”. Se reconhecia em criaturas cheias de outros, nos animais ao redor com seus muitos parasitas, nos cachorros purulentos, nos ratos de peleira expulsos de suas colônias e famintos, nas formigas orientadas escravagistas de pulgões, nas moscas desorientadas em sua dança contemporânea, nos gatos em cima dos muros com inteligência para a queda. Se reconhecia no mato insubordinado e nos espaços de restos onde se camuflava para descansar e destecer. Olhando para suas mãos, após a viagem das dobras das

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os fios urbanos? E não seriam esses fios o elemento plástico, diria mesmo escultórico, que modelava aquele carrinho de supermercados aracnídeo? Na falta de iluminação, a cidade era animada pela rapsódia dos ruídos da noite atravessados por sons de digitações aceleradas em teclados de computador. Insistindo em me contar a sua história, me dizia que outrora atuante como analista de sistemas numa empresa transnacional optou pela rua ao, nas suas palavras, “entrincheiramento na intimidade”. Havia uns oito anos que ele saíra de casa. Morava sozinho num apartamento de dois quartos num bairro de classe média da cidade. Resolveu sair de casa, partiu deixando a porta do apartamento aberta e até então não mais voltou. Como me disse: “se cansou do entrincheiramento burguês”. Descreveu sua antiga morada como um microcosmos mediado pela internet: “de lá me comunicava com os amigos, com o trabalho, com desconhecidos, com o mundo e sabe-se lá mais o quê...”. O mundo burguês eurocêntrico do século XIX construía o interior para se esconder e se proteger da cidade invasora que crescia vertiginosamente prenhe de diferenças expressas. O contato social se dava nos salões burgueses, preenchidos dos mesmos protocolos e gestos que redundavam e garantiam a perenidade dos iguais. Garantiam no interior o retrospecto de suas propriedades. Atualmente os salões se esvaziaram, se preenchendo do único frequentador. Com a invasão do outro pelas janelas da tevê, que podia ser desligada, e avançando nos modelos de comunicação das redes telemáticas, se anunciam modos cada vez mais incisivos contra a imunidade espacial burguesa anunciados na vibração contínua e interminável


roupas, eu reconhecia-o no metal dos fios desencapados habilmente, com a destreza de uma máquina avariada e desejosa. Os fios marcavam em sua mão outras linhas da vida sobrepostas ao prescrito. Essa capacidade de reconhecer semelhanças sensíveis que nos tomava afrontava a linguagem, e numa suspeita burrouguiana3 trazia a primazia da escrita sobre a oralidade naquelas marcações nas mãos. Um “saber sensível”4 se anunciava na possibilidade dos vários desaparecimentos, na perda identitária de Antenor, na matilha possuidora, no gesto mineral, nas imagens regurgitando conceitos de difícil decifração, inscritos mineralmente e misturados e empapados numa plasta sobre aquela calçada apertada da qual qualquer um não hesitaria em desviar com náuseas. Decifrar tais conceitos fósseis imediatos e bolorados seria recorrer a uma linguagem inventada, começada nas ressonâncias pigarradas da laringe? Antenor começou a desencapar fios, e aquele movimento que moldava a sua mão com a precariedade prestidigitadora soltava ainda mais a sua língua. Separava o ouro que era o cobre e formava duas esculturas, uma de resíduo escuro e plástico meio queimado dos fios, a outra reluzente na cor ruiva do metal desgrenhado. Na medida em que aumentava a velocidade ao desencapar, sua língua cada vez mais singular falava sobre o apagamento da cidade. Desmanchava aquela constelação de iluminações públicas sem correspondências mágicas. Desmanchava o pensamento moderno. Desencapava o fio de algum apagamento, desmanchava o conforto e a conformação induzidos da forma cidade e da fala sobre a cidade contemporânea – mesmo dos que consideram a cidade como um organismo vivo ou à distância como palimpsesto. Começou a dizer coisas ininteligíveis sobre

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o apagamento, a solidão, poemas onomatopeicos misturados à comunicação dos alaridos urbanos de carros cantores e de concretos emanando sons extraterrestres como os das focas no mar congelado da Antártida. Uma língua do mundo fazia coro à sua encenação. A velocidade com que ele ia desencapando os fios ia apagando parte da cidade. Víamos o apagamento se aproximar de nós como uma grande sombra submergindo a cidade na noite. Faíscas saíam do contato de sua mão com os fios. Uma aura multiplicadora de sombras aparecia, como aquelas que justificam a necessidade dos santos. Com as suas mãos acesas, embarcamos num tempo da velocidade da luz. Sua língua se convertia numa conversa telepática. E, ironicamente, algum sentido se restabelecia, apesar de a comunicação continuar desarranjando a cidade e a linguagem dominantes. Conversamos sobre a torre única do seu apartamento abandonado de portas abertas e as torres duplas das respostas binárias para perguntas previsíveis dos códigos telemáticos sobre o cotidiano em sua multiplicidade teleguiada. Revelou-me que seu sonho era desencapar os cabos submarinos da internet, causando desconexões na escala planetária. Não queria aguardar aleatoriamente pelas explosões solares com suas suspensões de classe X capazes de interromper atividades eletromagnéticas na Terra, estragando sistemas de transmissão e naufragando a produção telemática em arquivos mortos à espera dos arqueólogos escafandristas do futuro capazes de decifrá-las nas profundezas de um oceano energético invisível. Disse-me sem abrir a boca: “Hoje são os nossos sistemas de memória artificial que desempenham o papel inspirador das catástrofes naturais”5. Passamos a discorrer sobre a inteligência


nos trouxe de volta para a realidade de concreto. Realidade com as mãos cravadas no chapisco do muro, com as várias bifurcações viárias se ampliando dos buracos dos relevos do chapisco no muro para os vazios entre viadutos, com a terra árida entre eles, infertilizada pelas fuligens dos escapamentos de veículos fumegantes em rasantes sobre a superfície. A ampliação não parou na escala real. Aquelas regiões desocupadas iam ganhando a dimensão de um deserto de grande extensão como sonho de liberdade dos homens em suas próteses automotivas com milhares de quilômetros liberados para seguirem em alta velocidade para qualquer direção em vetores bidimensionais. Aos poucos, aquela névoa misturada à fumaça do fogareiro dava lugar a outra situação, um carro em chamas depois de bater desgovernado num pilar do viaduto. Provavelmente o acidente foi decorrente dos semáforos apagados e sem fiação, mas, improvavelmente, do sonho da alta velocidade e múltiplas direções dos carros no deserto. O corpo lá dentro era uma das semelhanças de Antenor. Esse atingido preso pelo cinto de segurança fulgurava na noite como um satélite desmanchando ao entrar na atmosfera terrestre, simulando uma estrela cadente. Ele desapareceu, e não é possível afirmar mais a sua existência. E não há garantias da realização dos desejos pedidos às estrelas cadentes simuladas. No entanto, o apagamento não deixa de ser uma fulgurância potente. O desaparecimento, diferentemente da morte, traz consigo a possibilidade de reaparecimento. Saí da paragem, nos despedimos apoiados no muro do metrô, o chapisco feria menos as mãos, e continuei a travessia naquelas autopistas aproveitando o engarrafamento causado pelo

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material do mundo, do acesso à inteligência de uma matéria antes de qualquer redução intelectual. Tratava-se de uma subversão do pensamento, mesmo ao acesso imediato da nossa inteligência a uma matéria antes de sua redução científica6. A inscrição, todos os vestígios que se agrupam nas superfícies e suas dobras mais profundas, nos chamavam para inventar a fala como tentativa falha de decifração. Era a antecedência da escrita à fala que adiante seria mimetizada pela escrita posterior à fala sob a ideia e a prática do risco. Riscamos na terra do pequeno buraco da calçada linhas aleatórias enquanto conversávamos. Apagamos essa espécie de mnemônica cuneiforme, aqueles sinais num pequeno continente, antes mesmo que significassem o risco aderindo o material e o conhecimento. Esse “baixo materialismo” evocativo de um saber escapando à sua redução acabava de assumir ressonâncias políticas inimagináveis: o pensamento só poderia ser realizado a, pelo menos, dois numa combinação improvável de humanos e inumanos. Os assuntos se esmiuçavam numa clareza acadêmica, ao ponto de nos perguntarmos simultaneamente se não estávamos produzindo conhecimento científico naquele instante escavando camadas de um saber sensível? Rindo com uma boca arruinada cortando nossa comunicação, ele puxou o fio citando o seguinte aforismo de Baudrillard: “Morrer não é nada; é preciso saber desaparecer. Desaparecer é passar de um estado enigmático que não é nem a vida nem a morte. Certos animais sabem fazê-lo, e também os selvagens, que se subtraem vivos aos olhos dos outros”7. No instante da consciência aguçada de nosso desaparecimento na irrealidade daquela situação, foi aí que o cheiro da borracha derretida


acidente. Reaparecemos. Sozinhos novamente. “Por que não se irmanar do sol antes de seu espirro eletromagnético, outro grande solitário e deixar de lado a comunidade noturna?”. Mais tarde, antes de a noite acabar e o solitário chegar da travessia, na última tentativa me dada pela esfinge, fui procurar o significado etimológico do seu nome e me deparei com mais uma aderência povoando Antenor, fazendo dele uma multidão de preferência noturna e reacendendo seu enigma. Derivado do grego antigo, o nome Antenor é formado pela junção de anti, que quer dizer contra, e anér ou andrós, que pode ser traduzido por homem. Eis aí um anti-homem como penúltimo rastro de seu apagamento na cidade iluminada.

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Ver filme Onde Sonham as Formigas Verdes, Werner Herzog, 1984. Em um trecho do filme, durante o julgamento para a posse de terras para o povo aborígene contra a empresa de exploração mineral, um ancião é considerado como mudo no processo por falar um dialeto que ninguém conhece, como último descendente de sua etnia e de uma linguagem perdida ele se encontra anulado na sociedade capitalista ao mesmo tempo em que encarna, como fantasmagoria para essa mesma sociedade, uma catástrofe, a extinção por vir. Cf. BATAILLE, Georges. La valeur d’usage de D.A.F. Sade. Oeuvres complètes, t. II. Paris: Gallimard, 1970. p. 66. Ver BURROUGHS, W. A revolução eletrônica. Lisboa: Vega, 1994. Sobre o saber sensível a partir das semelhanças e das imagens dialéticas, ver BENJAMIN, W. A doutrina das semelhanças. In: Magia e técnica. Vol.1. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 108-113. “Pompéia: graças à catástrofe pudemos conservar o patrimônio antigo mais extraordinário. Sem o Vesúvio não teríamos essa viva alucinação da Antiguidade. Da mesma forma, os mamutes, com a irrupção da glaciação. Hoje, são os nossos sistemas de memória artificial que desempenham o papel inspirador das catástrofes naturais”. BAUDRILLARD, Jean. Coll Memories 1980-1985. Rio de Janeiro: Espaço tempo, 1992. p. 46. Ver BATAILLE, Georges. La structure psychologique du facisme. Oeuvres complètes, t. I. Paris: Gallimard, 1970a. p. 345. BAUDRILLARD, Jean. Coll Memories 1980-1985. Rio de Janeiro: Espaço tempoc6.


Foto: Simone Cortezão

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Jean-Michel Heimonet

A greve do negativo e a revolta contra a história Tradução Livia Drummond

Negatividade sem emprego e negatividade sem saída

O texto de Bataille pode ser lido como um longo diálogo com G. W. F. Hegel, e, mais precisamente, com o último de seus intérpretes, Alexandre Kojève. O que está em jogo é importante. Cabe saber quem é o verdadeiro agente da história, “o homem a cavalo”, Napoleão, ou o “poeta romântico”, Novalis, se a negatividade, as forças de revolta que modificam o mundo dependem da ação ou da representação. Na solidão da guerra, enquanto as religiões seculares, fascistas e comunistas, entregam-se a um duelo de morte, a lição de Bataille é: ultrapassar este dilema, experienciando o limite humano por meio da escrita.

‘‘ Eu o quero: me é necessário comunicar com o homem, estar no suplício do ser inteligente.’’ Georges Bataille, A experiência interior

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Numa conferência no Colégio de sociologia, em dezembro de 1937, Alexandre Kojève, exegeta de Hegel, opõe dois tipos humanos: o guerreiro conquistador, o “homem a cavalo”, Napoleão, e o plumitivo, o “poeta romântico”, Novalis. Enquanto o primeiro “agiu com sucesso” no mundo real, onde “se impôs efetivamente a todos”, o segundo, substituindo a ação pela linguagem, “aniquilou-se em seu próprio nada” literário. E Kojève conclui: “o Poeta romântico quis ser Deus (e ele tinha razão de o querer), mas ele não soube como fazê-lo: aniquilou-se na loucura ou no suicídio. É uma ‘bela morte’, mas uma morte, ainda assim: um fracasso total e definitivo.”1 Na Carta a X., encarregado de um curso sobre Hegel, Bataille questiona essa interpretação. Em comparação com a história, a poesia assemelha-se a um fracasso, pois ela não realiza nada de maneira tangível. Mas esse fracasso não é tão “total”, nem tão “definitivo” quanto pretende Kojève. Ele é também trampolim, campo de exercício para a consciência. Quando as razões de agir oferecidas pela história são inaceitáveis, a negatividade, as forças


vidade não tem mais emprego, ela também não tem, igualmente, mais saída, nem ideal, nem fim supremo nos quais despender suas forças. E, no entanto, ela existe, persiste em se manifestar como determinante antropológico, exigência natural do animal humano. O emprego/a saída do negativo representa para Bataille o enigma da esfinge e ocupa toda a sua obra – não apenas sua obra escrita, mas seu trajeto de vida. Segundo quais modos e sob quais formas a negatividade em greve consegue se objetivar e ser reconhecida na História, escapando assim da insignificância, num mundo em que ela recusa as condições de emprego? Esse enigma, o autor da Carta a X... não resolve, ou melhor, ele o lega a nós, faz de nós seus depositários, propondo uma escolha entre dois engajamentos possíveis. Dessa escolha depende nossa capacidade de recolocar em marcha a história.

O negativo reconhecido

Kojéve e Bataille falam a mesma língua, mas seus discursos não se situam no mesmo nível de profundidade existencial. Kojève, como filósofo que agencia os conceitos, decreta o fim da História com o Estado stalinista. Bataille não gosta dos

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de revolta que impulsionam o homem a querer transformar o mundo e ser reconhecido, deve então decidir a entrar em greve, recusar a ação, tornando-se assim, segundo os termos de Bataille, “uma negatividade sem emprego”. O itinerário intelectual de Bataille, sua conversão do ativismo revolucionário (“surfaciste”) à escrita, foi certamente determinado por um momento histórico: o confronto entre os totalitarismos e as democracias nos anos 1930. No entanto, malgrado sua inscrição no passado, esse itinerário tem hoje para nós uma atualidade toda particular. Com efeito, o que ele questiona é o lugar e a função da consciência crítica nas sociedades reguladas pelo mercado, sociedades “homogêneas”, como Bataille as nomeia, nas quais o vínculo social repousa sobre o contrato e o interesse privado. A questão colocada pela Carta a X... ultrapassa infinitamente o engajamento do intelectual em termos políticos: o que acontece com o negativo quando os grandes catalizadores do passado, as grandes causas e as grandes narrativas que agregavam o corpo social, desertaram o espírito do homo œconomicus; e quando a luta do Mestre contra o escravo acaba no nivelamento geral estabelecido pelo dinheiro? Então, a negati-


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filósofos – ele o demonstrará com Sartre quando do “l’Affaire de l’homme révolté”, apoiando Camus. Ancorada no vivido, sua escrita é heterogênea aos sistemas abstratos. Ela esforça-se em dar forma a uma plenitude e a um excesso, a essa “parte maldita” da existência que é o objeto da sociologia sagrada do Colégio: “Imagino que minha vida – ou seu aborto, melhor ainda, a ferida aberta que é minha vida – constitua por si só a refutação do sistema fechado de Hegel.”2 Esta “ferida” é necessária. Ela permite a Bataille compreender que o enigma da esfinge histórica é, a um só tempo, tragédia e chance, e não apenas para ele, mas para todo homem dessa época.3 Tragédia porque de um lado o obriga a entrar em greve, mas igualmente chance, pois assim o impulsiona a sair de si, a ultrapassar sua situação, a fim de descobrir um novo emprego e uma nova saída para sua negatividade. A Carta a X... corrompeu o sistema de Kojève. A resposta que ela propõe é uma não resposta, resposta aberta, ou “negativa” na segunda potência, que devolve ao questionador a insuficiência de sua lógica. O novo emprego descoberto por Bataille oferece ao negativo uma maneira de se objetivar a partir de uma recusa e de uma revolta: recusa em participar dos eventos em curso; e revolta contra o presente da História, a fim de poder continuar a fazê-la. Melhor ainda que uma “chance”, esta revolta é salvadora. Ela dá ao homem individual a possibilidade de escapar ao impasse de seu próprio

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tempo por meio de uma (trans)mutação, passando do status de grevista ao de inventor e de empreendedor histórico: nos termos de Bataille, do status de “negatividade sem emprego” para aquele de “negatividade reconhecida”4. Para o sujeito da História, esse novo emprego não consiste mais em se fazer reconhecer, manifestando sua negatividade no mundo real; ele volta essencialmente para advertir os outros, revelando-lhes o no man’s land existencial e o beco sem saída histórico em que nossa modernidade, ela mesma, se acuou. A Carta a X... tem o sentido de um revelação, de uma “iluminação”, no vocabulário da mística. Em algumas páginas, Bataille descobre que a escrita, e, de uma maneira mais ampla, o que ele chama “a atividade de representação”, não está fatalmente votada à ineficácia de uma “belle-âme”, exilada em sua torre de marfim. Três tipos de homens Nos meses que se seguiram à Carta..., numa conferência sobre as sociedades secretas pronunciada no Colégio, Bataille distingue, por sua vez, três tipos de homens: o “homem da lei e do discurso”, o “abetouro armado” e o “homem da tragédia”. Cada um desses homens corresponde a um emprego particular das forças negativas. O homem da lei e do discurso é também, para Bataille, o “homem da comédia”, equivale dizer, o homem da negatividade recalcada e da hipocrisia. Na galeria política da época, esse tipo corresponde ao dirigente social democrata que


testemunha histórica, testemunha objetiva do fato de existir e de despender suas forças para aprofundar e comunicar aos outros, dando sentido à sua greve: apenas uma pane do negativo que colocasse a História em ponto morto culminaria necessariamente no triunfo do abetouro e no (auto)aniquilamento do mundo inteligente. Bataille está aí, na sua análise, no momento de sua Carta a X... Ele formula, então, uma dupla questão: “Qual forma tomará o testemunho do homem trágico, qual será sua eficácia política, seu impacto real sobre os homens deste tempo?”. Nenhuma resposta está disponível no interior do sistema de Kojève. Pois, se o homem da tragédia, o homem da negatividade reconhecida, se limitasse a pensar, a falar, a comentar sua posição de grevista, não poderíamos compreender como este emprego o diferenciaria do poeta, do homem das palavras, ou do homem de papel? Nas semanas que precedem o fechamento do Colégio e o início da guerra, Bataille parece então acuado, preso no círculo vicioso da linguagem que o condena a um falatório intelectual. “Diante do senhor, escreve ele para Kojève, não tenho outra justificativa de mim mesmo que aquela de uma bicho gritando com o pé numa armadilha.” 7

Entendida de forma literal, esta última frase ratifica uma confissão de fracasso. Mas talvez devêssemos ir mais longe e nos perguntar se este “fracasso” não é apenas uma aparência, ou mesmo

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confunde o exercício majestoso do poder e da burocracia. Por exemplo, o Presidente Leburn (ou hoje Hollande) cuja aparição nas telas de cinema numa cerimônia oficial provoca hilaridade5. O “abetouro armado” identifica-se facilmente com os chefes carismáticos dos movimentos nacionais, Hitler, Mussolini e Stalin. As características do abetouro são: projetar sua negatividade “ para o fora”, não tolerar “conflito interior”, nem ver na morte um gozo “exterior” destinado ao “inimigo”. Resta o homem do terceiro tipo, aquele em que a economia negativa é a mais complexa e a mais significativa. O “homem da tragédia” coincide em todos os aspectos com o “homem da negatividade reconhecida”, definido na Carta a X... Ao contrário do abetouro, sua negatividade está orientada de maneira centrípeta, interiorizando as tensões no lugar de projetá-las sobre outrem. Pois o homem trágico é antes de tudo “consciência”, inteligência humana em atividade; ele vê lucidamente as contradições, compreende a absurdez de sua época... e, no entanto, malgrado, ou melhor, contra essa absurdez, recusa-se a renunciar e luta para afirmar a consciência crítica diante de uma “realidade que não deixou-lhe outra saída que o crime”: crime cometido contra outrem, o “Inimigo”, caso se colocasse à serviço do Abetouro, mas também crime de autocastração que cometeria contra ele mesmo se se resignasse ao desemprego histórico6. Nas condições impossíveis em que sua época lhe coloca, o homem trágico encontra assim um emprego inédito para sua negatividade, o de


(consciente ou não) um desvio estratégico pelo qual Bataille já entrevê, de maneira vaga e intuitiva, uma terceira via que lhe permitirá escapar da armadilha kojèviana: greve ou literatura? Para verificar esta hipótese é necessário retornar ao momento de seu itinerário que vai da ruptura com o Surrealismo (1929) à fundação do Colégio de Sociologia (1937).

Da comunidade ao sacrifício das palavras

Com a ajuda das divergências políticas e do conflito de personalidade, Bataille se separa do grupo surrealista em 1929, convencido da impotência das palavras diante da História. Apenas a ação direta, não diferida na representação, parecia-lhe capaz, doravante, de mover o mundo. A ruptura foi consumada com a acusação de “icarismo” com

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a qual criticava Breton e sua “existência puramente literária”, que lhe permitia se elevar sobre o real e “fugir em direção às alturas, de onde parece que será fácil maldizer esse mundo baixo [...].”8 Nos anos seguintes (1933-1935), os textos que Bataille publica em La Critique Sociale, revista de extrema esquerda dirigida por Boris Souvarine, apenas acentuam uma orientação em direção ao ativismo radical. Por exemplo, no “Le problème de l’État” (1933): “As dificuldades sociais não serão resolvidas com princípios, mas com forças”9. A fascinação de Bataille pela passagem ao ato chega ao ápice, dois anos mais tarde, com sua participação no grupo anarquista Contre-Attaque, e com a proposta de constituir uma doutrina “surfaciste” que não hesitaria em utilizar “as armas criadas pelo fascismo [...], a aspiração fundamental dos homens à exaltação e ao fanatismo”10, para derrubar o Estado burguês.


A busca de uma “comunidade segunda”

Não se podem apreciar as implicações morais e políticas da Carta a X... sem levar em conta essas premissas. Em dezembro de 1937, Bataille explorou as duas principais vias de excesso do negativo: a representação e a ação, a via simbólica e a via política. Sua conclusão é que nenhuma delas é aceitável. No que diz respeito à ação em massa, os riscos de deriva lhe aparecem claramente. Não é justo afirmar como Habermas que Bataille não conseguiu diferenciar “entre a revolução social e a tomada de poder do fascismo”11. Os textos mostram o contrário, que Bataille sempre esteve plenamente consciente quanto aos riscos de recuperação do “surfascisme” pelo fascismo ortodoxo. Assim,

desde 1934: “como saber se um movimento que se daria inicialmente como antifascista não evoluiria, mais ou menos rapidamente, em direção ao fascismo?”12. No que concerne à “atividade de representação”, ela não é mais uma opção. Num mundo onde tudo se compra e se vende, o perigo de ver os dilaceramentos interiores do homem trágico tornarem-se “pouco a pouco literatura, depois comédia desprezada [...]” 13 é imenso. Diante desses dois modos de recuperação, política ou estética, Bataille vê apenas uma alternativa durante os meses que levam à guerra. Apesar da profundeza e da potência da sua negatividade, o homem da tragédia não pode fazer a história sozinho. Isolado na multidão, acaba por dissolver-se nela. A única possiblidade de afirmar a verdade que ele encarna e de fazer o espírito trágico ser reconhecido como “a realidade da existência

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C.L.Salvaro, GREVE


humana” pede que ele se junte aos seus semelhantes, aqueles que, como ele, recusam a se submeter às falsas escolhas da História. Nessas condições, o desenvolvimento de uma “comunidade segunda”14, ordem ou sociedade secreta, destinada a tomar o controle e a regenerar a sociedade em via de decomposição, se impõe como prioridade. A título póstumo, o que teria podido ser essa comunidade renderá uma abundante discussão. Comunidade “inconfessável” para alguns e comunidade “inoperante” para outros, a única certeza é que ela jamais entrará diretamente na História.15 Continuando o projeto rapidamente abandonado da sociedade secreta Acéphale – homônima da revista dirigida por Bataille –, o Colégio de Sociologia se projetará como tal comunidade, sendo, a um só tempo, laboratório de pesquisa social e célula de política ativa. A nota fundadora, publicada no cabeçalho da N.R.F. de julho de 1938, precisa a verdadeira “ambição” da empreitada: “que a comunidade, assim formada, ultrapasse seu plano inicial, que deslize da vontade de conhecimento à vontade de potência, que se torne o núcleo de uma conjuração mais vasta”16. Malgrado suas pretensões políticas, semelhantes às da maior parte dos grupelhos que nasceram e desapareceram na época, o Colégio terá apenas uma existência efêmera. Minado pelas dissenções interiores, depois pela dispersão de seus membros com a aproximação da guerra, ele não terá um segundo aniversário. Mais ou menos forçado pelos acontecimentos, o fechamento do Colégio teria sido para Bataille um mal necessário; pois é, então, no isolamento completo no qual a guerra o afunda, distanciado da agitação intelectual e política, que ele vai se engajar no que chamo uma “terceira via”, a fim de contornar a armadilha kojéviana.

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Uma escrita sacrificial

Essa via se abre para ele através da redação de dois textos escritos entre o inverno de 1941 e a primavera de 1942, O culpado e A experiência interior. Com esses textos opera-se uma mudança de economia, e, pode-se dizer, de regime, no procedimento de Bataille. Com relação ao ativismo que precede o Colégio, passa-se de um movimento centrífugo, que tenta empregar a negatividade no aqui e agora da História, ao movimento inverso, centrípeto, no qual a violência da revolta é contida e consumada num esforço da consciência levada à potência de uma “mística paradoxal”17. Esse movimento é descrito no texto da contracapa da primeira edição do Culpado: “Sorte de jogo sem refúgio, desvario, angústia ao partir, essencialmente violência retornada [...].”18 Seis anos antes, no “A noção de dispêndio”, Bataille identificava a palavra “poesia” – reservada às “formas menos degradadas, menos intelectualizadas” do que habitualmente ela designa – com a operação sacrificial, definida como uma “produção por meio da perda”19. Com efeito, o que se encontra sacrificado, perdido no ato poético, é a vontade de ser reconhecido, dominando outrem; mas o que retorna “criada” é a própria escrita, o esforço extremo e o esgotamento do pensamento vivido, não como um substituto ao trágico, mas como último meio do homem consciente testar seus limites: aqueles de um ser simbólico, consagrado à circularidade da linguagem e do sentido que o ligue aos outros. Esta identidade da poesia moderna (não codificada) e do sacrifício na “Noção de dispêndio” antecipa o movimento d’A experiência interior.


A experiência interior É necessário ser tão normalista quanto Sartre para ver n’A experiência... um relicário do misticismo religioso. Com certeza, Bataille toma emprestado de São João da Cruz e de Santa Teresa uma aproximação negativa do sagrado: não definir o Ser, ou o Objeto transcendente por seus atributos, mas por aquilo que nele não pode ser significado por meio das palavras; mas aqui o procedimento inverte o ponto de chegada da mística tradicional. Fazendo do “não saber” o meio de sua experiência, Bataille defende a ideia de uma realidade inefável, heterogênea à razão, mas, ao mesmo tempo, recusa reduzir essa realidade à noção de um Bem e de uma Ordem supremas, diante da qual o sujeito deveria se inclinar. A experiência continua fundamentalmente ateia, na medida em que nega a presença de um refúgio, ou de uma recompensa última que viria pôr termo ao trágico humano. “O que caracteriza tal experiência, que não procede de uma revelação, onde mais nada se revela, senão o desconhecido, é que ela não traz nada de apaziguante [...].”20 A recusa em alcançar e em se apropriar do sagrado se manifesta no ritmo de um questionamento sem fim que não pode “dar nada a não ser a vertigem ou a raiva [...].” 21 O prefácio d’A experiência interior descreve esse dispêndio intelectual como uma catarse destinada a nos purificar do desejo de ser Tudo. Nós não somos tudo, temos apenas duas certezas neste mundo, aquela e a de morrer [...]. Eu queria ser tudo: e [...] me enchendo de coragem, me disse: “tenho vergonha de ter querido ser, pois agora o vejo, era dormir”, a partir de então, começa uma experiência singular [...].22

A “revolta contra a História”

Certamente, é fácil, como o fez Sartre, reduzir A experiência interior a um deleite moroso, vagamente narcísico, que equivale ao “prazer de tomar um drink ou de tomar sol na praia”. E com efeito, à primeira vista, nada parece distinguir verdadeiramente Bataille do poeta romântico, nem a “terceira via” de uma saída de emergência, uma fuga da história: “Nosso autor, acuado no fundo de seu impasse, se evade de seu desgosto por uma sorte de inconsciência extática”.25 Entretanto, a distância é incomensurável. Há no literato de escolha e de profissão uma sorte de complacência consigo mesmo que o próprio Kojève analisou bem. O poeta está convencido de

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Ao passo que a iluminação mística conduz à fusão do Eu com o Todo, o dispêndio na perda (negativa) da consciência e da linguagem revela a insuficiência da mônada individual e a necessidade de comunicar com aquilo que a ultrapassa: de se abrir simultaneamente para um além do sentido, o Todo-outro, e para outrem. Na experiência, o sujeito torna-se “consciência de outrem”; “enquanto sujeito, lança-se para fora dele, abisma-se numa multidão indefinida de existências possíveis [...].”23 No jogo inquietante das palavras que inspira a consciência a uma reflexão sem fim, a escrita deixou de ser decorativa; ela torna-se “sacrifício no qual as palavras são as vítimas”24, quer dizer, expiação, no sentido literal dado por Caillois n’O homem e o sagrado: ex-piare, “fazer sair (de si) o elemento sagrado”, renunciar ao desejo de tornar-se Tudo, de possuir para si só o Saber ou o Poder supremo, de ser o filósofo ou o Homem a cavalo, Hegel ou Napoleão, Kojève, Sartre ou Stalin.


ter obtido uma forma de reconhecimento, com a ajuda das palavras aceitas e valorizadas pela sociedade. Sem dúvida, este reconhecimento é ilusório, o poeta não faz efetivamente a história e o número de seus leitores cabe numa “capela”, isso não impede que o reconhecimento traga ao Eu um sentimento de plenitude e de autossuficiência, a satisfação de uma existência socio-histórica completa. Em suma, por meios opostos aos do Abetouro, utilizando as palavras no lugar dos atos, o Poeta também satisfaz o seu desejo de Totalidade: ele torna-se “gênio”: “Ele foge do Mundo, não dele mesmo – o único ‘Selbst’ que conhece, que o interessa. É a última fuga do Homem diante do Mundo: refúgio em si (‘a torre de marfim’).”26 Esse acabamento simbólico, mas ilusório, da totalidade pelo escritor genial não define o homem trágico, aliás, o homem da negatividade sem emprego. Uma única frase da Carta a X... prevê o amalgama27: No que me toca, a negatividade que me pertence só renunciou a ser empregada a partir do momento em que não teve mais emprego: é aquela de um homem que não tem mais nada a fazer e não aquela de um homem que prefere falar. Na posição de Bataille, a escrita não ressalta uma escolha, ela se impõe imperativa; e este imperativo não visa, como no poeta, alcançar glória e reconhecimento pessoal, seu escopo é universal. Para o homem da tragédia, a escrita se apresenta como o último emprego e como a única arma que a consciência dispõe para se opor à iminência da catástrofe. Nós só podemos ser conscientes, e é mergulhando na consciência que podemos tentar transgredir as dificuldades do mundo atual.28

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O ato de escrever que efetua esse “aprofundamento” no interior do sentido, “onde o homem alcança o extremo do possível”29 é um ato político no sentido pleno: ele informa e reúne. No lugar de seguir e fazer cegamente a História, aquele que pensa e escreve “se revolta” contra ela. Em 1952, quando da polêmica entre Sartre e Camus que se seguiu à publicação de O homem revoltado, Bataille alia-se a Camus, defendendo a ideia de uma “revolta metafísica”, de uma insurreição intelectual e espiritual da consciência contra uma “história que inexoravelmente empurra a espécie humana ao suicídio”. É ridículo negar a história, mas ao menos podemos, se formos bastante fortes para isso, – bastante lúcidos sobretudo – assumir [a tarefa] de impor-lhe uma recusa. Resumindo, contra a história podemos nos revoltar.30 A situação de reclusão em que Bataille se encontra enquanto escreve A experiência... é uma condição necessária. É na guerra, com a proximidade da morte e na solidão do ser individual que a linguagem se revela a ele como último abrigo contra a barbárie e a violência.31 Pois o que fala então no silêncio da consciência não é mais o Eu, nem a vontade de ser reconhecido, tornando-se Tudo, mas os outros, todos os outros, a civilização universal, e no seu movimento, a própria história. O terceiro, o companheiro, o leitor que me conduz, é o discurso. Ou ainda: o leitor é discurso, é ele que fala em mim, que mantém em mim o discurso vivendo endereçado a ele próprio.32 A negatividade daquele que escreve não é aquela do messias revolucionário, sonhando em


Cada homem está ligado aos outros dos quais ele é apenas a expressão. Qualquer que seja a ambição, um escritor nunca é apenas uma expressão do passado, do presente e do porvir humano.33

Bataille hoje

Na conferência sobre as ordens e as sociedades secretas proferida no Colégio, Bataille coloca assim qual é para ele “a questão dominante da vida social”: Como reconhecer o espírito trágico, “realidade profunda do ser humano”, num mundo que impõe, ao contrário, “a negação de todo conflito interior?”34. Traduzindo vulgarmente: do que a palavra do homem reflexivo, inquieto diante do mundo e preocupado em conferir-lhe sentido, ainda é capaz, quando a programação e a servidão voluntária das consciências têm um pacto tácito com a pior violência? E se por “pior violência” não entendo uma violência determinada, mas uma violência genérica, matricial e fundamental, o cadinho do Mal em que se produz todos os aspectos particulares da violência? Repitamos! Essa questão não está limitada à época em que viveu e escreveu Bataille. Com o não emprego e a ausência de saída do negativo, é ao impensado de nossas democracias modernas que ela se destina. No mundo de Bataille, a pior violência

identifica-se com os grandes monstros históricos, que desde essa época nos servem de álibi. No nosso, ao contrário, ela permanece invisível, não apenas invisível, dissimulada sob os atrativos do relativismo e do gozo ao alcance das mãos. Tocqueville tinha previsto que com o nivelamento das classes e com o afluxo de bens as sociedades democráticas se tornariam mais e mais prósperas e pacíficas. Os excitantes metafísicos, responsáveis pelo fanatismo e pelos conflitos mundiais, cederiam lugar ao “lasso amor dos gozos presentes”. A realidade denega esse otimismo. Olhemos a História na cara. Em matéria de violência e de segurança pública, nossas sociedades permissivas não deixam nada a desejar às sociedades pretendidas “repressivas” do Antigo Regime. Numa sociedade em que as saídas tradicionais, como a arte, a religião, as grandes narrativas ideológicas que abriam à revolta, se encontram enterradas sob a acumulação de coisas, a negatividade regressa ao estado animal. Ela cessa de se empregar e de se despender, no esforço de um combate para que seja reconhecido o valor humano, e se exprime como descarga. O modelo hegeliano, segundo o qual o escravo se opõe ao mestre, a fim de afirmar sua autonomia e sua dignidade de homem, é para nós vazio de sentido. Na sociedade do lazer e do espetáculo, o controle do aparelho midiático sobre a fabricação, a distribuição e a consumação de uma violência representada cria um mundo inédito de reconhecimento. Para o psicopata da era eletrônica que esvazia seu tambor sobre os espectadores, durante a projeção de Batman, o objetivo não é reconhecer qualquer valor humano que de toda maneira não está mais em curso; trata-se muito mais de ser sacralizado em Todo: imagem-ícone onipresente em escala planetária. A negatividade se exerce sempre na transgressão, por ultrapassar o limiar superior das normas; mas essa transgressão não tem mais nada

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apropriar-se do destino das massas. Sua missão é mais humilde: é aquela do mediador, depositário de um texto anônimo no qual tomam forma e sentido os medos e as esperanças daqueles que o circundam. Vinte anos mais tarde, num texto intitulado “Explicação de meus escritos”, Bataille retornará a esse emprego sacrificial e redentor da escrita:


de humano, aí, nenhuma consciência participa, simples reação a um automatismo ou a um adestramento. Uma vez esgotados todos os subterfúgios da tecnologia cinematográfica (surround sound, 3-D, Imax...), a indústria do espetáculo implica uma passagem ao ato como sequência natural das representações. É esta descarga de negativo que está em questão na Carta a X... Uma negatividade que não passa nem pelo pensamento, nem pela utilidade, mas que se manifesta abruptamente em estado bruto, como violência gratuita: puro desejo de destruição sem fim e sem limite, heterogênea ao sentido. É certo que escrevendo A experiência interior Bataille não pôde prever a evolução econômica e tecnológica das sociedades atuais. Em contrapartida, ele já percebe o doutrinamento e a manipulação das massas pela propaganda, a covardia política e a raiva de uma negatividade cega dos seus limites. Ele compreende que na sociedade “homogênea”, em que a relação com o outro e o reconhecimento estão a serviço do interesse, a reversão do sagrado em economia está na origem da pior violência. Violência militar ou violência técnica são finalmente a mesma coisa. A força brutal e a ciência sem consciência tornam-se os melhores aliados. A negação técnico-econômica da tragédia engendra o niilismo e o terror de massa, do mesmo modo que a fraqueza das democracias tinha encorajado a fé nazista. Se aplicado ao tempo presente, o texto de Bataille tem por primeiro emprego nos tornar lúcidos. Ele nos obriga a abrir os olhos diante da queda vertiginosa de uma civilização outrora farol da humanidade numa forma paradoxal da barbárie, associada ao Progresso. Esse texto também indica a via e o método capaz de impedir essa catástrofe. A última chance de perseguir uma história na dimensão humana exige que se insurja contra a

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renúncia da inteligência; de manter viva esta parte de nós que não se manifesta apenas na arte, mas cada vez que nos reconhecemos, no isolamento da consciência e no exercício das palavras que nos ligam aos outros, nos limites de nosso possível.


1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14.

15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31.

32. 33. 34.

D. Hollier, le collège de sociologie: 170. Ibid.: 171. Ibid.: 175. Ibid.: 173. Ibid.: 239. Ibid.: 270-272. Ibid.: 172. G. Bataille, OCI: 170 Ibid.: 379 Ibid.: 382 J. Harbermans, Discours philosophique de la modernité: 260-261 OCI: 424-425 D. Hollier, Le Collége de Sociologie: 273 G. Bataille, “Assim, na medida em que não querermos mais ser mutilados, derrisórios, aos nossos próprios olhos, estamos em busca de uma comunidade segunda, na qual os fins tenham em nós um total consentimento do ser.”, OCXI: p. 63-64. Cf. M. Blanchot, “A comunidade inconfessável” e J. L. Nancy, “A comunidade inoperante”. D. Hollier, le Collège de sociologie: 35. OCV: 493. (Grifo do autor.) Idem. OCI: 307 OCV: 10. OCI: 307. OCV: 10. Ibid.: 76. Ibid.: 156. J. P. Sartre, Situations I: 228. D. Hollier, le Collège de sociologie: 168. Ibid.: 172 OCVII: 395. Cf. OCV: 11. OCXII: 232-233. Escrito na terceira pessoa, o Prefácio do Culpado indica que o livro foi ditado por “circunstâncias favoráveis” que o tornaram necessário: “essas circunstâncias” (independentes da vida pessoal do autor) resultam da declaração da guerra de 1939. Praticamente, o autor compôs esse livro a partir de um “diário” que redigiu desde o dia em que a guerra eclodiu, guiado por um movimento que ele não teria podido dominar. O autor, então com quarenta e dois anos, jamais tinha redigido um diário. Mas, encontrando-se logo diante das páginas escritas, percebeu que nunca tinha escrito nada que ele tivesse apreciado tanto, nada que o expressasse tão plenamente. OCV: 494. Ibid.: 75. OCXII: 527. D. Hollier, le Collège sociologie: 272-273.

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Imagens: C.L.Salvaro, GREVE


36 Foto: Matheus Sรก Motta


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Fotos: Matheus Sá Motta - @msamotta

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Lagoa Santa faz uma rua que atropelou a casa do Sr. José Ferreira da Costa.


18 de abril 2017

“não custa nada, só lhe custa a vida”

Os velhacos que comandam a república se locupletam extorquindo, corrompendo, dissimulando. A economia política sucumbe frente às crônicas policialescas. Nenhuma inteligência aí, é o óbvio que desvela o país (já não se trata de política, só gangsterismo). Os nazistas operaram a “téchné do gângster” (G. Rabinovith), mas esses tinham ideologia. Aos discípulos de saló, restou o banditismo: a corrupção generalizada instaura a cumplicidade canalha no tecido social; a desfaçatez e o cinismo exibicionista erigem a humilhação à pedagogia; o assassinato passa de excesso policial ao legítimo exercício da ordem. Para os velhacos de “almas sebosas”, a organização do crime é a primordial função do estado. Nas ruas, nas matas, nos campos, nos hospitais, nas escolas, ser cidadão é ziguezaguear entre a vida e a morte. Sob a gestão agressiva da intimidação nos tornamos todos alvos móveis. De onde virá – como um messias redivivo

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Gilberto Gil

e procrastinador – a reversão abrupta, negativa, da parte maldita? Aqui, apenas os mortos-vivos vicejam – o hálito dos ratos nos assedia. Espraia-se o medo de que impunes nos conduzam, insepultos, para sempre. No Hades hodierno inverte-se a máxima: “daqui ninguém sai morto”...


Washington Drummond

Diário da República de Saló

28 de agosto de 2017

“uma selva escura, onde a via direita estava turvada”

Dante

uma distopia – gestão perversa que sonha espargir-se por todo o país enquanto desamparo, medo, terror. Essa guerra intestina, em que as vítimas somos todos nós brasileiros, é a nova gestão mafiosa em que o estado de exceção se esfuma, sendo nada mais que a norma do capital, sem o estorvo da produção. Rizomático, imoral. Pagaremos caro pela indiferença amorosa e imbecil. O rio é o ovo exposto, explosivo, redivivo e soberano da serpente...

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A República de Saló elegeu seu território: aquele em que o braZil se projeta como um futuro desejado e possível; aquele em que o inferno se resolve como cotidianidade; aquele em que seus habitantes sabem que não mais vivem, sobrevivem; aquele em que a vida – em sua potência – se esvai. O rio se transformou na “disneylandia do inferno” dos velhacos que comandam o braZil: que destino pode haver quando trabalhadores são humilhados e massacrados pela polícia, no momento em que reivindicam o que já parece impossível, o salário ao final do mês? Que dignidade há quando depois de cumprir a jornada de uma vida, idosos são torturados com o sequestro inexplicável de suas parcas aposentadorias? Que esperança pode persistir se crianças são impedidas de estudar, assombradas pelos confrontos armados? Que mátria infeliz em que mães não cessam de velar seus filhos assassinados! Esse é o rio que desemboca no braZil como


14 de setembro de 2017

“num pátio que era uma bolgia do inferno”

l. barreto

O braZil pós-reformas será um frigorífico de carne humana: a redução de gastos na saúde é a organização estatal do genocídio; a redução de gastos na educação é a organização estatal da barbárie; a redução de gastos na habitação é a organização estatal da miséria. Para conservarem as cabeças pútridas sobre os pescoços, os velhacos condicionaram a própria sobrevivência ao gangsterismo, operando a democracia neoliberal como um território árido para a vida – o grau zero de sua potência. Mas essa diminuição do vivo aos custos – o ditado reativo dos economistas – já não seria um efeito dessa operacionalização gélida, métrica? A bolgia que nomeamos braZil responderá, como um buraco negro, vomitando as mais improváveis e inusitadas formas – ainda abertas – por mais impossível que isso nos pareça? Do espanto, do assombro, do terror, da violência, da graça se alimenta o verdadeiro acontecimento – esse teatro dos informes, dos infames, sem gramática, no âmago da sistematização do extermínio. Como Lima Barreto, deambulando seminu no cemitério dos vivos... Uma única noite de tenebreuse lumiére, regida pelos rituais indecentes dos velhacos,

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10 janeiro de 2018

“talvez seja na alma que tudo (re)começa”

Raimar Rastelly

tal basbaque demoníaco – disparou várias vezes a própria arma... projéteis como se fossem fogos de artifício. São os mesmos nove corpos negros de detentos – dois deles decapitados – procurando seus assassinos para uma última pelada com as cabeças que lhes foram sordidamente arrancadas. Ou o bebê encontrado morto na lixeira da esquina e que saiu inerme na busca de seus pais e algozes. E no assombro do dia que jamais aurora, o índio solitário – professor de crianças e morto barbaramente – conduz a alma anêmica de seu assassino até o inferno mais próximo. A noite envilecida e inútil revela que há um país à procura de sua própria alma.

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se esparge até sua origem. Finda por implicar o presente num futuro fantasmagórico e nunca vindouro. Gerações sucessivas, inertes e insones, são condenadas a esse tempo morto, infernal: onde qualquer movimento da história está congelado numa imagem em que a dialética se esvaiu. (Como se olhássemos nosso devir por um retrovisor montado num bólido precário, arruinado. Como se descrevêssemos nosso cenário com as narrativas devastadas de Benjamin e Kafka.) Essa noite tão veloz quanto terrível convoca todos os habitantes de Saló, irredentos, saídos do limbo, a percorrer desesperados essa terra ignatia e estéril. São as 130 mulheres vítimas de estupro – em cada noite brasileira de 24 horas – que deambulam, atônitas, procurando as outras 12 mulheres assassinadas, para uma dança macabra em que se vingarão de seus violadores. Ou os cinco jovens, cinco corpos no chão úmido de um bar da periferia – vítimas das nossas já cotidianas chacinas – que esperam plácidos para sorver um último trago com os justiceiros que, mais adiante, farão outra chacina. Essa, para celebrarem o “acerto de contas”. Ou ainda a criança de cinco anos – morta, vagando com uma bala encravada no peito – à procura do homem (mas o que é um homem?) que no Réveillon –


Geraldo Santos

A ESTAÇÃO DAS CANETAS

Parada Obrigatória

Meu trajeto segue um itinerário diferente, relembro do tempo em que eu era um rapaz empregado e diariamente fazia uso do transporte público. Na estação, várias pessoas de diferentes lugares se esbarravam. Em certos horários, seus corpos até pareciam se fundir de tão próximas que ficavam, ali o único contato verbal se limitava às desculpas por uma movimentação brusca ou um pisão dado na pessoa ao lado. As pessoas permaneciam reclusas dentro de si, estando mais apagadas do que as luzes de uma Comunidade Terapêutica (CT) às 22h00. Percorrendo com os olhos a paisagem urbana que passava pelo lado de fora, algumas pessoas contemplavam o nada integrando uma grande massa que, em segundos, se perdia no enquadramento. Outras pessoas presentes naquele espaço em sua grande maioria interagiam com os mecanismos de extensão de sua realidade pessoal através de seus livros ou smartphones. Esses meios funcionam ali tanto para provocar a sensação de menor permanência neste espaço quanto para

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amenizar a necessidade da interação com aqueles com os quais não se deseja interagir. Alguns até olhavam para os outros, olhares de julgamento, outros de curiosidade, vira e mexe alguns olhares se cruzavam, gerando um aparente desconforto, pois logo as pessoas desviavam o olhar, pois talvez aquilo fosse um flerte. Uma barreira imaginária parecia bloquear as interações ali, mesmo quando quistas. Aquelas pessoas permaneciam imersas em seu próprio mundo, tornando-se espectadores do transitar de pessoas e dos acontecimentos que se sucedem: Se, por um lado, os “não lugares” permitem uma grande circulação de pessoas, coisas e imagens em um único espaço, por outro transformam o mundo em um espetáculo com o qual mantemos relações a partir das imagens, transformando-nos em espectadores de um lugar profundamente codificado, do qual ninguém faz verdadeiramente parte. (SÁ, 2014, p. 211) A cada dois que desciam, outros cinco subiam, a cada parada aquele espaço perdia um pouco de si, partes de uma grande massa de reali-


que se torna nítido ao longo de seus discursos, com dialetos e gírias próprias de pessoas que vivem em regiões periféricas. Devido a sua fluidez com essas expressões orais, são estigmatizados por grande parte dos passageiros; dentre os sussurros, alguns discursos se sobressaem, quase sempre de forma pejorativa. “Uma vez dependente, sempre dependente”, sempre diz o pai de um amigo abstinente há 20 anos. Diariamente, aqueles rapazes se encontram dentro dos ônibus, fazendo o trabalho de divulgação da CT a partir de seus depoimentos e da venda de kits, compostos por uma caneta esferográfica e um panfleto falando da instituição com a foto do pastor e diretor da instituição em uma embalagem plástica. Talvez eles fossem as pessoas mais conhecidas daquele espaço. Sendo todos os dias vistos e escutados, seus rostos, suas falas e seus gestos marcavam o próximo encontro.

Divisão de Território O sol intenso daquele dia causava várias sensações estranhas em mim, talvez tenha sido por eu não ter me alimentado e nem bebido água. Várias pessoas subiam e desciam para seus caminhos, talvez alguma dessas pessoas estivessem procurando os rapazes das canetas, afinal, “é uma caneta de três cores, acabando a tinta você pode comprar o refil em qualquer papelaria do Centro de BH, você pode estar adquirindo este kit por apenas 5 reais e ajudará a salvar outras vidas”, mas nada de encontrá-los. Às vezes eu perguntava a algum desconhecido se saberiam me informar como encontrar essas pessoas, mas ninguém sabia me informar. Como aquele grupo que parecia quase onipresente teria sumido assim? Em uma dessas subidas e descidas, cruzo com uma vendedora de balas (baleira), à qual decidi pedir alguma informação acerca dessas

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dades que não fazem nenhuma diferença dentro dele. Não se sabem seus nomes, seus gostos, seus medos, embora eles existam. As permanências são passageiras, despercebidas ou, quando percebidas, se limitam à memória de curta duração. O que ali acontece se perde tão rápido quanto o ritmo dos mecanismos de comunicação que se multiplicam. Repentinamente, todos são despertos de seus mundos pessoais, não conseguindo ignorar aquela voz retumbante que ecoava ali dentro. Mesmo ao fundo se escutava: “Só quem tá feliz com Jesus pode me dar um bom dia!?” Silêncio, e ele insistia novamente, com a voz um pouco mais alta. Alguns respondiam quando provocados pela segunda vez, talvez com medo de blasfemar ou para não demonstrar uma possível ingratidão ao poder divino. Um súbito sono tomava algumas pessoas que imediatamente caíam nos braços de Morfeu, mas seu fingimento não seria o suficiente para não escutar tudo o que seria falado. A estratégia de alguns em ligar os fones de ouvido talvez fosse mais eficaz, ignorando o risco dos danos que poderiam ser causados pelo exagero no volume. A pessoa que começou a falar tinha muita coisa a dizer durante a viagem de ônibus. Começava com uma sinopse de sua trajetória no chamado “mundo das drogas”. Em seu discurso, afirmava que todos os problemas acontecidos nos espaços de conflito teriam ficado no passado. Aquele que ali falava era uma nova pessoa, bem-sucedida no processo de conversão moral. O discurso durou vários minutos, mas pode-se dizer que ele durava dias, pois todos os dias ele se repetia por outras pessoas com pequenas variações. Essas pessoas, em sua maioria rapazes, estiveram imersos nos espaços das drogas durante grandes períodos e, devido às interações sociais, muitas coisas acabaram sendo absorvidas; essa herança se estende desde a personalidade à construção ou ressignificação do vocabulário, o


pessoas. Logo que ela desceu do ônibus, fui atrás, me aproximei e expliquei sobre minha procura. Ela me explicou que não os encontrei devido a alguns conflitos com os baleiros. Eles eram causados pelos longos discursos que fazem, o que, segundo os baleiros, estaria atrapalhando a dinâmica de suas vendas. Essa irritação se materializou em uma separação territorial sustentada por alguns baleiros, a partir disso os caneteiros apenas passaram a fazer o trabalho de divulgação e venda em linhas de ônibus que vão direto para o Centro, pois esses ônibus não são o foco dos baleiros. Sabendo onde encontraria aqueles rapazes, novamente desviei de caminho, partindo para um lugar desconhecido, mas não incomum, o núcleo das interações e correrias. Muitas pessoas ali passavam, o cheiro de cigarro impregnado no local junto à fumaça dos ônibus que dali partiam provocava meu nariz alérgico. Várias pessoas faziam o comércio de lanches, doces, cigarros, dentre outras coisas. Como de praxe, comprei meu café com pão de queijo para conversar com aquelas pessoas com o bafo mais mineiro possível. Assentado ali observando tudo como uma vizinha fofoqueira, fui desperto. Fui atraído pelos lindos olhos verdes daquela mulher trans que mais pareciam ser lentes. Nossos olhares se cruzaram e nitidamente ela percebeu que eu estava olhando para ela, fiquei bem sem graça e sorri afirmando assim minha posição, a partir disso ela estaria livre para interpretar aquele olhar como quisesse. Logo atrás, sua amiga passava desfilando com seus óculos escuros, rebolosa e fina, só não tão fina quanto seu salto agulha. Sua postura ereta e o pisar forte retratavam uma pessoa em cujo não se deveria pisar no calo, juntas entraram no ônibus seguindo assim mais uma parte de seus caminhos repletos de obstáculos e perigos. Ao meu lado, desembarca um daqueles caneteiros, estava ali com seu rosto brilhando de suor reafirmando o quanto aquele dia estava

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quente. Entra no banheiro e sai com o rosto ainda mais molhado, esse excedente ajudaria na reposição de água perdida, completando essa reposição com uma longa bebida de água no bebedouro que estava ali próximo. Em seguida, logo à frente, ele se assenta onde eu estivera alguns minutos atrás, talvez o lugar ainda estivesse quente, nossos corpos em outra dimensão de tempo se tocaram. Me aproximo para conversar com ele, mas como essa conversa aconteceu ou quais perguntas foram feitas às vezes me parece irrelevante, mas fluiu de tal forma que passei a tarde indo para lá e para cá junto ao rapaz, Lucas, que não era dali. Sou do Rio. Assim… Nós chega, nós fica 15 dias em casa se tratando, se desintoxicando e depois de 15 dias a gente já começa a vir pra rua pra estar se reintegrando com a sociedade de novo e começar a fazer o trabalho, aí é um período de 9 meses a um ano. É a minha segunda semana que tô saindo pra rua sozinho, fiquei lá dentro 13 dias. Nesse espaço desconhecido eles têm total autonomia para fazer suas próprias escolhas, estando sujeitos às regras da CT, que não faz uma supervisão tão rigorosa enquanto eles estão na rua. As dificuldades são diárias, principalmente para quem está no começo do tratamento. Nós passa tribulação a todo momento, o negócio é loco mesmo, toda hora, muitos bate vontade de usar droga, de fazer várias coisa, isso deixa o sujeito loco da cabeça. Todo dia uma pessoa tirando seu sossego, tem motorista que não deixa nóis no ônibus pra fazer o nosso trabalho, pessoas que julgam nosso trabalho. Hoje eu fui pra outra rota, lá naquela avenida Amazônia, sem conhecer nada, eu fui lá hoje pra trabalhar, agora que tô chegando, eu fui pra lá em Venda Nova e tô aqui agora. Só hoje eu perdi quatro kits já. Eu perdi dentro do ônibus, outros eu tive que pagar passagem por que alguns motoristas não dão passagem aí a gente vai lá e tem que pagar a passagem. Ele


Rotina Diária

A gente acorda 4 da manhã. Eu era acostumado acordar 15h da tarde, agora aqui, o cara acende a luz meu olho já abre, precisa nem chamar. Eles saem juntos da CT e, chegando ao Centro de BH, cada um passa a fazer seu trajeto diferente. No decorrer do dia, é comum que eles se cruzem, conversam sobre suas vendas, sobre os baleiros e outros acontecimentos. Repentinamente se despedem dos outros e saem correndo para dentro de algum ônibus. Tem gente que já dá umas 15h já tá indo embora. A hora que a gente quiser ir embora, nós vão embora, mas nós fica doido pra bater uma metinha no dia, aí a gente vai umas 17 horas da tarde, chega lá umas 19, vamos dormir umas 22h, porque nós acorda cedo, nós dorme cedo umas 22 pra 4 horas acordar então, até nos chegar aqui na cidade. A rotina de trabalho dura toda a semana, inclusive aos sábados, dia em que o lucro das vendas fica exclusivamente para eles. Os demais kits assumem a forma de pagamento da estadia, sem que sejam descontados os excedentes. Quando nós tá na casa lá nós ajuda lá

também, tem nossas tarefas lá, final de semana é nosso lazer, tem piscina, nos joga futebol lá dentro mesmo, somos quase 30 pessoas. Lá na nossa casa, o nosso tratamento não é aqueles tratamento igual tem muitas clínicas aí que tem que ficar tomando remédio, o nosso tratamento é espiritual, tem a nossa própria igreja lá dentro, tem pastor, tem tudo lá dentro e nós vive nisso, com fé em Deus, agradecendo a Deus, buscando Deus pra Deus dar força para continuarmos nosso trabalho, porque o negócio não é fácil não fí, o inimigo a todo momento tá querendo fazer nossa cabeça, não deixa nóis em paz de jeito nenhum. Às vezes a gente entra assim e não dá vontade de falar, o primeiro ônibus de cada dia dá um gelo na gente, mas depois que a gente fala já acaba indo. Eu fiquei lá 11 dias e reagi bem ao tratamento, saí pra rua, na hora que eu entrei no ônibus, arrepiou assim ó, as pessoas olhando pra sua cara, é como se você não tivesse conhecido ninguém, na hora cê começa a falar, começa a gaguejar, nossa é muita coisa diferente, cara. Agora a gente conversa com todo mundo que a gente vê a gente conversa, a gente fazer esse trabalho nos coletivos é uma reintegração social. Quando a gente usava droga a gente não conseguia falar com uma pessoa, ficava lá na brisa, quando passava a brisa a gente ficava quietinho assim óh! Via uma pessoa e já achava que tava encarando a gente, mas na verdade a gente tava encarando a pessoa e não percebia. O pessoal aceita mais agora, pois entende que a gente tá ajudando e tá se tratando. O kit é pra ajudar a sustentar a casa e resgatar mais vidas, porque a nossa preferência não é tá vendendo kit não, é tá resgatando mais uma vida, porque a nossa comunidade se você procurar vai ver que ao todo são 27 casas, a nossa casa em BH é a que mais interna, todo dia tem 10 a 15 ligações querendo internar.

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demonstrava preocupação quanto à perda daqueles kits, pois algumas pessoas embolsavam o dinheiro e ele estava com receio de que a equipe da CT achasse que estaria agindo da mesma forma. Observávamos os ônibus passando enquanto pessoas apressadas corriam em sua direção e, tendo cessado o período de descanso não calculado, resolvemos entrar em um ônibus para ele realizar seu trabalho. Pude nessa hora experienciar uma das tribulações de que ele tinha falado. Éramos os últimos da fila do ônibus, e quando o motorista viu que entraríamos fechou as portas quase prendendo meu braço que já estava apoiado sobre a porta, em seguida arrancou com o ônibus nos deixando para trás.


As músicas que não escuto mais

Dentro dos modelos de tratamento em CTs, o distanciamento do espaço de origem do conflito é algo essencial, tendo como principal objetivo o corte dos laços com esses espaços, na tentativa de estimular a construção de uma nova personalidade moral. Aqui não pode ficar ninguém de BH não, cada um vai para um estado diferente. Por causa de saudade da família, conhece as quebrada tudo, amigo, aí pra pegar e não recair de novo aí vai pra outra unidade. Conversando com uma pessoa abstinente há seis anos, pude perceber que muitas de suas falas, mesmo sobre outros assuntos, passam por questões aprendidas através das CTs em que esteve. Hoje eu trabalho, tenho meu filho, minha família e vou indo. Os meus colegas quase todos aqui no bairro mexem com essas coisas, bebe, usam, eu passo por eles todo dia, cumprimento e eles não me oferecem, eles me conhecem e são camaradas, não chamam. O tratamento é isso aí, tem que ter perseverança, se não ele não consegue, ele tem que ser obediente a aquilo que estão passando pra ele ali na casa, e a casa que eu passei lá é mais psicologia. Na conversa, percebo que todos os seus discursos giram em torno do que aprendeu sobre psicologia nesse período. Todas as vezes em que recaía, ele avaliava o que tinha o levado a isso e ia fazendo uma série de adaptações em sua vida, refletindo até mesmo com quem tinha se relacionado afetivamente. Esses ajustamentos partem de várias formas, das mais simples às mais dolorosas, da negação do eu e de elementos de identificação que são parcialmente apagados devido ao medo de recair. Tem coisas que a gente usa que remete a um barzinho, uma mulher que eu tive que usava comigo, se chama memória química. Eu adoro MPB, ouço MPB no rádio o tempo todo, só eu e Deus. Gosto de

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rock progressivo, mas algumas músicas hoje eu não gosto de ouvir porque me remete a essas lembranças, lembranças boas, mas ruins também, as duas coisas, mas isso é ser masoquista né e eu não sou masoquista.

As músicas que ainda escuto

Dentro do caos do espaço urbano em que

me via, fui marcado por um relato não esperado, pois não partiria das pessoas que procurava e sim daquela vendedora de balas que me ajudou a encontrar aqueles rapazes. Era uma moça bonita, devia ter uns 40 anos, negra, bem pequena, parecia um chaveirinho, não sei seu nome, pois sequer nos apresentamos. Quando a abordei, antes mesmo de me dar informações sobre os rapazes caneteiros, ela resolve falar um pouco de si, tínhamos um curto espaço de tempo até que ela retornasse para suas vendas. O que resta dessa conversa é a própria escrita e uma embalagem vazia. Talvez um dia cruze com ela novamente, talvez nem mesmo nos reconheçamos, afinal, é exatamente o tipo de interação que esses espaços nos propõem, uma espécie de jogo da memória, onde seu rosto será esquecido e apenas restará uma imagem que a represente. Aquela moça dos 13 aos 22 anos se viu imersa no uso de crack, tendo passado a integrar os escuros do Centro de Belo Horizonte, onde poucos circulam após alguns horários. Devido ao convívio apenas com aquelas pessoas em situação de rua, acabou criando uma resistência em estabelecer o contato com as pessoas fora desse meio de convivência, a maior dificuldade do dependente é conseguir voltar a acreditar nas pessoas. Ao fim de sua permanência em situação de rua, se encontra grávida e acaba sendo transportada daquela escuridão para outra, passageira e programada, das 22h00 às 06h00, talvez até às 07h00. Um jovem trabalhador


REFERÊNCIAS MONTEIRO, Rita Maria Paiva. A carreira moral de jovens internos em instituições de recuperação para dependentes químicos. 2011. SÁ, Tereza. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social - USP, v. 26, n. 2. 2014. Sr. Marcos - Colaborador e ex-acolhido de uma Comunidade Terapêutica em Santa Luzia/MG.

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da Vale do Rio Doce a teria avistado na situação em que se encontrava e, tendo se apaixonado por ela, propôs que ela saísse dali com ele ao fim de seu expediente de trabalho. Ninguém acreditaria em uma coisa dessas. No entanto, mais tarde, após o serviço, esse rapaz teria de fato voltado e ela se foi com ele. A partir daquele momento ela estaria sujeita a todo tipo de perigos, tendo em vista que ela permaneceria sozinha com aquela pessoa até então desconhecida, mas, assim como dito, foi feito, ele a levou para uma CT, onde pôde passar pelo tratamento e manter-se abstinente. Após o tratamento, acabou se casando com esse homem com quem atualmente tem quatro filhos. Ela era uma das várias pessoas atingidas pelo desemprego e encontrou na venda de balas uma forma de se sustentar e à sua família, segundo seu discurso ao entrar no ônibus. Nesses locais as necessidades humanas são revistas a todo momento, não havendo qualquer doutrina ou tratamento psicológico que consiga apagar totalmente as lembranças. Desde o recair que levou um acolhido a sumir com o dinheiro e os kits durante três dias em uma maratona de drogas com uma mulher desconhecida até o jovem Wesley, vendedor de canetas que se arrisca novamente a construir uma relação com a vendedora de lanches daquele terminal, com quem atualmente namora. Nesse caso, ele dá outros passos a caminho de sua ressocialização limitada ao trabalho e algumas fugidas. Se o possível término do relacionamento o deixará instável a ponto de recair como frequentemente acontece com muitos, não se sabe. Ele vai vivendo sem demonstrar tanta preocupação com esse ponto; caso recaia, pelo menos arriscou-se a fazer valer a sua ressocialização. Para muitos ali, são apenas mais um casal se abraçando em meio à paisagem caótica, duas pessoas que apenas se destacam aos olhares dos curiosos que os identificam pelo uniforme do rapaz ou dos quitutes da moça.


fotos João Castilho e textos Cristiano Luis e Breno Silva

EPITÁFIOS

Percursos com o rabecão nas noites da Região Metropolitana de Belo Horizonte em agosto de 2018.

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I . Diante do espaço mais democrático de todos. O rabecão aguardava enquanto, para externar a solidão, no rádio era transmitido o debate dos candidatos à Presidência da República.


II . EspĂŠcie de roleta-russa, de acidente anunciado e nĂŁo definido previamente no tempo de sua ocorrĂŞncia. Ela espreitava depois da curva da estrada pedindo carona.

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III . Vista do alto, ela enredava um romance noir, cujo culpado é sempre o mordomo.


IV . A dor de uns e o alívio de outros. As caixas de remédios esvaziadas e a loló expirada. O que seria do nosso encontro? Fugiria de ti como de um trombadinha afoito pela minha bolsa entupida de bolinhas. E as suas aspirações diante do medo que me cerca?

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V . O negócio da absolutização do mero viver escoava-a pelas portas dos fundos. O porteiro ciclope e vidente indicava o elevador social para descer com o saco preto.


VI . Um dia apรณs o Dia dos Namorados, muito cedo a vida escapoulhe ao cair sobre uma espรกtula no corredor do escritรณrio fugindo de seis jovens, colegas de trabalho, que tentavam dar-lhe beijos de aniversรกrio.

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VII . Ela lia em voz alta a pichação na vala dos vivos de passagem rápida: “A vida é noite, o sol tem véu de pedra”.


VIII . Àqueles cujos nomes estão escritos na densidade do ar.

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IX . Um jogo de retraimento. Pelo retrovisor, travestis realizavam o seu credo, saudavam Ă sua passagem na avenida vaiando e gesticulando com o dedo do meio.


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X . Deixando a cisma obscena, mirava fixamente a negatividade nos olhos.


XI. Ela inscrevia cortando o silêncio bruto do asfalto: “por outro lado, quem morre são os outros”.

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XII. Cruzando com uma ambulância. A coincidência de algo desaparecendo sem cessar em direção ao futuro.


Leila Danziger

Resistir-por-ninguĂŠm-e-por-nada

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Lucio Branco

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Desmonte Geral


O desmonte do monte, filme (mais ou menos nesta ordem) concebido, pesquisado, roteirizado, produzido e dirigido por Sinai Sganzerla, carrega o DNA do nosso tempo. É obra que traz no título a referência a um evento ocorrido principalmente no ano de 1922, mas cuja história está longe de ser datada. E não só pela sua repetição constatada como farsa e tragédia ao longo dos anos seguintes, mas nas causas – muito pouco enfrentadas desde então – daquilo que viria a se constituir na tradição do tratamento institucional-empresarial dispensado ao patrimônio histórico do Rio de Janeiro. Um mal que, inevitavelmente, também viria a acometer outras metrópoles brasileiras. Estamos falando do arrasamento do Morro do Castelo, monumento topográfico oficialmente considerado marco inaugural do Rio no ano de

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1565, e ao redor do qual viria a pulsar a vida da futura capital do Império e do início da República. Atual talvez seja o termo mais empregado pelos espectadores após os pouco mais de 80 minutos da metragem do filme. Quem o assiste pode concluir, antes do fim, que não está sendo apenas transportado para uma outra época da vida nacional. Apesar do estímulo ao interesse por tudo o que se vê e ouve na tela – muito graças ao farto material iconográfico exibido, à ótima trilha sonora e à precisa narração onisciente da atriz e também cineasta Helena Ignez –, O desmonte provoca o tipo de reflexão que desafia historicismos fáceis. E, mais importante: nostalgias. Por mais que a exibição das imagens de um Rio de Janeiro ainda não desfigurado pela especulação imobiliária nos sensibilize e comova, não há como não relacionar aquela paisagem pré-desmonte do


Janeiro em permanente processo de transformação desde aquele período, independentemente da vontade da maioria dos seus habitantes. Afinal, não há novidade no fato de que direitos civis, humanos e sociais nunca constaram entre as prioridades da agenda de desmandos que rege a cidade abençoada por São Sebastião.

A reflexão a que nos referimos é despertada, em grande medida, pelo ineditismo do tema nas telas. E qual seria a razão disso? Uma boa hipótese

Na pesquisa que originou o longa, Sinai encontrou evidências de que, no caso do Morro do Castelo (originalmente batizado pela empresa colonial de “Morro do Descanso”), se a história não se repete exatamente como farsa ou tragédia, o fato é que as disputas em torno dele já eram bem anterio-

começaria pela constatação da pouca assiduidade impressa que teve. A não ser pela cobertura jornalística do desmonte em si, na época. E, bem posterior e eventualmente, por conta das monografias, dissertações e teses acerca dos desdobramentos que o arrasamento do morro teve num Rio de

res àquelas ocorridas no início do século XX. As paredes rochosas do Castelo já haviam testemunhado as lutas entre tamoios e temiminós que, indiferentes à comum ascendência tupi, frequentemente digladiavam-se em disputas pelo território. Sabedores desse conflito ancestral, os franceses

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Castelo (e o seu entorno) com o que hoje invade o nosso campo visual mal iniciamos uma caminhada nas cercanias da Cinelândia, por exemplo. Não existe possibilidade de distanciamento histórico na hora de avaliar o quão pouco inspiradora é a retomada de certas práticas adotadas desde então pelas nossas mais altas esferas administrativas. Trata-se de uma linhagem de gestão político-empresarial que aparentemente anda longe de ter fim na cidade.


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A conquista territorial era uma nuvem que pairava constante sobre o Castelo. Além de marco de fundação do Rio de Janeiro, o morro carrega consigo outra marca inaugural: mais precisamente aquela relativa à dinâmica das transformações da cidade que o tomava por ponto central. Quem sabe se possa falar – embora sem este nome – de uma gentrificação que já existia incipientemente no próprio período do desmonte do Castelo. Tratamos aqui de uma medida de caráter político colocada como primordial pela administração pública, e cujos efeitos viriam a ser sentidos para além do Rio de Janeiro, na sua então condição de influente capital de uma República prestes a ser, ela também, estruturalmente reconfigurada. (Muito embora de forma embrionária, já que a Era Vargas estava para se iniciar em menos de dez anos, como seu projeto de modernização da nação, o que implicava, também, reformar a paisagem urbana da sua capital.) Motivado pela mentalidade higienista própria da época, o arrasamento do Morro do Castelo, abraçado pelo prefeito Carlos Sampaio, não se iniciou exatamente sob o seu mandato (1920-22) e o do presidente Epitácio Pessoa (1919-22), que lhe deu total cobertura. Já antes da sua realização oficial, o prefeito Pereira Passos – sugestivamente apelidado de “Bota-Abaixo” –, realizara reformas urbanas de caráter impopular que implicaram a remoção de habitantes da avenida Central (substituída pela avenida Rio Branco), a qual já incluíra, no seu projeto original, o arrasamento de uma parte do Castelo. Mas Passos ainda não havia encontrado naquele momento a ocasião propícia para lançar mão dos argumentos esdrúxulos que

Sampaio posteriormente adotaria na defesa da demolição total do morro. Um exemplo: alegava-se, então, sobre a necessidade da livre circulação de ventos marítimos que o Castelo obstruiria. Como se vê, “acreditava-se” que o centro da cidade abrigava um paredão de pedra bem mais largo do que se supunha. Na escala de prioridades da administração Carlos Sampaio, o desmonte do morro era justamente a primeira delas. Uma elevação rochosa que, durante o Império, abrigou a Casa da Câmara; onde, posteriormente, funcionou o antigo Observatório Nacional, e que contava com inúmeras residências e grande circulação de gente, tornou-se o alvo de um projeto de “modernização” que buscava, assim como, anos antes, Pereira Passos, tornar o Rio uma “Paris tropical”. Não é difícil compreender o engajamento da máquina pública na campanha em favor do desmonte quando somos inteirados, através da locução de Helena Ignez, de que o próprio prefeito, ao lado do engenheiro Paulo de Frontin, era sócio da Companhia Melhoramentos, empreiteira diretamente responsável por essa obra de destruição. Uma outra questão vem à tona: será que, à época, tal informação circulou na imprensa suficientemente, e com o devido tom alarmado? Não é a resposta que o filme dá, ao revelar que uma das raríssimas penas a se levantar no meio jornalístico contra o entusiasmo quase unânime com o empreendimento foi aquela empunhada por Lima Barreto nas páginas de Correio da Manhã. (Aliás, na locução do músico Negro Léo, que faz imaginar como poderia ser a voz, de registro desconhecido, do escritor carioca.) Nas crônicas posteriormente compiladas em O Subterrâneo do Morro do Castelo, Barreto vai bem além de repercutir a mística do tesouro muito provavelmente existente que, dizia-se, os jesuítas guardaram sob sua igreja, também

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que queriam arrebanhar o Rio dos portugueses, em meados do século XVI, juntaram-se aos primeiros. E mais de um século depois, os missionários jesuítas que se estabeleceram por lá foram expulsos pela Coroa Portuguesa, temerosa do seu poder ascendente junto aos indígenas.


posta abaixo com o arrasamento final de 1922. O livro especula sobre as razões por trás dos contratos firmados entre os governos do Distrito Federal com empresas estrangeiras, envolvendo empréstimos vultosos, além de outros interesses nada publicáveis que Barreto, sempre fiel ao corpo da sua obra, audaciosamente fez publicar. O desmonte do monte leva à conclusão de que, quando se pensa em nomes como o de Frontin, por exemplo, deve-se conhecer mais e melhor a história dos personagens que batizam avenidas, ruas, viadutos, municípios e praças do país para saber o porquê exato dessas homenagens – muitas delas ainda em vida dos contemplados, o que é evidentemente algo muito comprometedor. Deveria ser mais notório o conhecimento do quão escusas são as manobras de caráter financeiro que sempre balizam tais decisões. O padrão atual das negociatas que conhecemos não é assim tão atual.

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O fim do Morro do Castelo foi o início de uma série de remoções urbanas sob o pretexto de uma “necessária” reestruturação da cidade que viesse a dar conta do seu crescimento desordenado. Um dos méritos do filme é destrinchar essa operação manjada que, já no seu nascedouro, baliza o discurso da urgência da organização do espaço urbano e da adoção de uma política de controle do problema demográfico, construído a partir de soluções que – só não vê quem não quer – atendem, sempre em primeiro lugar, os interesses da especulação imobiliária. Daí a relação apontada pela diretora entre a realização da Exposição Internacional, principal evento da comemoração do Centenário da Independência, em 1922 – motivo oficialmente alegado para o arrasamento do Castelo –, e das Olimpíadas de 2016, que implicou a remoção da Vila Autódromo, retratada já em avançado estado de arruinamento no filme.


A estreiteza da memória que cultivamos sobre nós mesmos é abordada com rara propriedade pelo filme de Sinai Sganzerla. Saímos da sua exibição com a convicção ainda maior de que a falta de memória que se testemunha no desprezo para

com o patrimônio público e histórico até pode ser objeto de debate no Brasil, tendo até mesmo alguma presença no senso comum; porém, trata-se de um fenômeno longe de ser resolvido. A começar pela detecção da sua origem: não conseguimos nem lembrar exatamente quando é que começamos a esquecer. O desmonte do monte contribuiu, e muito, no esforço de recuperação do que se perdeu da nossa identidade. É duro dizer, mas, ao fim, o Morro do Castelo, mesmo tendo sido um sólido monumento rochoso encravado em pleno coração do Rio de Janeiro, é só mais um emblema dessa perda progressiva.

Imagens: Frames do filme O Desmonte do Monte, Sinai Sganzerla, 2017.

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Não é equivocado dizer que o desmonte geral em marcha acelerada que atropela o país teve, na iniciativa de Carlos Sampaio e seus cúmplices, um momento emblemático para tantos dos sucessivos desmantelamentos que viemos a atravessar posteriormente. Desmonte este mais uma vez repercutido acriticamente, ou, então, endossado com aparência de isenção pelos órgãos da grande imprensa. Não se poderia sugerir que tem poder maior que o da metáfora tal evento de destruição, espécie de golpe de morte cometido contra o interesse público? E, por conta de sua ressonância política, por que não dizer, na nossa historicamente tão combalida democracia?


Frederico Canuto

TENSÕES

‘‘Para minha avó, resposta inesperada.’’

Estender-se não é um dos movimentos mais fáceis. Ainda que se tente aproximar daquilo que ainda não existe - posto que ir de encontro e ao encontro são sempre em direção ao inesperado, ao inexistente para si ou ao diverso, tal como coloca a escritora portuguesa Llansol sobre a escrita -, uma vez feito, tal movimento pode não receber a resposta esperada. É uma ciência: há uma hipótese e ela pode se validar ou não. A despeito da resposta, central é o movimento de aproximação, os procedimentos envolvidos, uma ciência em desenvolvimento, um estado de tensionamento. Aqui é que ela se faz como prática em lançamentos aproximativos, nos modos. “Não me interessa o real, mas os modos como se entra ou sai dele”, diz Llansoll: lançamentos. W. G. Sebald escreve, detalha, cria situações, insere fotos, produz um texto verborrágico e denso. Em seus livros, uma vontade de trazer e

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criar um ambiente, um stimmung, para o leitor. Não quer ensinar sobre a história, mas criar um contexto no qual a história é dispositivo sensibilizador e catalisador de um destensionamento. Estende do um ao outro no que lhe é possível, sem revelar o que há, tal como é próprio da literatura. Cria as pontes, mostra caminhos e os corpos deixados pra trás, como feito em Guerra Aérea e a Literatura. W. G. Sebald é o escritor alemão das ruínas e das histórias que resistem em serem esquecidas, tanto a dos opressores como as do oprimidos. É com Maria Gabriela Llansol (e Jade, de Amar um Cão) e Sebald (e a imagem do menino de cabelos brancos de Austerlitz) este começo.

Aproximar-se é um movimento

Ainda que haja uma confluência de movimentos sincronizados formalmente díspares,


de dizer daqueles que, apesar de não terem os mesmos nomes, movem-se em uma mesma direção por alguma razão e, apesar de por motivos diversos, enlaçados por um socialismo das distâncias. Não é sobre os começos pois no momento apenas se está lá, atravessando por viadutos. Durante meu mestrado, uma aproximação ao diverso foi iniciada ainda que não tivesse muita compreensão desse momento como inicial de algo. Analisando a praça Sete de Setembro da cidade de Belo Horizonte, os quarteirões fechados que a compõem e a própria ideia de espaço público na história da cidade, quatro palavras surgiram, sempre escondidas e pouco lembradas: krenak,

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como foi junho de 2013 no que diz respeito aos ativismos, movimentos e coletivos que o produziram indo desde luta pela diminuição da tarifa até neo-facistas, o movimento é próprio. A teoria social e a filosofia tentam, cada uma a sua maneira, dar forma teórica a tal sincronização ou sincronismo dos corpos a despeito de suas diferenças inerentes, procurando entender não mais apenas a massa, mas sim o ajuntamento de todos que estão ali, pactuados em suas particularidades. Tentativas

maxacali, pataxó, xacriabá. Elas denominam os quatro quarteirões mencionados como uma homenagem a estes povos indígenas do estado de Minas Gerais. Os quarteirões fechados no entorno do obelisco central da praça sete de setembro são os lugares nos quais a praça acontece cotidianamente. Revoltas populares contra a Copa do Mundo em 2014 ou em junho de 2013 ou ainda, o embate entre polícia e perueiros em 2000 e festas de carnaval anuais encontram neste monumento central seu ponto de apoio físico e contestatório. Mas são nestas franjas que a praça existe - nos lugares pouco interessantes a fotografias enaltecedoras do que significa ser belorizontino, nos lugares que aparecem em buscas do google como imagens ruins ou desfocadas da praça, nos lugares


populares dos vendedores ambulantes. Tais povos indígenas não se sentem representados ou homenageados pelas nomeações nestes quarteirões fechados pois normalmente, como Avelin Buniacá Kambiwá candidata a vereadora em Belo Horizonte em 2016 e representante do Comitê Mineiro das Causas Indígenas coloca, tal operação é feita para os mortos e estes povos estão vivos. Indígenas pataxós vindos da Bahia para vender seus artesanatos não encontram um espaço hospitaleiro para tal naquele lugar que os homenageia. Sempre retirados à força pela polícia por trabalharem ali, como em audiência em 03 de outubro de 2019, resistem, reforçando uma identidade que teima ainda em existir no Brasil “ordem e progresso”: o indígena. Não o índio, este que é o habitante do país Índia e que era o verdadeiro objetivo da expedição de Álvares Cabral pois fonte de matérias-primas para a Europa. É o indígena, aquele nascido nessa terra e que hoje produz suas próprias imagens do mundo como forma não

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apenas de resistir, mas de insistir em sua existência. Uma identidade paradoxal porque nem mesmo se reconhecem nesta nomeação que é do outro apesar de a usarem de forma prática e operacional junto ao Estado. Para eles, são Pataxó, Kambiwá, Maxacali e outros, diversos entre si e que não cabem neste nome que tudo o homem branco faz caber chamado indígena. Sobrevivem e teimam em respirar como os Maxacali no Nordeste de Minas Gerais com falta de água e terras agricultáveis; como os Pataxó Muã Mimatxi ocupando uma fazenda cujo território possui um lamaçal no meio; os Xacriabás no município de São João das Missões, próximos ao rio São Francisco, mas com difícil acesso a ele, vivendo numa paisagem desértica e numa terra sem chances de cuidar e produzir para si. Assim se mata: impedindo-os de plantar, forçando a comprar nos supermercados seja água, comida, roupas ou até mesmo uma identidade para si. Fazendo-os deixar de viver como são e forçando-os a se tornar brasileiros, a figurar em mapas e


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estatísticas produzidas por órgãos de desvelamento brancos. São embranquiçados. Tal como ocorre agora com os Krenak que perderam suas terras após o genocídio e diáspora durante a ditadura militar ou pela lenta violência perpetrada pelo rompimento da barragem de lama e rejeitos de mineração em Bento Rodrigues. No entanto, vem desde antes, do conflito entre estar ali, na terra que se pode capitalizar extraindo dela tudo, e o branco invasor em 1500. Os krenak estão sendo mortos enquanto povo porque se não podem mais existir como índios, isto não serão mais: a doutrina do choque a que Naomi KLEIN (2008) se


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refere ao discutir a relação entre grandes desastres ambientais e novas fronteiras do capital americano; ou aos processos de êxodo ambiental como traço do capitalismo e sua contraparte espacial, afirma SASKEN (2016). Recebem dinheiro e vão a cidade comprar mantimentos que antes plantavam. São recebidos “de braços abertos” pelos comerciantes pois movimentam a economia da cidade. São domesticados pois não há como não aceitar um novo giro da vida, o do homem ocidental. Como Eduardo Viveiros de Castro diz em No Brasil todo mundo é indio, exceto quem não é, índio é aquele que vive como tal e é reconhecido como tal perante outros (STUTMAN, 2003). Uma definição por reciprocidade. E esta está no fim. Ou tal especificidade está no fim. O fim do mundo…. deles e nosso.

Vi de perto, lentamente e sem perceber, tal morte.

Meu sobrenome é Canuto e nunca entendi esse sobrenome. Minha filha o tem, eu o tenho, meu pai o tem, mas não os avós: Raimundo de Souza Reis e Olga Salette de Souza. Nunca foram esquecidos os nomes completos dos dois, impres-

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abundantemente e que tem espinhos dos dois lados. Segundo o historiador Teodoro Sampaio, o nome vem do tupi “in-ker-i”, denominação essa que qualifica diversas plantas rasteiras da família das mimosáceas. Um dos primeiros habitantes da cidade, chamado “Manoel”, tinha sua venda no local “Vargem Alegre”, cercada do dito vegetal, dando motivo a que moradores de outras regiões, ao pretenderem passear por ali, dissessem: Vamos até a venda de manoel Jequeri”. Com o correr do tempo, o nome “Manoel” foi suprimido, ficando somente e expressão “Jequeri”. “. Mais ainda, a cidade foi fundada por fazendeiros com seus escravos - negros e indígenas. Ao procurar pelo nome Canuto no google, achei a Aldeia Olho D’água dos Canutos, da etnia Tabajara, no município de Monsenhor Tabosa (CE). O cacique José Canuto morreu. Existe uma aldeia Canuto no interior do Ceará. Já faz seis anos, coincidentes com os olhares cada vez mais interessados nas feições de minha avó, que minha atuação dentro do programa de extensão da UFMG Morar Indígena é insistência em estender a universidade na direção daqueles a que a nação brasileira parece querer extinguir do mapa e da história - a frase “pois somos todos brasileiros” é epítome de tal

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sos em minha memória. Talvez por não se reconhecerem tais nomes como familiares visto que são tão diferentes. Parece não haver linhagem. Parece que a vida começou no pai e não avós, tataravós e etc. Em minha infância, sempre ao chegar em Jequeri, cidade que existe antes de Belo Horizonte desde 1848 e que é a terra na qual meus avós nasceram, não havia desejo de estar ali. E esta sensação era e sempre foi compartilhada com meu pai, que também nunca via a cidade como sua. O sentimento de desterro sempre foi maior ao seu lado. Nos últimos quatro anos em que minha avó esteve viva, as viagens até a cidade se deram por um desejo da agora bisneta em conhecer a bisavó e brincar com a prima. Uma curiosidade de reconhecer sua história. Neste desejo do outro, curiosamente foi percebido nas feições da avó determinados traços de uma indigenidade. Olhos puxados, a pele morena, o rosto arrendondado, um olhar de quem guarda segredos de outros lugares. Estando muito debilitada pela velhice, não conseguindo ficar em pé, falando baixo e pouco compreensível, uma imagem estranhamente familiar. Segundo o site do IBGE, “Conta-se que o nome “Jequeri”, teve origem no designativo de uma planta existente na região, que se alastra


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explicar, mas auxiliar a fim de fazer viver e criar. Pouco importa de onde minha avó veio, meu nome ou a cidade de Jequeri pois tomando a asserção de Viveiros de Castro de que ser índio é se garantir sendo reconhecido por outros e vivendo como tal, eu não o sou. Compreender que se faz parte de uma história de êxodos forçados para a construção de uma ideia e imaginário de nação é ponto iniciático de toda extensão. Compreender que o mundo no qual intervimos é muito maior. Vimos do Ceará, fundamos cidades em 1848, apagamos nomes e sobrenomes, esquecemos no cotidiano da família, dos modos de fazer as coisas e o mundo a volta. Não olhamos para as feições. Tensionar é existir Na UFMG, nos últimos anos, políticas de inserção de alunos indígenas na universidade junto a cursos de formação intercultural de educadores indígenas e de formação transversal no qual eles vem ensinar a partir de seus mundos outros os alunos tornaram-se um fazer política ao extremo. Colocar-se frente ao heterogêneo e estranhar-se no que é também de si, é o que Ranciere (2001) chama de político. Neste encontro, estranhar, ficar desconfortável com o que somente pode ser diverso porque o é, é tarefa inumanitariamente necessária.

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desejo fundador e igualitário racional que levou a guerras e regimes facistas em outros países assim como no próprio Brasil - e que encontram-se hoje desterrados, espalhados, fragmentados, desconhecidos de si. Ao longo de seis anos em que fomos ao espaço das etnias Pataxó Muã Mimatxi, Xacriabás e Maxacali, aquelas homenageadas pela cidade de Belo Horizonte com a nomeação dos quatro quarteirões fechadas no entorno da praça Sete de Setembro, minha avó foi definhando a olhos vistos, sem qualquer possibilidade de uma conversa a esse respeito para além do que ela mesma (não) poderia dizer. Não havia nada a perguntar porque a própria conversa sempre fora impossível numa família cuja história parece sempre se querer apagar. Tios e primos falam de parentes próximos, mas nunca daqueles distantes, daqueles tempos anteriores. Não se discute a história da família como a história de êxodos, violências e mudanças que tiveram um ponto de estada em Jequeri. Seis anos em que tal aproximação está sendo construída. Não para entendê-los porque não são objeto de pesquisa, mas dialogar e, como toda atividade de extensão, auxiliar na construção de uma interação com uma universidade que compreende uma outra epistemologia que envolve a produção de novos conhecimentos. Com eles, construir pactos, uma sociedade. Não entender ou


É sobre mundos a prática extensionista. É sobre encontrar.

Ver de novo para ver diferente Como parte da família jequeriense, aquela que desapareceu da história, a cada vez que assisto os filmes indígenas, vejo eu e o outro. Se indígenas ao verem a outros de si mesmos em sessões de filme indígenas em suas aldeias revelam o impei (DOMINGUES, 2015) - prazer e beleza envolvidos num reconhecimento de si na imagem do outro - , aqui se revela alteridade em sua pura forma quando estes mesmos filmes são vistos pelo homem branco. Corpos estranhos, língua estrangeira, um agir que não é reconhecido. Grandes planos sequência, um tempo esticado para fazer a vida se repetir na tela de cinema (CAIXETA, 2008)1. Nas sessões livres promovidas, encontros foram promovidos, tensões produzidas. Ao mesmo tempo, os indígenas em contexto urbano colocam em questão o que é ser indígena hoje. Se, concordando com Viveiros de Castro (SZTUTMAN, 2003), ser índio é viver como tal, e aqueles que são impedidos de tal mas que tem um desejo? Para os de Belo Horizonte, três soluções: a reivindicação de um centro de referência indígena2 e uma retomada (CAMPOS, 2019)3 como esforços de uma indianização da cidade. No caso do primeiro, um lugar para receber aqueles que ou vem de outras cidades vender artesanatos ou visitar parentes para continuarem a ser reconhecidos em suas tribos como indígenas. No segundo, retomar um terreno na região metropolitana de Belo Horizonte e construir uma aldeia, próxima de outra retomada, do MST

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- outros desterrados. Construir uma zona de reconhecimentos vividos cotidianamente. Ambas tentativas de serem e continuarem sendo indígenas. Indianizar a cidade significando não apenas demandar o reconhecimento de sua especificidade como uma identidade a ter direitos assegurados, normalmente por entidades de direitos humanos. Indianizar significa não perder o que lhe é próprio, mas atacar, afirmar-se para outros e novos poderem se afirmar. Ser indígena na cidade é ser diverso em toda sua abertura de significações. Tornar-se índio hoje é exercício contínuo de persistência pois poucos persistem. Uma luta contra aqueles que se auto-nomeiam “todos somos indígenas”. Para além de explicações biológicas ou genéticas que atrelam o ser indígena a um gene dos povos originários, sê-lo é viver como tal e lutar como tal. Minha avó não é indígena, mesmo se sua história atestar o contrário. Nunca mostrou desejo de ser. Mas tensionar tal mitologia originária que vejo em seus olhos tornou-se tarefa para lembrar sempre que ser indígena não é desejo, mas é ser tal como se é, insistentemente.


1.

2.

3.

No ano de 2016 o programa de extensão Morar Indígena ao longo de todo segundo semestre promoveu sessões de cinema livre de vídeos produzidos por indígenas dentro do Videos nas Aldeias. Desde 2016 o programa de extensão Morar Indigena vem acompanhando e assessorando o Comitê Mineiro das Causas Indigenas no projeto arquitetônico do Centro de Referencia Indigena, sendo que trabalhamos juntos primeiramente na construção de uma idéia do que significa tal referencia. Durante o ano de 2017 um grupo de indígenas Pataxós e de outras etnias residente em Belo Horizonte decidiram retomar um terreno na região metropolitana da cidade a fim de construir um lugar para morar no qual teriam suas casas e espaço para o contato com a natureza. O programa Morar Indigena produziu um jogo de tabuleiro que permitisse que os indigenas tivessem um conhecimento arquitetônico do lugar onde vivem e pudessem tomar em conjunto decisões relacionadas a ocupação do terreno e atualmente acompanha o processo de crescimento da aldeia nomeada como Naõ Xohã.

CAIXETA, Ruben. Cinema Indígena e Pensamento Selvagem. IN: Revista Devires, Belo Horizonte, V. 5, N. 2, P. 98-125, Jul/ Dez 2008. CAMPOS, Thiago Barbosa de. Retomar a Terra. Como ser indígena na região metropolitana de Belo Horizonte. Dissertação de mestrado. Escola de Arquitetura. Belo Horizonte. 2019. DOMINGUES, Sérgio Augusto. Idéias para um projeto futuro sobre cinema indígena. IN: CATALOGO FORUM.DOC.BH. 2015. GUMBRETCH, H. U. Atmosfera, Ambiência, Stimmung: Sobre um potencial oculto da literatura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. KIMO, Paula, VEIGA, Roberta. Como insurgir no acontecimento estético pelas imagens. Notas sobre uma modalidade de regime estético. IN: Revista EcoPos, Rio de Janeiro, V.20, N.2, P.32-52, 2017. KLEIN, Naomi. Doutrina do Choque. A ascenção do Capitalismo de Desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. LLANSOL, Maria Gabriela. Amar um Cão. Lisboa: Assirio Alvim, 2008. LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig. Lisboa: Assirio Alvim, 2014. RANCIERE, Jacques. O Desentendimento. São Paulo: 34, 2001. RANCIERE, Jacques. Ódio a Democracia. São Pauo: Boitempo, 2014. SASKEN, Sassia. Expulsões. Brutalidade e Complexidade na economia global. São Paulo: Paz e Terra, 2016. SEBALD, W. G. Austerlitz. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 SEBALD, W. G. Anéis de Saturno. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. SZTUTMAN, Renato (org.). Encontros. Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Azougue, 2003.

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REFERÊNCIAS


Um antigo casarão da rua Manaus nos escolheu. Um coletivo conformado em diversos movimentos de ocupação do espaço público de Belo Horizonte. Nos conhecemos no Duelo de MCs, na Praia da Estação, no Carnaval de Rua, no Fora Lacerda, nas mobilizações para fortalecimento da Ocupação Dandara e Zilah Spósito, nas Copeladas do Comitê Popular dos Atingidos pela Copa de BH e alguns outros. A cada ação sentíamos que a potência dessas ocupações poderia ressoar com mais intensidade se tivéssemos um espaço para inventar, na esfera do cotidiano, outros modos de vida, outros modos de lidar com o corpo, com a cidade, com a política. Um pequeno grupo fez o mapeamento das edificações esquecidas de Belo Horizonte: faculdades, escolas, casas, estações ferroviárias, galpões, prédios. Caminhamos pelo subterrâneo na superfície do chão e da luz, sobrepondo os mapas, buscando as ruínas de paredes invisíveis, a memória construída adormecida em espaços agitados do cotidiano. No percurso silencioso, algo nos levou, repetidas vezes, para o casarão: a indicação de conhecidos que traziam usos imaginários para o espaço, a sugestão de vizinhos, alguma rua

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que erramos, o trajeto do bloco de carnaval, que passou justo ali e a regente parou, conteve a respiração, a bateria e mudou o compasso. O casarão era a impossibilidade, faz parte do complexo arquitetônico de psiquiatria da infância e da adolescência da Fundação Hospitalar de Minas Gerais. É vizinho do batalhão sede do comando da Polícia Militar, tem uma igreja na frente e outra atrás. Está dentro de um bairro de tradição conservadora: militar e hospitalar. Para uma ocupação que pretendia se manter com festa e fazer ações político culturais, os olhos enrijecidos da vizinhança hostil iriam exigir silêncio, ordem, norma, lei, pudor, bons modos e costumes. Dois dias antes, no meio da madrugada, diante de tantas outras possibilidades, não conseguimos definir exatamente o porquê, mas estávamos em sua porta. Arquitetamos uma forma de “invadir” um imóvel público logo debaixo da barba corpulenta do comando da Polícia Militar. Montadas com figurino esvoaçante em uma ação teatral sem roteiro, sem texto pré-definido, subimos escada, descemos corda e colocamos dois integrantes do coletivo para dentro do espaço. A polícia passou em ronda, mas os praças devem ter pensado que era “só teatro” e seguiram. Começa-


Priscila Musa

mos, assim, a vislumbrar como um vulto fantasmagórico indefinível que tudo que havia contra a ocupação do casarão poderia ser uma linha que nos levaria a outros nós. Chegamos na madrugada seguinte em um ônibus lotado; de dentro, as duas pessoas abriram as portas do imóvel. Um vento pesado e frio atravessou nossos corpos, varreu a nossa nuca. Havia algo além de ar que saía, indefinível sopro no estômago. Entramos. O caminho das trincas não levava a lugar nenhum, elas rasgavam por todos os lados: na vertical, na horizontal, na diagonal. Uma parte do telhado havia caído, a outra estava estruturada por uma estreita ligação de madeira podre e oca com longas, largas e infindáveis avenidas de cupins. A fachada esquerda estava soterrada a cinco palmos de terra. A água dos 400 metros quadrados de telhado era conduzida para dentro do piso, que virou lama escorregadiça. Dezenove anos de chuva babando pelas paredes encharcando a terra. Uma metade se separou da outra, o casarão lentamente se precipitava para a escuridão. Havia uma grossa camada de quase 20 anos de poeira por todos os lados. Quando a luz do dia seguinte atravessou

as fissuras das paredes. Vimos que o corredor do primeiro andar terminava em uma janela para o breu, um escuro dentro do outro. Quando acendíamos a lanterna, a nuvem de morcegos fazia voos rasantes, sentia o vento das asas batendo, rangendo no ouvido. Era quente, úmido, mofado, malcheiroso. O ar espesso ia faltando, faltando, faltando. Tateamos o breu, até que alcançamos alguns desenhos nas paredes: personagens, rostos tristes, mãozinhas. No levantamento inicial dos cem anos do casarão, conseguimos descobrir apenas que tinha sido Hospital Militar da Força Pública, mas as paredes arranhadas, superfícies inquietas, gritavam outra história. Belo Horizonte, a cidade republicana, ordenada, controlada, policiada, não conseguiu ocultar os desenhos grafados na parede do casarão. Foram eles que nos levaram para outros 66 anos de história sem luz do antigo e arruinado edifício. O casarão alcançou o tempo presente ferido por trincas e fissuras dos seus antigos usos. Sua arquitetura do claustro abrigou as encenações de horror nominadas de tratamento médico dos anos em que foi Hospital de Neuropsiquiatria Infantil e Instituto de Psicopedagogia. Entre suas

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Um antigo casarão da rua Manaus nos escolheu


paredes, crianças e adolescentes foram possivelmente submetidas a práticas usuais da época. Foram confinadas em “quartos de contenção”, dopadas, sofreram eletrochoque (eletroconvulsoterapia), tiveram parte do cérebro desligado (lobotomia), foram submetidas a diminuição forçada das ações vitais através da hibernação artificial com exposição a frio intenso (hibernoterapia), usaram camisa de força, passaram fome. Foram castigadas pelo que era entendido como um comportamento contrário à dita normalidade necessária à “sociabilidade”. Sobreviveram presas entre muros, grades e paredes cinza, distantes do universo infantil, como bem descreveu o Jornalista Hiran Firmino em uma visita realizada em 1980. Crianças que também sabem seus nomes, suas idades, seus sonhos. Correm para lá e para cá, rente aos muros, na divisa das grades, da insensibilidade humana. Vivendo de pátio, corredores e portões de ferro. [...] Em cadeiras de rodas quebradas, doadas. Uma bola furada, a outra velha. Um único bicho de pelúcia. Grades e celas, um quarto de contenção, de choque elétrico. A prisão medieval, sem príncipe ou rei libertador, que nunca desejaram em sua fantasia.1 Crianças e adolescentes, muitos sem qualquer constatação de algum quadro psiquiátrico grave. Muitas delas portadoras de deficiência física: com dificuldade motora, cegas, surdas, mudas. Crianças e adolescentes abandonados, sem família, filhas e filhos indesejados, bastardos, sobreviventes de tragédias familiares, em situação de rua. Crianças e adolescentes avessas às normas, com traços de homossexualidade, que não apresentavam rendimento escolar adequado, que não aceitavam o trabalho (infantil), que responderam às violências a elas dirigida. A pesquisa realizada

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pela Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica – FEAP – apontou que o perfil socioeconômico majoritário das e dos pacientes era classe baixa, 98% dos familiares tinham renda mensal abaixo do salário mínimo, 72% dos pais eram lavradores (sem posse de terra), 90% das mães eram donas de casa, 82% dos pacientes procediam do interior de Minas Gerais.2 Aos poucos os relatos chegaram. Não é raro observar alguém que se emociona encostado na porta ou do outro lado da rua. Não entra. Entre os depoimentos, o de um senhor, naquele tempo um garoto que fugiu descalço pelo telhado, nos alertou: algumas crianças entraram e não saíram. Algumas salas do porão permanecem lacradas com tijolos, inacessíveis. O extenso corredor fecha caminho para outros pequenos compartimentos, o ar fica ainda mais escasso, um cômodo dentro de outro, cheio de terra, é preciso arrastar, ainda não conseguimos alcançar o final. Nos disseram que através deles é possível acessar o Batalhão de Polícia, que talvez algum percurso nos levaria ao ribeirão Arrudas e que aqueles corredores abrigaram também outros tempos de tortura e dor. O casarão atravessou as mudanças lentas e graduais do tratamento dirigido ao que era definido como loucura. Acolheu os experimentos dos tempos de fortalecimento da luta antimanicomial, quando as crianças e os adolescentes tiveram dias melhores na Unidade Psicopedagógica, no Centro Psíquico Pedagógico e na Escola Estadual Yolanda Martins para crianças e adolescente excepcionais. Até alcançar o seu completo abandono em 1994, quando as professoras, assombradas com as trincas, acionaram a Defesa Civil, que interditou o imóvel. O Governo de Minas, em vez de garantir a sua segurança, construiu um prédio ao lado para abrigar o seu então uso, ao invés de recuperá-lo, no mesmo ano em que, ironicamente, foi reconhecido como Patrimônio Cultural da Cidade.


lento e gradual, que mantém a gordura das mãos das crianças nas paredes e acrescenta outras camadas. A despeito de todas as impossibilidades e de modo precário, os insuportáveis, “invasores”, “insanos”, “vilipendiadores das crenças alheias”, estão, um dia depois do outro, sustentando com as mãos e os pés bem esticados o velho e enlouquecido casarão.

1. 2.

FIRMINO, Hiran. Conhecendo um outro inferno, só de crianças. Estado de Min ção. Informações sobre o Casarão da Rua Manaus são provenientes do hisórico elaboradocoletivamente pelo Núcleo de História do Espaço Comum Luiz Estrela, organizado por Fernanda Alina, Francisco Foureaux e Barnabé di Kartola.

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Foram quase 20 anos de abandono, houve uma política pública que atravessou diversas gestões e manteve o casarão como espaço do esquecimento, trancafiado, tamponado, soterrado, silenciado. Um ano após o outro, que caísse o reboco, que caísse o telhado, que fosse borrado do mapa, banido do presente: apagado. Quando reabrimos as suas portas, encontramos a iminência de seu desabamento. Oferecia risco de morte, a nossa, a da memória das crianças que por lá estiveram, a da memória da cidade grafada em suas paredes. Com o passar dos anos, o casarão saiu da curva da normalidade, perdeu a compostura, o equilíbrio. No entanto, foi justamente por desmanchar do Horizonte da cidade que se manteve protegido do mercado acelerado de construções e reconstruções, resguardado de uma reforma que o transformasse em velhinho em folha ou findasse por sua demolição completa. Foi no seu esquecimento que a memória se preservou. Um ex-diretor do H.N.P.I., Raphael Mesquita, afirmou, sobre os tempos de manicômio infantil, que aos sábados e domingos, quando não havia escolinha, os meninos ficavam insuportáveis. O Insuportável Luiz Otávio da Silva, o Luiz Estrela: poeta, performer, ator, homossexual, foi viver a rua como uma experiência de teatro, na intensidade fraturada e trincada do cotidiano, preferiu a casa sem teto, com menos paredes de contenção. Talvez o Espaço Comum Luiz Estrela esteja escrevendo a história das crianças que fugiram, das enfermeiras e dos médicos que se opuseram, que se rebelaram, que se negaram a colocar o fio de eletrochoque em um ouvido infantil. Ritualizando e colocando a memória em movimento com o colorido de corpos outros ocupando o espaço. Dando eco aos gritos arranhados nas paredes. Tentando trazer a ruína do passado para o campo visível do presente, do habitável, do cotidiano. Inventando um processo de construção coletivo,


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Fotos: Priscila Musa


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Morte ,agora sou tudo, tudo o que explode, tudo o que racha , tudo o que fende e sinto um tipo novo de sede , sim , existe toda uma constelação de diferentes sedes dentro do corpo estou sentindo o desejo incontrolável de enfiar a cabeça dentro do oceano e beber um grande gole de água salgada estou possuída pela sede demoníaca , perto de mim , na cabeceira da cama , há um copo d’água com uma rosa vivendo nele . Como será sentir a sede da rosa em um copo vazio ? saiu de mim ou do Deus a água que enchera o copo onde a rosa agora vive e eu tão menor que ela , tão menos sublime esvaziei-me para alimentá-la a fim de preferir sua vida menos maliciosa , menos consciente e por isso , com mais direito à existência , pertencendo ao jamais onde me agarro com dentes amarelados e unhas já esfoladas. Sou o que eu persigo. Todo rudeza. Todo imobilidade, na verdade, transformo-me nesse copo vazio. Sou o que veio antes da água e fui bebida num gole só, sei como é esta outra sede demoníaca porque estou morrendo mais rápido do que antes. Estou dentro de uma coisa chamada: ‘Paciente em estado crítico’ e essa coisa é como ser um copo para a terrível

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ausência de um campo de rosas vivas gosto de olhar a rosa e enxergá-la na sua existência de cor e perfume, porque instintivamente os sentidos me resgatam do esquecimento. Toda rosa é uma verdade que me alcança agora que finalmente penetrei no silêncio com as minhas próprias mãos, confesso que minhas mãos se parecem agora com duas águas-vivas dormindo no meio do oceano, quando digo no meio do oceano quero dizer na parte insondável , estou pensando o seguinte: se me esforço um pouco posso ver minhas duas mãos velando meu corpo aproveito para ordenar mentalmente a uma delas que me apanhe um cigarro, assim, por puro prazer em ver- me de alguma forma queimando, na tentativa de fabricar um hieróglifo- tatuagem na pele interior, embora não tenha mais importância saber qual é a marca do maço de cigarros que minha amiga trouxe escondido, dentro da bolsa – dispositivo flutuante que me aparta do naufrágio – , e minha mão esquerda dança até a bolsa no colo da minha amiga que está realmente dormindo e abre o zíper com o cuidado, como se desarmasse uma bomba, não gostaria que ela acordasse, o detalhe que dificulta um pouco são essas agulhas (novas bússola através das quais


Marcelo Ariel

me conservo ciente das inimagináveis possíveis direções) nos meus pulsos, esses dois cordões umbilicais que imagino me ligam mais a morte do que a vida, sei que não deveria pensar desse modo, mas algo se pensa e é porque estou vivendo na superfície do paradoxo de uma áspera desorientação que não alcança o que acomodava o ser, gostaria de estar escrevendo o que estou pensando aqui na falsa escuridão interior da doença, o paradoxo é o contraste entre esta falsa escuridão profunda da proximidade do instante-verdade da morte e a iluminação suave da presença da amiga, luz e vertigem suave que toda presença é, o que me extrai do estado de quase não-ser é esta centralização dos volumes e estados, ajuda-me a fabular o meu estado físico de pertencimento ao quarto. Percebo- me no que se manifesta. A amiga que se lembrou de comprar minha marca preferida de cigarro funde-se com o que sou e com o Ser ao mesmo tempo, foi a coisa que o algo pensou quando ela sussurrou no meu ouvido: Clarice, meu amor eu trouxe um maço de Marlboro e uma maçã, é óbvio que nada disso está realmente acontecendo e que estou dentro daquilo que em linguagem médica é conhecido como onirismo, onde a consci-

ência não tem como saber se estamos sonhando ou acordados no entanto, tudo o que percebo é que a presença é como uma janela aberta para o que existe no fundo do que sinto sendo e não sendo ao mesmo tempo e sinto uma vontade imensa de acender um cigarro no instante em que os olhos da amiga estejam quase apagados tentativa de vida da brasa entre os segundo sem tempos que se traga a fumaça da ansiedade-esperança-selvagem, o tabaco que não se intimida entre as agulhas insistentes. o que mais prezo é a nicotina e recordo-me do que é nascer e morrer durante o que sorvo da fumaça, quando enxergo o Algo que pousa brilhante nas paredes verde-aguadas do não-lugar, elas se estremecem como as algas no mar que é minha alcova atual antes disso, no enquanto, enxergo do lado esquerdo da janela, logo abaixo da última esquadria, uma descamação da parede que aconteceu por causa da umidade dos tempos chuvosos. Já imagino os resquícios de tinta e cal embaixo da unha de uma criança levada pelo destemido desejo de apagar a mancha. Penso no sabor terroso que pisará na língua deste querubim provisório e lembro da maçã tão verde que minha amiga me trouxe na bolsa uma bolsa parecida com

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A Vida de Clarice Lispector


a que carreguei comigo durante esses anos todos. onde pude projetar um mundo particular, onde levei-me como um simulacro a tiracolo. E me lembro da moldura do primeiro espelho. do corte que adormeceu meu dedo e da lambida no dedo que indicava o pensamento. que dói bem depois me lembrei do sangue desimpedido desenhando um sorriso na pele. Do ônibus que cheirava a carne apodrecida que não era a minha. mas esse odor instigou-me a encarar a finitude. Enquanto meu olhar fugia pelas janelas eu continuava sendo um pedaço rasgado de pele, apenas, e todo o tecido muscular que pulsava em um terminal rodoviário. À espera. Do mistério desse Algo refletido pela água dura dos vidros, me lembro que um pensamento me disse que” como uma atriz preciso sair de mim mesma para me ver no outro, mas se sair de mim mesma como uma atriz, não poderei mais entrar, não será ainda a perfeição da morte, apenas perderei o controle e o espelho não será mais o sonho congelado, dentro do apesar de, eu não estarei mais viva aqui e hoje e serei simplesmente meu passado sem sombra de atualização e não poderei negá-lo mais no presente, voltar a si e lembrar de si são dois abismos absolutamente diferentes da capacidade de reconquistar a amizade com o animal do espelho que liquida o outro , por isso preciso sair de mim mesma, não como uma atriz, mas como uma solução-técnica para o êxtase, volto a pensar em minha bolsa, e em como meu destino é condicionado por essa sensação do trágico indo e vindo dentro da flutuação do tempo e por trás do trágico há o humor, o humor da perfeição da morte e ele me parece socrático, tudo o que envolve a morte tem um ar terapêutico de cura definitiva e de limpeza das palavras esse pó da Alma, antes de vir para cá vi um bando de

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surdos-mudos dentro de um ônibus, eles eram idênticos a minha própria existência aqui nesta sala de hospital, há uma força neutra nesta lembrança que me transforma em um fantasma apenas por dentro do meu pensamento, a enfermeira acaba de entrar, ela é uma prova viva da violência do meu fracasso em sair de mim mesma, fracasso que no fundo me ilumina, como o fim breve da fase das escrituras, da fase bíblica. Que foi como o meio da minha infância, que é a única coisa nítida fora do desfoque, a literatura foi apenas um dos efeitos do desfoque, a enfermeira me dá uma injeção de morfina e começo a escorregar para o supersono acordado. ”Agora há um recife na minha garganta e algas que se enroscam ,tentando me sufocar ou me abraçar com o amor feroz . procuro o copo de água mas há embaçamentos e trinca-se a visão dentro da ilusão de consciência. Gotas de todos os medos caem e são circundadas pela solidão de dias e noites que passam por mim dentro de um lugar chamado ‘instante- congelado’. Não entendo por que não consigo me desvencilhar daquele cheiro de carne apodrecida do ônibus. Mas também cansei de resistir e o aceito. inalo-o profundamente e toda a cena se reconstrói. a sensação é de que vem do velho senhor ao meu lado, que toma mais espaço do que o delimitado pelo banquinho do transporte coletivo que me aproxima cada vez mais de mim. Coloco-me numa posição de quase-saindo. De quem? É desconfortável mas desaprovo o tamanho do senhor e o vejo, seu olho é de um branco tão branco que me esqueci do nojo da humanidade exterior e engoli-me como se eu fosse aquele buraco branco. Fecho os olhos e retorno ao quarto. engraçado como navego entre um pensamento e outro e o misterioso Algo permanece no mesmo


que investiga a antipresença fora do ruído das imagens cada vez mais altas por dentro ( a mentira do acordar) fundamento de todas as religiões ou o medo de não-respirar mais o próprio eu sufocando de tanta luz a revolução da nossa menor parte que arde na chama de todas as outras enlaçadas pelo sussurro branco desse ruído indecifrável tocando no sentido de todos os números invertidos na poeira da luz que retorna O espaço está gritando AGORA É NUNCA , Não é que eu exista e seja um pouco menos do que o que existe “atrás do eu”, atrás do pensamento, o que o eu dissimulava para ser fora do verbo Haver. E que está dizendo desista: a regra secreta no olhar do tempo é esse instante de nuvem morta e transparente , como se fosse possível ouvir minha voz na voz de qualquer desconhecido desintegrando-se diante do meu olhar que foi e é a canção dentro do espaço do inominável e será dentro desse instante branco como a senha no rosto da morta ou morto no interior de uma cela que é um jardim e uma floresta, desista porque o amor jamais desiste sobre a incidência que é a luz dentro de uma sombra que era o desejo de estar dentro de tudo. Delicada era essa costura em ponto de cruz ,matéria e antimatéria atravessando o tecido deslembrado do Real em que se perfurava a agulha chamada de A Alma, desista porque o amor não desiste, enquanto há no espaço de um nome um segredo que nunca se revelará enquanto gargalha alto engolindo a súplica no olhar das nuvens, que estouram como o balão de água, agora Eu sou tudo o que racha, tudo o que explode como a copa de uma árvore dentro da semente, tudo o que fende e sinto um tipo novo de sede, sim , existe toda uma constelação de diferen-

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lugar. E sei que não há culpas dentro da solidão profundíssima. Essas paredes me acolhem, mas como um abraço desengonçado do qual a gente deseja escapulir e não como o sempre-chegando abraço de Azrael, é sempre o mesmo cemitério dentro de mim, escavando minha alma que forja uma respiração de pássaro aquático. A mesma mão fria mexendo com minha veia de esperança onde o sangue é como a Graça, a mesma hora interior que não passa porque nunca existiu tempo algum. Quantos moram no instante-já dentro de mim? se eu morrer, ficarei em quem? qual escolha nos é permitida? como se dá essa passagem de um sem-corpo a um espaço-fora-do-tempo? aperto o medo afundando a cabeça no travesseiro, o Algo sem nome arregala os olhos do meu quase-ex-corpo e entro naquele branco-de-antes, consigo ouvir a voz da minha amiga ainda me chamando, o timbre é belo nessa altura da profundidade. Ela apertava umas contas azuis na tentativa religiosa de acalmar a si mesma, sobre meu estado, clamando pelo Verbo-é, movo por dentro meus braços bem abertos no calor das veias que precisam, exigem descansar, este deve ser o segredo das nuvens sussurrado em sua própria língua que jamais experimentei conscientemente, nuvens de sangue e de sonho, rasgando a cortina do finito, me lembrei de uma coisa, as estátuas dos anjos nos túmulos nunca estão sorrindo. Esse estranho contraste entre o não-sorriso das estátuas dos anjos e o sorriso totalizante dos mortos, é quase um contraste que explica tudo. Sinto que minha amiga acendeu um cigarro ou será que estou sonhando com o calor da fumaça de um cigarro soprada no meu ombro direito ou no meu braço esquerdo, se for um sonho não há muita diferença o corpo fica desproporcional, somos apenas um olho enorme


tes sedes dentro do meu corpo estou sentindo o desejo incontrolável de enfiar a cabeça dentro do Sol e beber o oceano, beber um grande gole de água salgada, estou possuído pela sede demoníaca , perto de mim, na cama, há um copo d’água com uma rosa vivendo nele. Como será sentir a sede dessa rosa em um copo vazio? Saiu de mim a água que enchera o copo onde a rosa agora vive e eu tão menor que ela, tão menos sublime, esvaziei-me para alimentá-la a fim de preferir sua vida menos maliciosa, menos consciente e por isso, com mais direito à existência, pertencendo onde me agarro com dentes amarelados e unhas já esfoladas. Sou o que eu persigo. Todo rudeza. Todo silêncio, Todo imobilidade na verdade, transformo-me no copo vazio. Sou o que veio antes da água chegar e fui bebido num gole só, na verdade sei como é esta outra sede demoníaca porque estou morrendo mais rápido do que antes. Estou dentro dessa coisa chamada: ‘Paciente em estado crítico’ e essa coisa é como ser um copo para a terrível ausência de um campo de rosas vivas no Jardim, me lembro de um sonho onde dois anjos conversavam e um disse: “ Não há solidão se esta não desfaz a solidão para expor o só ao fora múltiplo” E o outro comenta: O Fora múltiplo é a amplidão mítica do mundo, os grandes espaços que se interiorizam através do canto e da dança, os encontros possuem essa camada sinfônica mediada por silêncios suaves e levezas gestuais, os sós e os profundamente sós podem sentir a grande solidão se liquefazer. E eles continuam “Mas não há, aos meus olhos, grandeza senão na doçura. Direi antes: Nada de extremo senão pela doçura. A loucura por excesso, a loucura doce. pensar, apagar-se: O desastre da doçura.” Diz o primeiro

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anjo. A doçura é ela mesma uma antiga camada do ser, que contemplava a sua exterioridade a partir do fantasma do útero. Olhar nos olhos deveria ser o florescer da doçura entre águias e leões. diz o segundo anjo e depois de dizer isto eles se calam para todo o sempre, é certo que ouvirei meu nome quando se apagar o seu. Ela morre: – Com o coração hermeticamente aberto em um açougue como qualquer outra ideia que tenta sem sucesso enlaçar o segredo do tempo que já havia antes do ser, cancelaremos todos os sentidos antes do verdadeiro fim e abraçaremos as asas da brisa que nos alegrará com o frescor dos instantes que gritam silenciosamente, tremendo como passarinhos , o mundo no momento da separação entre a visão da vida como um quarto e a recém-chegada e logo esquecida sensação incompleta de sair de um sonho como uma luz enterrada dentro do paraíso, estaremos no ventre e somos algo dito por uma boca invisível que beijará o céu como a chuva beija o vento.

Êxtase É como se eu fosse uma árvore num descampado e um raio incendiasse minha copa, um raio gelado. Aqui em Berna o ar tem a mesma substância desse raio, a eletricidade fria do deus que posso sentir como um êxtase ou como um vazio, a resplandecência do vazio onde ou eu ou mundo acontecemos, não há espaço nele para dois acontecimentos e é nessa etérea leveza insuportável da experiência que decido que é melhor que o mundo aconteça. Neste frio intenso de Berna é possível perceber que a noite é como um metal gasoso azul escuro, ontem estive na exposição de Michel Seuphor e vi a pintura que me revelou a primeira camada do mistério sondável, era uma série de linhas que


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costuravam um oceano dentro de um ovo. A dizer ‘ ovo’ talvez esteja me traindo e revelando alguma fonte esmaecida do meu desejo de sondar o indiscernível no instante em que ao respirar pelo lado de fora de um corpo, existo no além do corpo que felizmente ainda é ser o mundo. Quando se é o mundo perde-se o ser e quanto mais ser menos o mundo é, estaria eu confundindo o mundo com o amor? A fumaça do cigarro no frio é mais nuvem do que antes, fumar é um gesto criado pelo desejo de ver a própria respiração contornando o pensamento e como fumante desapareço dentro do gesto mas nunca desapareci dentro de um pensamento, se fosse possível pensar essa árvore dentro da noite azul, mas uma árvore é impensável porque ela simplesmente é. Preciso anotar isso, encontrar algum café aberto, não sei como caminhei até esse bairro afastado, silencioso e deserto, é maravilhoso se perder em uma cidade desconhecida, há algo da memória do nascimento ou de antes do nascimento dentro dessa sensação, dessa vertigem de desconhecimento do mundo e uma ínfima parte da memória pode conter todos os lugares do mundo, talvez ela saiba o que é uma árvore e para nos proteger, tenha enterrado essa verdade no fundo do que existe atrás do pensamento. Essa rua se parece com uma rua do Recife, o mundo foi criado pelo esquecimento, quando nos lembramos de algo há a falsa iluminação. A verdadeira iluminação é quando nos esquecemos de uma paisagem e num relâmpago de antimorte nos lembramos dela quando a vemos ou quando sonhamos com ela? Existe também a falsa iluminação que é quando sentimos que algo que está acontecendo agora foi sonhado antes


Simone Cortezão

Esgotamento

Era verão de 1994, a empresa siderúrgica da cidade tinha sido privatizada. Ali seguia a pausa completa e somente os escombros de longos anos de produção e a pausa no movimento das montanhas de escória, minério e da mata de eucaliptos. Os dias se passavam quentes e a cada dia daquele mês de fevereiro o calor aquecia até o insuportável. O ventilador do meu quarto girava lento, movimentando a massa de ar quente. Do lado de fora, a luz de mercúrio refletia e iluminava o quarto. Ainda naquela mesma vista, um incêndio nos eucaliptais queimava há cerca de cinco dias. Os estalos e o cheiro de cinzas chegavam com as ondas de calor. Ao fundo restava o som de poucas máquinas que seguiam trabalhando, uma sonoridade sem eco naquele ar parado. Vivian, minha irmã que dividia o quarto comigo, já sonambula e com o corpo completamente esgotado resmungava numa frequência constante como a do ventilador já quase parando. E naquela noite longa, o ventilador parou. A massa de ar quente insuportável que circulava dia e noite estagnou. Olhei para o teto por alguns minutos, ao lado Vivian desesperada com o calor denso de poeira e fumaça. Uma poeira fina que o suor diluía e deixava o corpo pesado com a umidade do ar.

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Até que minha mãe chegou à porta e disse que era preciso ficar imóvel, quietas. Só assim conseguiríamos dormir. Como um corpo completamente fundido àquela paisagem em coma, o esgotamento seguia como paralisação. Assim passamos sete noites imóveis. Quietas. À espera que aquela paisagem em movimento apaziguasse. A perturbação do entorno entranhada entre a bolha geográfica de um vale que formava uma panela de pressão e toda a poeira e emissões de ácidos que se acumulavam no ar. Ali ainda não era possível saber se era o calor de uma mudança climática ou os vapores artificiais retidos naquele vale. No texto publicado em 1992, intitulado L’épuisé (O esgotado), Gilles Deleuze nos diz que “o cansado apenas esgotou a realização, enquanto o esgotado esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar, mas o esgotado não pode mais possibilitar” (DELEUZE, 2010, p.67). Para Deleuze a exaustão é completamente diferente, porque já combinou muitas variáveis, enquanto o esgotado acaba com o possível. “O cansaço afeta a ação em todos os seus estados, enquanto o esgotamento diz respeito apenas à testemunha amnésica” (DELEUZE, 2010, p. 74). Ele escreve o


acontece o movimento violento. Assim, o remanso que aqui conceituo e defino como zonas de ressaca é o repouso do movimento violento, mas sobretudo para onde vão os despojos do capitalismo. Onde a materialidade da economia aparece. As sobras dos processos que repousam em uma zona “proibida”, mas têm a potência do refluxo. Por isso estou chamando de Zonas de Ressaca, por que é a ressaca nos dois sentidos da produção e da iminente catástrofe. Assim, essas zonas armazenam uma energia potencial, captada ao longo do movimento no tempo e prestes a explodir, para dissipar toda a energia condensada. O esgotamento que se encontra entre a pausa e o estouro. Nesse movimento de forças, potências desejantes e energias estacionadas, Georges Didi-Huberman (2016) nos diz sobre os movimentos ao longo do tempo e das resistências como ondas de levantes1, forças que transformam a imobilidade em energia corporal, social ou do pensamento. Para Deleuze, “Um acontecimento político é do mesmo tipo: uma nova distribuição dos afetos, uma nova circunscrição do intolerável” (ZOURABICHVILI, 2000, p.339). O esgotamento pode ser também a resistência de um movimento em curso, daquilo que talvez por muito tempo chamamos de futuro.

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texto a partir dos personagens de Beckett, e para ele a grande contribuição de Beckett é mostrar que o esgotamento “exige um certo esgotamento fisiológico, mais ou menos como Nietzsche mostrava que o ideal científico exige uma espécie de degenerescência vital, como, por exemplo, no Homem da Sanguessuga”(DELEUZE, 2010, p. 71) Assim, naquela noite, a irrupção do real aparecia como um limiar do índice de tolerância. O esgotamento também como ativo, uma mescla entre o passivo e o ativo. Talvez o esgotamento também como resistência, afinal, “resistir se distingue de reagir. Resistir é próprio de uma vontade derivada de um acontecimento, se alimenta do intolerável” (KOURABICHVILI, 2000, p. 353). Os profundos processos de transformação na paisagem que Robert Smithson chamou de entropia, naquela noite, no instante quieto de paralização e silêncio, a perda de energia era um estado de troca, quase fusão e estagnação, como uma água parada que não se movimenta numa correnteza. Na entrevista para Paul Cummings, Smithson define as paisagens entrópicas como áreas de franja e backwater, numa tradução imediata de remanso, como a água parada. Um estado de paralização, onde nas proximidades


Remete a uma realidade esgotável ou que foi esgotada pela combinação daquilo que conhecemos como formulação de um estar no mundo. Assim, temos como um movimento de forças que podem ser corporais ou também naturais, sejam elas forças geológicas, “um limiar de diminuição de resistência, ou a elevação de um nível de exigência; já não se suporta o que se suportava antes, ontem, ainda; a distribuição de desejos mudou”2 (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2000, p.339). A fissura que Deleuze nos diz são como pontos imperceptíveis que marcam o limite das resistências. Ou o esgotamento como a apreensão do intolerável - a vidência, o encontro com o limite do movimento, no ponto do que já é o intolerável. No entanto, mesmo diante do esgotamento de possibilidades, outras possibilidades permanecem, porque você nunca percebe tudo, algo nos escapa. Afinal, “a realização do possí-

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vel procede sempre por exclusão, pois ela supõe preferências e objetivos que variam, sempre substituindo os precedentes. [...] que acabam cansando”. (DELEUZE, 2010, p.68) Após sete dias do rompimento da barragem de rejeitos em Mariana – MG que espalhou cerca de 60 milhões de metros cúbicos de lama ao longo dos vales e do Rio Doce, resolvi então ir ao início do lugar do rompimento. O ambiente de morte pairava no lugar, com um cheiro forte de putrefação, dejetos e ruínas para todos os lados. Todos ainda se movimentavam para recolher o que restava das casas e objetos, naquela paisagem seca e árida. E sobre aquele esmagamento recente, mudas de bananeiras surgiam já bem verdes, entre outras plantas que também começavam a nascer, em meio àquele lugar onde nada parecia poder resistir. Ao longo da definição de esgotamento, a partir da obra de Beckett, Deleuze diz que o que


rios possíveis. Assim, seguimos a resistir enquanto esgotados, no ponto que pode ser a inversão desejante do estar no mundo atual, de uma terra brutalmente esgotada. Depois de esgotada, qual mundo deixamos a outros possíveis? Mas enquanto se esgota, testamos a resistência, que talvez dela possa emergir outras possibilidades ainda impensadas.

Fotos: Simone Cortezão ** O texto Esgotamento apresentado nesse catálogo é um fragmento do capítulo Esgotamento da tese defendida por Simone Cortezão intitulada Terras Remotas: as zonas de ressaca e a ficções econômicas (UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

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Beckett estava a fazer era esgotar um sistema combinatório, as palavras e por vezes a linguagem – e aponta que para esgotar as palavras é preciso remetê-las aos outros que as pronunciam: “os outros são mundos possíveis, aos quais as vozes conferem uma realidade sempre variável, conforme a força que elas têm, e revogável, conforme os silêncios que elas fazem. Elas são ora fortes, ora fracas, até que se calam, por um momento (com um silêncio de cansaço)”(DELEUZE, 2010, p.76) para poder assim “‘esburacar’ a superfície da linguagem para que finalmente aparecesse ‘o que se esconde atrás’”(DELEUZE, 2010, p. 79). O esgotamento colocado aqui, é como um caminho de pensamento, para esgotar e esburacar outros possíveis, naquilo do que se pode pensar ou desejar. “A invenção de novas possibilidades de vida supõe, portanto, uma nova maneira de viver e pensar [...] de ser afetado”( ZOURABICHVILI, 2000, p.338). O possível como múltiplos imaginá-


1 Georges Didi-Huberman discute os Soulèvements a partir de uma exposição montada por ele no museu Jeu de Paume em Paris, no período de outurbro 2016 à janeiro de 2017. 2 Dialogues, Paris, Flammarion, 1977, p. 153-4.

REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. O esgotado. In: Sobre o teatro. Trad. Ovídio de Abreu, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 ______. Uprisings. Paris: Gallimard, 2016. ZOURABICHVILI, François. Deleuze e o possível ( Sobre o involuntarismo na política). In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.

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NÚMERO 01 COLABORADORES

Breno Silva Doutor em Processos urbanos contemporâneos, PPGAU-UFBA; professor no IFMG - Campus Santa Luzia/MG onde coordena o LITS (Laboratório de Tecnologias Sociais); autor dos livros O radicalmente outro nas cidades (EDUFBA, 2018), Atravessando as terras de ninguém (Fábrica de Letras - UNEB, 2018); organizador, juntamente com Roxane Sidney, do livro Espaço da Memória no distrito de São Benedito (Impressões de minas, 2019); editor da revista DESMANCHE. e-mail: breno.silva@ifmg.edu.br Cristiano Luis Arquiteto e Urbanista, IFMG Santa Luzia, 2018; Investigator da policial Civil e amante da cidade. Frederico Canuto Arquiteto e urbanista, professor Adjunto na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais no Departamento de Urbanismo e membro permanente do Núcleo de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da mesma instituição. Tem como campo de pesquisa narrativas cujo objeto é o espaço e suas múltiplas epistemologias. Atualmente é líder do grupo de pesquisa Narrativas Topológicas. Geraldo Santos Produtor multimídia pela Oi Kabum! BH, designer de interiores pelo IFMG-Santa Luzia, graduando em Arquitetura e Urbanismo no IFMG-Santa Luzia. Bolsista de iniciação científica no projeto Espaço da Memória do IFMG-Santa Luzia. Luthier de instrumentos percussivos. Desenvolve pesquisa sobre processos de modelagem e impressão 3D FDM. Membro da Guarda de Moçambique Nossa Senhora da Guia e São Jorge Guerreiro, membro do coletivo Balaio Vermelho e percussionista no grupo Bombos de Iroko.

Jean-Michel Heimonet Doutor pela Universidade de Paris Saint-Denis. Professor nos Estados Unidos desde 1982, atualmente é professor na Universidade Católica da América, em Washington, DC. Ele publicou entre outros livros: Tocqueville et le devenir de la démocratie : la perversion de l’idéal (Paris, Editions L’Harmattan, 1999) ; Pourquoi Bataille? Trajets intellectuels et politiques d’une négativité au chômage (Paris, Editions Kimé, 2000) ; La Démocratie en mal d’altérité, masse et terreur, réflexions sur l’informe du pouvoir moderne (Paris, Editions L’Harmattan, 2003) ; Les deux faces du terrorisme et l’autodestruction des sociétés ouvertes (Paris, Editions Kimé, 2005). João Castilho Mestre em Artes Visuais pela UFMG. Artista visual, trabalha com fotografia, vídeo e instalação. Realizou diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Seus trabalhos tem inspiração em outros campos e em sua própria história oscilando entre a memória pessoal e coletiva. Explora temas existenciais e políticos da vida e da morte, do bem e do mal, da inocência e da culpa, da pulsão e do medo. Juliano Pessanha Doutor em Filosofia pela USP. Autor de Sabedoria do nunca (1999), Ignorância do sempre (2000), Certeza do agora (2002) e Instabilidade perpétua (2009), publicados pela Ateliê Editorial. Recebeu o prêmio Nascente da USP, em abril de 1997, nas categorias poesia e ficção, e o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), na categoria literatura, em 2015, por Testemunho transiente, reunião de sua tetralogia, publicada pela Cosac Naify no mesmo ano. Tece estreito diálogo com a literatura, a filosofia e a psicanálise, em busca de dizer as coisas em registros múltiplos de enunciação. É professor e dirige grupos de estudo de filosofia.


Lívia Drummond Doutora no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal da Bahia com estágio de doutorado sanduíche na Université Paris 13 pelo programa PDSE/CAPES. Está vinculada ao grupo de pesquisa O escritor e seus Múltiplos: migrações, no qual foi bolsista CNPQ/ PIBIC. Mestrado em Literatura e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia com bolsa CAPES. Leila Danziger Artista plástica, pesquisadora e professora associada do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuando, desde 2006, nos cursos de Graduação e, desde 2008, no Programa de Pós-graduação em Artes. Concluiu mestrado (1996) e doutorado (2003) em História, pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura (Puc-Rio), com estágio na Carl v. Ossietsky Universität, Oldenburg, Alemanha (Capes PDEE, 2000). Realizou pós-doutorado junto à Bezalel Academy of Arts and Design Jerusalem, Israel (bolsa CNPq, 2011) e junto à Universidade Rennes 2, Paris, França (bolsa Capes, 2015). Suas pesquisas investem diversas linguagens artísticas (livro, fotografia, vídeo, gravura, instalação e a escrita propriamente dita), buscando propiciar experiências de memória e transmissão e elaborar esperanças extraviadas de nossa história. Tem ensaios e poemas em diversas publicações de arte e literatura. Lúcio Branco Lucio Branco é documentarista e pesquisador, e colaborou na pesquisa de O desmonte do monte dirigido por Sinai Sganzerla.

C.L.Salvaro C.L. Salvaro é formado em Educação Artística pela Faculdade de Artes do Paraná (2001), com Mestrado em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2010). Entre as exposições individuais estão: eira alheia, Central Galeria, (São Paulo, SP, 2018); vazamentos, contenções, Orlando Lemos Galeria, (Nova Lima MG, 2016); Ybakatu Espaço de Arte (Curitiba, PR, 2007) e CCSP - Centro Cultural São Paulo (São Paulo SP, 2005).Entre os prêmios, bolsas e residências que participou estão: a Bolsa Produção para Artes Visuais, em Curitiba (2006), Bolsa Pampulha, em Belo Horizonte (2010-2011), e Bolsa Iberê Camargo (2013) em parceria com CRAC Valparaiso, realizada em Valparaíso, Chile. Marcelo Ariel Poeta e performer, autor dos livros Tratado dos anjos afogados ( LetraSelvagem), Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio ( Editora Patuá) entre outros lançou em 2019, Ou o silêncio contínuo - Poesia reunida 2007-2019 pela Kotter. Matheus Sá Motta Fotógrafo, formado em Design gráfico UEMG. Priscila Musa Doutoranda no Núcleo de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG (2017). Foi arquiteta consultora de projetos da empresa Miguilim Assessoria Cultural, onde trabalhou com elaboração de projetos no campo de políticas públicas de cultura, com abordagem em patrimônio imaterial, arquitetônico, paisagístico e urbanístico. Foi professora convidada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Atualmente é arquiteta e urbanista da Associação dos Arquitetos Sem Fronteiras - ASF BRASIL.


Sinai Sgarzela Dirigiu o documentário O Desmonte do Monte (2018), obra indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Simone Cortezão Cineasta, Artista Visual e Pesquisadora, é Doutora em Artes Visuais pela UERJ e professora no IFMGSanta Luzia. Entre o cinema e as artes visuais, desenvolve trabalhos com a criação de narrativas documentário-ficcionais e suas articulações entre memória e amnésia das cidades, história e ficção, paisagens entrópicas, geologia e economia. Escreveu, dirigiu e produziu diversos filmes, exibidos e premiados em festivais e mostras nacionais e internacionais. Washington Drummond Historiador, doutor em Urbanismo no PPGAUUFBA (2009) com estágio doutoral no CNRS - Paris/França. Pós Doutorado em Estudos Literários no Programa Pós-Lit da UFMG (2015). Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação de Crítica Cultural na Universidade do Estado da Bahia. Tem experiência na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas: teoria contemporânea, urbanismo e imagens reprodutíveis. É coordenador do grupo de pesquisa Pós-Teoria. https://wodrum.wordpress.com/2020/01/23/ diario-da-republica-de-salo-2016-2019/


O DESMANCHE No desmanche são desmontados e desmantelados mecanismos, engenhos ou máquinas. Restam carcaças, destroços, peças mais ou menos reutilizáveis. Elas são descartadas ou conectadas em remontagens imprevisíveis. Nesse espaço até o mesmo tende a virar outro. O desmanche é um procedimento experimental, mas também crítico. Quando se desmancha há sempre o risco de não se remontar o original. O que fazer com uma peça que sobrou na montagem e nem sequer impediu o funcionamento da máquina? Mesmo ao se desmontar um brinquedo, a característica da ação da criança enunciada pelo Filósofo, de que a única coisa que se espera dela é destruí-lo, é posta à prova. Com os restos que não se encaixam mais pode-se derivar outras coisas, provocar coincidências industriais, produzir máquinas inúteis e desejantes. O desmanche jamais poderia ser uma reforma.

O desmanche é uma operação que se realiza no meio, considera o já dado, o que está aí e o por vir a partir do resto. A sua novidade é a reinvenção do meio no que resta. Parte-se do que existe para reinventar as coisas, as relações, os modos de ensinar e de aprender, de produzir realidades, de movimentar desejos. O desmanche também não deixa de ser uma operação de apagamento de ideias preconcebidas e hegemônicas, provocando um saber jovial em conexão com saberes periféricos. O primeiro número da revista Desmanche é uma montagem de escritas abordando e propondo vários modos de desmanches com a colaboração de pessoas com formações diversas. E, por sua vez, convidamos os leitores para remontagens inventivas.

Os Editores.



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Foto: Simone Cortezão


DESMANCHE é uma revista semestral e sem fins lucrativos vinculada ao LITS (laboratório de Tecnologias Sociais – IFMG Santa Luzia / Cnpq) Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores. Editores Breno Silva, Roxane Sidney R. Mendonça, Simone Cortezão Imagem da capa Leila Danziger - Resistir-por-ninguém-e-por-nada Projeto Gráfico Simone Cortezão Diagramação Rafael Moura, Geraldo Santos e Simone Cortezão Logo Gabriel Vidal Bolsistas e colaboradores Gabriel Vidal, Júlia Alvim, Rafael Moura, Geraldo Santos Revisão Diogo da Costa Rufatto Impressão e Edição Impressões de Minas

contato revistadesmache@gmail.com litsifmg.wordpress.com

DESMANCHE 01 ano 1, vol.1, número 1, março de 2020


Dados DadosInternacionais InternacionaisdedeCatalogação CatalogaçãonanaPublicação Publicação(CIP) (CIP)dedeacordo acordocom comISBD ISBD

Desmanche Desmanche//Juliano JulianoPessanha Pessanha......[et[etal.] al.]; ;organizado organizadopor porBreno BrenoSilva, Silva,Roxane Roxane Sidney SidneyR.R.Mendonça, Mendonça,Simone SimoneCortezão Cortezão; ;tradução traduçãoparcial parcialdedeLívia LíviaDrummond Drummond; ; ilustração ilustraçãoda dacapa capadedeLeila LeilaDanziger. Danziger. - Belo - BeloHorizonte, Horizonte,MG MG: :Impressões ImpressõesdedeMinas, Minas,2020. 2020. 120 120p.p.; ;19x25,5cm. 19x25,5cm. ISBN: ISBN:978-65-86729-00-9 978-65-86729-00-9 1.1.Ciências Ciênciassociais. sociais.2.2.Filosofia. Filosofia.3.3.Inclusão. Inclusão.4.4.Resistência. Resistência. I. I.Pessanha, Pessanha,Juliano. Juliano.II.II.Silva, Silva,Breno. Breno.III.III.Heimonet, Heimonet,Jean-Michel. Jean-Michel.IV.IV.Drummond, Drummond, Washington. Washington.V.V.Santos, Santos,Geraldo. Geraldo.VI.VI.Luis, Luis,Cristiano. Cristiano.VII. VII.Castilho, Castilho,João. João.VIII. VIII. Danziger, Danziger,Leila. Leila.IX.IX.Branco, Branco,Lucio. Lucio.X.X.Canuto, Canuto,Frederico. Frederico.XI.XI.Musa, Musa,Priscila. Priscila.XII. XII.Ariel, Ariel, Marcelo. Marcelo.XIII. XIII.Cortezão, Cortezão,Simone. Simone.XIV. XIV.Mendonça, Mendonça,Roxane RoxaneSidney SidneyR.R.XV. XV.Drummond, Drummond, Lívia. Lívia.XVI. XVI.Título. Título. CDD: CDD:300 300 CDU: CDU:33 Elaborado Elaboradopor: por:Vagner VagnerRodolfo Rodolfoda daSilva Silva CRB-8 CRB-89410 9410

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Esta publicação conta com recursos do IFMG edital 104/2016 de Pesquisa Aplicada

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