Revista DESMANCHE - 02ª Ed. 2021 - A Insubordinação dos Fatos Materiais

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A rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarès ou em Amsterdão, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. JOÃO DO RIO A alma Encantadora das Ruas

Os alicerces seguros do pensamento inspiram-se na precisão do projeto urbanístico elaborado por um único arquiteto, afirma René Descartes no Discurso do Método. A cidade, projetada à luz da razão, impediria a errância da alma. “No quarto fechado, o eu cartesiano se recolhia na interioridade da dúvida radical e da auto-reflexão para escapar ao engano”.1 Para Descartes, nas cidades cuja história exibe a diversidade das edificações nos estilos e nas diferentes concepções de mundo que as projetou, nas curvas e dimensões desiguais das ruas, o espírito se perderia, só encontraria o intolerável erro. A razão seria aviltada. A topologia urbana na retidão do seu traçado funcionaria como a metáfora correta para o pensamento. 1

GAGNEBIN, J.-M. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de janeiro: Imago, 1997, p. 242.



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Permanecia o dia inteiro fechado num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter com os meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que me lembrei de considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que que muitos procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes para outros fins. Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, tornaram-se no correr do tempo grandes centros, são ordinariamente tão mal compassadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície, que, embora considerando os seus edifícios cada qual à parte, se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das outras, todavia, a ver se acham arranjados, aqui um grande, ali um pequeno, e como tornam as curvas e desiguais, dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando de razão que assim os dispôs.2

No mapa da urbe cartesiana, o acaso, o contingente seria corrigido pelo projeto de um só arquiteto na execução de um modelo atemporal. Misturas de tempos, curvas imprecisas turvariam horizontes necessários para o encontro da verdade do Eu tutelado pelos alicerces da razão. Impossível perder-se, errar um caminho, uma meta, no traçado das ruas onde sinuosidades faltariam. Da harmonia e da regularidade, a urbe tornar-se-ia bela e funcional. O pensamento localizaria o conforto necessário para o encontro das suas verdades; nada o perturbaria. Imperfeições oriundas das misturas de várias mãos, de diferentes peças e estilos das edificações inexistiriam. Na geometria das ruas, o equilíbrio do espírito seria efetivado. A cidade harmônica, protegida do inesperado e do caos, teria como meta educar o espírito. Em Barcelona, assim como em outros lugares no século atual, a cidade também exerce a função de educar. Parques, rios, favelas, shopping, praias, escolas e universidades, ruas entre outros espaços, são convocados à promoção do desenvolvimento pessoal, social e político do citadino do futuro. O potencial humano de crianças e jovens na Carta das Cidades Educadoras3 teria na urbe a chance de desenvolver as qualidades necessárias para o equilíbrio social. Na carta, elaborada em Barcelona, a cidade transforma-se na escola ampliada: 3

2

DESCARTES, R. apud Ibidem, p. 246.

3

Segundo Vieira, “em 1971 a UNESCO constitui uma Comissão Internacional para o Desenvolvimento da Educação a fim de estabelecer reflexões e proposições de alcance mundial sobre o tema. Dali surgiu a idéia de uma cidade educativa. [...] A cidade educativa foi um antecedente importante para aquilo que, em 1990, passaria a chamar-se cidade educadora. A primeira versão da Carta das Cidades Educadoras foi escrita em Barcelona, em 1990, pelos representantes das cidades participantes do I Congresso Internacional das CiLeandro de Aguiar e Souza. A dois minutos do último segundo - Fim da previdência social , 2017, Belo Horizonte.


A cidade será educadora quando reconheça, exerça e desenvolva, para além das suas funções tradicionais (econômica, social, política e de prestação de serviços), uma função educadora, isto é, quando assuma uma intencionalidade e responsabilidade cujo objetivo seja a formação, promoção e desenvolvimento de todos os seus habitantes, a começar pelas crianças e pelos jovens.4

A escola sem muros apropria-se da paisagem urbana, das instituições, do mobiliário urbano no intuito de formar futuros cidadãos. Deverá estar atenta ao local apropriado para que a potencialidade dos jovens se desenvolva: “O governo municipal deve dotar a cidade de espaços, equipamentos e serviços públicos adequados ao desenvolvimento pessoal, social, moral e cultural de todos os seus habitantes, prestando uma atenção especial à infância e à juventude”.5 À semelhança de um grande jardim, a urbe acolhe potencialidades como sementes para que, no futuro, germinem, desenvolvam vigorosas rumo a uma prometida cidadania. Crianças e jovens crescerão como árvores nesta cidade jardim. Das sementes, o futuro já estaria definitivamente decidido. Do urbano, espera-se apenas cooperação e não interferência. Cenário, solo adubado, a paisagem que acolhe sem interferir são qualidades da cidade que servirão para educar e formar citadinos na escola sem muros. O que a literatura tem a dizer sobre harmonia, equilíbrio e fecundidade de uma cidade? Para que serve este assentamento humano? Cidades revestem-se de inocência, de neutralidade quando propiciam aos homens a promoção de felicidade e de segurança. Inocentes, se restringiriam a apenas ser o assentamento eficaz para suprir necessidades, facilitar a circulação de riquezas, educar e civilizar. Neutras, apartam-se das tramas do poder que as desenham. Na epígrafe desta escrita, o cronista João do Rio subverte estas atribuições: a rua tem alma. O jornalista carioca longe de definir a alma da rua como a essência da tradição de um lugar, à semelhança da identidade de um logradouro, sugere que a alma da rua diferencia-se das marcas identitárias, ou da representação do universo humano. Para o cronista carioca, ela não seria a energia vital da cidade definida como organismo integrado, a parte invisível do corpo da urbe. A alma da rua é inumana, ingular.6 dades Educadoras. [...] Criou-se em 1994, a Associação Internacional das Cidades Educadoras. Dela fazem parte 434 cidades distribuídas em 35 países, estando na Europa a maior concentração. O Brasil faz-se presente com 14 municípios”. VIEIRA, E. A cidade e o governo dos homens: sobre o lastro educacional da urbanidade contemporânea. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 58. 4

CARTA de Barcelona, 1990 apud Ibidem, p. 57.

5

CARTA de Genova, 2004. apud Ibidem, p. 60.

6

Sobre a corrosão da alma das ruas na obra de João do Rio, Camillotti argumenta que “adulteradora do léxico clássico e inventora dos léxicos futuros, a rua incide, da mesma forma, sobre tudo aquilo que a percorre, que


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Dela, qualidades humanas inexistiriam: “A rua continua matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicos futuros”.7 Ela mata na corrosão inventiva de outras formas de sentir e de viver; destruição perigosa para certa concepção de cidade, a que educa e civiliza. A alma da rua aniquila também adjetivos, tempos e espaços ancorados na harmonia dos universais. Destrói e cria ao afirmar o campo inesgotável de possibilidades. Em algumas metrópoles ela se apresenta como mera passagem onde nada ameaçaria a estabilidade das consagradas formas de sentir, de habitar e viver. Aparentemente morta, a rua se exibe, porém, nos cantos, esquinas, no espaço vazio da sua paisagem algo acontece, ou poderá acontecer a qualquer momento. Apesar de ser projetada por modelos urbanísticos para suprir necessidades dos citadinos, a alma da rua é um artefato não restrito aos limites da sua visibilidade. O uso e o desuso dos fazeres cotidianos, as histórias justapostas em suas camadas de cimento, sonhos heterogêneos, tempos díspares que a habitam a tornam irreconhecível para uma localização delimitada pela visibilidade geográfica, militar, psicológica ou antropológica. Até mesmo vazia, desocupada, a rua exibe a sua alma inumana, laica, material, composta por um coletivo de restos de coisas usadas marcadas por acontecimentos do presente, do ontem, por prenúncios de futuro; coletivo maculado por díspares afetos humanos, ou não. Walter Benjamin o define como inquieto e agitado: As ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado, que, entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes. Para esse ser coletivo, as tabuletas das firmas, brilhantes e esmaltadas, constituem decoração mural tão boa ou melhor que o quadro a óleo no salão do burguês.8

Coletivo inquieto, sem forma estável, porém intenso, com modulações variadas. Intensidade não ignorada pelos que lutam entre suas bordas; também não ignorada por agentes da ordem que tentam sufocar essas lutas. Intensidade não despercebida até mesmo para os que circulam, passam indiferentes como se a cidade não existisse; para os que matam quando a nela se move ou a habita: valores morais, relações sociais e formas do sentir e do viver. É porque está especialmente interessado nestas corrosões das formas consagradas do sentir e do viver que João do Rio indica a rua como seu motivo principal”. CAMILOTTI, V. C. João do Rio: idéias sem lugar. Uberlândia: EDUFU, 2008, p. 126. 7

RIO, J. A Alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1991, p. 4.

8

BENJAMIN, W. Um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Barbosa e Hemerson Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 194 .


alteridade é um estorvo, para os que desprezam qualquer coisa que não seja o eu. Intensidade insufladora de atenção para os aos caçadores do acaso, para despejados, refugiados, humilhados pelos agentes da ordem, sem atenção fenecem. Coletivo composto por modulações de intensidades não ignorado pelos que se contagiam, ou rejeitam, os seus paradoxos. Força sem adjetivos e substantivos, incitadora de políticas destituídas de protagonistas definidos; força que lega à cidade o sentido de uma incansável arena de embates. Civilizar, educar, aprimorar e conquistar direitos seriam perpassados pela intensidade do inquieto coletivo mantendo-os em constante instabilidade. Metas cívicas, projetos de cidadania seriam inquiridos drasticamente pelos paradoxos que irrompem da urbe viva, desigual e tensa. A alma da rua possui rosto, mas qual? Para que serve a cidade? João do Rio, ao afirmar a existência da alma estranha aos urbanistas, aproxima-se de Walter Benjamin, avizinha-se do rosto do mundo das coisas, presença intensiva marcante nos jogos infantis descrito pelo filósofo berlinense. Nos jogos dos infantes, crianças sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente.9 No jogo infantil, o rosto do mundo das coisas alheio às classificações inequívocas dos objetos, às funções do dia a dia, revida, acena para o olhar e insufla a ação. As coisas têm almas singulares que incitam experimentações intermináveis. A rua cujo rosto pertence ao mundo das coisas, apela por jogos, ou lutas, inesgotáveis: Crianças e artistas se põem a experimentar com o mundo, isto é, a destruí-lo e a reconstruí-lo, porque não o consideram como definitivamente dado. Essas brincadeiras essenciais implicam uma noção de ação política que não visa a transformação do mundo segundo normas prefixadas, mas a partir de exercícios e tentativas nos quais a experiência humana − tanto espiritual e inteligível como sensível e corporal − assume outras formas.10 Na experimentação com o mundo citada por Gagnebin inspirada nas análises de Benjamin sobre a política dos jogos, os materiais desafiam o jogador; resíduos, restos, sobras, coisas insignificantes afirmam suas diferenças colocando em cheque a soberania do Sujeito, ou as suas naturalizadas qualidades. O mundo das coisas, da radicalidade da empiria, nega ao jogador o conforto do reconhecimento de uma idéia, ou de um enunciado inteligível. A face 9

Idem. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987 (Obras escolhidas, v. 2), p. 19.

10 GAGNEBIN, J.-M. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014. p. 175.


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da cidade poderá, neste jogo político, profanar a paisagem que a limita, desdobrar formas, alertar para perigos de outros lugares, tornar-se um pequeno mundo feito de entrelaçamentos inesgotáveis. Walter Benjamin apresenta esta face urbana na literatura dos surrealistas: No centro desse mundo das coisas está o mais onírico dos seus objetos, a própria cidade de Paris. Mas somente a revolta desvenda inteiramente o rosto surrealista (ruas desertas, em que a decisão é ditada por apitos e tiros). E nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade. [...] Também a Paris dos surrealistas é um “pequeno mundo”. Ou seja, no grande, no cosmos, as coisas têm o mesmo aspecto. Também ali existem encruzilhadas, nas quais sinais fantasmagóricos cintilam através do tráfico; também ali se inscrevem na ordem do dia inconcebíveis analogias e acontecimentos entrecruzados.11

Espelho dos mistérios da alma, revelação das agruras e virtudes do humano para o autoconhecimento, arte necessária para a compreensão das relações sociais e do mundo são funções da literatura comumente utilizadas nas Ciências Humanas. Salvação, desvendamento da realidade, crescimento espiritual a qualificam aproximando-a do reino do sagrado. Na obra de Walter Benjamin esta missão é preterida. Certa literatura esquivar-se-ia de salvar, representar, ou ilustrar fatos ou realidades. Da poesia de Charles Baudelaire, dos romances do movimento surrealista, da obra de Kafka, de Marcel Proust, ela interfere drasticamente em suas análises sobre as relações entre cultura e capitalismo; na elaboração das teses sobre a história, assim como na presença do fascismo nos pequenos atos, objetos e cenas do cotidiano. Para Benjamim, “nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”.12 Assertiva fulminante para os que delegam à arte, à cultura, o reino da salvação, ou da inocência. A literatura não seria mais um instrumento de acréscimo, uma interferência que manteria ileso seu equipamento teórico, mas de interpelação aos conceitos e teorias utilizados em seus estudos referentes à modernidade e ao nascimento do nacional socialismo alemão. Para o filósofo berlinense esta modalidade de arte assemelhar-se-ia ao uso das citações em sua obra: “citações em meu trabalho são salteadores no caminho, que irrompem armados 11

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996 (Obras escolhidas, v. 1), p. 26-27.

12 Ibidem, p. 225. Leandro de Aguiar e Souza. A dois minutos do último segundo - Ribeirão Arrudas em sentido contrário, 2020, Belo Horizonte.



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e roubam ao passante a convicção”.13 As obras literárias utilizadas por Benjamin o aturdiram, roubaram convicções sedimentadas, impelindo-o a estranhar o que antes lhe servia de horizonte. Da poesia, assim como da prosa poética de Charles Baudelaire, as relações entre cultura e capitalismo têm na cidade de Paris o assalto às suas convicções. A urbe dos surrealistas irrompe como salteadores no seu caminho furtando-o das certezas das reflexões tradicionais sobre a metrópole do capitalismo. A cidade, via literatura, insuflou a criação do peculiar marxismo do filósofo alemão. Benjamin aponta para sonhos, fantasmagorias do modo de produção capitalista, para a barbárie do fascismo a perpassar projetos arquitetônicos, brinquedos, ruas, limiares e fronteiras urbanos, denotando a cultura o lugar de assujeitamento e de enfrentamento de intermináveis lutas políticas. Para que serve a cidade quando certa literatura transtorna seus limites? Lâmina cortante produtora de cesuras, artefato para dissecar, arma de combate, instrumento eficiente para criar fissuras, são qualidades e funções possíveis de uma cidade. O poeta Sebastião Uchoa Leite no poema Tempus Fugit N.1 denota a urbe com esses atributos; no poema ela se diferencia do palco neutro das relações sociais, ou o cenário para luzes e sombras de um soberano Humano. A cidade dilacera a compacidade do Sujeito, perturba a nitidez de uma paisagem. Corte, despedaçamento, aberturas de sulcos em superfícies humanas, ou inumanas, expressariam funções perigosas para ideias desejosas de permanecerem estáveis e ilesas. Risco mortal para o pensamento necessitado de proteção e conforto; o pensar refratário a contágios e desestabilizações. A urbe desenhada pela imagem do utensílio dilacerador interrompe a eficiência de lógicas universais a tutelar o citadino; inquire racionalidades por meio de cesuras na continuidade de uma análise. Provoca mudanças de caminhos, multiplica atalhos, encruzilhadas, desvios no trajeto ideal para o alcance de uma verdade. A urbe esquiva-se de ser o bálsamo das agruras de uma utopia fracassada; nela inexistiria consolo ou solução definitiva para um fracasso, ou o júbilo pela vitória da realização de uma utopia. Tensões insolúveis a ocupam na criação de inesgotáveis paradoxos. Nada perdura conclusivamente. A cidade como lâmina fria decepa a solidez de valores, ou a clareza de horizontes. Cortante, fragmenta totalidades inquestionáveis: uma rua, um muro, o lixo sobre a calçada, um rosto, o gesto silencioso, a alegria de um corpo, o cadáver inerte, uma parede, um grito poderão implodir a conclusão de uma análise, ou de uma sentença. À semelhança de uma lâmina, a cidade é habitada por histórias fragmentadas produzida por forças que desafia a racionalidade dos cálculos. Forças, segundo Michel de Certeau, que irrompem das inesperadas invenções do cotidiano: 13

Ibidem, p. 61.


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Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo. [...] A infância que determina as práticas do espaço desenvolve a seguir os seus efeitos, prolifera, inunda os espaços privados e públicos, desfaz as suas superfícies legíveis e cria na cidade planejada uma cidade “metafórica” ou em deslocamento, tal como a sonhava Kandinsky: “uma enorme cidade construída segundo todas as regras da arquitetura e de repente sacudida por uma força que desafia os cálculos.14

A cidade feliz, ou infeliz, não teria sentido de existir quando encarna a função de uma navalha afiada, ou do quebra-cabeça indicado por Certeau, a espera do desdobramento de narrativas. Paisagens, ícones de um lugar, perdem a clareza de suas bordas, a nitidez para o reconhecimento identitário. A urbe cortante está sempre insuflando prováveis montagens de histórias e de formas de luta; montagem feita dos restos de sonhos deixados pela metade do caminho, de cenas banais, ou não, do cotidiano. Realização temporária, porque dos paradoxos produzidos pelas cesuras da urbe a eternidade dos símbolos, dos horizontes fracassam; segundo Kandinsky, sacudidos “por uma força que desafia os cálculos”. Para que serviria uma cidade? O poeta Sebastião Uchoa Leite define a cidade como “lâmina fria cortando cômodas suposições. Uma lâmina curva que decepa a sóbria reta que se traçou na ponte”.15 Para o poeta pernambucano, o olhar protegido apartado do mundo neutralizaria o cortante poder da urbe: “Aqui deste alto pavimento, isolado do real vivido e dividido pelas folhas de vidro e aço, vê-se a ponte em perspectiva”.16 Do alto, a previsibilidade do percebido permaneceria intacta, a nitidez da paisagem confortaria o Sujeito que a contempla. Porém, lá fora, no solo, “a sóbria reta que se traçou na ponte”, a totalidade da paisagem, da harmonia do real é decepada pela cidade. Na rua, à luz de Walter Benjamin, uma batalha é anunciada: A força com que uma estrada no campo se nos impõe é muito, consoante ela seja percorrida a pé ou sobrevoada de. [...] Só quem percorre a estrada a pé sente o seu poder e o modo como ela, a cada cur-

14 CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 189-191. 15

Segue o poema “Tempus Fugit” n.1: “Aqui deste alto pavimento, isolado do real vivido e dividido pelas folhas de vidro e aço, vê-se a ponte em perspectiva. Não se vê o dragão nem a donzela daquele cenário de Ucello nem a Ville Blanche de Vieira da Silva, reflexos compostos em abstração, mas a máquina humana viva, a mecânica da vida concreta. O outro lado não é previsível: a cidade é uma lâmina fria cortando cômodas suposições. Uma lâmina curva que decepa a sóbria reta que se traçou na ponte. Matemática do passeio, composição do livre arbítrio, adeus! As traças devoram os livros de estampas góticas ou modernas.” LEITE, S. Obras em dobras. São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 2.

16

Ibidem, loc. cit.


va, faz saltar do terreno plano (que para o aviador é apenas a extensão da planície) objetos distantes, clareiras, perspectivas, como a voz do comandante que faz avançar soldados na frente de batalha.17

A urbe oferece uma tensão insolúvel, ensejada pela “máquina humana viva, a mecânica da vida concreta”, da qual sóbrias ideias, projetos são produzidos, testados e destruídos infinitamente. À semelhança de uma navalha, de uma faca afiada, a cidade cria e dilacera sem tréguas, como uma máquina, como um artefato. Fora da fronteira delimitada por “folhas de vidro e aço” nada se mantém intacto. A cidade, proposta por Uchoa, tem no cotidiano o fio cortante da maquinaria inacabada e imprevisível da vida concreta; o concreto onde efetiva-se a radicalidade desacomodadora da empiria. Desprotegido das paredes de vidro e aço, o olho que tudo alcança, o Sujeito artífice das sóbrias perspectivas, a paisagem irretocável correm o risco de ferirem-se mortalmente no chão da urbe. Para que serve a cidade? Manuel Bandeira, na contramão das “sóbrias perspectivas” do olhar confinado às fronteiras de vidro e aço, reacende a “máquina humana viva, a mecânica da vida concreta” no poema O Beco: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? – O que vejo é o beco”. O poeta desviando-se da cidade espetáculo, da paisagem que não revida o olhar, elege o lugar cortante do Beco da Lapa, no Rio de Janeiro, onde se entrelaçam histórias de vidas infames. Local de lutas e fracassos de trabalhadores, de misturas desarmônicas, espaço sujo de mundo opondo-se à imaculada paisagem da cidade cenário. Imagens emblemáticas do Rio de Janeiro cartão postal não lhe contagiam, não o deslocam de lugar; são imagens demarcadas por horizontes precisos confortáveis para quem as vislumbra. Do Beco sem saída, a estreita passagem prenuncia histórias imprevisíveis, vozes dissonantes passíveis de cortar como uma navalha a conclusão de uma análise. Algo poderá acontecer no Beco. Não só a natureza imóvel como cenário é desinteressada pelo poeta, mas a pobreza como paisagem. Próxima ao interesse do poeta afirma Vera da Silva Telles: Nessas formas de encenação pública, a pobreza é transformada em paisagem que lembra a todos o atraso do país, atraso que haverá de ser, algum dia, absorvido pelas forças civilizatórias do progresso. Paisagem que rememora as origens e que projeta no futuro as possibilidades de sua redenção, a pobreza não se atualiza como presente, ou melhor, na imagem do atraso, aparece como sinal de ausência.18

A pobreza tornada paisagem, emoldurada como natureza morta, como “sinal de ausência”, não afetaria, ou deslocaria de lugar, quem a contempla. Do Beco, compaixão e generosida17 BENJAMIN, W. Rua de sentido único. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 14. 18

WALTY, I. L. Anonimato e resistência em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. In: HARRISON, M. (Org.) Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos de Luiz Ruffato. São Paulo: Editora Horizonte, 2007, p. 62.


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de não atraíram o poeta. Bandeira retira da moldura trabalhadores, malandros, miseráveis, infames. Refuta a carência que os enfraquece impedindo-os de interrogar o presente, de inquirir o tempo que lhes nega intensidade. A pobreza como paisagem impediria ao poeta o contágio desnorteante com a alteridade, nada aconteceria, somente a encenação pública de histórias definitivamente encerradas. Manuel Bandeira no conciso poema recusa eleger os excluídos como heróis urbanos, personagens sacralizados em suas misérias. O desejo do poeta seria o de profanar a paisagem deificada pela natureza; almeja, desta profanação, intensificar a vida tensa e inconclusa da cidade feita de cortes, passagens, entrelaçamentos de histórias sem fim. O Beco mostra-se como uma lâmina fria, cortante, ao recusar o olhar do Sujeito hermeneuta que contempla suas sombras e luzes projetadas no mundo. Na rua estreita da Lapa, tensões insolúveis revidam o olhar à procura de conclusões às tramas urbanas. Revidam o olhar como o fio de uma navalha tornando o Rio de janeiro estranho aos limites das suas bordas. Do Beco a cidade se fragmenta, multiplica-se, desdobra-se incansavelmente. Para que serve a cidade? A cidade não serve para nada, quando verdades do Sujeito e do mundo recusam-se a perder a estabilidade dos seus sentidos. Não serve para nada quando do alto de um prédio, como alerta Sebastião Uchoa Leite, ou de um aeroplano, segundo Benjamin, o olhar é indiferente ao lugar indeterminado, sem pouso fixo dos modos fascistas de existir. Barbárie, nem sempre visível, que se espraia pela urbe enfraquecendo a força do corte de uma navalha.



Um homem exclama frases entrecortadas, ao alento, atravessando caóticas paragens urbanas. No mínimo intranquilo, percorre a cidade dos eleitos vociferando refutações aos defensores dos imperativos imunitários: “não me transformarei em subúrbio”, “não serei paz”... Em seguida, proclama a destruição de tudo o que é frágil ou, se assim quisermos, a destruição de tudo e de todos fundados na fraqueza do ser tanto quanto na pureza da alma: os espíritos servis, espíritos moralizantes, reféns do utilitarismo e até mesmo do despotismo ordinário: “cristãos”, “fábricas”, “palácios”, “juízes”, “patrões” e “operários”. Como um herege niilista, difama o suposto cu imaculado da aterradora deidade por ele nomeada como “Deus-Cadela”. Resoluto e alheio a qualquer proposição messiânica, ao cabo, declara a necessidade do próprio aniquilamento: “eu preciso esquecer que existo”. Tudo isso remete, se não a uma alucinação, a um daqueles delírios que, nas mãos de um catalão devidamente habilitado a canalizá-los em sua criação pictórica, como Salvador Dalí por excelência, acabaria desvelando muita coisa repugnante ao próprio respeito. Tal como numa das pinturas ou mesmo num dos escritos do artista surrealista, a situação do homem apoplético inicialmente enunciada compõe não propriamente um delírio e tampouco uma alucinação, mas um lirismo de fato delirante, já canalizado, disposto ao lado de algumas fotografias meio ordinárias e quiçá até meio hediondas. Trata-se, sim, de um dos instantes apopléticos transposto no “Poema porrada” 1 pelo eu 1

PIVA, R. Poema porrada. In Paranoia. 3 ed. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009, p. 166. Wesley Duke Lee/Acervo Instituto Moreira Salles. Código: 002009008. Paranoia: “porres acabando lentamente”, 1963, São Paulo.




lírico de Roberto Piva, ele mesmo, um dos anti-heróis de Paranoia, livro publicado em 1963, composto por outros dezenove poemas e que ainda consubstancia inúmeras fotografias de Wesley Duke Lee. Escrito pelo poeta aos vinte e um anos, entre 1961 e 1962, o manuscrito original desses poemas foi logo estendido à apreciação do fotógrafo, na verdade um artista plástico aos vinte e sete anos já aclamado e que, com aquelas odes cáusticas às suas mãos, teria prontamente se encantado. Desta recepção poética uma intensa interlocução se estabeleceu entre ambos, os quais, sem muito tardar, partiram para uma experiência dilacerante pelos bas-fonds da vida urbana paulistana. Foram alguns meses perscrutando a parte repelida pela leva desenvolvimentista que àquela época despontava, percorrendo as ruas, os becos, as praças, os parques da cidade de São Paulo. Imergiram, assim, “no mundo-tabu da pederastia, aspecto da sexualidade” que, nas palavras de sua biógrafa, Duke Lee “nunca havia enfrentado, mas que sempre o assustava”.2 Em busca de situações correlacionadas à própria homossexualidade do poeta então posta em causa ao longo de seu manuscrito, ambos esquadrinharam os recônditos, os abismos, as alcovas dos espaços públicos paulistanos, transformando instantes fugazes em fotografias nas quais a perturbadora apreensão da cidade que Piva trazia junto de si, também, mas para além de seu desespero lírico, foi então posta em jogo. eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas partidas do meu cérebro eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror disparo-me como uma tômbola a cabeça afundando-me na garganta chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha, correrias de maconha em piqueniques flutuantes vespas passeando em voltas das minhas ânsias meninos abandonados nus nas esquinas angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto e o Estrondo3

2

COSTA, C. Wesley Duke Lee: um salmão na corrente taciturna. São Paulo: Alameda; Edusp, 2005, p. 58.

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PIVA, R. Visão de São Paulo à noite – Poema antropófago sob narcótico. Op. cit., pp. 71-72.


Nestes versos de “Visão de São Paulo à noite...” uma pulsão transgressiva se avulta e a dramaticidade da vida urbana emerge sem quaisquer concessões. Pulsão e dramaticidade, a propósito, que também não deixam de ser recorrentes em tantos outros, quiçá todos os poemas de Paranoia. Hiante, o poeta paulistano nos legou a ficcionalização de uma cidade fecundada por seus próprios delírios, mas, sobretudo, interseccionada pelos clamores, pelos urros e pelos gritos furiosos dos corpos que através das ruas o afetaram e que, decerto, por ele também foram afetados. O apoplético alarido que podemos ler nos versos desse poema poderia muito bem ser tomado como a ressonância do prosaico desespero entoado frente ao imperialismo utilitário das condutas. “Putos”, “putas”, “patacos”; “homens” e “mulheres”; “crianças” e “pederastas”; “meninos abandonados nus nas equinas”; todos, entre tantos outros “angélicos vagabundos gritando”, “cruzam-se”, “abrem-se” no eu lírico piviano que, junto aos seus personagens, com “ânsia”, “fúria”, conclama o caos, “as colisões, o parto e o Estrondo”. Não por acaso, todos esses integrantes sabidamente refugados pela sociedade utilitária encontram ressonância em Piva. E, ao serem ecoados, integram-se à ofensiva lírica do poeta, hoje também um legado contra todas as formas de vida burguesa mais bem-sucedidas. Feito o Uivo de Allen Ginsberg4 ao conclamar o ímpeto disruptivo das ruas contra o Moloch nova-iorquino, o grito paranoico de Piva reverberou a contestação das existências mais rechaçadas ao convívio civil aburguesado. Admoestando as injunções homogeneizantes, tais existências repelidas naquele tempo já se avultavam repletas de uma acuidade pungente. O investimento lírico nelas foi justamente o meio através do qual o poeta nos propôs a desclassificação, a corrosão das formas hegemônicas já sedimentadas, com isso franqueando um horizonte urbano excremencial cuja parte rechaçada é por ele gloriosamente exortada. A cidade que Piva conclama à experiência remete, então, à uma São Paulo a partir de uma perspectiva singular, evocando tão só o que nela fora socialmente amaldiçoado. Logo, uma “outra cidade” que entrava em choque com os imperativos utilitários à época exponencializados pelo cabal processo de industrialização. Uma cidade diretamente conflituosa às injunções desenvolvimentistas que despontavam e que, sem muito tardar, foram incessantemente minadas pelo poeta de modo a evocar a própria implosão das ideologias em torno delas corporificadas. Sendo assim, a díptica realidade imagético-fotográfica de Paranoia invariavelmente dispõe uma rivalização à cidade enquanto o espaço do consumo indiscriminado, bem como, ainda, uma rivalização à cidade enquanto o espaço utilitário em prol do produtivismo tresloucado. Isto, no entanto, sem necessariamente içar a bandeira da luta social em prol da clas4

Ver GINSBERG, A. Uivo: Kaddish e outros poemas. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1984.



se trabalhadora. É pela via de uma acuidade a-ideológica que o brado citadino canalizado em Paranoia nos desvela a capital paulista, não em suas pulsões sectárias, mas, muito pelo contrário, em suas pulsões dispersivas, caóticas, sacrificiais, dilapidantes. Contrapondo-se ao signo do capital no que tange às formas de produção e consumo, Piva e Duke Lee, com os seus sabres escriturais e imagéticos, exerceram a notável arte marcial do boêmio citadino, a “esgrima” que outrora o próprio Baudelaire tanto apologizara e que no poema “Le soleil”5 confessou ter praticado. Mais que a si mesmo, todavia, Baudelaire reclamou o desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys como o mais habilidoso praticante dessa estranha arte do dardejar. Foi justamente a partir da esgrima praticada por Guys que o poeta parisiense desenvolveu a sua célebre teoria da modernidade. Quanto a essa excêntrica esgrima marcadamente baudelairiana, Benjamin salientou a ambiguidade do elemento heroico na figura do poeta. “O poeta”, escreve ele, “tem algo da soldadesca indigente, do saqueador.”6 Saqueiam, acima de tudo, por assim dizer, os elementos simbólicos que hasteiam a ideologia burguesa. Como é o caso de Piva e Duke Lee em Paranoia, tratam-se daqueles que, por analogia aos vagabundos urbanos que eles mesmos ecoaram, também fizeram das ruas os seus campos de batalha, glorificando as coisas mais abjetas, e isto, claro, numa afronta direta ao aburguesamento das condutas e aos seus imperativos sobre as rotinas mais triviais. Ademais, e não menos importante, enquanto exímios “esgrimistas”, se esquivaram da posição proletária, ou melhor, da posição tomada pelos trabalhadores, embora com estes, no limite, uma aliança ou uma posição compartilhada poder-se-ia ao menos ser vislumbrada. “O racionalismo burguês é”, no dizer de Octavio Paz, “constitucionalmente contrário à poesia”. Por extensão, poderíamos ainda dizer que tal racionalismo é também contrário à arte, uma vez que, arte, poesia, no extremo de suas intensidades, são igualmente insubordináveis. “Daí que a poesia” e, sem óbice algum, digamos na esteira de Paz, a própria arte, “desde as origens da era moderna – ou seja, desde o período final do século XVIII – tenha se manifestado como rebelião” em relação “aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro”. Segundo os termos aí em apelo, a arte, seja ela a poesia ou qualquer outro ramo, “é 5

“Ponho-me a praticar minha estranha esgrima”. BAUDELAIRE, C. Le Soleil. In Les fleurs du mal. Paris: Poulet Malassis et de Broise, 1857, p. 15, tradução do autor.

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BENJAMIN, W. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, p. 405. Wesley Duke Lee/Acervo Instituto Moreira Salles. Código: 002009025. Paranoia: “os comunistas são piedosos”, 1963, São Paulo.


sempre uma transgressão da racionalidade e moralidade da sociedade burguesa.”7 Foi justamente nesse ensejo que as esgrimas piviana e dukeleeana se distanciaram de uma ideologia comunista ou mesmo socialista, embora em adjacência, mas encampando outra figura que transfiguraria o boêmio citadino e o seu submundo de ruínas capitalistas. Eis o “cavaleiro do mundo delirante”, de Murilo Mendes, e ressurgindo com ele, sobretudo, ainda o seu habitat, o qual, a propósito, o próprio prosador juiz-forano já havia nomeado como “Overmundo”.8 Tal como Dalí vastamente consumou enquanto método seminal em sua criação pictórica, ou seja, também motivados pela paranoia e sob a força do delírio aplicado à criação, Piva e Duke Lee percorreram os bas-fonds paulistanos, travaram ao longo dessa arena urbana um combate às injunções utilitárias em prol do trabalho, dramatizando e transfigurando o submundo da cidade de São Paulo em seus overmundos, em espacialidades fruídas e fruíveis. “Longe de constituir um elemento passivo”, escrevera o pintor surrealista, “o delírio paranoico constitui já, por si próprio, uma forma de interpretação.”9 Para a psicanálise, mais especificamente a partir de Jaques Lacan, que no início dos anos 1930 manteve estreitas relações com o grupo surrealista, “a paranoia era um estado mórbido, caracterizado por delírio e manias de perseguição, mas, como uma condição experimentada pela imaginação criativa, podia ser reveladora”.10 É nesse mesmo arroubo delirante que Piva e Duke Lee se direcionaram à destruição “daquele mundo” pelo qual eram tragados, a um só tempo, como exortava Nietzsche, iniciando a sua recriação. Justamente nesse ínterim nos legaram uma exibição da capital paulista entregue à sujidade, embora instilada com o cimo da glória. Esse submundo excremencial da cidade de São Paulo, a cada página, é assim glorificado para tão logo ser transfigurado num overmundo escatológico; e isto, não obstante, em ambas as acepções homográficas: escatológico tanto no sentido de skatos (excrementos) como no sentido de éschatos (coisas últimas). Fazendo valer o delírio fora de qualquer paradoxo fácil, aí somos topologicamente conduzidos até às imediações centrais ou próximas ao Centro, quase sempre localizadas à noroeste da capital paulista. 7

PAZ, O. Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé. Tradução de Wladimir Dupont. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 14.

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“Ninguém ampara o cavaleiro do mundo delirante”. Este é um verso do poema “Overmundo”, de Murilo Mendes, escrito em 1943 e intertextualmente reverberado por Piva, em Paranoia, como epígrafe do “Poema de ninar para mim e Bruegel”. MENDES, M. Overmundo. In Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, p. 413.

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DALÍ, S. Sim ou a Paranoia – Método crítico-paranoico e outros textos. Editora Artenova: Rio de Janeiro, 1974, p. 32.

10 FER, B.; BATCHELOR, D.; WOOD, P. Realismo, racionalismo, surrealismo. Tradução de Cristina Fino. São Paulo: Cosac Naify, 1998, p. 220.


Isto é, somos topologicamente conduzidos até à Praça da República, à Avenida São Luís, à Avenida Rio Branco, à Rua Aurora, ao Largo do Arouche, à Rua das Palmeiras, às escadas de Santa Cecília, à Rua Lopes Chaves, tanto quanto, ainda, bem mais à noroeste, até à Lapa, ou, muito mais ao sul, à Rua Martiniano de Carvalho e ao Parque Ibirapuera. Essas três últimas localidades, por sua vez, as imediações mais longínquas que podemos encontrar em relação ao “anel de irradiação”, na verdade um “anel de imunização” urbanístico em torno do Centro, o qual, àquela época, já constrangia e repelia toda e qualquer existência renegada pelo signo utilitário. A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando na tarde de esterco Praça da República dos meus sonhos onde tudo se faz febre e pombas crucificadas onde beatificados vêm agitar as massas onde Garcia Lorca espera seu dentista onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão lábios coagulam sem estardalhaço os mictórios tomam um lugar na luz e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas privadas cérebros sulcados de acenos os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro há jovens pederastas embebidos em lilás e putas com a noite passeando em torno de suas unhas há uma gota de chuva na cabeleira abandonada enquanto o sangue faz naufragar as corolas Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa11

Oniricamente transformada em alcova citadina, esta espacialidade emergente no poema “Praça da República dos meus sonhos” abriga uma paisagem urbana corroída pela exsudação erótica dos corpos que nela habitam. Uma paisagem cataclísmica, “onde tudo se faz febre e pombas crucificadas”, onde tudo se inflama e nada culmina em mansidão. Ou ainda, onde singulares conflagrações se avultam ininterruptamente e, por isso mesmo, onde não triunfam consensos. Ao investir na transgressão, na violação de tudo aquilo que as injunções citadinas 11

PIVA, R. Praça da República dos meus sonhos. Op. cit., pp. 87-89.


paulistanas impuseram e ainda hoje impõem, Paranoia promove a licenciosidade generalizada, seja em prol da lascívia, seja em prol do uso, da dependência de drogas, e por aí vai... A lógica funcional e produtiva que perfaz o homem ou ao menos o ser humano que ser quer humanista, nesse ensejo, é prontamente colocada em xeque. O interdito e a lei estão contidos em cada uma de suas páginas, porém, tão somente para demonstrar as violações, para asseverar a transgressão. Isto se dá pela fruição ou pelo gozo que a narrativa textual acastela, conclamando o dispêndio improdutivo contra tudo aquilo que já fora urbanamente destinado ou quisto como homogêneo. Condenada ao movimento inútil da embriaguez desde a inicial anunciação da “paisagem de morfina”, a Praça da República é doravante destituída de utilidade e, ao fim, ao ser glorificada, acaba transfigurada em “Paraíso”. Essa paisagem paradisíaca, todavia, em nada se assemelha ao Éden dos semitas. Em Paranoia esse exíguo jardim urbano encravado no coração da capital paulista torna-se um terreno de delícias imanentes, pois como ignorar que o signo erótico em torno da prática libertina é nele clamado de modo descomunal? Grandes nomes transgressores da literatura como o de Garcia Lorca e o de Arthur Rimbaud aí aparecem sob tal imantação, precisamente numa apologia à pederastia que, por sua vez, fecundou vida e obra de ambos os poetas instados. No que tange a esse tributo, em Paranoia sobressai no mínimo algo de peculiar se o parâmetro for a lírica de qualquer um deles, seja Lorca ou Rimbaud, pois as paisagens feéricas e excremenciais que Piva constrói, em parte junto com Duke Lee, além de também preconizar a ação lasciva, são sempre paisagens urbanas. Dando vazão aos excessos pela via do êxtase, por vezes psicotrópico, mas quase sempre erótico, Paranoia então emerge enquanto insubordinação cabal às utilitárias operações pudicas na cidade de São Paulo. Não é tão difícil perceber que os aspectos ignóbeis da libertinagem frequentemente alçados se inclinam diretamente à destruição dos interditos, mas isto em um nível urbano e urbanístico de proibições. Tais aspectos são justamente o que a transgressão citadina acastela. É como se nos deparássemos com o alter ego do Marquês Sade a cada esquina. Num confronto direto à funcionalidade dos planos e à gestão produtiva dos espaços públicos urbanos, a explícita obsessão pederástica pelos garotos corrói as interdições eróticas e, não obstante, ainda as interdições homoeróticas moralmente cristalizadas através das ruas. Se o erotismo é, pela via da sexualidade humana, como diria de Georges Bataille,12 a transgressão por excelência, erotizar os espaços voltados para as circulações, tanto de mercadorias quanto das forças produtivas, antes de tudo seria, também, transgredir os interditos urbanos encampados pela lógica servil. Ora, o trabalho é, ele mesmo, o maior dos interditos fundados 12 Ver BATAILLE, G. O erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.


pela encarnação humana, sem o qual não haveria projeto, sem o qual não haveria sequer o que se compreende como humanidade. O homem somente escapou da animalidade trabalhando, desta feita interditando todas as ações contrárias às garantias de sua duração. O erotismo, por outro lado, é a supressão dos limites, é a transgressão dos interditos, é a derrisão do projeto, é o gozo no instante. Ou ainda, com efeito, é ele mesmo o próprio instante. Na São Paulo de Paranoia os limites, os interditos, são fustigados pela erótica imolação das personagens que a habitam, donde, via o desencadeamento generalizado da permissividade, a transgressão é levada ao pináculo. Através das calçadas, em frente aos estabelecimentos comerciais, em meio às praças..., enfim, por todos os lugares, corpos transgressivos imantam, eletrizam, insuflam a cidade ficcionalizada, maculando cada página. São, pois, tais personagens que vilipendiam os espaços urbanos aprioristicamente destinados à vida servil, à vida em prol do trabalho, em suma, à vida utilitária, e, eroticamente, nesses mesmos espaços, insurgem soberanos. Ainda que privilegiando o teor pederástico, a lascívia em Paranoia suplanta qualquer limitação exclusivamente homoerótica. As alusões decerto vertem-se bem mais à orbe da homossexualidade masculina, mas, antes disso, no conjunto de toda a dramatização, conduzem muito mais a uma erotização mais ampla, isenta de qualquer apartheid centrado em alguma identidade de gênero ou mesmo em alguma orientação sexual. Os habitantes de São Paulo, todos eles, são assim transformados em verdadeiras e verdadeiros bacantes; os espaços públicos urbanos por eles habitados são assim transfigurados; os interditos neles cominados são assim esgarçados. A exemplo da inclinação também pederástica de Maldoror, o obscuro personagem criado pelo Conde de Lautréamont, poderíamos ainda postular a lírica piviana enquanto um instrumento de clamor erótico contestatório que, a um só tempo, estraçalha, carcome interditos, sobretudo os utilitários. Sendo assim, as palavras alçadas por André Breton para se reportar ao poeta oitocentista autor d’Os cantos de Maldoror muito bem poderiam ser apropriadas para também se reportar ao autor de Paranoia, pois não deixa de ser lícito também afiançar que “com ele o famoso ‘tudo é permitido’ de Nietzsche não permaneceu platônico, pretendendo significar que a melhor regra aplicável ao espírito ainda é a orgia.”13 De fato, malgrado os vislumbres lúbricos em torno de criaturas femininas e pueris, as preferências libidinosas do eu lírico piviano, bem como as do eu lírico lautréamontiano,14 confessadamente, emergem de um rompante orgíaco com criaturas pueris do 13 BRETON, A. apud LAUTRÉAMONT, C. Os cantos de Maldoror: poesias: cartas: obra completa. Tradução de Cláudio Willer. 2 ed. São Paulo: Iluminuras, 2005, contracapa. 14 Assim conclamava Maldoror em seu Canto Quinto: “Ó pederastas incompreensíveis, não serei eu quem irá lançar injúrias contra vossa grande degradação; não serei eu quem irá atirar o desprezo contra vosso ânus in-


mesmo sexo, via de regra, defloradas com doses extremas de crueldade. Entretanto, em última análise, para além das idiossincrasias declaradas, o signo orgíaco em torno das sevícias pueris clamadas por Piva e Lautréamont talvez seja, bem mais que qualquer outra coisa, apenas um meio terrificante de provocar os leitores, de impactá-los por meio de uma aterradora impressão, pondo-os em causa com os seus próprios territórios existenciais para, ao cabo, desestabilizar qualquer fundamento moral assentido. Não obstante, no caso específico de Paranoia, essa desestabilização ocorre com vistas à uma superação do tabu, tornando quase prescritiva não apenas a transgressão homossexual, mas a transgressão sexual em geral. Trata-se, com efeito, quase de um totem, pois fustiga os fundamentos morais atrelados à lógica formal do trabalho, mas que, apesar de tudo, não busca cristalizar-se, nem sequer no interior da dramatização. Quando nos deparamos, nos versos do “Poema submerso”,15 com as “meninas destruídas como rãs por uma centena de pássaros fortemente de passagem”, nos versos do poema “Rua das Palmeiras”,16 com as “meninas [que] saem de mãos dadas” enquanto o “velho Anjo conquista as árvores com seu sêmen”, com os “amantes chupando-se como raízes” ao lado de “meninas esfarrapadas definitivamente fantásticas”, ... e, em meio a tudo isso, também com as “chaminés crescendo” e “as locomotivas uivando” nos versos do poema “Visão de São Paulo à noite...”,17 a paisagem que de tudo isso insurge é a de uma alcova citadina fendida pelo influxo industrial, em grande medida talhada pela lógica utilitária, mas que é, ainda, soberanamente fruída, transgredida por singularidades pungentes, eróticas, erotizadas, e não essencialmente homoerotizadas em torno de algum apartheid de sexualidade às avessas. Singularidades, então, que perfazem corpos malditos, dilacerados, integrantes da parte proscrita do urbano e que, como tais, em consubstanciação ao signo da ação lasciva em torno deles constituído, de um modo que desestabiliza e até dilacera, figuram de forma disruptiva em relação a qualquer forma instituída. fundibuliforme.” LAUTRÉAMONT, C. Op. cit., p. 230. “Eu não gosto de mulheres! Nem mesmo dos hermafroditas! Preciso de seres semelhantes a mim”. Ibidem, p. 232. “Que venha a mim aquele que arde no desejo de compartilhar meu leito; imponho uma condição rigorosa a minha hospitalidade: é preciso que não tenha mais de quinze anos”. Ibidem, p. 231. 15 PIVA, R. Poema submerso. Op. cit., p. 51. 16 Idem, Rua das Palmeiras. Op. cit., p. 139. 17 Idem. Visão de São Paulo à noite – Poema antropófago sob narcótico. Op. cit., pp. 63-68. Wesley Duke Lee/Acervo Instituto Moreira Salles. Código: 002009018. Paranoia: “há anjos de Rilke dando o cu”, 1963, São Paulo.



Eu queria ser um anjo de Piero della Francesca Beatriz esfaqueada num beco escuro Dante tocando piano ao crepúsculo eu penso na vida sou reclamado pela contemplação olho desconsolado o contorno das coisas copulando no caos Eu reclamo uma lenda instantânea para o meu Mar Morto Tempo e Espaço pousam no meu antebraço como um ídolo há um osso carregando uma dentadura Eu vejo Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília ele me espera no largo do Arouche no ombro de um santuário hoje pela manhã as árvores estavam em Coma meu amor cuspia brasas nas bundas dos loucos havia tinteiros medalhas esqueletos vidrados flocos dálias explodindo no cu ensanguentado dos órfãos meninos visionários arcanjos de subúrbio entranhas em êxtase alfinetados nos mictórios atômicos minha loucura atinge a extensão de uma alameda as árvores lançam panfletos contra o céu cinza18

Em 1871, já na última estação de seus dezesseis anos e às vésperas de sua partida para Paris, confidenciou Ernest Delahaye, “Rimbaud lê para mim Bateau ivre19 [Barco ébrio]”. Dando seguimento à rememoração da mesma ocasião, a saber, ainda prévia à publicação do célebre poema então entonado pelo próprio Rimbaud, o confidente por fim evoca as palavras do poeta ao declarar o que de fato o teria motivado a escrever: “‘Fiz esse poema [...] para que os de Paris o vejam’”.20 Sabe-se, desde há muito, que a veracidade deste testemunho é por alguns motivos específicos no mínimo contestável. Foram, pois, divergências de datas bem como de elementos diversos que ao menos em parte prontamente o colocaram em xeque. Todavia, no tocante ao fragmento citado, a constatação se tais palavras foram ou não proferidas torna-se no mínimo uma questão secundária. Ora, para Rimbaud, o poeta púbere, “os de Paris” eram sabidamente os poetas parisienses, embora não exatamente todos eles, mas apenas os poetas pósteros, aqueles que menosprezavam a exuberância da vida ao exortar a virtude do homem tanto quanto a altivez de seus interditos. “O Bateau ivre foi escrito ‘para que o vissem’ os adultos, os ‘poderosos’”, assim afiançou tempos depois um pensador italiano chamado Furio Jesi, “( já que os poetas adultos se identificavam aos ‘poderosos’, mesmo sendo poetas, 18 Idem. Stenamina boat. Op. cit., pp. 120-122. 19 Ver RIMBAUD, A. Poésies – Une saison en enfer – Illuminations. Paris: Gallimard, 1973. 20 DELAHAYE, E. apud JESI, F. Leitura do “Bateau ivre” de Rimbaud. Outra travessia, Ilha de Santa Catarina, n. 19, pp. 63, 2015.


aos olhos do poeta de dezesseis anos), e de modo objetivo foi oferecido também àquela outra categoria de poderosos que é constituída pelos pósteros”,21 ou seja, à todos os poderosos que não eram necessariamente poetas. Oferecer-lhes, no entanto, ao menos nesse caso, não foi o mesmo que lhes dedicar o poema. Se houvesse feito alguma dedicatória, Rimbaud decerto o faria tão só àqueles que, como ele, vilipendiavam o reino da não-liberdade, aos “eternos” não-adultos. Em sua insurgência avant la lettre, foi assim que decidiu reverenciar o frescor pueril, pressuposto tático de sua revolta contra o mundo coercitivo ainda hoje repleto de amarras a um passado servil. Destinando-se também aos pósteros de seu tempo apenas para fustigá-los, tal como Rimbaud, Piva, “um poeta com rosto de menino” então “atravessa a cidade rompendo sozinho um hímen gigantesco”.22 Dos versos de seu poema “Stenamina boat”, para além do vislumbre alegórico de um barco de stenamina (metanfetamina) – um barco também ébrio, sem amarras e com o eu lírico do poeta paulistano a bordo e à deriva por seu “Mar Morto” –, a cena em torno de uma figuração advinda dos “mictórios atômicos” prepondera, e por uma via rimbaudiana, isto é, cáustica e libertária, sim, lança-nos diante de uma situação urbana em nada edificante: nem virtuosa nem tampouco altiva. No fim das contas, uma situação urbana na qual o mundo dos pósteros encontra-se em ruínas. Trata-se de uma perspectiva voltada para os banheiros públicos, despojos da morfologia citadina desfrutados por presenças púberes, até mesmo pueris, e, por decorrência, também presenças pederásticas, oriundas das margens, relegadas ao convívio burguês. É tão somente nesse contexto que são contempladas pelo eu lírico piviano. Ao longo dessas espacialidades da ojeriza burguesa, a repugnância é franqueada, mas ainda assim, através de Paranoia, insurgem como espacialidades fruídas, arrebatadoramente fruíveis pelo poeta, por seus personagens, pelo próprio fotógrafo. A cena em torno dos “mictórios atômicos” no fundo vincula os banheiros públicos naquele tempo existentes à uma excremencialidade coletiva, compartilhada; os faz figurar como espacialidades escatológicas favoráveis à prática orgíaca. Eis, então, a dramatização das alcovas masculinas homoeróticas, espaços urbanos da transfiguração de seus frequentadores em cruéis criaturas angelicais, por sua vez, tão libidinosas quanto o eu lírico piviano ou o eu lírico lautréamontiano. Nos versos do poema “Visão de São Paulo à noite ...”,23 criaturas como estas, com os seus gestos ignóbeis, imantam espacialidades tão dissolutas e permissivas quanto as que 21 JESI, F. Op. cit., p. 64. 22 CORRÊA, T. apud PIVA, R. Op. cit., contracapa. 23 PIVA, R. Visão de São Paulo à noite – Poema antropófago sob narcótico. Op. cit., 2009, p. 66.


podemos vislumbrar em “Stenamina boat”. Aí é possível se defrontar com uma erotização excessiva, transbordante, pois há, por todos os lados, “anjos de Rilke dando o cu nos mictórios”, consolidando um “reino-vertigem glorificado”. Tais criaturas angelicais, assim como os anjos evocados na mística ambivalente do poeta húngaro Rainer Maria Rilke, são seres austeros, magestáticos, tão logo terríveis, que transitam por entre o humano e o divino, entre o visível e o invisível, e mesmo que sob um aspecto transcendental, portam na verdade uma gloriosa atribuição imanente. Ao serem reivindicados por Piva e logo por Duke Lee, tais criaturas angelicais são inseridas num overmundo escatológico, são dramatizadas em “mictórios atômicos”, em espacialidades destituídas do caráter funcional para o qual, no interior de uma lógica utilitária, os banheiros públicos indiciários teriam inicialmente sido concebidos. Como citado no poema “Praça da República dos meus sonhos”,24 tais “mictórios tomam um lugar na luz”, imantam o dia com o signo da noite, estendem-se através das ruas, pelas praças, pelos becos, corroboram opacidades, sombras diante dos holofotes homogeneizantes. “Tudo é noite na poesia de Roberto Piva”, afirmou Eliane Robert Moraes. “Tudo é noite na paisagem estranha e febril que esses poemas deixam entrever, e é também da noite que tudo nasce, fazendo a vida brotar com inesperado vigor.”25 É no ensejo dessa imantação soturnal que cada uma das ambiências emergentes em Paranoia vai paulatinamente convertendo-se em “mictórios atômicos”, metaforseando-se num “reino-vertigem glorificado”. Espacialidades que, em sua consubstanciação, expandem os espaços excremenciais da lascívia paulistana, imergem toda a cidade de São Paulo numa fulgurância anômala, descomunal, mas ainda gloriosa: uma escatológica alcova citadina. Eu vi os anjos de Sodoma escalando um monte até o céu E suas asas destruídas pelo fogo abanavam o ar da tarde Eu vi os anjos de Sodoma semeando prodígios para a criação não perder seu ritmo de harpas Eu vi os anjos de Sodoma lambendo as feridas dos que morreram sem alarde, dos suplicantes, dos suicidas e dos jovens mortos

24 Idem. Praça da República dos meus sonhos. Op. cit., p. 87. 25 MORAES, E. A cintilação da noite. In: PIVA, R. Mala na Mão & Asas pretas. São Paulo: Globo, 2006 (Obras reunidas v. 2), p. 152.


Eu vi os anjos de Sodoma crescendo com o fogo e de suas bocas saltavam medusas cegas Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e violentos aniquilando os mercadores, roubando o sono das virgens, criando palavras turbulentas Eu vi os anjos de Sodoma inventando a loucura e o arrependimento de Deus26

Assim como no livro de Gênesis, nesses versos do poema “Os anjos de Sodoma” uma cidade escatológica pode facilmente ser vislumbrada. A iniquidade aí anunciada pode ser muito bem comparada à lascívia praticada pelos habitantes de Sodoma, a mítica cidadela situada no Vale de Sidim, ao cabo, arrasada pelo Deus abraâmico. Entretanto, quanto ao desfecho, o desencadeamento do enredo paulistano atrelado à concupiscência de cada personagem toma novos rumos, às voltas com o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. A cada verso, é possível subtrair algumas dessas inovações antropófagas, a começar pelos anjos que habitam e fruem a nova Sodoma localizada no Planalto de Piratininga. Como se pode inferir, os angélicos seres alados com os quais nos defrontamos em diversos outros poemas e que inflam demograficamente essa Sodoma tropical, são como os anjos de Rilke, seres que persistem em suas terribilidades transitórias, mas por Piva sorvidos e excepcionalmente reivindicados em suas abrangências terrenas. Soberanos, não mais reconhecem nenhuma submissão, ainda que seja celestial. Abandonam a mera condição de espectadores ou de reles portadores de uma mensagem deística para, assim, tornarem-se autônomos, peremptórios. “Inventando a loucura e o arrependimento de Deus”, destronando o poder supremo da deidade semita, em Paranoia, passam a agir direto e tão somente no mundo dos homens, mormente motivados pelos néctares mundanos e mais abjetos. Em torno deles, um território urbano de violações em sua escatológica glória é delineado, donde a voga apocalíptica do Juízo Final (éschatos) torna-se iminente. Sendo assim, a tormenta a incidir sobre a cidade em que habitam não poderia vir do céu, uma vez que, em Paranoia, Deus foi por eles destronado. Segundo os termos aí em apelo, o apocalipse paulistano só poderia ser de emergência terrena, e, como tal, excremencial, consubstanciado por excrementos (skatos), inexoravelmente implicado na dimensão imanente do mundo. Uma emergência, portanto, há muito já desencadeada e não mais porvir. No tocante ao lirismo delirante de Piva, contra o que se é facilmente levado a crer ao menos de início, os anjos de Sodoma não designam exclusivamente criaturas pederásticas. Ao 26 PIVA, R. Os anjos de Sodoma. Op. cit., pp. 143-145.


contrário, o mesmo epíteto é ainda reportado às púberes e até pueris presenças luxuriosas, tão presentes quanto toda uma leva de outras presenças impudicas relatadas ou mesmo retratadas de modo alegórico. Tais personagens alados, presentificados liricamente, são, eles mesmos, os anti-heróis de Paranoia. A predisposição erótica na qual, a partir da apropriação rilkeana, esta seara angelical de criaturas pivianas vieram à tona, exorta-nos a experienciar uma “outra cidade”, como tal, duplicada, em coexistência, mas diretamente conflitante ao proeminente imaginário paulistano: a saber, o de uma cidade inflamada pelo desenvolvimentismo, aterrada sob a voga utilitária. Sob o signo da transgressão sexual tais criaturas aladas abrolham das páginas, numa afronta direta ao torrencial cânone servil em prol do trabalho, explicitamente erotizadas. A cada instante aparecem, então, transfiguradas numa espécie de “demônios terrenos”. Contudo, em hipótese alguma se trata de criaturas satânicas. Evocando aqui o antigo daimon grego, trata-se muito mais de criaturas cujo gênio excede no homem o humano, isto é, criaturas inumanas insufladas por forças demônicas e não por forças demoníacas. Refugadas pelo influxo desenvolvimentista, nos rastros da máxima bretoniana, tais criaturas instauraram na São Paulo duplicada das páginas uma “beleza convulsiva”.27 Transbordaram, assim, os limites sociais, estéticos e políticos convencionados; os mesmos limites hasteados naquilo que em nós é humano, demasiadamente humano e que, portanto, torna o homem servil a si mesmo, ou melhor, servil ao primado antrópico levado ao cúmulo: o antropismo. Entregues ao signo do gasto improdutivo de suas energias libidinosas, corroboraram potências absolutamente inoperosas. Para além da implicância do gozo ou do êxtase sexual, a fruição erótica que tais seres terrivelmente angelicais nos afiançam é justamente a transgressão dos interditos fundados na razão servil, na razão do trabalho, ou ainda, na lógica utilitária que de tais razões provém. Em suma, o que perpetram é, deveras, a corrosão produtiva e funcional da cidade a que se reportaram indiciariamente. Não por acaso, ainda hoje, essa alegórica Sodoma paulistana talvez seja a mais corrosiva das paródias já elaboradas acerca da cidade de São Paulo. É, pois, “aniquilando os mercadores” que tais criaturas vilipendiam a cidade voltada ao hedonismo da produção e do consumo de mercadorias. É, pois, “roubando o sono das virgens” que cada criatura fustiga o corpo feminino patriarcal, ou seja, aquele circunscrito tão somente entre a produção e a reprodução. Trata-se de criaturas soberanas, insubordináveis a quaisquer injunções ou ideologias que sejam. A consubstanciação das espacialidades que habitam perfaz uma cidade topológica onde a moralização dos costumes e a espetaculari27 “A beleza será CONVULSIVA, ou não será.” BRETON, A. Nadja. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naif, 2007, p. 146.


zação mercantil, ou qualquer outro amálgama entre ambos esses imperativos, ao cabo, não perpetram mais constrangimentos. Espacialidades onde podemos nos defrontar com “o contorno das coisas copulando no caos” de “Stenamina boat”,28 com a lubricidade caótica de tantos outros poemas, com a ordinariedade meio hedionda de diversas fotografias; portanto, onde podemos nos defrontar com um overmundo paulistano. Apesar das tantas deflagrações contra os mercadores, os patriarcas, os governantes; das tantas deflagrações contra os cristãos, os juízes, os patrões, os operários...; enfim, das tantas deflagrações contra todos os pósteros e, sobretudo, contra a cidade em torno de todos eles edificada, por outro lado, o que podemos ainda encontrar com densidade em Paranoia é uma paradoxal quietude, o eu lírico piviano e a visualidade dukeleeana promovendo a semeação de prodígios, prestando louvores a uma seara de anti-heróis. Há, então, a cada página, uma vasta apelação em prol daqueles socialmente amaldiçoados na cidade de São Paulo; em prol daqueles marginalizados, estigmatizados; em prol daqueles que habitaram as regiões urbanas marginalizadas, estigmatizadas. Trata-se, assim, de espacialidades através das quais os renegados anjos de Sodoma transitaram e festejaram com profusão: meninos seviciados, garotos lacerados, amigos pederastas, meninas definitivamente fantásticas, amantes chupando-se, putas, putos, angélicos vagabundos gritando, entre tantos mais. Eroticamente, tal como Maldoror, imantavam com o halo da noite tudo que os cercava. Em Paranoia, são estes anti-heróis os transfigurados e os transvalorados habitantes fidedignos da cidade de São Paulo: aqueles que a fruíram no surto soberano de suas vidas, magnetizando as ruas com suas presenças, causando frisson, consumando o valor de uso e imolando o valor de troca implicado pela modernização pudica, utilitária, desenvolvimentista; aqueles que povoaram uma cidade escatológica cuja tormenta excremencial estivera repleta de glória; aqueles, enfim, que experienciaram essa tormenta como dádiva e, sem repouso, sem reservas, habitaram as espacialidades transfiguradas e também transvaloradas sobre as quais tal tormenta incidia, fazendo delas espacialidades destinadas ao gozo, espacialidades destinadas à fruição.

28 PIVA, R. Stenamina boat. Op. cit., p. 121.



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Atualidade ao avesso. A das pessoas que tentam não se atrasar demais em suas vidas, nem antecipar demais no graal da existência partilhada. A das pessoas que a fazem no cotidiano segundo oportunidades extra, esperando melhorar a receita ditada, em engavetamentos ásperos e escorregadas oleosas entre real e imaginário. A dos observadores e comentaristas também, às vezes saídos de suas fileiras, cuja função em traduzir o que está acontecendo segundo os modos de leitura acessíveis ao maior número possível, com a ajuda de análises contrariadas pela urgência. Entre elas, jornalistas no afogo do momento, experts autoproclamados, fazedores de opinião política e sindical referenciados, blogueiros, instagrameiros, youtubers, influencers financiados. Alguns intelectuais e universitários na ressaca das frustrações em simplesmente tentar existir ao lado do sujeito que ocupa o terreno das aparências. Os sociólogos vão a reboque. Sempre com um tempo de atraso sobre o pensamento social e os atos que o agitam ou que ele coloca em prática. Alguns entre eles dizem com certeza o que poderia ser, ou o que poderia acontecer, no desejo ou no combate. Aqueles, segundo o bom desejo das ilusões esperadas, dão o tom do presente por vir em função dos muros descriptografados do passado. Uma perspectiva sem ponto de fuga. A desorientação geral é doravante em ponto de mira. Na França, desde o sábado do 17 de novembro de 2018, tal atualidade é revestida de um Colete amarelo em movimento, quiçá “em marcha”, sobre as placas de parada de urgência levando às rotatórias de uma orientação que se procura. Movimentos e paradas. Paradas sobre o curso da vida social francesa dificultada por políticas de austeridade, de restrição, mas também de reforma buscando assegurar um emparelhamento harmonioso entre legitimidade democrática e imposição do estado. Paradas momentâneas que colocam em perspectiva os relevos atormentados de diversos movimentos sociais, aparentemente inconciliáveis sobre o plano ideológico, em busca de outras vias de recursos possíveis. Às suas maneiras.


Mas, se diz, não existem mais ideologias. Nenhuma trama de subsistência utópica. Só restam ideais adaptáveis às circunvoluções do momento, no futuro perturbado de prazeres passados que o presente introduz a cada instante para melhor se desfazer dele a continuação contrariada. Só subsistem tomadas de posição radicais, resolutamente paradoxais para quem procura abarca-las ou as compreender. Uma atualidade que faz o ponto. Pesquisando a pausa e a imposição por necessidade, no oco das oportunidades encontradas. Uma atualidade que traz em modo espelho e segundo atributos reflexivos todas as contradições, os impasses, as linhas de fratura de nossa contemporaneidade. As do mundo globalizado e da singularização dos percursos humanos. A do consumismo, da pauperização, da fome, do fast-food, da solidão, do sofrimento animal, das interações digitais, da poluição, da mobilidade no Burkina Fasso, dos conflitos armados, da metropolização, da gentrificação dos centros urbanos, da relegação das vidas periféricas rumo a seus próprios confortos low-cost, da ruralidade que ocupa confortavelmente a superfície generosa de sua tranquilidade à sombra das eólicas, as quais ela denuncia os incômodos sonoros, das destruições ambientais das migrações políticas, econômicas e climáticas. Passar as boiadas e as injustiças de tratamento. Terrorismo no serviço de ideais perdidos na fervura nostálgica de uma perfeição inexistente por princípio. Ainda as da cegueira, da arrogância, do desprezo, da hipocrisia, da resposta identitária, de uma alteridade em pane, amargurada e atrofiada. Um pouco da história do mundo e das sociedades nos detalhes daquela que pertencia a cada indivíduo. Uma urgência do originário fazendo corpo, por soldagem das dores individuais. Um cotidiano de acontecimentos1 que, graças ao folhetim contínuo do storytelling midiático, desposa as singularidades egóticas de cada um, em desejo de expressão numa feitura e uma entrevista recíproca entre real e imaginário.2 Desde novembro de 2018, tudo foi dito ou quase – o “quase” sendo muitas vezes um abismo insondável – sobre o que parece não ser ainda uma comunidade instituída, ou um grupo formal bem identificado ou ainda uma entidade social organizada. Alguns sociólogos, políticos e jornalistas, formatados por formação, hábito ideológico ou fidelidade corporativista a um recorte da sociedade em classes, se prendendo ainda a modos de análise que não correspondem mais às patadas do “espírito do tempo”, desta contemporaneidade aberta a todos os possíveis a qual Edgar Morin já dava a ver a dinâmica em termos de cultura de massa desde o fim dos anos 1950. Contra todo o esperado, mas a exemplo de outras cores pelo passado, o amarelo se impôs como a tinta dominante de nossa história presente. Ela é um símbolo de vitalismo e potência, i

Ver JORON, P. L’ordinaire événementiel. Cahiers Européens de l’Imaginaire, Paris, n. 6, pp. 182-186, 2014

2

Ver MORIN, E. L’esprit du temps [1962]. Paris: Éd. De l’Aube, 2017, p. 272.


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de saber e de esperança, de lucidez e de discernimento, de contato social e de fraternidade de pleno acesso à luz, de reconhecimento de si na partilha de alguns sofrimentos infligidos ou sentidos. Mas é também uma cor de contrastes, que detém seus reversos e suas escuras nuances. Uma cor inclinada à usura, ao perecer, ao encardir quando ela está contaminada por pigmentações que não relevam de seu registro espectral original. Assim, segundo lógicas de reaproveitamento, outras cores tais que o preto, o verde, o vermelho, o escuro ocupam ainda e sempre a paleta, em emboscada, em vista de possíveis sobrecamadas. Mas antes que se aplique o amarelo, a base era branca, neutra, ou conhece já essas mesmas tonalidades em contenda? Depois das “toucas vermelhas” do povo de Bretanha em outubro de 2013,3 chegou o tempo então de uma “coletada amarela” francesa em novembro de 2018. Uma França doentia e sofrida? Debruçada por inteiro sobre suas próprias misérias? Em 6 de janeiro de 2019, ou seja quase dois meses após esse ponto de partida das ambulâncias amarelas e dos cortejos descontentes sobre os bandos de paradas de urgência, 53% dos franceses desejam ainda o prosseguimento do movimento, a despeito das violências constatadas, afim de parar a baixa contínua do poder de compra e abrir a via a imperativos de reorganização ao mesmo tempo econômicos, políticos, culturais e sociais. Um estrondo faccioso no grande desempacotamento do mal-estar contemporâneo francês. A imagem do movimento, compartilhada na aldeia global4 sob forma de clichês escornados porque já manipulados, é a de uma França redobrada sobre si mesma e ranzinza, querendo-se então impermeável às mutações do mundo às quais teriam podido, entretanto, dar acesso às rotatórias da alteridade cultural. Uma França em estado de sítio pela imprensa escrita internacional transforma os contornos em situação de barricadas, de agitação e de degradações diversas, desmoronando os atrativos inegáveis mas também os superestimados e artificiais da primeira destinação turística mundial.5 3

O movimento Toucas vermelhas (Bonnets Rouges), que surgiu na Bretanha durante as manifestações organizadas nos sábados 14, 21 e 28 de outubro de 2013, foi constituído em resposta à lei sobre a cobrança ecológica em veículos pesados de mercadorias e a instalação de pórticos “eco-taxa”, mas também em reacção aos diversos planos sociais do sector agroalimentar, nomeadamente o fechamento de matadouros e a reestruturação destes com utilização de trabalhadores romenos não sujeitos à legislação francesa sobre a remuneração mínima (SMIC). O slogan dos Toucas vermelhas: “Viva, decida, trabalhe na Bretanha” ecoa o apelo de sindicalistas, dirigentes empresariais, políticos locais, intelectuais e cidadãos locais denunciando o excesso de regulamentações nacionais e europeias que, segundo eles, invaliabiliza o dinamismo econômico, social e político da entidade regional bretã, num contexto de reivindicações culturais e identitárias.

4

Ver MCLUHAN, M. La Galaxie Gutemberg. Paris: Gallimard, 1977.

5

Ver-<https://www.lemonde.fr/societe/article/2018/12/09/gilets-jaunes-pour-la-presse-etrangere-le-deploiement-policier-a-evite-un-nouvel-armageddon_5394744_3224.html>.


Trata-se aí de um instantâneo que fixa os limites de nossa suficiência, culturalmente egocêntrico em prática mas generosa em ideais. Suficiência que consiste em sempre querer negar nossa própria violência para relega-la para além de nossas fronteiras reais, diplomáticas ou culturais. Generosidade que trabalha para minar o que não poderia ser ainda ou jamais a França, segundo os cânones da esmola distribuível e somente aos virtuosos ou assimiláveis. Isso lembra, estranhamente, mas também sem surpresa memorial para quem quer dar crédito aos avisos do passado, os comentários afiados da imprensa internacional na ocasião dos eventos insurrecionais de 2005.6 Mas é também a imagem de um “povo” que tenta retomar seu destino nas mãos, como bom herdeiro dos ideais das Luzes e da Revolução dos quais resta, apesar de tudo, como o porta-bandeira, legítimo aos olhos do mundo. Nos sobressaltos de humor ele permanece assim “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. E se ele bate em prol de si mesmo, ele o faz também por aqueles ideais erguidos bem alto, segundo ele, afim de clarear esse mesmo mundo. Povo responsável, colocando em adequação o que ele faz para si mesmo e o que ele impõe aos outros, insidiosamente, com a condição de que isso não lhe sirva. Ou que os outros, formatados mas emancipados, em busca de satisfações ao menos similares, não se apoiem no serviço, sobre os pratos já servidos que deram satisfação aos primeiros beneficiários. E se ele combate ainda para seu próprio ventre, até quando saciado, eis uma prova de que ele pensa que ela serve aos interesses de todos os povos. O círculo se fecha. Toda suspeita de egoísmo ou de etnocentrismo é assim descartada e ao mesmo tempo, todo resto de culpabilidade é evacuado sem soma nas latrinas da História. Ao examinar esse movimento dos Coletes amarelos, muitas interrogações vêm à luz, com seu quinhão de respostas provisórias, de certezas arranjadas e de desordem: Emanação do “povo” contra seus representantes? Exercício crítico da Sociedade contra o Estado?7 Anulação de qualquer autoridade de estado em represálias na zombaria dos corpos intermediários políticos e sindicais pelo suserano presidencial? Novos usos da democracia, correlativos a uma redefinição do político e de suas concepções? O “tudo e qualquer coisa” ao sabor da opinião pública contra consultas cidadãs armadas? Liberdade de consciência política contra obrigação de voto cidadão? Ponto de não retorno, para uma reafirmação de nossos arcaísmos fundadores? No desvio de alguns salmos de esperança? Querelas em torno do uso da violência legítima?8 Vírgulas sociais e culturais, pausas julgadas necessárias na temporalidade acelerada de nossa pluralidade mundial? 6

Ver JORON, P. La communication sacrificielle. Les Cahiers de l’IRSA, Montpellier, n. 6, pp. 245-261, 2006.

7

Ver CLASTRES, P. La Société contre l’État. Paris: Les Éditions de Minuit, 1974.

8

Ver SOREL, G. Réflexions sur la violence [1906]. Paris-Genève: Ressources Slatkine, 1972.


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Tantas reivindicações quanto Coletes amarelos, tantas incertezas quanto esperanças. Uma louca multidão de lugares comuns sobre a reprodução conquistadora de um passado luxuriante limitado apenas aos que contêm dominação cultural, política e econômica. Tanta heterogeneidade quanto semblante de homogeneidade, no grosso trabalho de desconstruções sucessivas. Tantas fraternidades quanto rotatórias. Tantas lamentações também sobre sofrimentos circunstanciados no que concerne à exclusão do direito ao bem estar. Frequentemente, também, numerosas impossibilidades culturais e contextuais a olhar de frente a miséria do mundo que, ela, não tem mais lágrimas para irrigar sua dor. A França aberta sobre os ditos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, em desejos carregados de humanismo universalizante, eles mesmos contrariados por baforadas de etnocentrismo descomplexificado, escuro sob vagas de humanidade por excesso.9 Esses são reflexos de sobrevivência. Quem são os Coletes amarelos? O que eles representam? O que querem? De onde vêm? Para onde vão? Sua aparente diversidade é sinônimo de unidade? Todas essas questões e muitas outras agitam os debates sociais, políticos, econômicos, midiáticos desde o sábado, 17 de novembro de 2018, Ato I desta mobilização sem precedentes em vários sentidos. Com certeza armar a guarda, de modo algum uma vanguarda, mas sem dúvida um novo agenciamento social por desguarda daqueles que se surpreendem ainda. Se compararmos a outras formas de contestação que tenham acontecido no passado, o movimento dos Coletes amarelos da a ver especificidades sociológicas cuja medida e a análise convidam entretanto a algumas prudências. Se as comparações dão o que pensar, elas não são senão ferramentas de formatação do que procuramos compreender ou do que não parece ainda ter significado. O movimento dos Coletes amarelos é inédito, um novo prato de resistência cujos ingredientes são entretanto preexistentes, históricos, saídos do passado, impregnando nossa contemporaneidade. O que muda em relação a outros acontecimentos da mesma ordem, é o piscar de olhos, a maneira de fazer, as práticas que colocam em funcionamento uma certa visão da vida e do mundo, mas igualmente uma conjunção singular de fatos, atores, aspirações e de ressentimentos. Um ar do tempo no qual se combina cultura de massa, novas tecnologias, trocas digitais e mobilidade, no oco de uma fermentação íntima entre o real e o imaginário. Um outro contexto no qual “a inteligência coletiva” é posta para contribuir para que todos os indivíduos se sintam envolvidos com a “causa” a defender: domínio das redes sociais, imersão nas teo9

JORON, P. La sudation du quotidien: ou les pores du réel médiatique. Sociétés, Paris, n. 114, pp. 60-61, 2011.


rias da conspiração, reapropriação da visibilidade do colete amarelo, desvio e transformação da rotatória em lugar de reunião, de troca e de reivindicação. Mais ainda, nesse movimento, constata-se que a tomada de controle do presente prima sobre um futuro despossuído e nostálgico, de um passado de abundância, sobre um futuro amputado de suas muletas feitas de raízes, sobre um futuro sem horizonte senão o da restrição imposta da limitação, do uso exagerado das regras, de uma alienação de si mesmo que a dos outros, compartilhada, permite revelar, quiçá sublimar. Única solução de fortuna: reinvestir o presente a golpes de dores comuns, na efervescência festiva das rotatórias ou a violência catártica das passeatas, luxo peremptório dos “zé-ninguéns” [gens de peu]10 que se rasuram para não serem rasuradas numa completa ignorância de sua existência e desses outros melhor loteados talvez que temem sofrer o mesmo destino.

Quem são os Coletes amarelos? A prudência é colocar em contorno a problemática em movimento. O que quer dizer também certezas instantâneas em alguns lugares da espiral em atos. Foi possível dizer que eles constituíam uma comunidade informe e disparatada. Mas as poeiras aglomeradas, sob as camadas de cola populista, inauguram uma nova matéria social. Uma cola julgada de má qualidade pelos profissionais do link, que faz e desfaz o conjunto segundo as tensões exercidas. Mas os estratos compactados e entretanto disformes estão lá, debaixo do nariz daqueles que não querem ver. Paremos11 um instante sobre uma curta nota relativa ao adjetivo “informe” publicada por Georges Bataille no número 7 da revista Documents em dezembro de 1929: assim, um dicionário deveria dizer não o sentido, mas “a tarefa das palavras”, seu trabalho de enclausuramento consistindo ao mesmo tempo em incluir e em evacuar. Essa observação se aplica tanto mais ao termo “informe”, colocando-o em espaços de desolação heurística sem saída possível. Para a comunidade dos acadêmicos, o universo só tem sentido sob a condição de sua formatação em corte regulado: “trata-se de dar uma sobrecasaca ao que existe”.12 Designar o informe volta então a apontar com o dedo a desclassificação, a significar o banimento, a desclassificar 10 Ver SANSOT, P. Les gens de peu. Paris: PUF, 2009. 11

Ver JORON, P. Mise en garde… Redingote, gilet jaune et gros orteil, in Sociétés, Paris, n. 141, pp. 5-8, 2018.

12 BATAILLE, G. Informe. In Œuvres complètes I. Paris: Gallimard, 1970, p. 217.


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o que não pertence ao universo do conhecido, do concebível e do aceitável segundo os cânones culturais do grupo de referência. Mas o informe não é nada mais que um pré-requisito à redução intelectual que procura estrutura-lo e formata-lo. Se fosse preciso reduzi-lo a meras categorias sociais, constatar-se-ia então que os Coletes amarelos provêm amplamente de meios pauperizados ou abandonados a um sentimento de frustração e de amargura, todas as gerações confundidas, tendo por referência ou modelo o sistema de solidariedade nacional francês instaurado no pós segunda guerra mundial, no período entre 1950 e 1970 e de poeiras chamado “os trinta gloriosos”. Os trinta seguintes, aqueles que Onofrio Romano qualifica com razão de: “sem glória”,13 viveram sobre os restos de uma vida a crédito. Eles se conformaram ao colarinho desalinhado da globalização dos bens, dos serviços, dos indivíduos, das ideias, da informação, assim como do jugo engravatado, sob controle aparente, de uma descolonização entretanto necessária, a qual permanecia não assumida tanto pelos mestres de outrora (os provenientes dos países do primeiro mundo) quanto pelos novos destinatários políticos e econômicos das entidades nacionais emergentes e liberadas, que reproduziram o jogo trágico de um gozo reservado, pessoal e clânico. Um humanismo que por norma empresta o flanco a uma humanidade por excesso, a qual pega esse mesmo ideal com alicate. Mas o que são então os Coletes amarelos? Pode-se estabelecer um retrato de conjunto? Têm eles uma identidade comum? Segundo um estudo publicado no dia 20 de março de 2019 por Elabe e pelo Instituto Montaigne, intitulado “A França em pedaços”,14 aqueles que se reivindicam “Coletes amarelos” estão majoritariamente (57%) em situação de emprego (26% trabalhadores braçais e 21% funcionários), mas também aposentados (21%), os desempregados só representam 11% entre eles. Politicamente eles votaram no primeiro turno da eleição presidencial em 2017 em Marine Le Pen (29%), Jean-Luc Mélanchon (17%), representantes de partidos políticos qualificados de “populistas”, enquanto que 27% deles votaram em branco ou se abstiveram, ou são não-inscritos nas listas eleitorais. Para tanto, essas características se submetem a algumas flutuações ao longo do movimento. Existem, com efeito, para cada grupo social envolvido, identidades múltiplas, identificações de circunstância, formas de “sinceridades sucessivas”15 e arranjos com a verdade do momento. 13

ROMANO, O. Les Trente sans gloire vues par l’œil de Bataille. Sociétés, Paris, n. 141, pp. 87-97, 2018.

14

Ver <https://elabe.fr/wp-content/uploads/2019/03/note-gilets-jaunes_vf_20-03.pdf>. Pesquisa realizada entre 14 de dezembro de 2018 e 8 de janeiro de 2019 com 10.010 pessoas espalhadas pelo território francês em 12 subamostras regionais de 800 indivíduos com 18 anos ou mais (1.200 em Ile-de-France).

15

MAFFESOLI, M. Au creux des apparences. Pour une éthique de l’esthétique. Paris: Plon, 1990, p. 57.


O retrato que podemos assim estabelecer desse movimento é uma sucessão de clichês tomados ao longo de seu desdobramento. Se desde o início da mobilização podia-se constatar uma proporção não negligenciável de comerciantes e de pequenos empreendedores, as violências de dezembro de 2018 em Paris e em algumas cidades do interior rapidamente dissiparam os ardores. Correlativamente, elementos de ultrapolitizados e as práticas do Black bloc se fizeram parte do banquete, formando um enxame dos fogos de radicalização esporádicas enquanto as organizações políticas e sindicais, transbordadas pelo repentino e pelo pipocar das motivações amarelas, permaneciam partilhadas entre hesitações, surpresas e inclinações à recuperação.

O movimento se configurou sobre as rotatórias no dia 17 de novembro de 2018 após o anúncio do aumento do preço dos combustíveis (Taxa Interior de Consumo sobre os Produtos Energéticos, TICPE) e principalmente do diesel, e da diminuição da velocidade autorizada para 80 km/h sobre a rede rodoviária secundária, a mais densa mas também a mais abandonada pelo Estado e pelas concessões territoriais em termos de investimentos. Os franceses das zonas rurais e periurbanas têm cada vez maior dificuldade de financiar seus deslocamentos. O relatório exibido e escandido era o da baixa contínua do poder de compra, da desigualdade fiscal, da usura do modelo francês de assistência social (saúde, prestações familiares e de solidariedade, seguro desemprego), da inacessibilidade econômica de certos bens e serviços de necessidade, mas também de lazeres, prazeres e sonhos consumistas. A título de comparação, apenas 7 países dos 28 que formam a União Europeia têm um salário mínimo oficial que ultrapasse os mil euros. Na França, em primeiro de janeiro de 2019, o montante do SMIC horário bruto era de 10,03 euros (7,72 euros líquidos) para 35 horas semanais de trabalho e 151,57 horas mensais. Se ele se dedicar a fazer cumprir o programa pelo qual foi eleito em 2017, Emmanuel Macron não se tornará menos o símbolo jupiteriano de uma imposição do alto, julgada desdenhosa na prática, presa a escolhas e ajustamentos visando opções muito necessárias mas aparentemente incompatíveis entre elas na urgência de sua realização em condicional. Mas haveria, em seu favor, a não escolha moral, diante das extremidades alarmistas e Thomon, CC BY-SA 4.0. Ver <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0>, via Wikimedia Commons. Cropada, aplicado tons de cinza, + brilho e contraste>.


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populistas da direita dura, assim como nas circunvoluções interessadas mas cansadas da direita mole. Transformação da manobra política, tergiversante por definição, em concretização do desprezo por aqueles que se supuseram não saber ou não mais serem indispensáveis na mediação (os corpos intermediários). Erro. Os pensadores acertaram em cheio os reflexivos. Tudo é questão de método. Em suma, o Ato 1 não é senão a emanação contrariada de um Ato Zero instalado há mais de trinta anos, o de uma “fratura social” já anunciada por Jacques Chirac em 17 de fevereiro de 1995 na ocasião de seu discurso fundador na eleição presidencial. Se as motivações iniciais dos Coletes amarelos eram essencialmente de ordem econômica, outras reivindicações políticas e sociais emergiram. Ao longo do movimento de protesto, no avanço dos “sábados amarelos” em Atos, o debate sobre a consulta direta dos franceses se impôs. Ele visava os modos de produção das proposições governamentais, entre os incentivos dados pela presidência e o papel representado pela Assembleia Nacional e o Senado, as duas câmaras do Parlamento. É todo o edifício da democracia representativa que era recolocado em questão, com o chamado à instauração de um Referendo de Iniciativa cidadã (RIC) para toda questão que visasse ao mesmo tempo as grandes linhas de orientação política e os aspectos mais concretos da vida cotidiana dos franceses. Afim de contrapor essa exigência, dando a impressão de satisfazê-la em parte, o governo engajará na urgência, por iniciativa do Presidente da República, um Grande Debate Nacional16 entre dezembro de 2018 e abril de 2019 sobre quatro temas: a fiscalidade e as despesas públicas, a organização do Estado dos serviços públicos, a transição ecológica, a democracia e a cidadania. Conforme o que foi avançado mais acima, as motivações são diversas, heterogêneas e necessariamente contraditórias. Como conciliar com efeito a redução demandada do preço dos combustíveis e da fiscalidade com os imperativos de transição ecológica e os do financiamento dos serviços públicos, também exigidos? Como querer segurança e assistência em primeira mão abrindo mão de toda espécie de autoridade organizacional nesse domínio (político, judiciário, social, policial, militar)? Todas essas injunções, legítimas, falam a cada um. Mas elas questionam ao mesmo tempo a razão de ser do elo social, a contribuição de cada indivíduo aos assuntos comuns, ou então o sentido que poder-se-ia ainda acordar a uma linha real de partilha entre sociedade e comunidade, entre global e local, sem se referir necessariamente a princípios estritos de demarcação. 16 Ver <https://www.gouvernement.fr/le-grand-debat-national>.


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Desvio das funções do colete técnico de alta visibilidade e de segurança, equipamento de proteção individual (EPI). Equipe de parada de urgência, banimento, arrabaldes, periferia, ruralidade. Atrair a atenção, não mais sobre os riscos de percussão (percutagem) mas a onipresença do acidente já em andamento, já em vias de, já visível. Continuando a dar a ver a urgência, o pane ou o acidente, numa exposição que alerta as consciências, o Colete amarelo reforçou essas funções iniciais, tornando-se uma espécie de exoesqueleto por desvio contra os golpes da vida, o evitamento de uma sobrevivência imposta e a reconquista de um orgulho de chacota. O Colete amarelo é o collant da França, um exoesqueleto de assistência para emprego mas que se quer “insurgência” ou insurreição por urgência, com motivo de sua pena ao trabalho ou em ausência desse último e de suas reivindicações a um pleno acesso às recreações de toda ordem. Uma demanda de assistência à existência, e não à sobrevida.

Desvio das funções circulatórias da rotatória, cujas atribuições iniciais de fluidez e de distribuição da passagem são contornadas para fazer-se dela um lugar de parada, quiçá de trombose, mas também de visualização, de discussão, de fraternidade, de ressentimento, de troca, de confrontação, de festividade, de drama igualmente. Em suma, uma nova praça pública, efêmera, feita dia. Uma reapropriação dos atributos físicos da ágora, cuja eficácia midiática é também nutrida e amplificada pelos fóruns sobre redes sociais. Escapamento da rotatória: reapropriação comunitária de um investimento público decenal em torno a obras talvez úteis por necessidade mais tão fúteis por desmultiplicação, tornado signo ostentatório da ação pública e municipal. Girar em círculos, uma dinâmica que louva a estática na evacuação do menos mal. Como precisa Michel Maffesoli a respeito do investimento das rotatórias pelos Coletes amarelos, “o lugar feito ligar”17 num “estar junto sem uso”18 fazendo forma social. Contra toda expectativa, um fim de não receber ar17

Ver-<https://www.atlantico.fr/decryptage/3562131/gilets-jaunes-en-secession--les-elites-desemparees-face-a-l-extreme-peuple-michel-maffesoli>.

18 MAFFESOLI, M. Le temps des tribus. Le déclin de l’individualisme dans les sociétés de masse. Paris: Éd. Méridiens Klincksieck, 1988, p. 101.


risca se impor diante de uma revolução anunciada no seu estourar. Os atores são plurais e serão necessariamente surpreendidos pelos seus inversos.

20 de abril de 2019: 23º Ato de movimento semanal. Uma parada sobre o tempo, uma reconquista da duração pela afirmação de um presente perpétuo, que prima sobre um futuro sem horizonte, senão o de uma restrição imposta, da limitação, da regulamentação ultrajante, de uma alienação de si mesmo do que a dos outros, partilha, permite revelar. Um retorno à duração contra a aceleração do tempo (instantaneidade) e a promiscuidade dos espaços (simultaneidade).19

A pregnância do poder vindo de baixo balança o poder de cima, colocando frente a frente as galerias subterrâneas da invisibilidade social e os meandros pegajosos do celeste. O que significa também um desafio às instituições e corpos intermediários, de natureza política, associativa, sindical, intelectual e jornalística, substituídos pelos fóruns de internet, por essa “verdadeira” mídia das aspirações multiformes carregada por todo agrupamento humano de circunstância. A questão aqui é de transparência, de verdade, mas também de conspiração. Apoiando-se sobre análises de Jean Baudrillard, o filósofo Byung-Chul Han afirma que “a hiperinformação e a hipercomunicação testemunham precisamente a falta de verdade, melhor, a falta de ser. Mais informação, mais comunicação não eliminam a falta de foco fundamental do todo. Elas o agravam, ao contrário”.20 Assim, um acúmulo ou um amontoado de informações numa positividade da transparência a qualquer preço não desemboca sobre uma verdade constituída, uma vez que a direção a baliza, uma vez que a direção, a marcação e, portanto, o significado faltam nesta orgia informacional e comunicacional. Tudo o que resta é uma espécie de “sinceridade sucessiva”, outra forma de dizer a saída de verdades adaptativas e arranjos morais contextuais. Dizer tudo e seu contrário para desfazer o que existe. Mostrar tudo e qualquer coisa segundo conexões criadas de todo tipo, para sustentar tal ou qual tese no ar do tempo. Com Byung-Chul Han, poder-se-ia admitir a ideia de que “a sociedade da transparência, como 19 Ver BAUMAN, Z. La vie liquide. Paris: Ed. Arthème Fayard, , 2013. 20 HAN, B.-C. La société de transparence. Tradução de Olivier Mannoni Paris: PUF, 2017, pp. 19-20.


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sociedade da revelação e do desnudamento, trabalha contra toda forma de máscara, contra a aparência”,21 mas isso seria sem levar em conta o que caracteriza a persona, dito de outro modo, o exercício cotidiano da duplicidade. Afinal, uma exibição de transparência é apenas uma forma de aparência entre muitas, que muda constantemente de acordo com a regra a qual se transforma permanentemente sob o domínio de um nada sem fundo nem paredes. Para retomar aqui uma bela análise de Juremir Machado da Silva, nossas sociedades tornadas “midiocráticas”, anunciam a era da hiperespetacularidade.22 Facebook, Twitter e Instagram são as plataformas digitais de uma representação heroica autocentrada trazida pelos inoculadores interessados da coleteamarelagem (os lançadores de alertas e de fake News) sobre o campo de batalha dos sábados eternos, enquanto seus seguidores, em busca de identificação e de reconhecimento repudiam toda espécie de representação política, sindical, midiática. Os franceses dizem não quererem se submeter pelo alto às diretivas de interesse geral e desejar impor por baixo suas decisões que se pareçam com seu cotidiano, mas eles aceitam, entretanto, se deixar levar pelas entidades abstratas (o Estado providência, a Ajuda social, as Concessões territoriais, o Seguro doença, as Subvenções dedicadas ao setor privado, Deus, o Destino, a História, etc.) quando lhes são proveitosas e quando eles não têm a impressão de estarem sendo manobrados contra suas vontades. O plot institucional e coletivo, a baliza ou o poste de amarração, o que canaliza o conjunto social e o amarra à segurança, se torna então objeto de complô difratado, atomizado, mas partilhável à vontade nas redes sociais. O poste, o que dá o marco e, portanto, a medida em relação a um estado situado e datado, provoca doravante uma insubordinação a toda espécie de diretiva e, seguramente, a uma direção decidida por representação nacional.

O gozo do mal estar partilhado, uma modalidade dessa alegria trágica23 que põe à prova os indivíduos sem apego firme na duração (política, moral, sindical, de classe) senão aquela, nova, do oportunismo comunitário entre transparência de visualização, radicalidade de 21 Ibidem, p. 65. 22 Ver SILVA, J. M. A sociedade midiocre. Passagem ao hiperespetacular. Porto Alegre: Sulina, 2013. 23 Ver SUSCA, V. Joie tragique. Paris: Éd. CNRS, 2011.


atração-repulsão e liberdade de teclado ou de imagem, descobrindo os limbos utilitaristas do complô generalizado. Um gozo relevando o compartilhamento das dificuldades experimentadas sobre um mundo etnocêntrico, das zonas de conforto afirmadas sobre um modo egoísta, do desejo de mudança política expresso sobre um modo imobilista, das afirmações radicais destinadas ao conjunto social sobre um modo calmo e mole para o expedidor. Nessas bagunças, ainda é questão de classes sociais. Nos fatos, todos os atores sociais, quaisquer que sejam suas condições respectivas, se convidam a chorar sobre a sopa. Existe aí uma estética do derrisório, do ordinário e do comum, tomando os adornos do essencial. Há aí, ainda, uma conquista festiva que faz obra de identificação em falta. A sublevação festeja sobre os escombros, os destroços e as cinzas que ele descobre, a força de cegamentos conformistas e repetidos, para tentar acessar a praia sob as calçadas. Há enfim um estar-juntos de contaminação na afronta. O que faz questão, é que esse movimento nacional de contestação mas também de proposição não tenham ainda podido se desdobrar em outras partes do mundo, sobre esse terreno do materialismo existencial, enquanto ele manifesta todas as urgências básicas: as da pauperização, da fome, da solidão, das trocas digitais em frouxidão, da falta de recursos hídricos, da poluição, das guerras fratricidas, da metropolização, das despesas energéticas, das migrações climáticas, econômicas e políticas; também aquela da cegueira, da arrogância, do desprezo, da burguesia repisada e amargurada, da réplica identitária, de uma identidade em pane e atrofiada. Constata-se, entretanto, em menor escala uma contaminação do processo (coletes amarelos) com as canetas vermelhas (mal estar na educação nacional), as sirenes azuis (mal estar do policiais), mas também os cachecóis vermelhos e os coletes azuis que exprimem um sentimento de saturação quanto aos efeitos do movimento dos coletes amarelos no tempo. Por contaminação, toda dobra singular inventa a possibilidade de um rasgo de conjunto. Subsiste, então, a acomodação dos restos, quer dizer, o despedaçamento das poses posturais desatualizadas (físicas, éticas, intelectuais) seguida de sua remontagem ideológica com obsolescência programada, cujo convite à desmontagem e ao desmantelamento dos conjuntos precedentes encerra e confirma uma manutenção do que já está perdido e daqueles que não adquiriram nunca senão por condicional. A heterogeneidade dos Coletes amarelos se inscreve no quadro de uma sociedade de circunstância no seio da qual a estalagem das singularidades trabalha nos imperativos do pertencimento, tão pouco afirmado que seja, salvo ao que esta adesão transitória se faça sob o manto do anonimato: o estilhaçado se quer unidade enquanto o fragmento se inventa em to-


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talidade. Enquanto marcador vestuário, o colete amarelo está à prova da moda na qual ele se arrisca a percorrer a efemeridade, revestindo ao mesmo tempo uma tendência à uniformização e uma inclinação à distinção.24 Talvez se trate aqui, nos pontapés do coleteamarelismo ambiente, de um placebo coletivo de liberdade original, supostamente perdido e lamentado, perdidamente ocupado de qualquer proeza sobre a humanidade, que nossos atos tentam estrangular. E isso, no mesmo momento que a liberdade não pode existir senão pelas escolhas de nossa única consciência que limita, entretanto, a expressão real ao contato da alteridade, deste outro que permite a manutenção de cada um em proporções razoáveis, pelo menos aceitáveis. Mas em definitivo, desejamos realmente sermos livres? Não inventamos deus para não dobrarmos demais sob o peso da liberdade? Sob o patrocínio de um Deus sustentado por nossas crenças nele, não organizamos nossos desejos de culpabilidade destruindo ao mesmo tempo nossos desejos de liberdade?25 Surgimento de uma deidade exemplar, ao motivo de nossos esforços para uma verticalidade conquistadora em escala humana e para uma horizontalidade social atrasada. Culpados, entretanto, aprisionados a uma atração ofuscante para uma inocência sem manchas mas já comprometida pelas errâncias de nossas pesquisas. Nossas conquistas são à medida de nossas falhas. E se o homem, de tanto inventar Deus, se contentasse consigo mesmo para conter sua liberdade, ele não se sentiria menos culpado a seus próprios olhos de havê-lo feito.

24 Ver SIMMEL, G. La tragédie de la culture. Paris: Rivages, 1988, p. 91. JORON, P. Georg Simmel et la sociologie du futile. Dans les anfractuosités du social et de l’intime… EPISTÉMÈ, Séoul, v. 20, pp. 46-67, dez. 2018. 25 Ver HAN, B.-C. Psychopolitique. Le néolibéralisme et les nouvelles techniques du pouvoir. Tradução de Olivier Cossé. Paris: Circé, 2016, p. 17.



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I A peça se impõe como coisa una, indivisa, autossuficiente em sua simplicidade. O aspecto ferruginoso da superfície reforça a impressão de natureza elementar, mineral. Se a superfície convida ao toque – palmas abertas sobre seus poros –, também o tímpano procura alinhar-se à sua vibração de fato imperceptível, mas tão real quanto a sinfonia geológica de que ela participa e que a tudo envolve. Como certas formações naturais, também esta peça é generosa com toda a vida ao redor: um pássaro pousa em seu topo, um cão dorme sob a sua sombra. De fato, sua imponência não nos oprime, como tampouco esta árvore ou a serra em que ela se encontra. A partir dela, desdobraríamos antes uma praça de convívio do que um espaço de culto. Em sua unidade, no entanto, a peça deixa entrever um acontecimento: uma parte se destaca do todo e se abre ao espaço que, a um só tempo, ela fende e cria. A partir desse espaço, os rastros do acontecimento tornam-se percorríveis na fibra mesma da matéria: o corte e a dobra, exatos, e também ele mesmo, o próprio espaço. O olho é então impelido a retraçar retrospectivamente o curso do acontecimento, atualizá-lo, torná-lo outra vez ato. Estática, una, indivisa, a peça se move.


II Se a escultura de Amilcar de Castro é simples, sua simplicidade é da ordem do paradoxo. Pela força da operação de corte e dobra no plano, uma parte parece se destacar do todo inteiriço e se outorgar uma inequívoca autonomia, sem a qual não haveria o acontecimento fundamental que, a rigor, se confunde com a própria escultura. Pois é esse acontecimento que impulsiona o todo como que para fora de si, à terceira dimensão, ao mundo. É ele, enfim, que converte o plano em singularidade escultórica. No entanto, a parte só existe enquanto parte estruturante do todo, sem o qual ela, a parte, sequer haveria. Esse jogo dialético aparentemente simples está inscrito no coração da linguagem escultórica de Amilcar de Castro. Sua aparente simplicidade é a fonte da enorme produtividade de sua linguagem, que se desdobrou durante meio século em centenas de peças irmãs, mas sempre singulares, irrepetidas. Quanto mais o olho é capaz de sustentar essa tensão sem dissolvê-la em um dos polos, tanto mais ele adentrará o elemento próprio à poética de Amilcar. Trata-se aí de um trânsito contínuo entre consistência e dispersão, unidade e diferença, que aciona um tipo de pensamento relacional cambiante, não binário, anticartesiano, ao mesmo tempo lúdico e rigoroso. E, bem entendido, esse jogo dialético nada tem de abstrato: ele é posto em movimento pela própria matéria, pela tensão entre aderência e resistência, maleabilidade e insubordinação que a matéria apresenta a cada dobra.

III O desenvolvimento da linguagem escultórica de Amilcar de Castro corresponde à tentativa de forçar o vocabulário construtivo a revelar imanentemente essa tensão. Sabe-se que Amilcar frequentou a Escola do Parque, em Belo Horizonte, e estudou com Alberto da Veiga Guignard e Franz Weissmann. Algumas de suas primeiras obras, embora ainda indecisas do ponto de vista da constituição da linguagem, já deixam entrever uma clara inspiração geométrica; Weissmann, com efeito, passou a praticar a linguagem construtiva já em 1950. Mas é o contato com a célebre Unidade tripartida, de Max Bill, que impactara Amilcar e boa parte dos seus companheiros de geração por ocasião da I Bienal de São Paulo, que leva o artista a incorporar definitivamente a linguagem construtiva. Sua primeira escultura composta na nova linguagem é Estrela, de 1952, da qual, segundo seu próprio depoimento já nos anos 2000,


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“seguiram todas as outras”, como se ele viesse há meio século “fazendo a mesma escultura”.1 Entretanto, desde cedo sua obra tensiona os princípios do construtivismo mais ortodoxo representado por Bill. Se, no construtivismo ortodoxo, a formalização matemática tende a se autonomizar como princípio supremo de composição da obra, algo na escultura de Amilcar parece impedir essa autonomização. Ao ideal de uma formalização pura, em que as formas como que pairam desimpedidas em um espaço ideal indiferenciado, a escultura de Amilcar contrapõe uma materialidade irredutível que desbanca as pretensões de pura idealidade da forma. Sua escultura radica o construtivismo no real, lança-o down to earth, ao aqui-e-agora do mundo material e humano. As formas revelam-se então não mais como prontas desde sempre, mas como dependentes de um processo, de um complexo vir-a-ser cujos agentes são o tempo, a história, o trabalho humano sobre a matéria. Nisso, a obra de Amilcar adquire um componente marcadamente crítico. O que é prodigioso, no entanto, é que essa operação é realizada sem perda alguma de constrição e consistência formal, sem excesso ou sobra de material em relação à formalização, sem fragilização de sua intensidade formal. As formas são processualizadas, mas não desestabilizadas. Ao contrário, elas parecem ser depositárias de enorme energia.

IV Como já foi amplamente documentado pela historiografia, a ênfase na processualidade e na relacionalidade das formas é um elemento que distingue os construtivismos “críticos” – como, paradigmaticamente, a arte neoconcreta – dos construtivismos de matiz mais ortodoxa. Por mais esquemática que seja essa linha de demarcação, é de fato inegável que a escultura de Amilcar apresenta certa continuidade estética com algumas experiências de seus colegas do movimento neoconcreto, dos Bichos, de Lygia Clark, ao poema/processo, de Wlademir Dias Pino. À diferença dessas experiências, que via de regra convocam o fruidor a tornar-se participante ativo no acontecimento estético e só se realizam plenamente com essa participação, o que caracteriza a escultura de Amilcar é a sua austeridade: em certo sentido, suas obras como que se bastam a si mesmas, com um sentido de monumentalidade em geral estranho ao trabalho de seus colegas neoconcretos. Aí reside, inclusive, sua inegável vocação cívica. Sem o recurso à participação de uma força externa que possa como que “ati1

INSTITUTO Amilcar de Castro. Amilcar de Castro: A poética do ferro. Ver <https://www.youtube.com/watch?v=WO1OzWYFLps> .


var” a obra, sua operação crítica fundamental é realizada autonomamente desde o interior da linguagem construtiva. É a própria formalização que é impactada desde dentro, como que forçada a reconhecer imanentemente o primado do que lhe é exterior.

V Essa operação que Amilcar impõe à linguagem construtiva é possível sobretudo em função da técnica de corte e dobra efetuada a partir do plano, que o artista aperfeiçoa a ponto de reinventá-la. À diferença da escultura tradicional, cujo princípio fundamental consiste na subtração da matéria de um todo inteiriço até que ela revele a forma escultórica, Amilcar já parte do plano – uma folha de ferro lisa – compreendido como o grau zero do espaço escultórico. Nisso, ele se contrapõe inclusive a Weissmann e ao basco Jorge Oteiza, com os quais possui afinidades eletivas e que, em que pese a modernidade de sua linguagem, também praticaram fundamentalmente uma escultura de subtração. Praticando uma escultura que poderíamos denominar pós-subtrativa, Amilcar já parte do término de um longo processo de subtração da matéria pela história da escultura. Sua pesquisa formal torna-se com isso, como notou com razão Evandro Salles, uma investigação sobre a origem da escultura a partir do plano; diríamos, sobre o vir-a-ser da forma a partir do vazio: “Em Amilcar, o plano, lugar onde habita o vazio, é prenhe de todo o movimento no e do mundo; em Oteiza, talvez o plano seja o limite para toda a interiorização e subjetivação do sentimento estético. Filosoficamente, a filiação do trabalho de Amilcar é malevichiana: ele busca a criação de um novo mundo”.2

VI É crucial para a poética de Amilcar o fato de que ele parta do plano como grau zero do espaço escultórico. Com efeito, o trato com a matéria – e consequentemente com o espaço – que essa escultura promove é inteiramente distinto de toda escultura tradicional. Em primeiro lugar, a matéria não é retirada pela intervenção humana, mas elaborada: o acontecimento escultórico não deixa sobra ou resto, não produz refugo ou resíduo, mas atinge a matéria em sua integralidade. Mais ainda, seu efeito sobre a matéria não pretende depurar a sua substân2

SALLES, E. Dobras de tempo. In: Centro Cultural Banco do Brasil. Amilcar de Castro. Repetição e Síntese. Belo Horizonte: Centro Cultural Banco do Brasil, 2013, p. 24.


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cia ou prepará-la de forma heterogênea para a formalização escultórica; antes, toda a matéria é transfigurada em escultura, todo o espaço se qualifica construtivamente. Disso resulta, em segundo lugar, uma importância redobrada dada à natureza dos materiais para o processo de formalização, que é levado a cabo ainda mais segundo a singularidade de cada material. Como se sabe, Amilcar transitou pela madeira, o arame e a argila até fixar-se no aço corten, uma liga de aço com uma pequena porcentagem de cobre que torna o ferro mais maleável e resistente à oxidação. O aço corten como que controla sua oxidação, utilizando-a como proteção do próprio material – sem privá-lo, no entanto, de sua reação natural ao tempo, do desenvolvimento de uma camada de ferrugem que é nada menos do que a marca da história sobre os metais. Também por isso Amilcar rejeita os materiais mais leves como o alumínio, que cedem sem resistência à manipulação e parecem não conservar em si quaisquer marcas de historicidade – e que por isso, como dizia o artista, seriam desprovidos de “caráter”. Além disso, a ferrugem é um componente estético não negligenciável, que singulariza ainda mais cada peça e convida a um tipo de fruição multidimensional, em que também o tato pode ter lugar. Rodrigo Naves chamou a atenção para o gesto de profunda amorosidade para com a matéria que está contido nesse manejo econômico e respeitoso dos materiais: não se procura extrair deles o que não podem oferecer, não se procura forçá-los à eloquência.3 De alguma forma, é como se o acontecimento estético tateasse pela própria natureza da matéria para, então, provocar as formas que já estivessem espontaneamente contidas nela.

VII No ímpeto de criação de um novo mundo a partir do vazio ressoa também o motivo moderno por excelência, com o qual todo construtivismo e, com ele, também a escultura de Amilcar encontra-se em diálogo íntimo: o prometeísmo. Com efeito, há gesto mais prometeico do que cortar com um maçarico uma folha de metal e dobrá-la mecanicamente? De fato, seja na eleição dos materiais, no desenvolvimento de seus procedimentos técnicos e de seus princípios compositivos, sua obra jamais abandonou o elogio construtivista à indústria, à técnica, ao domínio do ser humano sobre a natureza, à refeitura de mundo e da subjetividade que su3

NAVES, R. Amilcar de Castro: Vida e obra. Ciclo de Palestras “Sempre um Papo”, 09/04/2008. Ver <https:// www.youtube.com/watch?v=OLMOCJ0ekUc&feature=emb_logo>. Ver também o belo ensaio de Naves sobre Amilcar no já clássico A forma difícil, de que este ensaio se beneficiou enormemente: NAVES, R. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 233ss.


postamente seria possível a partir deles. Ao contrário do que se poderia supor, sua crítica ao construtivismo ortodoxo não redunda na negação desses valores, mas em sua afirmação crítica. Pois ao radicar todo processo de formalização no mundo material, ao demonstrar que a forma é condicionada pelo trabalho humano, sua obra presta testemunho da modernidade como processo, como projeto aberto e contraditório em que entes materiais – seres humanos e natureza – estão implicados de maneira igualmente material, metabólica, histórica. Depurados desse enraizamento fundamental e de todo traço de processualidade ou devir, é como se os ideais prometeicos do construtivismo ortodoxo se revelassem um engodo, uma abstração dos processos históricos reais que estão em sua base. A obra de Amilcar convoca a utopia de um novo prometeísmo, em que a manipulação humana da matéria seja eticamente atenta a seus limites e a sua singularidade, em que a matéria possa ser como que parceira dos projetos humanos, não mais seu substrato cego.

VIII Há um registro em vídeo da feitura de uma escultura de corte e dobra, já dos últimos anos de produção de Amilcar, que ilustra bem esses valores prometeicos. Um guindaste articulado manipula a chapa de aço circular, ainda virgem antes do acontecimento escultórico. Talvez tenha em torno de dois metros de diâmetro e vinte centímetros de espessura. Lentamente, a chapa é disposta sobre uma grande estrutura inclinada feita de cinco ou seis vergalhões de aço, entrelaçados de forma a comporem, juntos, uma espécie de cavalete para suporte da chapa. Três tornos de ferro atam as extremidades da chapa aos vergalhões, deixando um dos quadrantes livre para a operação. Divisado o eixo de corte com auxílio de uma régua presa à chapa, a chama de dois maçaricos desloca-se lentamente, desimpedida, sobre o curso do eixo. O ferro arde, atravessando as tonalidades do azul, do amarelo e do vermelho. Uma série de marretadas intervaladas prepara a chapa para a dobra, que é executada com auxílio de um grande dobrador de ferro. Se a chapa se entrega à incisão da chama com surpreendente docilidade, a deformação operada pela dobra é lenta e delicada. Reincide a chama dos maçaricos, voltam as marretadas, ajustam-se outra vez os tornos, uma alavanca logo vem a socorro do dobrador. A chapa resiste, subordinando-se à dobra apenas sob árduo e cuidadoso trabalho manual. Lentamente, a chapa cede e encontra novo repouso, como se tivesse se acomodado novamente em sua própria natureza. Ao fim do processo, de fato, não há sinal de emendas nem de sobras de material: nada foi incluído ou retirado do todo inteiriço. Todo o processo


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foi executado por um engenheiro e quatro ou cinco homens que alternavam posições e tarefas, a partir de um molde simples, em miniatura, cujo plano fora ainda esboçado em papel. O artista está ausente. É como se a escultura pudesse ser realizada por todos e por qualquer um: basta a matéria, um plano e o manejo correto da técnica.

IX Talvez haja aí de fato, como queria Ferreira Gullar, uma ética imposta pelos princípios construtivos do artista: “Amilcar partia de uma exigência ética que estava na raiz de certa linha da vanguarda construtiva: a exclusão de qualquer habilidade ou maneirismo, como aspiração a uma escultura nascida de si mesma, quase sem a intervenção do artista. (...) Não havia truque nem tampouco fantasia: tudo era determinado pela realidade material e o gesto singelo, quase despojado de intenções”.4 Um imperativo de desaparição do gesto, em que toda a intervenção humana não seja mais do que uma convocação da própria expressividade da matéria – se é possível extrair algo como uma ética a partir da escultura de Amilcar, esse poderia ser de fato um de seus princípios norteadores.

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GULLAR, F. Experiência neoconcreta. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 27.



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Abaixo da terra o mineral roxo – minério de ferro. A pedra retirada da montanha é explodida em muitos pedaços. Na explosão, a retirada e o transporte; a sobra se espalha por cada canto. Os restos são considerados pedra pobre e terra pelo mercado. Resta a fronteira do buraco aberto, poeira ferrosa, a lama luminosa e fétida- resíduos químicos misturados com bichos mortos na lama parada que apodrece. Ali, em cada canto, a pedra pulverizada forma as zonas de ressaca. Aquilo que vem logo após a retirada mineral. A sobra do minério cola nas margens do rio e é carregado por ele no fluxo e o refluxo da água que lambe e regurgita, trazendo e levando a areia luminosa e a terra barrenta. Na parede das casas, a sobra que virou poeira também cola no corpo e vai até os pulmões. A ressaca vem com o mineral incompleto e impuro, como os estilhaços de um lugar após ser arrombado, que carrega os lapsos e as sobras, agora improdutivas. As zonas de ressaca são os restos que se acumulam, lugar onde se pode encontrar toda a sobra dos processos industriais de retirada, conformam e contaminam espaços e corpos; zonas proibidas que carregam os destroços de outros lugares, assim como milhões de histórias e matérias sobrepostas. É uma região de borda alterada, um limiar e território limítrofe que retém os movimentos do consumo e dos modos de vida, aquilo ou aqueles que não cabem na delimitação das cidades, lugares onde a terra foi arrombada e remexida. Uma espécie de conjunto de fronteiras - cidade, ruínas, indústria, matas produtivas, barragem, máquinas e sobras, o encontro da natureza e matéria deformada pela economia e pelos processos de produção e extração.



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Os pulsos da energia estacionada, próprio das zonas de ressaca, carregam uma potência violenta e caótica, com pontos de atrito que causam estragos. Assim, as zonas de ressaca têm o peso da matéria que em algum momento pode retornar ao seu lugar de origem, como o refluxo de toda materialidade que forma a economia. Essas zonas estão entre a instabilidade e a latência de um estado que se estabelece na agitação da ressaca e na monotonia do coma, em um movimento de refluxo - um encontro de potência violenta e ainda imprevisível. A ressaca é o movimento de retorno, avanço das águas sobre a faixa de areia. Se forma em períodos de agitação das correntes do vento e frente fria. É o movimento de forças descontínuas, porém presentes nos fluxos de energia estacionada. O coma é um estado de inconsciência, de não entendimento da própria existência. Assim, sem estado de alerta, essas zonas não são percebidas, funcionam como uma zona cinza – uma falha, ou espécie de lapso do que não visto. Amostras de futuras tensões ambientais, maximizadas por uma retroalimentação constante da produção de despojos e expansão de paisagens produtivas, podendo produzir efeitos desproporcionais ou mesmo descontínuos. Essas zonas são o input, o círculo vicioso de desastres, como lugares de alta intensidade e baixa frequência, com lógicas extremamente complicadas, que depositam dia-a-dia poderosos pulsos de energia estacionada.

Simone Cortezão. Sem título, 2020.



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Os cães de caça ainda brincam no pátio, mas a presa não lhes escapa, por mais que já dispare pelas florestas. (Kafka) Se ao caminhar por uma estrada, de repente pararmos, e voltarmos ao ponto de partida; estaremos caminhando para o passado ou para o futuro? Se caminharmos para o passado poderemos implodir nossos sonhos. Caminhando para o futuro poderemos escrevê-lo. Como a um aforismo. O presente é um sonho inerte. Resta-nos tatear a estrada. Esquecer pedras, mapas e bússolas. Esquecer a caravana. Cave canem!



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28 de março de 2019 e uma chance de encontro. Não havia nada combinado, mas o aguardávamos como uma possibilidade, próximos a um bar na rua Paracatu, quase na esquina da av. Amazonas. Essa parte da rua é fechada para os veículos que vêm da avenida, propiciando uma atmosfera um pouco mais tranquila naquela região central e movimentada da cidade de Belo Horizonte. Um amigo comum que o conhecia a cerca de vinte anos havia nos dito que era dia de pagamento e que ele costumava aparecer pontualmente no horário de saída do trabalho de seus devedores. Eram 17:40h quando ele chegou como o previsto. Recebeu cinquenta reais de nosso amigo como parte de um empréstimo de quinhentos reais realizado havia dois meses. Era um homem magro, baixo, de idade imprecisa, entre os quarenta e tantos anos e uns cinquenta e cinco anos, moreno de sol, de feição marcada, olhos levemente puxados, com uma barbicha rala, escondendo algum oriente, no conjunto, ressaltava as características de um mameluco típico. Trajava bermuda, camisa de botões, chinelos e trazia consigo uma sacola de plástico cheia de papéis. Seu andar era lento e ao mesmo tempo firme, como quem caminha sobre um território minado, sob escombros ou em uma mata virgem pisando com cuidado e precisão. Nos cumprimentamos e ele se apresentou como Dida. Dida, ponto. Não era um apelido, essa redução quase dadaísta de sua apresentação, era simplesmente como ele se autodenominava e era conhecido pelo nosso amigo comum. Mesmo com a convivência, depois de alguns meses, ele não nos revelou seu nome. Também não portava documentos de identificação pessoal, e pouco dizia sobre seu passado. Dida, sem nome, sem CPF e sem passado familiar. O “Monza” ofereceu-lhe carona. Era assim que Dida chamava o nosso amigo, para ele, nada mais apropriado do que nomear os seus fregueses conforme os modelos dos carros que possuíam quando se conheceram. Rumamos para onde ele estava ficando, nas proximidades do CEASA. O CEASA é um dos principais centros de abastecimento da região metropolitana de Belo Horizonte, fica localizado na BR 040 no município de Contagem, trata-se de uma empresa mista, fundada em 1971, voltada para o comércio atacadista de produtos alimentícios e não alimentícios industrializados, como rações, concentrados, fertilizantes, embalagens e produtos de limpeza. Funciona em uma área de cerca de 3 milhões de metros quadrados, com fluxo mensal de 424 mil veículos com cargas e recebe cerca de setenta mil pessoas por dia. É praticamente uma cidade comercial. No trajeto para as proximidades do CEASA, conversamos com Dida sobre a nossa proposta de acompanhá-lo em alguns dias


para conversarmos sobre suas experiências urbanas. Dentro do carro em cerca de meia hora de percurso atravessando a cidade, como resposta afirmativa ele começava o seu monólogo, introduzindo a sua visão de mundo. De algum modo, para nós ainda desconhecido, ele veio parar em Minas Gerais na década de 90 do séc. XX, quando começou a viver nas ruas da cidade de Belo Horizonte e a ganhar seu dinheiro como tomador de conta de carros. Se estabeleceu no bairro Barro Preto, na região próxima ao hospital Vera Cruz na área central da cidade. A prática conhecida por tomar conta de carros é usual em áreas centrais de Belo Horizonte, nela os motoristas são “convidados” a pagar para estacionar na rua onde o tomador de conta ou flanelinha, como também são conhecidos, se encontra. A cobrança é uma prática ilegal, e apenas no período de janeiro a novembro de 2018, uma operação da prefeitura abordou 992 flanelinhas, sendo nove deles presos e 23 ocorrências registradas de extorsão. Acredita-se que o número deles na cidade é bem maior. Somente na regional centro-sul são mais de mil flanelinhas registrados. Estes podem receber doações, mas não podem cobrá-las nem definir valores. Eles estabelecem áreas de atuação e frequentemente acontecem conflitos por disputas de territórios, extorsões diversas e assaltos à veículos. No caso de Dida, ele não cobrava adiantado ou definia o preço do serviço, não foi cadastrado e nem faz esforço para correr atrás do motorista que está retirando seu carro da vaga. Geralmente ele espera o motorista chamá-lo e aceita de bom grado a doação. De vida sucinta, com o passar dos anos ele foi acumulando dinheiro o suficiente para emprestar para as pessoas. Segundo ele, seu bolso nunca estava vazio, andava com no mínimo 400 reais, e não tinha medo de dormir na rua com essa quantia de dinheiro. Mesmo preferindo dormir na rua, em frente à uma loja na rua Alvarenga Peixoto, Dida se dava ao luxo de, em algumas noites, ir dormir em um hotel na av. Santos Dumont para se limpar. A av. Santos Dumont fica no centro da cidade, próxima à rodoviária e é conhecida pelas casas de prostituição nos seus arredores. Em 2007 surge nessa avenida um personagem, apelidado de Baiano, pedindo a Dida 10 reais emprestado com a promessa de que lhe devolveria o dobro do valor. Passados alguns dias, Baiano faz uma nova proposta a Dida, queria ficar com os vinte reais que lhe devia e pagaria quarenta, assim Baiano chegou a uma dívida no valor de 370 reais, já contando com alguns acréscimos feitos pelo próprio Dida. Após algum tempo devendo a Dida, Baiano disse ter achado uma quantia de 10 mil reais no banco de um ônibus e entrega a Dida 500 reais para Francisco Almeida. Cartografia do Dida, 2019, Belo Horizonte.


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quitar sua dívida, um valor superior ao necessário. Mesmo conhecendo a fama de ladrão do Baiano, ele aceita o pagamento. Assim que recebeu seu pagamento surge uma nova figura, um jornaleiro aleijado que pegou com Dida a quantia inicial de 500 reais e foi pagando parcelado, até hoje o jornaleiro não terminou de quitar sua dívida por conta dos juros, parou de pagar em 2009, chegou a pagar um total de 1900 reais e nunca mais foi visto por Dida. A partir de 2007, se sucederam outros “ajudantes”, como ele nomeia as pessoas que pegam dinheiro a juros com ele. Ele começou a emprestar dinheiro para os porteiros e os próprios donos dos carros que ele vigiava na rua Alvarenga Peixoto. O “boca a boca” fez sua fama e logo ele espalhou seu dinheiro para diversos cantos da capital mineira e região, acreditando até que o ato de fazer empréstimos com ele afeta beneficamente a vida do “ajudante”. Para exemplificar isso, ele contou a história de uma garota que tinha um namorado pobre que não dava nada para ela, e logo depois dela pegar dinheiro emprestado, ela arrumou outro namorado que por sua vez deu um carro pra ela. A sua vida também chegou a melhorar um pouco. Com algum dinheiro em mãos, Dida saiu das ruas e resolveu morar de aluguel. Em 2010 ele já recebia dinheiro o bastante para sustentar seu negócio e a si mesmo, alugou uma casa em Ribeirão das Neves na Região Metropolitana de Belo Horizonte e vivia com 1200 reais retirados dos 4000 reais que, segundo ele, recebia por mês por conta dos juros de seus “ajudantes”. Mas seu dinheiro geralmente não parava em suas mãos, aquilo que recebia ele logo emprestava, retirando apenas o necessário para sua sobrevivência. Logo a situação fugiu de seu controle. Alguns pagavam em dia como o Monza, outros pagam as primeiras prestações e deixavam de pagar ou mesmo nunca pagaram. Como a maioria dos “ajudantes” simplesmente sumiam sem pagar, desprovido do dinheiro para o aluguel Dida foi obrigado a retornar às ruas. No nosso primeiro encontro, Dida carregava uma sacola plástica contendo o seu bloco de anotações com a contabilidade das dívidas e muitas promissórias com dados como nome, CPF, valores das prestações e assinadas pelos “ajudantes”. Elas atestam seus empréstimos, o que à primeira vista faz dele uma pessoa extremamente organizada e detalhista. Analisando superficialmente a infinidade de notas promissórias, aparecerem diversos nomes incompletos, apelidos e dívidas com valores absurdos, o que facilmente contestaria a realidade de sua história. Aquela sacola plástica era mais do que um arquivo de contabilidade, era um arquivo para acessar um mundo de relações. Cada nota promissória que Dida retira da sacola se torna um gatilho fazendo com que a conversa volte ou avance no tempo, mantendo os personagens ou descobrindo novos e, principalmente, mergulhando pouco a pouco nas suas questões existenciais. Surgiu o interesse por parte do Dida de que o ajudássemos a encontrar alguns nomes de seus devedores. Mas nem foi preciso apro-


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fundar na investigação. Uma análise mais atenta às notas revelou apenas dados falsos ou incompletos. Dessa forma, a ideia de que Dida seria detalhista e organizado se desfazia. Talvez as notas promissórias sejam um conforto para a cabeça confiante, e com certeza o são para quem recebe o empréstimo. Afinal, existe uma facilidade em enganá-lo, uma vez que ele não confere nada, apenas acredita na palavra de quem precisa do seu dinheiro com poder de melhorar a vida das pessoas. E os “ajudantes” podem ficar tranquilos, pois as promissórias legalmente não valem nada. Considerando suas contas anotadas em seu caderno, com promissórias com juros de 20% ao mês, Dida se considera um homem muito rico, no entanto, ele não tem essa fortuna em mãos. Sem querer ele repercute um obscuro funcionamento dos mercados financeiros transnacionais: a virtualização da economia. Rico virtual, conhecido por mendigo agiota por alguns, Dida garante que nunca cometeu qualquer violência para cobrar as dívidas. A sua única segurança de pagamento são as palavras desesperadas por dinheiro que saem da boca de seus “ajudantes”. Como eles geralmente não pagam as suas dívidas, Dida ficou fadado a vagar pelas ruas de Belo Horizonte com a esperança de encontrar com alguns específicos, evidentemente, os que lhe devem mais. Talvez seja no intuito de encontrar casualmente algum de seus “ajudantes” que ele ainda faz cotidianamente o percurso à pé de cerca de 40 km de ida e volta entre o local onde dorme, nas proximidades do CEASA, e o centro de Belo Horizonte. Dida dorme embaixo da plataforma externa de carga e descarga de um conjunto de galpões ao lado de uma caçamba de lixo. Quando fomos lá os galpões eram utilizados como posto para distribuição de frutas e verduras, com algum fluxo de caminhões. Os alimentos estragados eram descartados na caçamba. O galpão fica ao lado de um hotel de rede internacional destinado a atender os empresários e negociantes do CEASA. Ele habita esse espaço com o consentimento do proprietário, utilizando-o para dormir e ficando por mais tempo nos fins de semana. Continuando a conversa por lá, percebemos mais algumas particularidades quando nos disse sobre a sua rotina diária. Ele não tem uma boa refeição há anos e mesmo assim consegue caminhar quase todos os dias cerca de 40 quilômetros. Contudo, as suas especificidades conseguem ir além, ele possui diversos sistemas a serem seguidos e seu corpo não funciona corretamente sem isso: anda apenas à direita das vias, não caminha por baixo de marquises, não toma água de torneira ou proveniente de qualquer outro lugar que não seja a garrafa de água mineral da marca Igarapé, não consegue ter uma boa noite de sono se não tomar um copo de suco de maracujá e não fica sem tomar banho ou tomar seu


copo de achocolatado. E nos últimos tempos ele somente compra seus produtos alimentícios em determinada loja no CEASA. Para além das manias, aos poucos ele ia nos descortinando a sua cosmogonia pessoal. Segundo Dida, ele é uma pessoa de bem que está na vida à mercê dos planos de Deus. Seu panteão é retirado das divindades do catolicismo e centrado nas figuras de Maria, Jesus e no próprio Deus, no entanto ele prescinde da intermediação das religiões para o acesso ao sagrado. Ele nos disse “possuir uma ligação direta com o santíssimo”, todos seus passos são guiados por seu Deus e nada que ele tente fora do que foi prescrito para ele funcionará. Seria o Dida um morador de rua, flanelinha, agiota e guiado por Deus? A sua história nos últimos vinte e cinco anos é para ele apenas um desfecho errado de sua vida, resultado de suas escolhas equivocadas e da punição divina. Mas o que seria então esse ramo de sua história onde tudo teria dado certo?

11 de abril de 2019. Nos reencontramos na rua Paracatu, no mesmo local do nosso primeiro encontro, por volta de 11:40h. Dida estava em um telefone público conversando. Ao perceber nossa presença ele solta um leve sorriso acompanhado de um recado à pessoa do outro lado da linha: “Estão aqui, vou desligar”. Dessa vez a nossa conversa foi entorno de sua mística pessoal. E de um modo ainda incipiente, o projeto de cidade concêntrica de Belo Horizonte aderia à ciclicidade da narrativa de Dida. Quando pequeno, no estado de Goiás, Dida possuía um forte apego com Nossa Senhora, mãe de Jesus. Essa foi a única referência que nos fez sobre sua infância. De acordo com ele, adorá-la quando menino foi seu maior erro, pois quem detém o verdadeiro poder é Deus e era ele quem deveria ser adorado. Para Dida o verdadeiro Deus não é esse conhecido popularmente que está presente nos céus. Inclusive, como ele reiterou algumas vezes, o verdadeiro céu fica debaixo da terra, e lá Dida tem uma grande fazenda com uma casa enorme à sua espera. Talvez essa imagem se refira à fazenda na qual ele trabalhou durante sua juventude em Goiás. O seu patrão o estimava e quando ele faleceu Dida foi para Minas Gerais. Como Deus não gostou do fato do Dida adorar somente a Nossa Senhora, ele foi desprezado por Ele durante os anos de sua juventude, até que no final da década de 90, Deus resolveu olhar novamente para ele. Já no estado de Minas Gerais, Dida tinha o sonho recorren-


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te de trabalhar como caminhoneiro, distribuindo açúcar por todo território mineiro. Para realizar esse sonho, receberia um caminhão presenteado diretamente por Jesus, de marca e modelo único. Ele apenas dirigiria seu caminhão divino, sem precisar carregar um saco do produto, todo o trabalho braçal seria feito por seus ajudantes. Nesse ponto reaparece a figura do ajudante, como aqueles que trabalham para seu enriquecimento. No entanto essa glória não seria duradoura e seu término seria simples e frio, Dida iria se jogar com a seu caminhão dentro do rio São Francisco, pronto para ir para o céu, ou seja, para debaixo da terra. Em sua mitologia pessoal, Dida se aproxima mais das mitologias antigas, cuja passagem entre a vida e a morte são realizadas em paisagens terrestres, como essa imagem do rio que na mitologia grega faz a passagem para os campos elísio, ou para o céu de Dida, onde se encontra a sua fazenda. E justamente por isso ele não pode sair de Minas Gerais, sua parte do céu está embaixo deste território. Considerando um tempo mítico, circular, ele contou outras versões para possíveis desfechos de sucesso em sua vida. A sua falha como caminhoneiro, era apenas uma vingança do Deus por ele na sua infância ter se fixado em Nossa Senhora. Mais uma chance real de ser beneficiado por Deus apareceu para ele. Ele o tornaria muito famoso através de uma rede de televisão de sua propriedade. Seu rosto estaria estampado por todas as cidades e ele viveria para desfrutar de sua riqueza e sucesso. Esse repertório nos levou a uma associação imediata com o Silvio Santos, apresentador televisivo com mais de sessenta anos de carreira, fundador do SBT ( Sistema Brasileiro de Televisão) e proprietário de diversas empresas como a Liderança Capitalização (administradora da loteria Tele Sena). Seu patrimônio líquido foi estimado em 1,3 bilhão de dólares em 2013, sendo então a única celebridade brasileira na lista de bilionários da revista Forbes. E, por conseguinte, nos conduziu a associação dos títulos de capitalização, com as promissórias de Dida. Voltando à mitologia pessoal de Dida, entra em cena a figura da Mulher. Ele não pode revelar o nome dela, mas nos disse que ela transmitia para ele as orientações divinas e foi destinada a agradá-lo de todas as formas e a coordenar seu poder e dinheiro. Essa transmissão se dava através de ligações telefônicas em orelhões, telefones públicos espalhados pela cidade, como aquele no qual ele nos esperava. A Mulher era uma espécie Pitonisa do oráculo telefônico contemporâneo. Antes de nos encontrar, estaria ele conversando com a Mulher? O fato é que em uma dessas ligações da Mulher, surgiu a proposta divina para Dida receber todo o poder que lhe era de direito. Ela havia sido influenciada por Jesus para lhe dar esse recado através do que Dida chamou de “a televisão de Jesus”. Ela ligaria para ele e Dida iria escutar a voz de Jesus ao fundo dizendo que, naquele dia, uma sexta-feira, ele deveria cortar



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o cabelo e se fizesse isso teria tudo o que merece. Ele não entrou nos detalhes e motivos das prescrições divinas, apenas nos disse que se recusou, sem tampouco justificar a recusa, e, por um simples ato dele não cortar o cabelo no momento certo, todo esse poder foi-lhe negado. Dessa vez a sua mitologia pessoal se confunde com a mitologia católica, com os cabelos cortados de Sansão pela Mulher, essa com nome pronunciável, Dalila, extraindo-lhe toda a sua força. Nos giros da sua mítica Dida ainda teria outra chance dada por Deus: poderia ter se tornado um cantor popular de muito sucesso. Estaria destinado a se tornar cantor ao lado de Leonardo, que fez carreira, em dupla com o irmão Leandro, na música sertaneja, ficando muito famoso no Brasil no final dos anos 80. A dupla acabou em 1998 em decorrência da morte de Leandro. Eles nasceram no estado de Goiás no início da década de 60, possuindo uma proximidade do local de nascimento e da idade de Dida. Segundo Dida, Leandro não teria morrido apenas porque chegou sua hora. Na sua verdade, havia chegado a hora do Dida e o divino tratou de arrumar espaço para que ele pudesse fazer fama e dinheiro nos palcos. Cantaria tão bem que transformaria o Leonardo em um enfeite ao seu lado. Segundo reportagens dos jornais O País e O Globo, Leandro descobriu um tumor maligno no ano de 1998 ao sentir uma forte dor nas costas durante uma pescaria em abril e no dia 18 de junho do mesmo ano os médicos descobrem que o tumor havia crescido. Nesse momento o tumor já comprimia seu pulmão direito e coração, suas funções respiratórias estavam praticamente restritas ao pulmão esquerdo. No dia 23 de junho o cantor vem a óbito e especialistas preveem que a carreira solo de Leonardo não se manteria. Seria um indício de uma nova dupla? Dida e Leonardo? Houveram sugestões para que ele seguisse cantando junto a outro cantor sertanejo famoso, Daniel, que também perdera seu irmão, João Paulo. Contudo, o cantor Leonardo seguiu sozinho e em entrevista ao jornal O País, garantiu que a agenda de shows seria cumprida, cancelando apenas o show do dia 26 de junho em Feira de Santana. Mesmo abalado, o cantor marcaria sua presença em Salvador, Bahia e em Betim, Minas Gerais. Esse é um ponto importante: Leonardo realmente estaria em Minas pouco tempo depois da morte de Leandro. Dida encontraria com ele nesse dia? Seria esse o início de sua glória? Nunca saberemos, afinal, novamente ele não seguiu os planos divinos. Sem explicar como, contrariou as orientações divinas dadas pela Mulher. Para Dida, foi justamente essa rebeldia quanto aos mandamentos celestiais que deu início a um novo sucesso no Brasil, tomanFrancisco Almeida Cartografia do Dida, 2019, Belo Horizonte.


do o lugar que era destinado a Dida e Leonardo. Assim, deu-se início à banda Calypso. Essa banda atingiu o sucesso pouco tempo depois da morte de Leandro, com seu primeiro disco lançado em 1999. A partir disto, a banda se tornou um fenômeno de vendas nos anos 2000. Caso Dida conquistasse o que lhe foi predestinado pela divindade, ele poderia investir em seus sonhos: iria construir uma casa bem grande e como ele disse “todos iriam morar nela”, mas quem seriam “todos”? Talvez seus familiares, amigos, conhecidos, ou mesmo uma casa para abrigar a humanidade? A influência e poder de Dida no mundo fariam com que o próprio Jesus se visse na condição de transferir seu poder para ele. A partir daí o mundo estagnaria, as pessoas não poderiam fazer mais nada além daquilo que faziam no exato momento em que Dida recebesse o poder de Jesus. O tempo pararia e “os ladrões não conseguiriam sair para roubar”. A Mulher poderia chegar perto dele e juntos entrariam numa espécie de transe sexual. E por fim se lançaria no rio São Francisco para chegar no seu mundo subterrâneo-sagrado. Dida era para ser um Deus na terra, brilhar nos palcos sertanejos, ter uma rede televisiva, derramar açúcar por todo Minas Gerais e possuir a Mulher dos seus sonhos. Atualmente trabalha com dinheiro a juros que ele nunca recebe, caminha por todos os cantos contando com a chance de encontrar seus “ajudantes”. Caminha cerca de 40 quilômetros à base de água de marca específica, chocolate e suco de maracujá. Além disso, ele se recusa a pronunciar certas palavras como o nome da tal Mulher e “laranja”. Tudo aquilo que o afetou negativamente em determinado momento de sua vida ele tende a ignorar. Seja a Mulher que fez parte do seu destino equivocado, e da laranja que, segundo ele, amarga. Trata-se de um ser envolto por superstições, imerso em seu mundo onde tudo o que acontece de mal consigo é originado de alguma atitude errada da sua parte. Não cortou o cabelo? Não receberá o que é dele por direito! Dida habita esse mundo, sempre atento para não errar novamente. Assim, ele acredita que algum dia ele terá mais uma chance de conquistar o que lhe foi predestinado. Espécie de jogador com suas fórmulas mágicas para exorcizar o destino. Como Dida joga com a vida, as suas superstições se espalham na cidade, no caminhar apenas do lado direito da rua, não andar debaixo das marquises e frequentar sempre determinados lugares e serviços.

Um dia qualquer. Antes de ir ao shopping de banho tomado e com dinheiro no bolso, Dida utilizava frequentemente os serviços sexuais da região da av. Santos Dumont. Existem di-


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versas casas de prostituição nos arredores em prédios antigos art déco de três andares onde as mulheres prestam serviço nos quartos e cujo movimento se intensifica nos horários de chegada, saída e intervalos do trabalho, ou seja, no início da manhã, no período do almoço e no fim de tarde. À noite também se encontram prostitutas nas ruas nas proximidades dos hotéis como aquele em que o Dida tanto se hospedava. Em sua mística ele possui o poder de curar as prostitutas de doenças venéreas e até da AIDS, através de um transe místico sexual. Descobriu esse poder na sua iniciação sexual com uma velha prostituta. Sem querer ele a levou ao transe místico sexual, ela ficou descontrolada e o desfecho foi ela defecar em cima dele. Contava isso com simplicidade e rindo. Talvez as prostitutas, assim como as vedetes midiáticas, encarnem para ele a Mulher, aquela que era sua intermediadora com a divindade e se encontrava interditada de seu convívio. 7 de setembro de 2019. Caminhamos com Dida pela avenida Afonso Pena no sentido contrário da parada militar. Ela é uma das principais avenidas de Belo Horizonte, inaugurada com a fundação da cidade em 12 de dezembro de 1897, possui 4,3 km no sentido noroeste e sudeste em linha reta, partindo da praça Rio Branco na região da rodoviária, passando pelo centro da cidade, a praça sete, e por bairros de classe média alta, como Funcionários e Savassi, e culminado nas mansões do bairro Mangabeiras na praça da Bandeira aos pés da Serra do Curral. Em meio a tantos espaços que margeiam a avenida, dois são essenciais para a experiência do Dida sobre a cidade. O primeiro deles é conhecido como “alto da Afonso Pena”, espaço onde todo o caos gerado durante o dia no centro econômico dá lugar a uma outra movimentação do capital sobre os corpos mercantilizados: a prostituição de rua por mulheres, travestis e transexuais. Além da prostituição na região da av. Santos Dumont, Dida também frequenta o “alto da Afonso Pena”. Imaginando tal possibilidade, um lugar intrigante surge, um local novamente com as características de movimentação econômica e de corpos “mercadorias” sobrepondo espaços à topologia mística de Dida. Esse também pode ter sido um espaço fomentador do imaginário da mulher ideal. Talvez observando essas mulheres e usufruindo dos prazeres que elas proporcionam, ele foi montando a imagem da Mulher. Talvez esses encontros afetivos fortuitos, distanciados como uma ligação telefônica, tenham dado início à sua busca pelo poder, com a esperança de algum dia comprar a “mercadoria” completa cuja representação mais cabal se encontra na Mulher. Retornando no sentido da parada militar, naquele dia íamos em direção ao segundo ponto de poder na avenida Afonso Pena: a igreja São José. Durante a semana aproximadamente mil e quinhentas pessoas passam pela igreja e este número salta para cerca de cinco mil aos


finais de semana. Toda a grandiosidade da igreja, tanto em questões dimensionais quanto estilísticas a tornam um marco na cidade. Dida frequentava aquele espaço há tempos e durante um determinado período, todos os dias ele ia rezar e agradecer, provavelmente por Jesus não o ter abandonado por completo. Contudo, ele diz já ter rezado demais e agora só vai na igreja de três em três meses. Havia dois meses desde a última vez em que ele entrou ali, por isso ele aceitou visitá-la. Porém, antes de entrar ele parou e começou a mexer em sua sacola, procurando algo de modo ansioso. Logo ele retirou um maço de cigarro contendo o último cigarro e foi este último cigarro que o permitiu entrar na igreja. Ele não entra na igreja sem antes dar uma fumada. Que espécie de ancestralidade o atravessava nesse momento? Já no pátio da igreja ele conta que certa vez ele havia sido trancado ali dentro e após muitos gritos por ajuda abriram a porta para ele sair. No entanto, não sabiam que ele entra e sai da igreja apenas em um ponto. Ele conta que, após sair pelo portal do qual não gostava, ele foi embora, mas no dia seguinte fez questão de voltar para entrar por onde saiu e sair pelo lugar correto. Dentro da igreja, ele fez sua reza e agradecimentos de forma rápida, quase como se não quisesse ficar ali. Levantou-se e foi nos mostrar um detalhe no altar, a igreja estava razoavelmente cheia, fiéis ajoelhados e sentados aleatoriamente pelos bancos. Em frente ao altar ele solta a pergunta, “tá vendo aquele cara em cima daquele outro?”, guiando o olhar para uma pintura representando Deus, em cima do tal “outro” – Jesus Cristo. Ele continua dizendo “aquele cara foi o primeiro Deus, o outro foi o segundo Deus...” Por trás dele os fiéis mais próximos do altar já estavam prestando mais atenção no que ele diria a seguir do que na própria reza. Assim, com seus olhos fixados no altar, disse que abaixo do segundo, havia ele, um “terceiro Deus”, e pergunta se nunca havia reparado no quanto era parecido com eles quando deixava sua barba grande. Nesse momento algumas pessoas próximas viraram seu olhar para nós, eles estavam incomodados com nossa presença e logo nós saímos. Do lado de fora ele disse que “após minha morte vou fazer esta igreja ir para o céu comigo”, vale lembrar que o céu do Dida está debaixo do chão. Ele está em busca do poder que aquele espaço tem, em busca do poder que Jesus tem e não deseja desapegar disso, nem mesmo no além. Nesse lugar de adoração ao divino, ele se reconhece como o Homem dos homens, digno do poder do “outro”: Jesus Cristo. Dida subverte o entendimento da realidade aplicado nas mínimas relações cotidianas e cuja máxima é: se não lhe for restituído o que lhe cabe nessa vida, quando ele morrer o será. Após sua morte o mundo subterrâneo, relembrando que para ele o céu fica embaixo da terra, conhecerá seu verdadeiro governante. Mas, ao mesmo tempo, para que isso aconteça ele precisa continuar o jogo sem errar novamente no mundo dos vivos. Da parte subterrânea da


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sua mística, bifurcam alguns locais que considera importantes. Ao recusar a oferta divina e estar fadado à sobrevivência, Dida se transformou num errante, e passando por alguns espaços da cidade de Belo Horizonte, por algum motivo não explicado, eles se tornaram pontos de poder para ele. São locais onde nada e nem ninguém pode afetá-lo e onde ele pode se orientar para além das suas errâncias. Estes espaços são as pontes que ligam o terreno ao subterrâneo, ou seja, ao sagrado. Como vimos, um deles tão especial que irá acompanhá-lo ao céu após sua morte: a igreja São José no centro de Belo Horizonte. Segundo ele, quando morrer a igreja será tragada para o mundo subterrâneo. Talvez ele tenha conhecimento de que a Catedral Metropolitana da Assunção da Virgem Maria aos Céus, localizada no Zócalo, na Cidade do México, devido ao terremoto de 1986 fez reaparecer as ruínas do templo Asteca sobre o qual ela foi erguida. Talvez a sua escolha por Belo Horizonte seja por ela ser uma cidade recente mas que já sofreu diversas sobreposições no seu território e de algum modo ele tem a sensação de que caminha sobre escombros. A cidade para ele seria um conjunto de ruínas à espera da próxima? No mundo subterrâneo Dida será rico, assim como ele é rico virtualmente na cidade. A partir dessa convicção, a precariedade em que vive é aceita por ele como uma condição provisória. Ele subverte a condenação divina na sua vida terrena, como rico virtual vive estoicamente à espera de atualizar sua riqueza seja em vida, seja em morte. Sua morte, para ele, trará inevitavelmente o reconhecimento de sua parte divina. Ao morrer ele acredita que irá para um lugar aquém do baixo materialismo em que vive, uma espécie de meta-baixo-materialismo, um céu debaixo da terra. Esse espaço para onde o corpo retorna quando morre, o subsolo da terra, ao qual se integra e ao mesmo tempo se abre como um paraíso celeste, transgredindo novamente os preceitos divinos. Estranha solução para a miséria, que parece dar um sentido claro à assertiva de Maffesoli de que “o mundo é miserável somente para aqueles que projetam nele a sua própria miséria”. Por sua vez, será que ele conhece alguma pílula mágica, desconhecida da psiquiatria ocidental, como aquela evocada por Jean Rouch diante dos Haouka, capaz de estabelecer uma visão não miserável do mundo que frequenta? Na sua experiência existencial ele exacerba a condição do modo de vida capitalista que constitui cada um de nós na busca pelas posses. Porém, ele distribui a sua riqueza no intuito de ficar cada vez mais rico em potência. Vive na miséria, mas não se sente miserável. Ele é rico virtualmente na cidade, usufrui dela nas margens do sagrado e do profano. Ele dá rosto ao capitalismo para fazer com seu molde a máscara mortuária do capitalismo. Subvertendo a máxima do ter para ser, ele doa para ter, mas ninguém sabe ao certo quem ele é. Talvez ele seja apenas um homem que caminha pela cidade como quem caminha nos escombros em busca de outros mundos, sob o céu soterrado.



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Agnès Varda, em Os catadores e eu,1 deixa pistas para a construção de uma etnografia dos restos e abandonos na cidade. Como toda prática etnográfica, seu documentário é composto por muitos encontros. Encontros entre a diretora e diversos tipos de catadores e entre estes e seus objetos de busca. Varda e sua equipe viajam pelo interior da França para mostrar pessoas que se valem por necessidade, acaso ou escolha do que outros descartam. Ao longo deste percurso, o filme oferece uma leitura da sociedade a partir do que ela rejeita, se guiando pelos encontros que atravessam, de formas diferentes, o gesto de catar. A história que o documentário conta poderia ser apresentada de muitas maneiras diferentes, mas são os encontros que tecem o fio que a conduz. Seguindo, então, as pistas deixadas por Varda, me dispus a pensar os restos e abandonos de outros espaços a partir dos encontros com as figuras que movimentam este meio. Se abrir à sua inevitabilidade e tomá-los como um medium de leitura desvela com clareza a singularidade das vozes que conformam este universo. Assim como no filme de Varda, os meus encontros também se deram entre diferentes tipos de corpos: imagem, objeto, vegetal, humano e não humano. Restos e abandonos que configuram uma cidade e transitam entre os limites da visibilidade e da invisibilidade. 1

OS CATADORES e eu. Direção: Agnès Varda. França, 2000 (82min.).


Dentre as pessoas que encontrei, estão alguns catadores, feirantes e colecionadores: Varela, Fernando, Demerval, Tião, Seu Antônio, Renato, Henrique. Todos eles, cada um a seu modo, têm uma forte ligação com o universo dos restos. Foi através do convívio e do diálogo com eles que pude entender parte das dinâmicas que movimentam as energias implicadas na trama de temporalidades que compõem as relações mediadas pelas materialidades cotidianamente descartadas no território urbano. A imersão na cidade e nos espaços com uma vocação maior para abrigar os restos e abandonos combinada a uma disposição à descoberta e à escuta nos coloca no centro de experiências fundamentais para a compreensão de outras camadas da cidade. Em um poema de “O livro das semelhanças”,2 Ana Martins Marques escreveu o seguinte: Agora deixa o livro Volta os olhos Para a janela a cidade a rua o chão o corpo mais próximo tuas próprias mãos: aí também se lê.

Os versos de Ana, para além de chamar a atenção para a validação de leituras outras, fazem refletir sobre um direcionamento do olhar. A partir de quais elementos é feita a nossa leitura da cidade? A resposta a essa pergunta, de certo, envolve uma série extensa de elementos e questões socioculturais estruturantes de um modo hegemônico de pensar. Envolve também uma série talvez ainda mais extensa de invisibilidades construídas por esse tipo de pensamento. O que Varda faz em seu documentário é enxergar como se desenha a cidade quando lida a partir de outras perspectivas, como aquela de seus restos e abandonos. O olhar da diretora transita entre fragmentos e o todo, em um constante movimento de aproximação e afastamento. Acompanhamos o deslocamento entre observações microscópicas e paisagens. Assim como os experimentos cronofotográficos de decomposição de movimentos de Étienne-Jules Marey, 2

MARQUES, A. O Livro das Semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Renato. Encontros noturnos ou a vida das coisas, 2019, Belo Horizonte.


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que faz uma breve aparição no filme, ela decompõe o gesto do catar em vários campos distintos através de um olhar mais interessado na conformação do trajeto do que em seus destinos. O título original do filme, na língua francesa, se traduzido literalmente para o português seria “Os catadores e a catadora”. Trago esta observação porque esta pequena diferença de tradução revela um aspecto importante do documentário. A catadora em questão, posta ao lado de todos os outros catadores, é a própria diretora. Tem-se, então, uma catadora falando de outros catadores, alguém que fala de dentro, que integra o grupo de pessoas retratado: uma personagem. Varda se diz uma catadora de imagens que os outros não têm vontade de ver e nem de produzir, imagens que constituem cenas rejeitadas e desprezadas, que são deixadas para trás assim como os objetos e alimentos mostrados no filme. Em uma das consultas que ela faz ao dicionário durante o filme, a catadora diz que “em sentido figurado, catar é uma atividade mental (...) catar fatos, atos, informações, lembranças”. Isso resume o que ela faz durante todo o filme: ela cata as histórias de vida dos catadores, cata impressões, imagens e objetos. Essa fusão e interlocução com a vida pessoal da diretora se anuncia desde o início, quando ela mostra uma pequena câmera digital em suas mãos, que a acompanhará durante todo o filme: “Esse é o meu projeto, filmar uma mão com a outra mão”, ela diz. É como se fosse rompida a linha de fronteira entre a diretora-catadora e os outros personagens do filme. O fato de uma pequena câmera digital acompanhar Varda atribui ao documentário um caráter de diário de bordo de uma aventura pessoal, onde os acasos da pesquisa e do caminho ganham visibilidade. É como afirma Jeanne Fravet-Saada3 sobre um trabalho de campo que realizou: “(...) escolhi conceder estatuto epistemológico a essas situações de comunicação involuntária e não intencional: é voltando sucessivamente a elas que constituo minha etnografia”. Para além dos catadores e da catadora, os objetos desenvolvem também um papel importante no filme. São eles que, sob suas diversas naturezas, levam os personagens a construírem novas relações com o espaço. Os olhos de quem cata e garimpa são olhos atentos, que investigam e por isso constroem uma relação de cumplicidade com o espaço que guarda e revela o que eles buscam. Essa cumplicidade se dá a ver pelos gestos de quem toca o chão da rua com as mãos para catar algum objeto ou sobe em uma caçamba para vasculhar os restos de uma obra. Essa cumplicidade vem também de uma temporalidade que é própria do catar: o olhar mapeia os espaços e se demora neles. Nas cidades, muitos itinerários são traçados e percorridos em função desse tipo de prática. 3

FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de campo, São Paulo, n. 13, pp. 155-161, 2005.


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Ao conversar com alguns catadores em Belo Horizonte, fica nítido o conhecimento extenso que eles têm sobre o território urbano. Território que eles percorrem diariamente com seus pés, sabedores das possibilidades de vida em cada caçamba, lixo, canto de meio fio e também da tendência rasteira que os restos e abandonos têm de habitar frestas, recantos e ruelas. Eles conhecem e vivem a cidade em seus pormenores, essa cidade dos restos que costuma escapar aos olhos de muitos. Tanto no filme de Varda quanto em alguns dos pontos de encontro dos catadores de Belo Horizonte, outra figura se faz muito presente: aquela do colecionador. Por mais que essas figuras circulem por espaços em comum, uma grande distância as separa. No documentário, fica explícita a diferença entre aqueles que catam por necessidade e os que o fazem por um propósito artístico ou relacionado a uma coleção. Meus encontros em campo também demonstraram isso com clareza: os colecionadores garimpam e catam por escolha e por prazer, os catadores o fazem por sobrevivência. Embora eu tenha ouvido vários catadores contarem com entusiasmo suas histórias de garimpo, o cotidiano exaustivo de trabalho e as más condições de vida que eles enfrentam também transparecem em suas narrativas, nos seus olhos cansados e nas tentativas obstinadas da venda dos objetos garimpados. Dentro deste universo, a todo momento esbarramos em fatores econômicos. Existe uma verdadeira economia dos restos que gira ao redor de tudo o que se descarta e abandona, estabelecendo relações econômicas que colocam em um movimento de transformação essas materialidades. O que é visto como excesso e/ou como inútil é descartado; os catadores recolhem os restos pela cidade, que são vendidos a centros de reciclagem ou a comerciantes por um valor pequeno; os comerciantes restauram os objetos, que então são vendidos por um valor maior aos consumidores (dentre eles, os colecionadores). É claro que a sequência descrita nas linhas anteriores é uma versão simplificada e resumida do processo, nem tudo o que é descartado ou abandonado é apreendido por essa cadeia de movimentos. Há sempre o resto que não é encontrado ou que não é visto como possibilidade de renda. De toda forma, o que dá início a esses deslocamentos é o fato de existir o excesso. Se levarmos em conta que toda matéria é energia, estamos também considerando que este excesso é responsável por uma grande movimentação energética sobre o nosso planeta. Em A parte maldita precedida de “A noção de dispêndio”,4 Georges Bataille parte da consideração de que a energia é um fenômeno cósmico para lançar a ideia de que sempre há excesso. Tomando o sol como paradigma da potência do excesso gerador que alimenta a manutenção e a conservação da vida na terra, proporcionando o seu crescimento, Bataille nos dá uma 4

Ver BATAILLE, G. A parte maldita precedida de “A noção de dispêndio”. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.


imagem clara que fundamenta sua teoria. Se o sol é este astro que dá sem nunca receber, que não exige contrapartida, existe mais energia do que é preciso para a manutenção e crescimento dos organismos vivos no mundo. O crescimento e o acúmulo são limitados por uma questão espacial. A prova dessa superabundância é a existência de um excedente de energia que, incapaz de ser absorvido, deve ser necessariamente perdido sem lucro, despendido “de boa vontade ou não, gloriosamente ou de modo catastrófico”.5 É preciso lembrar, então, que como consequência do excesso, existe sempre o resto. Não há nada sem resto. Nossos próprios corpos, vistos também como formas de excesso por Bataille, deixam seus restos mortais, fadados ao apodrecimento que nada mais é do que um dado biológico inerente à matéria orgânica. A consumação de bens materiais e energéticos no âmbito das relações homem-mundo seria, para este mesmo pensador, a reprodução do modelo transcendente da despesa solar. Sob uma perspectiva geológica, também é possível identificar os excessos dos quais a própria história da terra é constituída: inundações, tsunamis e todo tipo de catástrofe natural. Um sinal claro da presença dessa energia excedente do núcleo do planeta são as atividades vulcânicas que levam a erupções visíveis. Na madrugada do dia 11 de abril de 2020, um mês exato após a OMS declarar a pandemia de Covid-19, o vulcão Anak Krakatoa, localizado em uma pequena ilha de mesmo nome, na Indonésia, entrou em erupção. A coluna de fumaça e cinzas formada por sua explosão subiu até 15km na atmosfera. As imagens que circularam por todos os noticiários naquela semana são um retrato escancarado de um dispêndio energético incontornável. Como se o planeta não pudesse mais conter aquela energia dentro de si, encontrando como resposta a este excesso a expulsão do magma sobre a sua superfície. Essas manifestações de escala maior e ordem mais dramática dos excessos dizem também sobre a impossibilidade de nos preservarmos do desastre. Se o paradigma do excesso está posto para a matéria viva em geral, inúmeras são as maneiras de lidar com ele. É essa a questão que Bataille levanta: o que fazer com o excedente? Este excedente do qual tratamos não é somente o da energia propriamente dita, como os raios solares ou a lava vulcânica, mas também aquela energia que é transformada em matéria, em riquezas de naturezas diversas. A partir dos fluxos de energia causados pelos movimentos de dispêndio é que Bataille traça um olhar para o que ele denomina de economia geral. Fugindo da noção de uma economia clássica regida pelos modos de produção e de circulação do capital, ele pensa uma economia 5

Ibidem, 2013, p. 45.


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onde o corpo também é tido como excesso, despesa e gasto e onde a questão determinante é o uso que fazemos do excedente. A economia geral é o principal veio argumentativo que ele encontra para ordenar seu pensamento sobre a noção de dispêndio. É importante dizer que o dispêndio que interessa a Bataille é aquele improdutivo, que encontra seu fim em si mesmo e não visa o lucro material ou financeiro. Os atos dispendiosos, responsáveis por dar vazão à energia que excede seriam, para o autor, as causas das mudanças estruturais nas sociedades e os verdadeiros marcos históricos das civilizações. Ao passo que Adam Smith e Karl Marx encontram o fundamento da economia política na acumulação da riqueza e em princípios utilitaristas, o que fundamenta a economia geral é a necessidade do consumo, do dispêndio e da destruição, uma vez que o mundo oferece uma abundância inevitável de energia. Através disso, a economia geral também nos leva a pensar sobre o relativismo da utilidade. O “Ensaio sobre a dádiva”, publicado pela primeira vez em 1925, do antropólogo francês Marcel Mauss, foi uma das principais inspirações que alimentou a construção do pensamento de Bataille sobre o dispêndio. No livro, Mauss aborda a configuração de sistemas de dádivas estabelecidos por povos indígenas da Polinésia, Melanésia e do noroeste americano. O ensaio mostra que, para esses povos, a ideia de troca não se baseava em um princípio econômico de acúmulo, mas sim em um processo necessário de dispêndio e destruição de riquezas em lugar de sua preservação. As dádivas, que consistiam em trocas feitas entre coletividades, eram sobretudo construídas por dimensões simbólicas, morais, políticas e sociais. O processo de perda e destruição material era firmador de contratos sociais fundamentais para a manutenção das relações. Quanto mais ricos eram, maiores eram as dádivas ofertadas e, consequentemente, maior era a perda energética e material. Essa perda vinha acompanhada de um ganho em prestígio e respeito por parte dos demais povos. Os relatos de Mauss comprovam o caráter secundário da produção e da aquisição em relação ao dispêndio em organizações econômicas ancestrais. As trocas eram tidas como perdas necessárias, ao contrário do que a economia clássica ainda pressupõe como um antepassado do comércio que parte do princípio da necessidade de aquisição. A partir de Mauss, Bataille atesta que a base das trocas econômicas não passa pela utilidade ou pela produção, mas pelo “excesso, o consumo ou os favores, ou seja, formas improdutivas, que caracterizam perda”.6 6

PEQUENO, F. Georges Bataille, o olho e a economia: a arte como despesa improdutiva. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 24, pp. 1-26, dez., 2014.


Segundo os juízos que estruturam o pensamento de uma economia racional, seria estranho afirmar ou reivindicar a necessidade de um dispêndio material e energético financeiramente improdutivo. Também seria falso dizer que hoje em dia não ocorram episódios de dispêndios materiais em grande escala, muito embora suas motivações sejam radicalmente opostas às dos povos ancestrais sobre os quais Mauss escreveu. A começar, por caracterizarem confissões da impotência de um sistema inescrupuloso e por possuírem intenções claras de lucro material. O filme de Varda é quase uma coleção de maneiras diferentes de se lidar com um excedente que assume formas diversas. Um exemplo que pode muito bem ilustrar o que acabamos de dizer sobre dispêndios materiais em maior escala é o descarte das batatas disformes que o filme mostra. Casos análogos a esse são noticiados com certa frequência em noticiários brasileiros: “Toneladas de tomates são descartadas às margens de estrada no interior de SP” (2020); “Insatisfeitos com o preço, agricultores jogam toneladas de tomate às margens de rodovia” (2019); “Agricultores capixabas jogam carga no lixo” (2017); “Produtores rurais descartam batata às margens da BR-354 após queda de preço em São Gotardo” (2018); “Fazendeiros jogam fora toneladas de batatas” (2018). Essas são apenas algumas das manchetes que ilustram estes casos. Nota-se que, assim como no filme, os espaços onde estes descartes dispendiosos são realizados estão, convenientemente, fora do alcance da vista da maioria das pessoas. As margens de rodovias são frequentemente citadas nesse tipo de matéria, reforçando a vocação dos restos de habitar beiradas, limiares e fronteiras. Acredito que, além das materialidades do abandono e do dispêndio possuírem esta vocação, essas espacialidades também possuem uma forte inclinação a acolher o que não se é desejado ver e o que não se deseja conviver. Na maioria das notícias que falam sobre esse tipo de descarte, duas são as justificativas que mais se repetem. A primeira reproduz o que se mostra no filme de Varda: são descartados os alimentos que fogem do formato padronizado de comercialização exigido pelas grandes redes de supermercados. A outra justificativa diz respeito a uma estratégia contra a diminuição de preços de determinados produtos. É simples: uma vez que a quantidade ofertada diminui através do descarte, o preço aumenta. Por mais absurdo que seja o fato de que isso aconteça com alimentos, ao passo que um grande contingente da população global vive abaixo da linha da pobreza, esta é uma prática antiga. Um exemplo famoso e representativo disso é a queima de sacas de café que ocorreu no ano de 1931 no Brasil. A mando de Getúlio Vargas, estima-se que cerca de 70 milhões de sacas de café tenham sido queimadas ao longo do ano visando o aumento do valor de comercialização do produto.


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Voltando a Bataille, o que ele defende em seu livro e Varda também, até certa medida7 em alguns trechos de seu filme, é a prática de um dispêndio improdutivo. Atividades que empreguem o excesso de energia orgânica e inorgânica de maneira a construir relações outras com as pessoas, coisas e espaços que não tenham como eixo central a produtividade, o utilitarismo e o lucro material. É importante ressaltar que a improdutividade aqui diz respeito a ganhos materiais, pois o dispêndio improdutivo pode proporcionar ganhos que pertencem a outras ordens. Alguns exemplos desse tipo de atividade são a poesia, a arte em suas diversas manifestações, o colecionismo (sem fins lucrativos), as festas e os jogos. Numa sociedade onde é facilmente reconhecido o direito de adquirir, conservar e consumir racionalmente e onde a produtividade é hipervalorizada, o direito ao dispêndio improdutivo tem dificuldade em encontrar o seu lugar. Embora o discurso do consumo racional tenha força, é sabido que há muito tempo ele não é uma realidade prática. Se de fato ele fosse, o contingente de restos e abandonos que habitam o nosso mundo seria consideravelmente menor. Não digo que o consumo excessivo conscientemente impulsionado pelo capitalismo seja o único responsável pela existência dessas materialidades, mas é um dos principais. Ainda assim, o fato de o descarte e o abandono terem grandes proporções não significa que as pessoas tenham menos coisas. O que se descarta ou abandona é substituído por novas versões dos mesmos itens. Não é raro que pessoas se mudem para apartamentos ou casas maiores porque seus objetos encontraram um limite espacial onde viviam anteriormente. Em uma conversa com Edgar Kanaykõ Xakriabá, Ailton Krenak8 disse, com razão, que os brancos gostam de guardar e que são povos acumuladores (ao contrário dos povos indígenas, que não têm em suas habitações armários e mais armários para acumular coisas). Ele disse ainda que os objetos chegaram a se tornar uma extensão dos nossos corpos, almas e imaginários. Não somos capazes de pensar um mundo sem coisas, nossos corpos andam camuflados por objetos ou então arrastando-os. Se os objetos que guardamos e acumulamos podem dizer tanto sobre nós, aqueles que nós abandonamos ou descartamos também podem, assim como o modo através do qual é feito este abandono ou descarte. 7

Até certa medida pois as abordagens de Bataille e Varda em relação ao dispêndio improdutivo são diferentes. Ao passo que Bataille dá ênfase a questões de maior escala, como rituais, construções de monumentos, grandes manifestações coletivas, etc., Varda traz aspectos que tocam uma escala menor – manifestações individuais ou de pequenos grupos. Além disso, Varda também lança um olhar sobre aqueles que dependem dos restos (aqui pensados enquanto excedente material) para sobreviver. O encontro entre os dois pensadores se dá quando eles trazem o dispêndio improdutivo na figura de atividades ligadas à criação e ao prazer, como a arte e a poesia.

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Essa conversa ocorreu pela página do Instagram do projeto Fotografias por Minas – Para imaginar um mundo novo, no dia 26 de maio de 2020. O nome dado ao encontro foi “Olhares indígenas e a percepção de mundos”.


Durante os anos de 2009 e 2010, o fotógrafo sul-africano Pieter Hugo produziu uma série de imagens, intitulada Permanent error,9 de uma área na periferia de Acra, a capital de Gana, chamada Agbogbloshie. Essa região, que fica às margens do rio Odaw na parte oeste da cidade, é conhecida por ser um dos maiores depósitos de lixo eletrônico do mundo. É estimado que a Europa ocidental e os Estados Unidos produzam cerca de 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico por ano, do qual menos de 20% é formalmente reciclado.10 O resto desses dejetos é despachado em contêineres para países como Gana, Nigéria, Tanzânia e Índia. Este é o fluxo de resíduos, e consequentemente de energia, que mais cresce no mundo e é dessa forma que este lixo chega à Acra. Muito embora exista um tratado internacional que proíbe o envio de resíduos eletrônicos a países onde eles não foram gerados, as nações responsáveis pela produção do lixo alegam que não se trata de dejetos, mas sim de produtos de segunda mão. Ainda que mais de 80% dos restos eletrônicos não tenha nem mesmo conserto, repercute ainda o discurso de que o que impulsiona essa prática seja a intenção de atenuar o abismo digital entre os países que ocupam os extremos do desenvolvimento econômico global. Agbogbloshie é um espaço que só existe como tal em decorrência dessa lógica. Existem outros muitos espaços configurados a partir do resto e do abandono: ilhas de plástico formadas nos oceanos (estima-se que a maior delas tem cerca de três vezes a área da França e a maior parte de sua composição provém de restos de materiais de pescaria);11 cemitérios de pneus no deserto do Kuwait; incontáveis lixões a céu aberto, etc. Milhares de pessoas do Gana e de outros países africanos que acabam se tornando parte dessa trama global passam seus dias e suas vidas trabalhando em Agbogbloshie. Como arqueólogos do lixão, eles escavam as pilhas de dejetos em busca de algo que possua algum valor de venda. A fumaça que paira sobre a região é consequência da queima a céu aberto do plástico de computadores e outros aparelhos para a extração de metais como o cobre, o que também vemos acontecer sob alguns viadutos em Belo Horizonte. Muitos dos que trabalham em Agbogbloshie, principalmente aqueles que não são de Acra, acabam montando barracas e morando dentro da própria área do depósito. É ali que 9

Ver <https://pieterhugo.com/PERMANENT-ERROR>.

10 Dado obtido em relatório de 2018 da Organização das Nações Unidas, onde consta que este número chegará a 120 toneladas até o ano de 2050. 11

Dados de uma pesquisa divulgada pela NASA em 2015 que mostra, através de um vídeo, a formação das ilhas ao longo dos últimos 35 anos.


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eles dormem, trabalham e fazem suas refeições, expostos a uma toxicidade que atravessa tudo ao redor. O ar que eles respiram é a fumaça do plástico que queima, a água que eles bebem é contaminada pelos resíduos tóxicos que infiltram o solo e atingem os rios e lagoas das proximidades e, consequentemente, também contaminam os alimentos que eles comem. O documentário espanhol The light bulb conspiracy,12 que trata sobre a obsolescência programada no âmbito de uma política econômica global, revela as origens dessa trama que é responsável pela materialização de cenários como o de Agbogbloshie. Se nos anos 1920 as lâmpadas elétricas tinham uma vida útil de 2500 horas, nos anos 1940 as empresas que fabricassem lâmpadas que funcionassem por mais do que 1000 horas eram multadas por um cartel formado pelas maiores produtoras de lâmpadas da época. Engenheiros e cientistas passaram a ser pagos para sabotar suas próprias invenções e conceber tecnologias programadas para falharem após determinado tempo de uso. Chips que impedem o funcionamento de aparelhos eletrônicos passaram a ser implantados em objetos de uso cotidiano, como impressoras e celulares. São esses mesmos objetos que preenchem milhares de contêineres e atravessam mares e oceanos para se transformarem em fumaça preta e intoxicarem o ar, a terra e milhares de pessoas em países como o Gana. O que dá sentido a essa lógica, embora nada pareça justificar esse tipo de prática desenvolvimentista, é a produção em massa que alimenta uma sociedade de consumo dependente de aparelhos tecnológicos. A obsolescência programada não ressignifica apenas o valor dos apetrechos digitais, mas ressignifica também o valor de seus restos. Este princípio é ainda combinado a uma negligência desmedida em relação às suas consequências. Agbogbloshie é conhecida pelos moradores da região como Sodoma e Gomorra. Na história bíblica, Sodoma e Gomorra foram duas cidades condenadas pelo fato de seus habitantes serem violentos, corruptos e conhecidos por praticarem todo tipo de ato imoral. Deus, então, para punir a população de pecadores, teria destruído as duas cidades em um episódio onde uma chuva de fogo se abateu sobre a extensão de todo o território, queimando e devastando a tudo e a todos. Diferente da história bíblica, os habitantes de Acra não foram condenados por Deus por praticarem atos imorais, mas foram condenados pelos países de maior potência econômica por serem pobres. Em Agbogbloshie, o fogo não vem do céu, mas das pilhas de restos digitais que queimam no chão. As fotografias de Pieter Hugo revelam um cenário digno de se passar por qualquer filme de ficção pós-apocalíptica. Em meio a uma topografia forjada pelo fogo, pela fumaça preta e 12

THE LIGHT Bulb Conspiracy. Direção: Cosima Dannoritzer e Steve Michelson. Noruega, 2010 (75 min.)


pelos montes de monitores, impressoras, fios, micro-ondas, geladeiras, etc., as pessoas trabalham enquanto atravessam e são atravessadas pela constante fuligem que demarca o território. As imagens nos dão a sensação de que o tempo foi suspenso. Parece haver um choque entre tempos e cenários: vemos bois deitados na terra escura de fuligem como se estivessem em um pasto; teclados semi-enterrados como se fossem fósseis pré-históricos; carcaças de computadores espalhadas como se fossem ossadas de animais; homens passando com um emaranhado de fios e cabos sobre a cabeça, como quem carrega uma vasilha de água no sertão. Tudo parece caminhar em um contínuo desajuste. Ao menos nas fotos, todos aqueles restos terão sempre uma função, resistindo à obsolescência programada e à negligência: nos lembrar que todo resto tem destino. Um pouco como Varda em seu filme, Pieter Hugo realiza suas fotografias a partir dos encontros que ele faz em Agbogbloshie. Esses encontros variam de natureza à medida que ele percorre a área: são pessoas, objetos, animais e arquiteturas residuais. Dentre as pessoas que encaram a câmera, todas parecem estar cansadas. Na série, as únicas fotos que possuem um título são aquelas em que somos olhados e seus títulos levam justamente os nomes das pessoas que nos olham. Hugo parece querer nos lembrar que dentro daquele universo de parafernálias eletrônicas habitam muitos outros universos pessoais, como o do Renato ou do Henrique, catadores que conheci entre feiras e antiquários de Belo Horizonte. Já que no início do texto falamos sobre os encontros entre Varda e os catadores, na França, e agora contamos sobre os encontros de Hugo em Agblogbloshie, no Gana, vamos nos aproximar um pouco mais da nossa realidade neste instante. Renato foi um dos catadores que conheci no segundo andar do Edifício Arcângelo Maletta, onde além de bares, se encontra uma grande concentração de sebos e algumas lojas de discos e de antiguidades. Imagino que o Renato tenha algo em torno de 30 anos, ele tem um filho pequeno e mora na rua há algum tempo. Ele vive do garimpo de objetos e de alguns trabalhos informais como pintor, eletricista, montador de móveis, etc. Em nossas conversas, ele demonstrava orgulho ao falar sobre suas técnicas enquanto catador. Dizia que pelo toque por fora das sacolas de lixo, já sabia dizer facilmente o que havia em seu interior. Também se orgulhava do cuidado que tomava para não sujar a cidade e se exaltava ao falar de alguns amigos que rasgavam as sacolas e deixavam o lixo espalhado. Renato tem um itinerário semanal que compreende alguns bairros da cidade, ele não trabalha no centro porque diz que a concorrência é maior. Não abre mão de ir ao Floresta durante, pelo menos, 3 dias na semana. Segundo ele, é o bairro onde é possível encontrar mais antiguidades abandonadas. Quando eu contei sobre o meu interesse em fotografia, ele disse que en-


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contrava diariamente imagens abandonadas nas caçambas. Na mesma hora, tirou da mochila uma foto que havia encontrado no dia e me deu. Disse que já encontrou um saco com mais de mil fotos antigas. Me contou também sobre outros objetos preciosos que garimpou: uma caixa repleta de joias em ouro, uma espada de samurai original do Japão e um lustre de cristal. Perguntei se ele aceitaria andar com uma câmera durante alguns dias e fazer registros do seu garimpo, ele aceitou sem hesitar. Marcamos de nos encontrar no sebo no dia seguinte, quando eu levei uma câmera analógica e a entreguei a ele. Expliquei rapidamente como a câmera funcionava e não dei nenhuma direção para as fotos, disse que me interessava saber sobre seus encontros com os abandonos e os restos da cidade. Combinamos de nos encontrar na semana seguinte para que eu pegasse a câmera de volta e levasse o filme ao laboratório. Assim que nos reencontramos, ele me perguntou quando poderia pegar a câmera novamente. Disse que havia pegado o jeito com facilidade e que se sentiu bem fotografando. Pareceu sincero. Terminaremos, então, com algumas das imagens fotografadas gentilmente pelo Renato, representativas dos tantos encontros que ele e outros catadores têm diariamente durante o seu cotidiano de garimpo na cidade.

Renato. Encontros noturnos ou a vida das coisas, 2019, Belo Horizonte.



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O futuro será um retorno a caverna...

Subindo aquela ladeira inóspita e desabitada, sob a luz amarela intermitente dos postes públicos, já tortos pelo vento forte que, em suas tormentas, soprava do mar, de uma ruela escura acendeu-se a chama de um isqueiro. Pouco se iluminou daquele espaço oculto aos habitantes da cidade. Mas alguém ali foi convidado a entrar, tateando o chão bruto de pedras carregadas do limo escorregadio e das paredes estreitas, descascadas e mutiladas. Havia nestas paredes uma espécie de alto-relevo que em nada se assemelhava àqueles romanos. Já há muito tempo em ruínas, a mão insegura deste visitante irreconhecível tateou um nariz faltante, uma face esfacelada. Uma luz vermelha piscou de uma pequena janela o que lhe permitiu a visão, por alguns instantes, daquele alto-relevo soterrado. A ruela se estreitava cada vez mais, e o visitante inseguro continuou com seus passos leves para não despertar a atenção daqueles corpos que ali se amontoavam em situações rudimentares. Olhando para o alto, viu um homem agarrado a uma rede de pesca toda arrebentada, não sabia ao certo se era rede de pesca de naylon, ou uma rede de arame retorcido. Mas sabia que aquele homem agarrado àquela rede estava contorcido num ritmo dançante como uma aranha quando tece sua teia na calada da noite. Mas esta teia não tinha nenhuma simetria natural. O homem parecia se arrebentar junto aos fios e os fios lhe marcavam a carne em uma simbiose única e primordial.


O tempo estava úmido após uma torrencial chuva, e o barulho das cigarras, grilos e sapos pareciam o tic-tac de um relógio cujos segundos estendidos marcavam o ritmo de aparições dos seres daquela caverna. Um corpo sujo atravessou o caminhar do visitante sem lhe mostrar a face, apenas do peito se notavam suas costelas, levando-o a crer que talvez fosse um corpo humano magro que vagava às escuras. Notou o visitante, através de uma luz fraca, mas suficiente para projetar a sombra no muro de um portão de ferro no estilo rococó, sinalizando que em outras épocas houveram construções humanas projetadas. Mas aquele portão, agora enferrujado, fora esquecido como todo o resto dos vestígios humanos que se encontravam por ali. Sobre uma pedra que sobressaltava da parede mutilada, um corpo nu se estendia sob a luz prateada da lua como se estivesse na beira da praia. Mas já passava da meia-noite e aquele corpo que pouco se movia parecia inebriado do ar úmido e dos vapores que exalavam das pequenas janelas semiabertas, vapores de ervas, de fluidos, de excreções... Já no fim do beco, o visitante adentrou em uma das tendas da onde se podia ouvir uma música sensual. O teto estava repleto de objetos pendentes, fios, lâmpadas, correntes, e tantas outros pendentes que ele não conseguia identificar. No fim da ruela, sob um fundo vermelho, onde se misturava uma parede descascada com tecidos velhos e rasgados uma mulher dançava nua e insinuante sem que ninguém a percebesse, a não ser este nosso visitante.

Ben Tofan. 2020, Sydney-NSW, Austrália.


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Até que percebamos que as coisas podem não ser, não podemos perceber que as coisas são. G. K. CHESTERTON

Em sua obra Filosofias da Índia, Heinrich Zimmer, ao se dedicar ao budismo, escreve: Dentre as muitas respostas que têm sido oferecidas há milênios, nos quatro cantos do mundo, para soluções aos enigmas da vida, a do budismo deve ser considerada como a mais inflexível, obscura e paradoxal.1

A observação de Zimmer, que abre a seção que se atém ao “conhecimento búdico”, abre uma instigante perspectiva no caminho da compreensão das razões pelas quais um autor como Cioran – cujos pensamento e escrita não apenas não evitam o paradoxo, mas nele e por ele parecem atuar – declare, em vários momentos de sua obra, interesse pelos princípios e práticas do budismo. Abordar o tema do budismo em Cioran está longe de ser uma tarefa simples. Isso ocorre não apenas em virtude da notável complexidade das inúmeras doutrinas budistas, nem tampouco em função das reconhecidas dificuldades que a visão de mundo ocidental encontra ao interpelar o pensamento oriental. De fato – como aliás ocorre habitualmente no campo dos estudos temáticos em Cioran até o momento –, não há trilha aberta e bem sinalizada que nos conduza ao nosso intuito. Embora isso se deva, em parte, ao elemento estilístico que marca fortemente a escrita cioraniana – questão, aliás, explorada pelo próprio autor em diversas oportunidades, notadamente no ensaio Le style comme aventure, de La tentation d’exister2–, por outro lado não é menos decisiva a escassez de estudos até aqui publicados acerca da presença do budismo em sua obra. Aduz-se daí a importância de observar ao menos duas questões iniciais. 1

ZIMMER, H. Filosofias da Índia. Tradução de Nilton A. Silva e Cláudia G. Bozza. 4 ed. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 336.

2

CIORAN, E. M. Œuvres. Paris: Gallimard, 1995, pp. 894-901.


Em primeiro lugar, impõe-se certa cautela no tratamento de alguns pormenores da biografia intelectual de Cioran: é preciso considerar a amplitude e a qualidade do contato que o autor teria, de fato, ao longo de sua trajetória e de sua produção, estabelecido com as doutrinas búdicas e budistas.3 Sabe-se que, sobretudo a partir do início do chamado “período francês”, marcado pela publicação, em 1949, da obra Précis de décomposition (Breviário de decomposição, na tradução brasileira de José Thomaz Brum), Cioran intensifica suas pesquisas em torno do pensamento de matriz oriental. Nesse cenário, o autor parece dedicar especial atenção ao budismo, o que se deve, em parte, à sua proximidade com o notável historiador de religiões Mircea Eliade (nascido, como Cioran, na Romênia dos primeiros anos do século XX) e ao contato com sua obra, bem como ao convívio com os estudos de De La Vallée-Poussin e Lilian Silburn.4 Vale mencionar também entrevista concedida a Léo Gillet,5 pela qual Cioran revela nominalmente algumas de suas fontes de estudo do pensamento oriental, assim como faz em diversas passagens de seus Cahiers.6 Desse modo, no que concerne a esta primeira questão de base, pode-se dizer que o interesse do autor pela matéria é rematado pela reunião e pelo estudo de importante material bi3

A palavra “budismo” deve aqui ser entendido como emprego de sinédoque. De fato, a importante distinção entre as qualificações “búdico” e “budista” pretende, de início, demarcar uma diferença entre a doutrina atribuída ao Buda Gautama (conhecida como pensamento búdico ou budismo primitivo) e as doutrinas dela derivadas. Vale observar que diversos estudos abordam o problema de uma possível “unidade” do budismo, sob diferentes aspectos – histórico, filosófico, religioso, cultural, social. O problema não é de tratamento unívoco, tendo em vista não apenas os cerca de 2500 anos de história do budismo, mas também as idiossincrasias doutrinais e geopolíticas geradas por sua trajetória histórica. Nesse sentido, vale notar a questão proposta por Stephen Laumakis, e à qual o autor dedica todo um capítulo de sua obra Uma introdução à filosofia budista: “Um budismo ou muitos budismos?” Ver LAUMAKIS, S. J. Uma introdução à filosofia budista. Tradução de Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2010. Gesto semelhante, porém em perspectiva pouco mais abrangente, é o de Jean-Pierre Osier, em sua apresentação do poema Dhammapada. Ver DHAMMAPADA. Tipitaka. Suttapitaka. Khuddakanikaya. Tradução de Jean-Pierre Osier. Paris, Flammarion, 1997. Estilo mais prosaico na abordagem do tema (porém não menos notável e informativo) adota, por sua vez, Eknath Easwaran em sua versão do mesmo Dhammapada. Ver DHAMMAPADA. Tradução de Eknath Easwaran. 2 ed. Tomales, California: Nilgiri Press, 2007. A obra Budismo, de Bradley K. Hawkins, merece destaque, por sua vez, em virtude de sua proposta de descrever, de forma agradável e arguta, as práticas, rotinas e peculiaridades envolvidas pelo budismo em suas diferentes vertentes, épocas e regiões. Ver HAWKINS, B. K. Budismo. Tradução de Helena Leuschner. Lisboa: Edições 70, 1999.

4

CHENET, F. Cioran et le bouddhisme. In TACOU, L; PIEDNOIR, V. Cahier L’Herne. Paris: Éditions de L’Herne, 2009, pp. 272-273.

5

CIORAN, E. M. Entretiens. Paris: Gallimard, 1995, pp. 61-97.

6

Ibidem, pp. 61-97. Observa Cioran que os três principais autores que compõem a escola budista Madhyamika, - - “Nagarjuna, Çandrakirti et Shantideva” (sic.), são “os filósofos mais vertente ligada à tradição Mahayana, sutis (subtils) que se possa imaginar”, e que suas reflexões conduzem a um estado final de libertação do indivíduo, por sua vitória sobre o mundo (“On a triomphé du monde”).


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bliográfico sobre o pensamento oriental, o que teria facultado a Cioran a elaboração de suas reflexões sobre alguns aspectos, sobretudo práticos, do budismo. Além disso, sabe-se que sua pesquisa se acentua a partir de sua instalação definitiva em Paris, dado que se apura não apenas a partir de sua produção, mas também por via biográfica, de resto sempre relevante quando se trata de Cioran. Uma segunda importante questão inicial – em certo sentido indissociável da primeira – refere-se ao estudo da presença manifesta, na produção cioraniana, do budismo e da doutrina búdica, recuperada seja enquanto prática religiosa, seja enquanto corpo de princípios filosóficos. Nesse sentido, vale notar: aparentemente, não há em Cioran um estudo extensivo sobre o budismo. Observar esta segunda questão corresponde, portanto, a dedicar especial atenção aos aspectos eventualmente privilegiados pelo autor, a partir daquelas fontes que lhe facultaram o conhecimento do pensamento oriental e, em especial, do budismo. Em outras palavras, a presença do budismo em Cioran parece ser tanto mais poderosa quanto mais agudamente o tratamento de certos problemas e conceitos discutidos pelo budismo ao longo de sua história e em suas inúmeras vertentes se vincula aos propósitos filosóficos do autor. Entre esses problemas estão, por exemplo, os do apego, da natureza da consciência ou da renúncia. Observe-se trecho da supracitada entrevista concedida em 1982, em que Cioran declara, com intenções elogiosas, que o budismo “é uma religião que não prescreve senão o conhecimento”, e acrescenta que com ele aprendemos “que somos apenas agregados, agregados que se desvanecem, que não têm realidade; nos demonstra nossa não-realidade” .7 Por ocasião de tal declaração, ao dizer que não somos senão agregados (composés), Cioran parece ter em mente o complexo conceito budista de khanda, termo páli que pode ser traduzido por “agregado” ou “categoria”. Os agregados são grupos de elementos que, segundo a doutrina búdica, reúnem “todos os fenômenos mentais e físicos da existência, e que aparecem ao homem ignorante como seu ego, eu ou personalidade”.8 Na perspectiva budista, os agregados 7

Ibidem, p. 82. Exceto quando manifesto ou indicado, todas as traduções para a língua portuguesa são de responsabilidade do autor, que se limita a mencionar expressões estrangeiras apenas diante de possíveis ambiguidades de tradução.

8

Sob um ponto de vista que diríamos, em termos ocidentais, ontológico, os agregados são cinco categorias analíticas, elencadas em função de sua relação com diferentes aspectos da existência: a) o corpo; b) os sentimentos; c) as percepções; d) as impulsões e emoções; e e) os atos de consciência. Para um estudo mais detalhado do conceito de khanda, veer DHAMMAPADA. Tradução de Nissim Cohen. 3 ed. São Paulo: Palas Athena, 2004, pp. 248-249; CONZE, E. Le bouddhisme. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1995; DHAMMAPADA, Tradução de Eknath Easwaran. Op. cit., pp. 82-86. É importante observar que, a exemplo do que ocorre em relação ao termo khanda, diversas expressões e conceitos budistas são, em toda a sua complexidade, de difícil – para não dizer inviável – tradução e compreensão em língua portuguesa (e, de modo geral, sob chave


são habitualmente considerados, pelo homem comum em sua vida ordinária (no que se chama de “roda dos renascimentos”), como se fossem permanentes; mas, na verdade, estão em incessante mudança. Na supracitada declaração de Cioran, o “agregado” não aponta, portanto, senão uma realidade evanescente e, no limite, segundo a concepção budista, mesmo “não-realidade”. No capítulo XXV do Dhammapada, dedicado ao bhikkhu (“sábio”, “discípulo” budista – termo que a seguir será retomado), ocorre a seguinte referência ao khanda. Sempre que ele compreende o surgimento e desaparecimento dos agregados (do ser), Alegria e felicidade ele obtém, que é não-morte para aqueles que discernem.9

Por sua vez, na seção XX do Dhammapada (Do caminho), lê-se:

- - são insatisfatórias Todas as coisas compostas [samkhara] . [dukkha]. Tão logo alguém vê (isto) com sabedoria, Então do sofrimento ele se enfastia; este é o Caminho da Purificação.10

- - conceito que está na base do conceito de Nesta última citação, ocorre o termo samkhara, . - - também não é tarefa simagregado. Naturalmente, a tradução do substantivo páli samkhara . ples, e apresentar uma conceituação exaustiva a seu respeito não é, obviamente, intenção deste estudo. Entretanto, uma compreensão básica da expressão mostra-se relevante para o exame do pensamento de Cioran na declaração em foco. de leitura ocidental), problema que nos convida a uma atitude modesta e cuidadosa diante das possibilidades semânticas disponíveis. Procuraremos aqui uma explicação mínima de alguns conceitos fundamentais, esforço circunscrito, obviamente, aos propósitos da presente pesquisa. Em tempo: no presente estudo, foram observadas as regras de transliteração do páli para o modelo românico estabelecidas pelo Sistema Internacional para Transliteração Sânscrita (International System for Transliterating Sanskrit), desenvolvido ao longo do século XIX e formalizado em 1894. Os princípios ali firmados são adotados por Nissim Cohen, responsável pela tradução brasileira do Dhammapada utilizada nesta pesquisa. A propósito, acerca da importância e do significado do Dhammapada para a tradição budista, note-se o abrangente comentário introdutório de Eknath Easwaran. Ver EASWARAN, E. The Dhammapada. Tomales: Nilgiri Press, 2007. 9

Sempre que o Dhammapada for aqui citado com a abreviatura “v.”, o número de referência corresponderá ao verso do poema. Citações da mesma edição aqui tomada como referência, e que não sejam do próprio texto (ou seja, apresentações, notas, glossário, posfácio e apêndices), serão acompanhadas da abreviatura convencional de paginação “p.”, como já ocorreu acima.

10

DHAMMAPADA. Tradução de Nissim Cohen. Op. cit,. v. 278.


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- -indica a totalidade das “coisas compostas”, “mundo das Na perspectiva búdica, samkhara . coisas”. Pode ser entendido como simplesmente “mundo”, ou ainda “mundo empírico”. A expressão aponta o que Cioran denomina – em sintonia com a doutrina budista – de l’ersatz d’être, algo como “substituto” de ser, débil e inessencial (não propriamente “cópia”, o que poderia sugerir um certo platonismo que não se verifica em Cioran). Ou seja, para o autor, l’ersatz d’être seria a estrutura mesma do composé.11 Analogamente, na perspectiva budista, samkha. ra- sustenta o khanda: o “mundo”, evanescente, seria o lugar dos “agregados”, inessenciais. - - ao indicar as coisas do mundo ordinário, compreende também o mundo Além disso, samkhara, . psicológico, nossas “formações mentais”, ou simplesmente “ideias”12 – como se comprova, aliás, pelo próprio exame das categorias supracitadas, compreendidas pelo conceito de “agregado”. Tenhamos a prudência de admitir que tudo aquilo que nos ocorre, todo evento, bem como toda relação, é inessencial, e que se há aí algum saber, o que ele deve nos revelar é o benefício de evoluir entre fantasmas.13

- - as próAssim, segundo Cioran, e em sintonia com o sentido búdico do conceito de samkhara, . prias relações formadas pelo pensamento (“tudo aquilo que nos ocorre”) – “febre em meio a ficções”, “sobrecarga de trabalho no interior do não-saber”14 – são igualmente impermanentes. É nesse palco que o pensamento atua, estabelecendo conexões, debatendo-se, exasperando-se em busca do saber, em um drama circunscrito à debilidade fantasmática do ersatz. Perspectiva semelhante nota-se, por exemplo, a seção XIII do Dhammapada, intitulada Do mundo. Ali, a indulgência em face da ilusão do pensamento e da cegueira do desejo revela-se como a própria sustentação e condição de possibilidade do mundo: Que o homem não siga aos fins indignos, que ele não viva em remissão; Que o homem não siga pontos de vista falsos, que ele não seja do mundo a sustentação. [...] Quem assim olhar o mundo, o Rei da Morte [Mara] não vê.15

11

CIORAN. Œuvres. E. M. Op. cit., pp. 1219-1220.

12

DHAMMAPADA. Tradução de Nissim Cohen. Op. cit., p. 117.

13

CIORAN. E. M. Œuvres. Op. cit., p. 1219.

14

Ibidem, loc. cit.

15

DHAMMAPADA. Tradução de Nissim Cohen. Op. cit,. vv. 167-170.


Percebe-se que a concepção cioraniana encontra apoio em alguns aspectos da doutrina bu- - Contudo, embora esse ponto de partida pareça auspicioso, é preciso obdista do samkhara. . servar que o apreço de Cioran pelo budismo não é livre de componentes problemáticos. De fato, percebe-se que sua inclinação aos preceitos e práticas budistas conta com uma objeção em especial, que não é propriamente de caráter especulativo, mas que, sobretudo, resulta de uma irredutível idiossincrasia de temperamento. Tal objeção diz respeito àquele conceito de renúncia. Ora, se é verdade – conforme a declaração de Heinrich Zimmer recuperada no início deste estudo –, que o budismo deve ser considerado, desde suas origens, “paradoxal”, parece igualmente verdadeiro que a relação de Cioran com o budismo se apresenta, não raro, pouco congruente. Um dos principais aspectos dessa incongruência tem como base a questão budista da renúncia (nekkhamma), sobre a qual Cioran se posiciona pessoalmente, por exemplo, em outro trecho da já mencionada entrevista concedida em 1982. (...) a grande ideia do budismo é a renúncia. E eu devo dizer que, quando observo em torno de mim, vejo pouquíssimas pessoas que sejam capazes de renunciar. E eu mesmo, para dizer a verdade, constatei que eu sou incapaz disso.16

No que concerne ao tema da renúncia, o ponto mais elevado da doutrina parece ser a atitude do bhikkhu, a figura sapiencial demissionária do budismo. A tradução literal deste termo páli . é “mendicante” (bhikshu, em sânscrito). Ela designa o monge da Ordem (Sangha) Budista.17 O bhikkhu é o discípulo, mas é também o sábio, “alguém que se tem devotado à tarefa de seguir o Caminho pela renúncia às distrações dos afazeres mundanos”.18 16 CIORAN, E. M. Entretiens. Op. cit., p. 83, destaque do autor, via transcrição. 17 DHAMMAPADA. Tradução de Nissim Cohen. Op. cit., p. 230. 18 Ibdem. p. 245. Para uma configuração mais acabada dos complexos perfis psicológico e moral do bhikkhu no contexto do Dhammapada, leia-se ali a seção XXV. Para um estudo das práticas do bhikkhu em um contexto de técnicas yóguicas, ver ELIADE, M. Yoga: imortalidade e liberdade. Tradução de Teresa de Barros Velloso. 5 ed. São Paulo: Palas Athena, 2012, pp. 146-156. Ao considerar o tema budista da renúncia, Mircea Eliade – vale lembrar: interlocutor direto de Cioran – observa que, no limite, mesmo os simbolismos da morte, do renascimento e da iniciação estariam intrinsecamente ligadas ao tema da renúncia, uma vez que o bhikkhu deve, pela experiência da renúncia, construir um “novo corpo”, pelo qual “renasce”. Ibidem, p. 144. Em outras ocasiões da mesma obra (que Cioran provavelmente conhecia), Eliade destaca as perspectivas místicas e sacrificiais da renúncia (respectivamente, cap. II e IV). As observações de Eliade reiteram a relevância e a amplitude do conceito de renúncia para o budismo, cujos pormenores não podem, obviamente, ser aqui explorados. De fato, a fecundidade do conceito pode ser verificada já por ocasião do evento fundador do budismo, o episódio da jornada do despertar do próprio príncipe Gautama, ocorrida no território hoje conhecido como Nepal. De fato, considera-se que, a partir de um gesto de renúncia (o ato de abandonar o conforto da vida doméstica e da famí-


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Assim, uma vez admitida e assinalada a importância central da renúncia, os termos do conflito de Cioran parecem ser os seguintes: se há, por um lado, a sedução do ideal búdico e o encanto pela sabedoria do bhikkhu, por outro lado, permanece intacta – ora secreta, ora manifesta – a atitude intelectual do cético, a convicção da inacessibilildade daquele ideal de sabedoria, como se apura claramente da declaração supracitada. Não obstante a poderosa presença da figura sapiencial que se impõe por sua conduta abnegada, a maneira cética parece ser mesmo derivada de uma reiterada cautela por parte do autor em face da urdidura doutrinária e conceitual budista, cuja complexidade não escapa a Cioran.19 O autor é inequívoco: é ele próprio incapaz de renunciar ao seu “eu”, esse composé. Um dos territórios budistas de mais difícil acesso e conquista seria assim, aos olhos de Cioran, a renúncia. Sua declaração nas Entretiens vai além da lembrança de um conceito central do budismo, cuja força doutrinária e prática é equivalente ao desafio por ele imposto. De fato, mais do que isso, ao declarar-se “incapaz” diante daquela que seria a “grande ideia” do budismo, o autor, aparentemente resignado em sua manifesta inaptidão, não deixa de observar que “pouquíssimas pessoas” seriam “capazes de renunciar”. Não obstante algumas discretas divergências – majoritariamente de ordem prática –, a renúncia consiste, de fato, em um item de fundo compartilhado pelas inúmeras variantes da - e Mahayana. - - 20 Já se nota doutrina budista, nominalmente as principais vertentes, Theravada lia), o príncipe torna-se, aos olhos dos demais, “um dos que não retornam” (anagami), abrindo caminho para -. ser um Arahat, termo que indica algo como “nobre” ou “santo”, “aquele que alcançou a experiência do Nirvana e foi radicalmente transformado por ela”. HARVEY, P. A tradição do budismo: história, filosofia, literatura, ensinamentos e práticas. Tradução de Claudia Gerpe Duarte, Eduardo Gerpe Duarte. São Paulo: Cultrix, 2019. p .106. 19 É conhecida a presença do ceticismo em Cioran. Em outubro de 1967, dois anos antes da publicação original de Le mauvais demiurge, escreve o autor em seus Cahiers: “Perguntam-me: o Sr. foi influenciado por X e Y? – Não. Eu tive apenas dois mestres: o Buda e Pirro”. CIORAN, E. M. Cahiers. Paris: Gallimard, 1997, p. 529. Obviamente, não há aqui oportunidade para um tratamento extensivo da questão, mas é certo que o ceticismo ocupa lugar privilegiado na Weltanschauung de Cioran.

- indica uma das antigas “escolas” do budismo, e é, de um modo geral, empregada para 20 A expressão Theravada - é corpo designar o conjunto de práticas e princípios associados a um budismo primitivo. O budismo Theravada - - (o “Grande Veículo”), doutrinal distinto (e em alguns casos, concorrente) da visão auto-denominada Mahayana àquele cronologicamente posterior. Há, de fato, entre esses dois grandes corpos doutrinais, marcantes diferenças sob vários aspectos, embora as peculiaridades das inúmeras escolas budistas não possam ser confinadas a - - são foressa dualidade elementar. No que concerne à prática, por exemplo, vale notar que, se à escola Mahayana - por sua vez, defende o ideal da temente associados os valores da compaixão e do altruísmo, a escola Theravada, ação individual e solitária como caminho para a Iluminação. É especialmente a esta segunda via que se volta, por interesse prático e por temperamento, a atenção de Cioran. Para um exame mais completo da questão da formação das escolas búdicas e de suas idiossincrasias, ver LAUMAKIS, S. J. Op. cit., cap. 4; USARSKI, F. O budismo e as outras. São Paulo: Ideias & Letras, 2009, seção 1, cap. 2 e CONZE, E. Op. cit., cap. IV e V.


que a configuração do conceito de renúncia não envolve apenas aspectos de ordem moral. De qualquer modo, o sentido moral não é, aparentemente, o único pretendido por Cioran por ocasião de sua curiosa declaração de incompetência: a amplitude da noção de renúncia só se revela em plena força a partir da explicitação de sua dimensão metafísica, aspecto fundamental que Cioran provavelmente não negligencia. Segundo o Dicionário budista compilado em 1946 por Nyanatiloka Mahathera (nome de ordenação de Anton Walther Florus Gueth), o termo nekkhamma é empregado para indicar, de modo amplo, renúncia ao desejo sensual, ao mundo sensorial. Um entendimento elementar do conceito de nekkhamma passa pela compreensão de seu campo de ação, o que - - O termo upadana - - pode ser comnos conduz a mais um importante conceito: o de upadana. preendido por “apego”. Representa assim o estado mental a ser superado pelo ideal- de- re- - e nekkhamma é, portanto, antinômica. O estado de apego é núncia. A relação entre upadana um tipo de “instatisfação constante” (tanha . , termo páli algo próximo de “avidez”, “sede”, ou mesmo “desejo”), derivada de um poderoso engano (avidya) que se revela, no plano da ação, como um hábito: (...) pelo hábito de mergulhar no fluxo permanente de atividades corporais, mentais e emocionais que o levam a se perceber como portador ‘autônomo’ de todas as experiências, sensações e conteúdos mentais”.21

Tal hábito (apego) revela-se, como já se nota, mais poderoso do que uma simples rotina acessória instalada no campo da ação cotidiana. Sua prática engendra e sustenta a ilusão de um “eu”,e garante o modo próprio pelo qual o homem comum se relaciona consigo mesmo e com o mundo. Essa rotina “nasce e intensifica-se a partir de uma carência continuamente frustrada”, de um desejo radical, cúmplice de uma “busca incessante por algo permanente e seguro que poderia determinar um preenchimento satisfatório” daquele desejo.22 Tal desejo poderia assim, sem risco de excesso, ser mesmo escrito com a inicial maiúscula: Desejo, uma vez que se trata do desejo medular e ordinário de todo e de cada indivíduo: o desejo da permanência, da continuidade do agregado que cada um de nós denomina “eu” ou “indivíduo”. No limite, trata-se do desejo de perenidade da própria existência do mundo das coisas. Nesse panorama, a ideia de renúncia consiste em um desafio radical que, em sentido moral, traça um horizonte de sabedoria: renunciar é renunciar ao Desejo. Aos olhos de Cioran, 21 USARSKI. F. Op. cit., p. 30. 22 Ibidem, loc. cit.


125–125

trata-se de uma sabedoria inacessível, não apenas a ele mesmo, mas também à humanidade em geral, com exceção de “pouquíssimos” dispostos a (e capazes de) tornar “sua mente liberta de tudo”, de superar seu “eu”, de vencer o desejo capital e trilhar o caminho da libertação indicado pelo budismo. Nos limites da doutrina, o modelo sapiencial é, obviamente, o 23 próprio ´Sakyamuni, que abriu o caminho libertador. Ao longo da senda da sabedoria budista eleva-se obstinado, portanto, um gigantesco obstáculo, o obstáculo por excelência: a forte perseverança naquele “eu” – em termos ocidentais, a adesão confiante na continuidade da unidade ontopsicológica com a qual habitualmente nos identificamos, e a cujo sentido não estaríamos dispostos ou preparados para abdicar. Assim, ao declarar sua incapacidade de renunciar, de se libertar do apego, Cioran não porta senão a voz do homem ordinário, expendido em cada um de nós, cativos do mundo costumeiro. Em face da união perfeita entre esse mundo (o “mundo das coisas”) e o homem ordinário, o ideal do ´Sakyamuni impõe o desafio mais elevado da doutrina budista, que é a renúncia. Nossas inclinações normais nos conduzem a admitir a relativa permanência das coisas, a felicidade que há no mundo e o poder – por mais sutil que seja –, que exercemos sobre as circunstâncias que nos cercam e sobre nós mesmos. Apenas aqueles que são extremamente sensíveis à dor e ao sofrimento, e que possuem uma considerável aptidão à renúncia, se inclinariam naturalmente a estar de acordo com a análise búdica. Contudo, para fazer plena justiça ao ponto de vista búdico, e ver o mundo como o vêem os budistas, é preciso aceitar passar pelas meditações prescritas, que, por si só, garantem, mantêm e amadurecem a certeza de que este mundo é completamente, absolutamente, sem valor.24

Observar alguns dos termos que conduziram Cioran àquela “renúncia à renúncia” corresponde, por um lado, a restabelecer certa justiça ao reiterado interesse do autor pela doutrina budista. Nessa espécie de genealogia da renúncia, destaca-se um momento de franca disposição contra o poderoso apelo da permanência individual: trata-se do ensaio L’indélivré, da obra Le mauvais démiurge. Um exame desse texto nos faz compreender de forma mais completa aquela tardia “renúncia à renúncia”, que se revela então como uma curiosa fusão de humildade, orgulho e compaixão.25

´23 Na tradição budista, “Sakyamuni” é a expressão em páli que designa o “sábio silencioso do clã dos ´Sakya”, ou seja, o nome (ou o epíteto) pelo qual passou a ser conhecido o príncipe Gautama após a iluminação; em suma, designa o próprio Buda. ZIMMER, H. Op.cit., p. 337. 24 CONZE, E. Op. cit., pp. 150-151. 25 No momento em que este trabalho é escrito, a obra Le mauvais démiurge ainda não conta com uma tradu-


Assim como em sua obra anterior, La chute dans le temps (1964), Le mauvais démiurge se insere em um contexto de “depreciação do tempo e da história”, “elaborada sobre uma visão execrável do gênero humano”,26 reflexão que se consuma com a publicação seguinte, Do inconveniente de ter nascido (1973).27 No ensaio L’indélivré, percebe-se, em colóquio com alguns princípios budistas de diferentes vertentes e orientações, um Cioran que defende a possibilidade do acesso à renúncia pela via de uma experiência mística: a experiência do vazio (l’expérience du vide), ou pela via do “desastre incomparável” da experiência do vazio,28 reservada àquelas “pouquíssimas pessoas” capazes de escapar do jugo do mundo ordinário e das conformações mentais regulares. No espetáculo da convulsão do pensamento ao qual os homens comuns se afincam por força do apego, alguns indivíduos são capazes de vislumbrar (raros) instantes que os permitem observar o drama da agitação e da respiração ofegante (halètement). São átimos de suspensão, pausas no delírio, momentos de sensatez. Tais instantes, se tomados em conjunto, se confundem com o que Cioran denomina experiência do vazio. Tal experiência é, na verdade, uma espécie de estado meditativo, que “implica a supressão momentânea do desejo, pois é ele, o desejo, que nos submerge no não-saber, que nos faz divagar, e nos compele a projetar o ser em toda parte em torno de nós”.29 ção em língua portuguesa. Em espanhol, a obra conta com pelo menos duas versões: se a versão argentina de Carlos Taurino Rotens traz o título El malvado demiurgo (ver CIORAN, E. M. El malvado demiurgo. Tradução de Carlos T. Rotens. Buenos Aires: Terramar, 2012), a edição espanhola de Fernando Savater prefere El aciago demiurgo (ver CIORAN, E. M. El aciago demiurgo. Tradução de Fernando Savater. Madrid: Taurus, 1986), que parece opção melhor. De qualquer modo, na ausência de uma alternativa em português, o autor deste estudo opta por manter o título no original. É semelhante o caso do neologismo l’indélivré, empregado por Cioran para intitular a seção em apreço. 26 BALAN, G. Emil Cioran. Paris: Éditions Josette Lyon, 2002, p. 144. 27 Das três obras citadas neste parágrafo, apenas De l’inconvénient d’être né conta atualmente com uma tradução em língua portuguesa, publicada em Portugal, em 2010, pela editora Letra Livre, com tradução de Manuel de Freitas. A trilogia assenta as bases da visão bogomilista de Cioran, cuja importante abordagem ainda carece de estudo mais detido. Sobre o bogomilismo, doutrina anticristã de índole ascética que estaria na origem da heresia cátara (ou albigense) do século XII, ver POTESTÀ, G. L.; VIAN, G. História do cristianismo. Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2013, cap. XII, especialmente sua seção 8. Também Lindberg traça a respeito um panorama histórico, ao examinar a Igreja medieval. Ver LINDBERG, C. Uma breve história do cristianismo. Tradução de Paula Silvia R. Coelho da Silva. São Paulo: Loyola, 2008, cap. 7. Originalmente em português ver AQUINO, F. Para entender a inquisição. 11 ed. Lorena: Cléofas, 2019, em sua esclarecedora análise das heresias dualistas e do gnosticismo. 28 CIORAN, E. M. Œuvres. Op. cit., p. 1220. 29 Ibidem, p. 1219.


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´ O conceito de vazio (sûnyatâ) recuperado por Cioran é de capital importância no budismo. Ao explorar sua etimologia sânscrita, Edward Conze observa que a palavra vazio pode bem ser tomada como sinônimo de não-eu. Contudo, é preciso cuidado para notar a especificidade do conceito de ´sûnyatâ: “vazio” não é o mesmo que “nada”. Segundo Conze, não se deve compreender o vazio (ou a vacuidade) como “um simples ‘nulo’ ou um ‘branco’. A palavra significa ausência de si, supressão de si. No pensamento búdico, certas ideias se associam umas às outras de um modo que, para nós, não é ordinário”. E prossegue: “Bodhidharma, um indiano ou iraquiano que foi à China em torno de 500 d. C., exprimiu brevemente a significação do termo dizendo: ‘Todas as coisas são vazias, e não há nada que seja desejável ou digno de ser pesquisado’”.30 Cioran: Mas o vazio, nesse sentido, não é absolutamente uma experiência europeia. No fundo, é oriental. É o vazio como algo positivo. É como se curar de tudo. Despe-se o ser de toda propriedade. E em lugar de ter um sentimento de falta e, assim, de vazio, experimenta-se o sentimento de plenitude pela ausência (plénitude par l’absence). Logo, o vazio como instrumento de saúde, por assim dizer. Como rota, como caminho para a saúde. Chama-se ´sûnyatâ, que é a vacuidade. A vacuidade, em lugar de ser para nós, como o tédio [ennui], uma causa de espanto [vertige], é mesmo uma forma de espanto. Isso não é absolutamente uma experiência negativa. É um tipo de encaminhamento no sentido da libertação.31

O desejo a que se refere Cioran se assemelha ao pensamento ordinário, no sentido em que ambos tendem a se multiplicar indefinidamente, incessantemente. Além disso, agem em regime de parceria. Pensamos apenas por capricho, um mero gosto (goût) pelo pensamento, assim como desejamos por um gosto pelo desejo, ou seja, em virtude de um certo envolvimento, de certo interesse. “Pensar participa da inesgotável ilusão que parteja e devora a si mesma, ávida de se perpetuar e de se destruir”,32 declara o autor, em chave que se diria algo schopenhaueriana. O conceito de vazio nos permite demolir uma suposta ideia de permanência, ou de “substância”, em sentido clássico. Contudo, não obstante essa renúncia à ideia de permanência pela experiência positiva do vazio, o “ser” subjacente não é arrastado entre os escombros: mais do que uma ideia entre outras, “ser” é algo que permite que o espírito se desembarace 30 CONZE, E. Op.cit., pp. 172-173. 31

CIORAN, E. M. Entretiens. Op. cit., p. 71.

32 Idem. Œuvres. Op. cit., p. 1219.


de todas as ideias, uma a uma, de modo desinteressado. Nesse sentido, “ser” parece muito próximo de “vazio”, a ponto de confundirem-se. Cada ideia ordinária e interessadamente concebida é um agregado a mais, um apêndice a mais, um obstáculo, que só se nos revela em toda a sua efemeridade quando nos elevamos para além das operações regulares do pensamento e o contemplamos, por assim dizer, “de fora”. Enquanto o pensamento se mantém intacto, ele impede o indivíduo de experimentar a profundidade do vazio, bloqueia o acesso à intuição da proximidade entre “ser” e “vazio”. Experimentar o vazio só pode ser possível àqueles capazes de aplacar a febre do desejo e do pensamento. Em harmonia com a vivência do vazio – esse modo de saber absolutamente estranho à cultura europeia, como entende o autor –, a reflexão cioraniana parece apontar, como um dos pontos centrais da proposta do ensaio L’indélivré, aquela estreita relação entre “ser” e “vazio”, pela via daquela “plenitude pela ausência” tipificada por um gesto de renúncia. Aos olhos do pensamento moderno ocidental, essa experiência mística bem poderia ser tomada como um niilismo, observa Cioran. Para nós, que experienciamos a cultura ocidental e nela vivemos, essa forma de pensamento exorbitante é chamada de niilismo. Mas não se trata de niilismo, porque seu objetivo, seu resultado, é uma espécie de êxtase vazio, sem conteúdo e, portanto, a perfeita felicidade.33

Contudo, prossegue ele, nada mais distante de um niilismo do que a experiência do vazio: estamos diante do “aspecto verdadeiramente positivo das posições extremas do pensamento oriental. Assim, o que é para nós ruína, para eles é coroamento”.34 Além de destacar as diferenças entre “vazio” e “nada”,35 é preciso também compreender o extraordinário alcance do conceito de vazio, que pode ser entrevisto quando notamos que sua esfera de operação compreende, com igual relevância, tanto a vacuidade quanto a plenitude.36 Essa relação semântica reforça e amplia o sentido aqui pretendido por Cioran: a experiência do vazio, conformada por aqueles “instantes de suspensão” – cada um deles e, ao mesmo tempo, todos eles em sua unidade vertiginosa –, é um evento positivo, no sentido em que se trata não apenas de uma experiência de negação do desejo (do pensamento, do “mundo das coisas”), mas, sobretudo, de uma espécie de cura, um antídoto para o mundo da 33 Ibidem, p. 71. 34 Ibidem, loc cit. 35 CONZE, E. Op. cit., pp. 172-173. 36 Ibidem, p. 172.


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fugacidade, ou seja, um modo de libertação. Nesse sentido, compreendemos em que sentido a experiência do vazio pode ser considerada o cerne do ensaio L’indélivré, e como ela se relaciona com o tema da renúncia. Observa ainda Cioran que o conceito budista de vazio exige permanente atenção: é preciso vigilância para não sucumbir ao comportamento natural do pensamento ocidental, que tenderia a converter o vazio em um novo “ser”, a saber, compreendendo-o novamente como instância ontológica que governa o apego ao mundo e ao pensamento. Segundo Cioran, há sempre o risco de, equivocadamente, transformar a experiência do vazio em um novo ersatz, esvaziando-a de seu componente místico e afundando-nos novamente na “maldição cotidiana”. Para vencer tais obstáculos, diz o autor não sem alguma severidade, “devemos aprender a não mais aderir a nada, exceto ao nada da liberdade”.37 Nesse sentido, a experiência do vazio – experiência de libertação e renúncia ao mundo das coisas – seria como um antídoto para a ilusão da permanência do moi. Enfim, no contexto em que surge Le mauvais démiurge, Cioran entende que a experiência do vazio teria o poder de revelar uma superficialidade inerente a nossas convicções psicológicas ordinárias. Entreveríamos a quimera de nossa existência comum, e entenderíamos que nossa ilusão de continuidade e permanência “formam os elementos de nossa maldição ordinária, cotidiana”. Tal experiência facultaria, ao homem disposto e ela e capaz de levá-la a cabo, uma “venturosa submersão”: a visão profunda e salutar do “eu sem eu” (moi sans moi). Segundo Cioran, por mais penoso que seja o caminho que leva à renúncia e à liberdade, as palavras finais do Buda Gautama devem ser sempre lembradas: “trabalhai incessantemente para vossa saúde”.38

37 CIORAN, E. M. Œuvres. Op. cit., p. 1220, grifo do autor. 38 Ibidem, p. 1218.



131–131

A apresentação desse texto surgiu do desejo de dois historiadores e professores da Universidade do Estado da Bahia de rememorarem uma parceria de trabalho que teve início ainda na graduação em História, na Universidade Federal da Bahia, entre 1980 e 1984, período marcado por uma intensa movimentação política no enfrentamento da ditadura civil-militar e na reelaboração da convivência dos contrários, no processo de redemocratização do país. Esse ambiente permitiu a emergência de movimentos culturais e a criação de grupos que passaram a reinventar suas manifestações e o uso de espaços públicos para o exercício de expressões comportamentais e estéticas, como foi o caso do Biscoitos Finos. A formação original do grupo se deu com três estudantes do curso de História. Veronica Magalhães, que atuava como atriz na cena teatral soteropolitana do período. Suas indicações sobre o uso do corpo e da voz nos chamou atenção para as experimentações e improvisações das nossas apresentações. Francisco Guimarães, que, desde muito cedo, nos impregnou e assustou com a precocidade da abordagem da questão indígena no curso de História, reverberando elementos rituais e estéticos para as práticas performáticas do grupo, como no caso do uso do urucum como coloração e elemento para o contato corporal, o que quebrava a distância entre nós e o “publico”. E Washington Drummond, que pode ser definido como um imã, aquele que nos atraiu e nos converteu em um grupo, nos reunindo ao redor dele, ouvindo músicas e o toque suave do seu violão. Aos poucos, nossos encontros musicais forma se convertendo em experiências de decomposição e recomposição de canções e a musicalização de poemas, especialmente de haicais, com o violão sendo substituído por um baixo elétrico com pedais, com Washington explorando novos timbres e ruídos, produzindo novas sonoridades.


Juntou-se a nós, estudantes de História, Jose Luiz Sales, que cursava Museologia e se transferiu para o curso de Letras. Desde muito cedo Zé Luís assumiu a poesia como expressão artística, escrevendo poemas, letras de música. Tornou-se um leitor intenso do melhor da literatura e abriu os caminhos do grupo para o melhor da vanguarda poética. Interessado pela cena performática do Biscoitos, Weber Soares, estudante do curso de Comunicação, também ingressou no grupo. Ele atuava na cena cinematográfica e circulava entre criadores de todas as artes, em Salvador. Expansivo, cantava, escrevia e representava seus poemas com muita intensidade. Soube nos dizer ao seu modo o que fazíamos, estabelecendo pontes entre a poesia contemporânea e a canção popular. Com as apresentações do grupo, aos poucos fomos percebendo que ao lançar mão de diversos procedimentos experimentais e de temas socias, estávamos convertendo nossas apresentações em dispositivo pedagógico e instrumento de pesquisa acadêmica. Tomando como base o uso de diferentes suportes e linguagens, de forma intuitiva desenvolvemos um trabalho caracterizado pelo que veio a ser cunhado, anos depois, como “bricolagem” no ato de “fazer ciência”, conforme definido do Borba1 e Kincheloe e Berry2 ou performance na prática pedagógica e na pesquisa, como conceitua Pineau3. Em relação ao Biscoitos Finos, nos interessa apresentar aqui uma breve reflexão sobre a origem do grupo, sublinhando a questão da expressão poética alinhada ao uso expressivo do corpo (colocando a poesia no corpo) e a importância dada a arte da performance e da poesia experimental em nosso trabalho de pesquisa e didática da história.

Tudo escapava de um grande incomodo que sentíamos com a “coisa acadêmica”: em 1980, naquele momento de intensa mobilização política e reorganização dos movimentos sociais 1

Ver BORBA, S. Aspectos do conceito de multirreferencialidade nas ciências e nos espaços de formação. In BORBA, S.(Org.). Reflexões em torno da abordagem multirreferencial. São Carlos: EdUFSCar, 1998.

2

Ver KINCHELOE, J.; BERRY, K. Pesquisa em educação: conceituando a bricolagem. Porto Alegre: Artmed, 2007.

3

PINEAU, E. Nos cruzamentos entre a performance e a pedagogia: uma revisão prospectiva. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 2, 2010. Ver <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/14416> . Cartaz Grupo Biscoitos Finos. Acervo Washington Drummond.


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e artísticos, vimos que o curso de História estava fora de todas as grandes linhas de força que nos moviam - sejam aquelas já delineadas, oriundas do mundo contracultural; sejam as que, ainda incipientes, reticentes, nós procurávamos arrebatadoramente nos imiscuir: o fora da academia, a politica não partidária, o corpo improprio da poesia, da dança, do sexo. Surge daí o nosso propósito de querer inventar um “corpo estranho” de dentro mesmo da universidade que, naquele momento, era um dos focos de normatização e aprisionamento do pensamento, do uso dos corpos, da invenção. O que nos pareceu insuportável - e que de certa forma agradecemos, pois nos despertou para a “violência simbólica” que por vezes estendemos até às nossas práticas- foi constatar pelo trato cotidiano, que esse enfrentamento - pela reinvenção da vida na passagem dos anos 70 para os anos 80- seria travado politicamente por nós, tanto à direita quanto à esquerda. Nossa violência então era uma recusa radical desde o comportamento exigido para um universitário quanto a um artista, intelectual ou militante: queríamos uma contra-história, uma “revolução molecular”, a recusa dos partidos e facções, a “festa” como prazer e não como estratégia partidária, novos “grupelhos” que se potencializavam pela comunidade dos que não a tinham. Assim contingentes da direita e de parte da esquerda em ação na UFBA entravam em consenso: acusavam-nos de “porras-loucas”, “odaras”, “alienados”. (Apenas os trotkistas da “libelú” se aproximavam da peste que éramos...) Os Biscoitos Finos é o resultado desse desequilíbrio frágil entre as forc(ç)as políticas que (des)animavam o país naqueles idos e foi o corpo estranho que encontramos para expurgar nossa indignação com o currículo e as abordagens historiográficas prevalecentes no curso de História.

Nós éramos calouros e estávamos ansiosos por um encontro com a Nova História e esse encontro só ocorreu quando fomos em outra direção... Na convergência com o movimento popular e artístico que brilhava a nossa volta. Mirando os olhos nos olhos de muita gente, passamos a militar com a nossa arte por dentro e por fora de instituições governamentais e não governamentais, movimentos sociais e entidades como a Federação Baiana de Teatro Amador-FBTA. Víamos que as manifestações artísticas realizadas em praças, teatros e associações de moradores da periferia deveriam ser encontros entre a fala e a escuta sensíveis, formas de trazer a cultura para a educação, a formação de lideranças e a luta política.


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Foi a partir desse entendimento que passamos a ter como emblema do nosso grupo a frase do poeta Oswald de Andrade “a massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”. A escolha dessa frase se deu porque, enquanto estudantes de História, tomarmos Oswald como referência em nosso trabalho artístico e passamos a compreender que aquela Nova História que queríamos encontrar, já estava presente na cena artística brasileira desde 1925 e que era um delicioso biscoito fino. Foi em poemas como Erro de Português e no Manifesto Antropófago, que, pela primeira vez, um brasileiro subverteu o cânone positivista da história escrita pelos europeus, passando a ver o mundo pelos olhos de um indígena. Foi ele, Oswald de Andrade, quem desafiou o mito do império português e proclamou em alto e bom tom: “Tupy or not tupy, that is the question”. E nós, o Biscoitos Finos, internalizamos essa provocação, promovendo performances rituais onde, inspirados em rituais de povos indígenas, passamos a usar a pintura corporal como um dispositivo de arte e educação, uma forma de interação com o público, um convite para a participação. Essa identidade com a questão indígena colocada por Oswald de Andrade fez com que, em 1985, após a conclusão do curso de História, um dos Biscoitos, Francisco Guimarães, decidisse viver com povos indígenas, indo (re)aprender com eles a ser historiador e passar a fazer história com seus colegas do grupo, tornando ainda mais deliciosos os nossos biscoitos finos. Trabalhando dois anos na região amazônica como indigenista, vivendo com os povos Ticuna, no Amazonas e os Guajajara, um povo Tupi, no Maranhão, em sua primeira visita a Salvador, em abril de 1986, Francisco promoveu uma virada estética no grupo, introduzindo nas performances a bricolagens de cantos, danças e pinturas corporais de povos indígenas. A primeira apresentação realizada com essa nova perspectiva estética foi justamente no Dia do Índio de 86, quando o Biscoitos Finos surpreendeu a comunidade acadêmica e funcionários da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, com a realização do “Cerimonial do Homem Um”, uma performance ritual que teve a participação de Francisco Guimarães, Verônica Magalhães e o poeta Egberto Pereira (Guiba) interpretando indígenas e o ator Luís Amado, interpretando um missionário jesuíta do século XVI. No primeiro ato da performance, denominado “Ritual do Caminho do Panu”, foi estendido um grande tubo de pano preto com os indígenas em seu interior, tendo os corpos nus, pintados de urucum, tabatinga e carvão. Dentro desse tubo, os indígenas desfilaram pelos corredores da Faculdade, defronte das salas de aula, cantando músicas rituais de povos indígenas.


Essa instalação inusitada, um parangolé itinerante, com pessoas entoando cantos em línguas desconhecidas, fez com que todo mundo saísse das salas para ver o que estava acontecendo e passarem a acompanhar o deslocamento daquele corpo estranho. Paramos no pátio central da faculdade, conhecido como “Pátio de São Lázaro” e todos foram novamente surpreendidos, ao verem os indígenas saindo do interior daquele tubo de pano preto, com os corpos nus, pintados com padrões de pintura corporal de povos indígenas e passando a recitar o poema Erro de Português, de Oswald de Andrade. Postados diante do missionário jesuíta, vestido com uma túnica preta, os indígenas ficaram imóveis, com o padre passando a proferir um discurso em defesa da catequese indígena. Ao final da sua fala, o padre congelou e tivemos o segundo e último ato da performance, “Só a Antropofagia nos Une”, com os indígenas assumindo novamente a cena, com o recital de poemas de temática indígena, que encerrado com o poema antropofágico “Papo de Índio”, do poeta Chacal. Após esse poema antropofágico, o missionário foi despido pelos indígenas e colocado no tubo de pano preto e conduzido carregado em direção ao corredor de saída da faculdade, com todos os personagens saindo de cena, encerrando a performance.

Francisco participando do ritual da menina moça do Povo Guajajara. Aldeia Pindaré-MA, 1986.


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___ é desde o ESPRAIADO de uma ÚNICA-CIDADE-QUALQUER, absolutamente DOMINADA e sem grama para pisar ou fincar um simples guarda-sol, assim vigiada por mais de um trilhão de olhos que nunca se fecham, é que, com uma CARTA À REDAÇÃO, um PERSONAGEM-LEITOR endereça esta escrita ao 01 do DESMANCHE, – revista então inaugurada com a seguinte estampa: __ “RESITIR-POR-NINGUÉM-E-POR-NADA”. E é assim/assim como um LEITOR-QUALQUER, um LEITOR por um ACASO, ou mesmo um QUASE-LEITOR, que em terras de FALANTES-SURDOS, entre REPLICANTES com morte pré-datadas, FORASTEIRO entre forasteiros, DETETIVE entre detetives, VIAJANTE sem sair do lugar, que tal LEITOR, com a ARMA carregada e engatilhada em punho, um ELE-PERSONAGEM desde essa desventura SEM PROTAGONISMO nem FINAL FELIZ (se é que se pode vislumbrar algum final), que ELE-LEITOR duvida se: __o DESMANCHE é promovido de uma ‘vezada’ só?... ou se dá na AGONIA de um adágio lentamente prenunciado?... ou de uma ADAGA enfiada com vagar?... ou de uma GUILHOTINADA rápida e sem julgamento? Se o DESMANCHAR se faz assim como uma CRIANÇA investiga desmontando o BRIQUEDO?... ou se dá na vertigem de um DRAMALHÃO calculado por uma história já PRÉ-ESCRITA?... com ENREDO PRÉ-VISÍVEL, acerca de um TERRITÓRIO previamente DEMARCADO?... ou já desde antes ABOMINADO?... ou já por todos EXECRADO?... ou talvez um TERRITÓRIO-MASCARADO? Para tal LEITOR-QUALQUER não há diferença entre aqueles que RECUSAM ou VOMITAM o leite materno daqueles que se DELICIAM com o conforto da MAMA. Na sua tarefa nada heróica de um ANTI-HOMEM-ARANHA, o QUASE-LEITOR não se interessa em MOBILIZAR nem DESMOBILIZAR nada nem NINGUÉM. Talvez seja um LEITOR-REPATRIADO..., – tempos depois de um forçado e estratégico EXÍLIO/APAGAMENTO, ou RESSURGIDO após a anunciada MORTE SUICIDA do NARRADOR, então alardeada pela frustração consentida de um Walter Benjamini. Nosso PERSONAGEM-LEITOR é mais um destes tantos filhos bastardos da FARRA DESVALIDA do ESQUECIMENTO diário que nos permite CONTINUAR..., – até que o dia amanheça ou a noite anoiteça. Mas ELE se faz INCÔMODO e PRESENTIFICADO nas SOBRAS INFORMES dos RESTOS ESQUECIDOS e abandonados depois de um PICNIC na ESTRADA, da REVISTA DESMANCHE amassada e DESCARTADA. ELE é então filho desse princípio próprio ao ESQUECER, nascido de uma ordem COMUM e ORDINÁRIA, sem ga-


rantias de um amanhã minimamente alumiado. Resta a FRICÇÃO ou FICÇÃO MENOR de um ESFOLAMENTO sem FUNDAMENTO nem PROJEÇÃO. PERSONAGEM se deixa então conduzir por uma FÉ MONOTEISTA, ou por uma CRÍTICA HEGEMÔNICA, ou mesmo por um ATO TERRORISTA, – o que não deixa de dar na mesma e ser tudo farinha do mesmo saco: __ o PARADOXO da CONSTRUÇÃO DESMANCHADA de um EDIFÍCIO, já desde a FUNDAÇÃO, condenado e mal-ajambrado. E a CARTA À REDAÇÃO encaminhada por este QUASE-LEITOR-QUALQUER é uma CARTA-EM-BRANCO. Uma CARTA a ser perseguida obstinadamente, assim como o Capitão AHAB persegue MOBY DICK, – este imenso LEVIATÃ BRANCO que devorou a sua perna. Uma CARTA que provoca e cutuca com vara-curta esse MAL BRANCO que habita e ATORMENTA profundamente o oceano de cada um de nós. É que esse LEITOR-QUALQUER se espanta com tal DESMANCHE-BRANCO, divergente do senso comum (em que o MAL é comumente o PRETO, é NEGRO, sendo que MOBY DICK, a MALDADE, é encarnada em uma baleia que é BRANCA). Como é que nós, BRANCOS entendidos que somos, poderemos imaginar, humanos temerosos a DEUS, ser a MALDADE encarnada na BRANCURA? Logo o BRANCO, da BRANCURA da inocência das CÂNDIDAS-noivas, da divindade dos anjos, do REQUINTE dos reis e rainhas, dos objetos naturais mais desejados, do brilho, das montanhas nevadas, do deus SENHOR ELEFANTE BRANCO divindade maior para os reis do Sião, símbolo da alegria e da felicidade, das crianças e da virgindade, da VIRTUDE especial, da CASTIDADE, do símbolo da VIDA, da BENIGNIDADE da velhice, do ESPÍRITO SANTO, do simbolismo de beleza do CORCEL BRANCO para os indígenas Cheyennes (o ‘povo belo’ das pradarias americanas), da tonalidade IMPERIAL, de JÚPITER encarnado em um touro da mais alva BRANCURA, do colar de conchas BRANCAS como símbolo do maior penhor de honra para os PELES VERMELHA, do sagrado CÃO BRANCO para os ESQUIMÓS, da BRANCURA do LEITE que alimenta a criança, da MAGIA que esconde – capaz de juntar-se aos QUERUBINS de asas dobradas no alto dos céus encarnada no grande ALBATROZ BRANCO para os marinheiros, das ALVAS profundezas da VIA LÁCTEA, ... porém: __... “era a brancura da BALEIA que me aterrorizava”, e é a grande baleia albina, MOBY DICK, o símbolo de toda a MALDADE do mundo! Faz-se aqui aos EDITORES a pergunta: ___ termina em BRANCO esse DESMANCHE? Anderson Almeida. Passando a limpo, 2020, Belo Horizonte. Ver <https://vimeo.com/411367103>.


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volume 1, número 2, agosto de 2021 Revista sem fins lucrativos do Laboratório de Tecnologias Sociais (LITS – IFMG Santa Luzia / CNPq)

Em A noção de dispêndio, texto seminal publicado em 1933, Georges Bataille reserva a última parte à insubordinação dos fatos materiais. Contestando a tentativa de isolamento da vida humana diante do “esplendor sem condições da vida material”, ele insiste na liberação das forças que não se sujeitam a nada que se condicione à “prestação de contas”. Instaura, com isso, um pensamento sobre a exuberância da ação, no qual subverte a utilidade, a subsistência, a racionalidade, afirmando que os homens se amparam nela com o objetivo – mais ou menos oculto e último – de “ter acesso à insubordinação do dispêndio livre”. Os fatos materiais são assim compreendidos como uma “diferença não explicável”; são, eles mesmos, uma qualificação insubordinável que esgarça qualquer pretensão imunológica, racional, útil, e tal... É justamente esta insubordinação que nos incita a arriscar um pensamento periférico a partir dos fatos materiais, como que arriscando um pensamento acerca de um indefeso com o batom borrado no fim de noite.

Breno Silva, Roxane Sidney R. Mendonça, Simone Cortezão Cícero Menezes Breno Silva Cícero Menezes Cícero Menezes, Geraldo Santos

Os textos publicados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores.


Nascida e vivida em Vila Velha, analfabeta até os 51, passou a escrever depois de cursar o EJA , atualmente faz um curso de informática para criar seu blog.

Arquiteto, marceneiro e professor da EA-UFMG. Autor do livro O segredo do arquiteto (Editora UFMG, 2017). Poeta. Graduado em Letras pela UFMG. — “Leio, ouço, observo”. Doutor em Processos urbanos contemporâneos, PPG-AU/UFBA; professor no IFMG - Campus Santa Luzia, onde coordena o LITS (Laboratório de Tecnologias Sociais); autor dos livros O radicalmente outro nas cidades (EDUFBA, 2018), Atravessando as terras de ninguém (Fábrica de Letras - UNEB, 2018); organizador do livro Espaço da Memória no distrito de São Benedito (Impressões de minas, 2019); editor da revista DESMANCHE. breno.silva@ifmg.edu.br. Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, membro dos grupos de pesquisa Laboratório Urbano (PPGAU/UFBA) e Pós-teoria (Pós-Crítica/UNEB). Autor do livro Fluidor: o ser da comunidade de ser (2020) e realizador do filme Ipatinga heterológica (2020). Nasceu em Belo Horizonte, em 1986. É doutor em filosofia pela Universidade de Munique e professor da Universidade do Estado de Minas Gerais. Publicou os livros Lição da matéria e Pavilhão.

Professor, Extensionista e Pesquisador do campus Santa Luzia do IFMG. Ilustrador desde sempre.

Acadêmico de Arquitetura e Urbanismo pelo IFMG – Campus Santa Luzia. Participante do projeto de iniciação científica “França-Brasil”. Bolsista no projeto de iniciação científica “Formação de agentes culturais (2020-atualmente). Atuou como bolsista no projeto de iniciação científica “A cidade vista por baixo: experiências urbanas da população em situação de rua (2019-2020).

Poeta, autor de Das intimidades (2001) e Use o assento para flutuar (2018), publicou alguns de seus trabalhos em edições caseiras. Vem se apresentando em performances e leituras de poesia.

Historiador, indigenista e poeta. Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA. Professor do Curso de História do Departamento de Ciências Humanas, do Campus I e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras -PPGEAFIN-UNEB.

Graduado em Psicologia na UGF, mestre em Psicologia pela PUC/ RJ, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Sociologia Urbana na Faculdade de Sociologia da Universidade de Roma La Sapienza, Itália. É professor Titular do Instituto de Psicologia e do Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Professor do Programa de PósGraduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. Autor de diversas publicações, dentre elas, o livro O Veludo, o Vidro e o Plástico. (EDUFF, 2012).

Nascido em Osaka,1967. Foi criado na Tailândia. Queria ser trompesita de jazz, não deu certo. Boxeador profissional, não deu certo. Chegou ao Brasil em 1990 pela Associação de Intercâmbio. Começou a aprender fotografia em 1995. Era correspondente da Revista Latina de música que circula no Japão. O seu trabalho mais conhecido é sobre os bregas das Ladeiras da Conceição e Montanha. Já fez exposições em vários lugares. Circulava pela noite no underground soteropolitano, mas atualmente perambula mais durante o dia na cidade baixa. Além de fotografia, também produz vídeo. hirosukekitmaura.com

Arquiteta, pesquisadora e professora no IFMG. desenvolve pesquisas com interfaces no urbanismo, fotografia, poesia e narrativas imagéticas.

Filósofo, doutor em Letras pela PUC-MG e professor adjunto na UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Escritor, é autor de Campanha perplexa (2011) e Teratologias (2019). Como pesquisador, atua predominantemente nas áreas de Estética e Filosofia da arte.

Professor de Sociologia na Université Paul Valéry Montpellier 3, diretor adjunto UFR5, diretor do Laboratório de Pesquisa LEIRIS. philippe.joron@univmontp3.fr. Publicou o livro de poemas Rediviva, e textos esparsos em suplementos e revistas de cultura (Jornal A Tarde, revista Exu da Fundação Casa de Jorge Amado, Revista Redobra da UFBA). Leitor de Borges, Benjamin e Fernando Pessoa. Cineasta, Artista Visual e Pesquisadora, é doutora em Artes Visuais pela UERJ e professora no IFMG-Santa Luzia. Entre o cinema e as artes visuais, desenvolve trabalhos com a criação de narrativas documentárioficcionais e suas articulações entre memória e amnésia das cidades, história e ficção, paisagens entrópicas, geologia e economia. Escreveu, dirigiu e produziu diversos filmes, exibidos e premiados em festivais e mostras nacionais e internacionais. Professor de História e do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da UNEB. Publicou A cidade e seu duplo (2013) com Alan Sampaio e Entre imagem e escrita: Aracy Esteve Gomes e a cidade de Salvador (2020) com Junia Mortimer.


Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD D463 Desmanche 2: a insubordinação dos fatos materiais / Adriano Mattos Corrêa ... [et al.]; organizado por Breno Silva, Roxane Sidney R. Mendonça, Simone Cortezão, Cícero Menezes. - Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2021. 144 p. ISBN: 978-65-86729-29-0 1. Ciências Sociais. 2. Filosofia. 3. Inclusão. 4. Resistência. 5. Cidade. I. Corrêa, Adriano Mattos. II. Almeida, Anderson. III. Silva, Breno. IV. Menezes, Cícero. V. Arelli, Daniel. VI. Perpétua, Dolores. VII. Almeida, Francisco. VIII. Guimarães, Francisco Alfredo Morais. IX. Kitamura, Hirosuke. X. Souza, Leandro de Aguiar e. XI. Gonçalves, Leo. XII. Rochebois, Louise. XIII. Baptista, Luis Antonio. XIV. Gonçalves, Luiz Cláudio. XV. Joron, Philippe. XVI. Rastelly, Raimar. XVII. Drummond, Washington. XVIII. Silva, Breno. XIX. Mendonça, Roxane Sidney R. XX. Cortezão, Simone. XXI. Menenzes, Cícero. XXII. Título. 2021-2910 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Ciências Sociais 300 2. Ciências Sociais 3

IFMG Santa Luzia Rua Érico Veríssimo, 317 Londrina 33115-390 Santa Luzia - MG (31) 3268-5600 litsifmg.wordpress.com breno.silva@ifmg.edu.br Esta publicação conta com recursos do IFMG edital 104 / 2016 de Pesquisa Aplicada.

Impresso em Belo Horizonte, Brasil, em agosto de 2021 pela Impressões de Minas.

CDD 300 CDU 3



Hirosuke Kitamura


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