Bourdieu, aula 1 o campo social

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O Campo Social Introdução a Bourdieu Meditações Pascalianas é o título de um livro. É, um livro de um autor chamado Pierre Bourdieu. Esclarecimento necessário pra deixar claro que o curso não é nem sobre meditações e nem sobre Pascal, mas uma tentativa de oferecer uma facilitação da compreensão da obra de Bourdieu. Bourdieu é um sociólogo francês que se tornou mundialmente conhecido no final do século XX e faleceu no comecinho do século atual, 2002. E a sua obra eu diria que teve grande impacto na Academia Brasileira. Eu me atrevo a dizer que esse impacto se deu mais fortemente na educação, nas Faculdades de Educação, em seguida nas Faculdades de Ciências Sociais e em terceiro lugar nas Faculdades de Comunicação. E neste último caso eu sou amplamente responsável por esta divulgação. É muito curioso você dar um curso sobre alguém que você conheceu tão bem. Esteve na casa, frequentou a família, foi orientado por. E mais curioso ainda se tratando de alguém de convivência tão difícil como era esse cidadão. Então, é claro que né, dentro dessa relação professor-aluno, eu pude aproveitar o máximo que eu pude dessa figura que tinha um discernimento extraordinário, e esse discernimento extraordinário é um juízo que eu fiz com o olhar que eu tinha dos 22 aos 26 anos da minha vida. Talvez hoje Bourdieu me impressionasse menos, mas na época ele era de fato pra mim uma espécie de Deus. A primeira coisa que ele me mandou fazer foi ler toda sua obra imensa e fichá-la, trabalho que levava dias e noites. E é um pouco essa perspectiva que já começa a revelar traços da sua personalidade. Na verdade Bourdieu criou uma escola de pensamento. Escola de pesquisadores ditos

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Bourdieusianos. Bourdieu tinha uma revista, Bourdieu tinha o seu curso, tinha os seus orientandos e tinha uma visão da Academia que era uma visão mafiosa mesmo: “ou você está comigo ou você é inimigo”. E a truculência acadêmica de Bourdieu rendeu a ele muitos inimigos, mas rendeu a ele uma notoriedade, um prestígio impressionantes. Um dia me pediu pra escrever um artigo sobre as críticas que ele fez a Sartre. Porque, na verdade, Sartre é o mais importante e reconhecido intelectual da França da segunda metade do século XX. E Bourdieu não engolia isso. Na verdade achava Sartre um falastrão, um enganador, um picareta. E queria porque queria ter um reconhecimento equivalente ou superior. Eu me atrevo a dizer que em certos aspectos conseguiu, mas conseguiu do jeito dele fazendo ciência. É o jeito mais difícil, porque pra ele concluir alguma coisa ele fazia milhões de pesquisas, enquanto que a filosofia especulativa permite dizer qualquer coisa, e se desmentir amanhã mesmo. Indivíduo xiita, ortodoxo, absolutamente convencido das suas posições, não era exatamente uma figura flexível. Intelectual de esquerda formado na militância mais tradicional das esquerdas francesas, Bourdieu nasceu no sudoeste da França, nasceu no sudoeste da França, é, na década de vinte e o pai era funcionário dos Correios. Importante lembrar que o, a Post, na França, é correio e é banco. Então o pai de Bourdieu, na verdade, era uma espécie de funcionário do Banco do Brasil e dos Correios ao mesmo tempo. Funcionário público. E você sabe que isso deixa traços. Traços, primeiro lugar porque Bourdieu não era parisiense, e na França quem não é parisiense meio que não é, né? Sotaque diferente, falar cantado, um jeito quase italianado de falar. Traços de inferioridade que Bourdieu teve que carregar a vida inteira. Como se não bastasse, o pai era um pouco como um caixa de banco. E aí Bourdieu vai estudar, num primeiro momento, numa cidade chamada Pau, que está sob a influência maior de

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Bordeaux ali no sudoeste da França, na região da Gironde, né? E de Pau ele vai pra Paris se preparar pra entrar na Escola de Filosofia, que fica em Paris na Rue Dime ULM e não é muito fácil entrar. E Bourdieu, então, é, vai ter colegas muito diferentes dele. E é muito interessante como isso marcou profundamente a sua trajetória, porque eu que não era ninguém, um moleque que pediu pra ser orientado por ele, entrava com ele no metrô pra fazer metade do caminho junto e invariavelmente ele dizia: “Esses idiotas parisienses que se acham superiores aos outros, asquerosos, me fazem lembrar do tempo de faculdade...”. Aquele vomitório de ressentimentos saltava de forma que, que absolutamente tava por trás de tudo o que ele fazia do ponto de vista intelectual. E eu não pude me impedir de me reconhecer. Você vai achar que é delirante da minha parte estabelecer um paralelo, mas eu estabeleço, afinal de contas aqui quem esta dando aula sou eu. Eu também nasci não se sabe bem aonde, também tenho um sotaque meio “acaipirado”, meu pai era de quinto escalão da polícia, funcionário público, e eu também vim pra São Paulo estudar em colégio de rico, e também entrei na São Francisco, faculdade de rico. Meus colegas seduziam minhas colegas com Escort XR3 conversível e eu me deslocava em transporte coletivo. E aí fui parar na França, veja só. Pior né? E fui parar na Faculdade de Direito, lugar ultraconservador. Você sabe que na França quando você tem “D” no nome quer dizer que você é da região de algum lugar e por isso você é nobre, né? Por exemplo, Pierre Bourdieu, não tem “D”, mas Valéry Giscard, D apóstrofe Estaing, quer dizer que ele é de Estaing, da região de Estaing, ele é nobre e eu sou Clóvis de Barros. E os professores mais de direita que eu tive todos me perguntaram: “De que região você é?” E eu dizia: “Da Vila Tibério. Ville Tibère”, bairro periférico de Ribeirão Preto. É difícil encontrar lugar pobre em Ribeirão Preto, mas eu achei um pra nascer. Coisa esquisita:

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– O senhor é da onde? – Ville Tibère. – Mas fica onde isso? – Au Brésil. – Au Brésil. Ah! bom. Desculpe aí. Disfarçavam e caíam fora: “Me equivoquei”. Entendo muito bem o que Bourdieu viveu, mas acho que digeri muito melhor todas as patadas simbólicas que eu levei. Ele nunca as digeriu. E toda a sua obra é marcada por essa inferioridade social. Não tem como entender Bourdieu sem entender da onde ele veio e, de certa maneira, que tipo de relação social injusta ele se sentia vítima de.

Vida e personalidade de Bourdieu Então, é claro, que quando você pega um livro de Bourdieu pra lê a primeira coisa que chama atenção é a maneira absolutamente complicada que ele escreve. Claro que, o que ele diz é complicado mesmo, mas claro que podia ser dito de maneira mais simples. Não que ele fosse vulgarizar, mas que, por exemplo, ele escrevesse frases mais curtas. E um dia perguntado por mim: por que aquele jeito estranho de escrever? E Bourdieu me diz que a maneira de escrever é ideologicamente marcada, e nós não devemos assumir compromissos ideológicos que pudessem nos confundir com uma vulgarização burguesa da ciência. Só pra você entender o tipo de figura que nós vamos estudar. Mas com tudo isso ele se tornou o grande intelectual da segunda metade do século XX. Sem dúvida, o mais importante cientista social depois de Marx, Max Weber e Durkheim. Eu me atrevo a

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dizer que Bourdieu é herdeiro dos três. E esse curso mostrará as heranças dos três. Na minha opinião, a herança mais visível e mais imediata é a de Durkheim até pela formação francesa da sua sociologia. Mas eu tinha dito que Bourdieu entrou na Faculdade de Filosofia e naturalmente você deve esta se perguntando: “Mas ele não é sociólogo?” Pois é, em algum momento Bourdieu deixou de fazer Filosofia pra fazer Sociologia. E é claro que essa opção é uma opção estratégica. É claro que essa opção é uma opção que tem a ver com a sua trajetória. De certa maneira, ser sociólogo não tem muito a ver com ser filósofo. É jogar outro jogo. É pertencer a outro campo. É conviver com outro tipo de gente. E Bourdieu começa sua vida profissional na Argélia, pra onde ele vai dar aula assim que ele se forma. E é justamente na Argélia que ele aproveita também pra fazer o seu serviço militar, que Bourdieu começa seus estudos de Antropologia. Bourdieu é um cientista. É um homem que tem enorme apreço pela análise da realidade. Bourdieu não é um especulador, e é por isso que a sua obra é cheia de dados o que torna ainda mais indigesta a leitura. É muito diferente das outras coisas que eu já ensinei aqui, porque você pega esses filósofos aí, eles vão falando, não há o que comprovar, não há o que demonstrar, não há o que fundamentar, é o que saiu da cabeça. Mas Bourdieu não, ele não fala uma frase que não tenha um milhão de dados por trás comprovando. E é por isso que a sua literatura é imensa, ela não acaba mais, porque a capacidade de trabalho é infernal. Viveu para o trabalho, viveu para o estudo das sociedades que se dispôs a estudar. Bourdieu volta da Argélia e vai dar aula em escolas do ensino médio, é um percurso muito comum dos professores universitários franceses. E das escolas de ensino médio ele tem a sua primeira oportunidade em Lille, pra dar aula como professor universitário.

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Nós estamos na década de sessenta e Bourdieu publica “A distinção”. E quando Bourdieu publica “A distinção” nós estamos na efervescência de maio de 68 e Bourdieu se torna uma das grandes referências dessa revolução estudantil e a sua fama se torna nacional. Bourdieu é uma referência subversiva do movimento estudantil de maio de 68. É nesse momento que ele é convidado pra ir dar aula em Nanterre. E em Nanterre ele começa a publicar um livro atrás do outro. E de Nanterre ele só sairá pra trabalhar na “École des Hautes Études en Sciences Sociales” e depois no “Collège de France”, onde eu propriamente o conheci. Bourdieu termina a sua vida tendo percorrido todas as instâncias da Academia Francesa, tendo terminado no “Collège de France”, que é onde dão aula os grandes nomes da França, em cada disciplina. Por exemplo, Sartre na Filosofia, Bourdieu na Ciências Sociais, Georges Duby na História e assim por diante. Como se não bastasse, Bourdieu entrou, eu diria, num esquema de consagração de teóricos de esquerda, é, internacional. Um pouco o que aconteceu com Paulo Freire também. E aí então, ele se tornou um ícone, um ícone do pensamento de esquerda numa época que o pensamento de esquerda perdeu seus ídolos, e Bourdieu se aproveitou muito disso. E tornou-se o grande intelectual de esquerda do final do século XX. Quando Bourdieu morreu em 2002, o caderno Mais da Folha fez um número especial e eu escrevi um grande artigo central pra esse caderno contando da minha experiência pessoal com ele. Um lindo artigo cuja leitura, se você quiser, te é acessível pela internet: “fevereiro de 2002, caderno Mais, morte de Bourdieu”, um domingo de fevereiro de 2002; é muito fácil de achar. Simbolicamente pra mim aquilo foi inesquecível, porque eu escrevi oito décimos de página e os dois décimos de página que sobraram colocaram um artigo de Habermas sobre Bourdieu. Abrindo a página, a distribuição da diagramação é de uma distorção simbólica estupenda. Muito

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legítima pra mim, muito inverídica, mas muito, muito respeitadora dos meus afetos. Sou muito grato a esse indivíduo cuja convivência era quase insuportável. Então depois de ter dito tudo isso, do por que nós, que eu me dispus a fazer esse curso, a última pergunta que faltaria responder é: “por que demorei tanto pra falar do autor que eu mais conheço?” É porque é preciso reconhecer que ele não tem muito a ver com a instituição mesmo. Mas depois que eu dei curso sobre o Capital de Marx, e ninguém falou nada... Bourdieu fica fichinha. A partir de agora eu me esmerarei em tornar a leitura de Bourdieu possível. Oferecerei um instrumental que a mim não foi dado desse jeito. Eu tive que ralar mesmo, e de me deparar com frases e frases inteiras que eu não entendia nada. Bourdieu é o tipo do cara que você pode ficar quatro horas assistindo uma aula e você corre o risco de não entender uma única frase. E ele não via nisso nenhum problema.

Os circuitos de consagração social Quando eu o conheci ele dava aula no “Collège de France” e ele dava aula num anfiteatro pra umas quatrocentas pessoas, mas ele também aparecia na tela de seis outros anfiteatros equivalentes. Pra assistir onde ele estava era preciso chegar em torno de cinco horas da manhã pra uma aula às nove, não sei se me entendeu? – Ah, Professor, aqui no Brasil tem alguma coisa equivalente? Não. Não por falta de intelectuais importantes; por falta de gente interessada em ouvi-los, certamente. E eu ia às cinco horas. Na verdade, dizer que eu ia às cinco horas é mentira, eu ficava até as cinco horas, porque o metrô abre cinco e vinte, eu tinha que chegar antes. Junto comigo estudantes orientais, mais afeitos a suportar sacrifício, e eu fui ensinado por meu pai a não “arregar” pros orientais. Desde o tempo que eu prestei vestibular na USP eu ouvia meu pai dizer

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que os japoneses tão se preparando e que eu tinha que vencê-los. Se eles chegavam às cinco eu chegava também, e ficávamos das cinco as nove esperando a aula começar. E é claro que a história que eu conto no artigo é a história de uma frase que ele falou, porque, ele pode te socar, te humilhar, porque toda vez que você não entende é humilhante. Eu me sinto assim, humilhado, burro. Mas tem uma hora que você pega o peão na unha e diz: “Não, não é possível, eu tenho que entender. Eu não sou tão burro assim”. E a frase dele, que eu certamente já citei várias vezes, e vou retomar aqui no curso era assim: “Os circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes, quanto maior a distância social do objeto consagrado”. Você pode imaginar que ele falou isso no meio de outra como quem diz: “Vou tirar a cueca porque me sujei todo”. Ele falou isso como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, e continuava com outra pior. E eu dizia: “Pô! Mas não é possível.” Eu gravava a porra, transcrevia, levava pra casa e aí tentava lê: “os circuitos de consagração...” Não era possível. Tentava de todo jeito, lê devagar e aí já tinha esquecido o começo. Ou então tentava lê como ele falava, é, de forma pedante, um pouco como o Fernando Henrique dizia, como se fosse óbvio, né? E também não entendia porra nenhuma. Aí teve um dia, já que eu tava mesmo lá na frente dele, eu não tava no telão, terminou a aula eu levantei a mão. Nossa! Só Bourdieu pra explicar a heresia do gesto. Só Bourdieu pra explicar o quanto eu não deveria ter feito. Só Bourdieu pra explicar a falta de capital simbólico que me autorizaria a levantar a mão. Só Bourdieu pra entender o peso social daquele gesto. Só Bourdieu pra explicar o quanto eu devia ter ficado quieto. Mas como eu não tinha nada a perder e Bourdieu explica isso também, afinal de contas ninguém me conhece, eu levantei a mão, ele já tava indo embora, aí ele viu aquilo e ele levou três segundos pra encaixar o golpe: “Quem que é esse bosta, quer fazer alguma pergunta”. Ah, como

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eu sei dessas coisas. E aí ele falou: “Monsieur”. Aí eu falei: “Na aula passada o senhor falou uma frase que eu não entendi”. É claro, eu não disse que as outras eu também não tinha entendido, aí passaria por um imbecil completo. Mas: “Au revoir... Pois não, qual é a frase?”, eu falei: “Circuito de consagração social serão tanto mais eficazes quanto maior a distância social do objeto consagrado”. Ele olhou pra mim, um pouco estranhando: “Justo isso você não entendeu? Eu disse tantas coisas mais complicadas, mas isso é tão óbvio e você não entendeu?”. Ele me olhou com ternura, ternura de quem contempla um mentecapto completo, né? Que sujeito despreparado, né? O mais bizarro é que a câmera, como ninguém fazia pergunta tal, focaram em mim, eu devia estar nos seis telões. Do meu lado meu amigo Tanziri, eu sempre tive assim amigos, amigos subversivos, né? Quem poderia ser meu amigo na França? Um tailandês completamente sem noção. Um tailandês que até hoje não entendeu naaa... Acho que ele não sabe onde fica a França no mundo. E o japonês, o tailandês ia pra aula do, e ele, ele ficava com o olhinho dele assim, até hoje eu não sei se ele dormia, se ele... Ele ficava em diagonal assim. A hora que eu levantei a mão ele permaneceu imóvel assim... Ele só viu ele no telão e, né? Sabe-se lá o que passava pela cabeça dele. Grande Tanziri! É, cozinheiro de comida tailandesa, que é doce e picante ao mesmo tempo. Engana muito pra quem tem hemorróida. Você acha que é docinho, he! Depois de meia hora você esta pegando fogo e não sabe porquê. Mas Tanziri, Bourdieu acho que nunca entendeu nada. E aí Bourdieu virou pra mim e disse: “O senhor algum dia vai escrever um livro”. Falei: “É, possível”. “Nesse livro o senhor, no dia da apresentação do livro o senhor vai receber três elogios: o primeiro é o da sua mãe; o segundo é do seu melhor amigo e o terceiro é de um professor de outra universidade que você não conhece”. Ele olhou pra mim e disse: “Entendeu até aqui?” Veja o tipinho. Francês já é uma categoria insuportável, mas esse cara, ele excedia. Eu falei: “Até aí eu entendi”. Aí ele virou pra mim e falou: “Qual dos três elogios te consagra mais?” Eu não esperava por outra, por uma pergunta, eu não podia errar, aí eu falei: “O terceiro”. Ele olhou pra mim como dizer: “Viu? E por quê?” Eu falei: “Ah, porque o colega é suspeito e a mãe mais suspeita ainda”. “Au

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revoir monsieur” Virou-se as costas, virou, a lousa se abriu como no show da Xuxa, ele passou pela lousa, olhei pro Tanziri e o Tanziri assim... Porque você não entender a frase... bom vai lá! Agora não entender a explicação é demais. Mas os circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes quanto maior a distância social do objeto consagrado, agora ficou mais claro. O elogio será tanto mais eficaz quanto maior a distância social de quem elogia, em relação a quem é elogiado. Portanto, qual é o elogio de eficácia menor possível? Aquele de distância social zero. E quando é que a distância social é zero? Quando... É, não o da mãe ainda tem um pouquinho... O pior é o próprio, né? “Eu sou foda!” né? “Eu sou o melhor do mundo!” né? É, é, é risível, não tem consagração nenhuma. Quanto maior a distância social maior a eficácia do elogio. A Academia sabe muito bem disso. Ninguém fala bem de si, pede pro outro falar e depois devolve na mesma moeda. Consagração. Os franceses têm uma expressão que é assim: “Eu te ponho lá em cima e aí você manda o elevador pra baixo pra eu subir também”. Acho uma expressão fantástica, é a aplicação da teoria de Bourdieu em esquemas recíprocos de consagração: “Eu falo bem de você, você fala bem de mim”. Ainda é melhor do que falar bem de si mesmo. Acho que você entendeu a ideia, ela é até simples depois que você vence aquele primeiro impacto de uma frase, que passa muito longe do teu repertório. Assim era Bourdieu e continua sendo. Sua leitura é difícil e “Meditações Pascalianas”, como todo livro de Bourdieu, é um livro hermético e difícil de ser entendido. Minha meta oferecer o instrumental básico pra tornar essa dificuldade um pouco menor, só um pouco menor, continuará sendo um livro difícil. Eu espero que você se encante com o pensamento que é de um realismo e de uma crueza

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fascinantes, certo? Eu acho que Bourdieu está para a Sociologia como Nietzsche está para a Filosofia, né? É, diz as coisas como elas realmente são. É fascinante. É, e depois que você vira admirador de Bourdieu você não se desprega mais, né? É, tamanha a fertilidade dos seus conceitos. Acho que eu posso começar.

A ilusão naturalista de Bourdieu Eu acho que a primeira grande ideia que eu gostaria de apresentar pra você é a ideia daquilo que Bourdieu denominava é, a ilusão naturalista, que ele repete muito. A ilusão naturalista. Ora, venha comigo, né? Venha comigo! Afinal de contas você já está aqui numa sexta-feira. Esse é o momento de progredir, né? Sabe, do mesmo jeito que pra progredir fisicamente é preciso fazer força, eu me lembro de um treinador que dizia: “Se não cansar não adiantou nada”, aqui também é assim. É claro que a aula pode ser leve e você pode se divertir nela, mas se não houver um pouco de tensão não haverá alargamento do repertório. Todo alargamento implica um desconforto inicial. A ilusão naturalista o que quer dizer? Bourdieu passa a sua vida mostrando que muitas coisas que na sociedade nós consideramos, coisas de natureza, são, na verdade, coisas de sociedade. Se você preferir, muitas manifestações humanas que nós consideramos naturais, na verdade são socialmente adquiridas. Ou, pra falar como Bourdieu, socialmente construídas. Temos uma tendência no senso comum, aquilo que Bourdieu chamava com enorme desprezo de saber espontâneo, temos uma tendência no senso comum de naturalizar a ação humana, isto é, considerá-la como resultado de uma natureza qualquer e, portanto, temos a tendência de ignorar o quanto as nossas manifestações resultam de um trabalho propriamente social de que o nosso corpo é vítima. De um pertencimento social que nos permite um certo posicionamento no mundo social. De certa maneira, de uma explicação propriamente sociológica de uma manifestação que não é natural, mas que é um fato social. Socialmente explicável, porque

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um fato social, desde Durkheim, é isso: uma ocorrência que só é explicável socialmente. Então, o que faz Bourdieu? Identifica uma série de situações e comportamentos que no senso comum costumam ser imputados a uma natureza qualquer, e que na verdade são o resultado de um processo complexo de socialização, de vida em sociedade. E, portanto, Bourdieu, de certa maneira, faz um trabalho de investigação desse processo denunciando, né? A intervenção da sociedade sobre o indivíduo e mostrando em que medida as relações sociais é que explicam os comportamentos humanos mais aparentemente naturais, óbvios, evidentes e cromossômicos pra não dizer diferente. Então claro está que essa ilusão naturalista é, digamos, o primeiro degrau a vencer. Em outras palavras, a capacidade de identificar o que é socialmente explicável e a partir daí identificar as verdadeiras causas sociais que determinam este ou aquele fenômeno sob pena de continuarmos no senso comum. E se Bourdieu escreve esquisito é pra deixar claro que o seu pensamento não é um pensamento de senso comum. Em outras palavras, se você quer fazer revista nova, Marie Claire, como ele dizia, então aí a banca de jornal esta cheio de literatura fácil de entender. Eu escrevo do jeito que eu quiser pra deixar claro o quê? Que eu estou rompendo com o óbvio; rompendo com o evidente; rompendo com o natural; rompendo com o que parece óbvio, por quê? Bourdieu estava absolutamente convencido de que esse trabalho é a condição pra evidenciar os processos de dominação simbólica dentro da sociedade. Em outras palavras, a naturalização dos comportamentos. A naturalização dos comportamentos tira da sociedade o peso da responsabilidade daqueles resultados. Nada mais conveniente para dominantes que, de certa maneira, lhes convêm que as coisas sejam como são. Então perceba, o trabalho é um trabalho delicado de identificação das relações sociais, seus

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processos de dominação e suas consequências comumente apresentadas como naturais, óbvias, evidentes e decorrentes de um “inatismo” biológico. Muito bem, claro que muitos exemplos me vêm à mente. O que eu estou querendo te dizer que pra Bourdieu o conceito de natureza humana é uma ideologia. Toda vez que alguém imputa ao homem atributos inatos, o que está fazendo é mascarar os processos sociais que socializam o homem e que o fazem ser do jeito que é, e não de outro jeito. Existe, portanto, uma iniciativa interessada de ocultar os processos de dominação em nome de um inatismo. Toda a natureza humana é uma grande sacanagem e é claro que isso se traduz de várias maneiras. A primeira delas é querer imputar ao homem a humanidade genericamente, atributos inatos de natureza intelectual, de natureza afetiva, de natureza espiritual. De certa maneira, definindo o homem antes mesmo dele nascer. Se é homem é porque é assim. E é claro que toda vez que você apresenta uma definição de qualquer homem, genérica como toda boa definição, e recheada de atributos, você obviamente está dizendo que esses atributos estão presentes no homem desde o nascimento. E se está dizendo isso é porque está retirando da convivência social, da vida social, do pertencimento social, a responsabilidade por aqueles atributos. Portanto, toda a ideia de natureza humana é uma grande sacanagem ideológica para mascarar as coisas como elas são. Mas é claro que os atributos... Esta quente ou eu é que estou entusiasmado? Os atributos, os atributos genéricos tipo: o homem é animal político dotado de logos etc. e tal, definição aristotélica e outras, esses, digamos, são os menos graves.

Suporte biológico Na verdade, Bourdieu se insurgia mais ainda contra as naturezas setoriais. E aí tem de todo o tipo.

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O primeiro tipo que ele consagrou num livro extraordinário, é o gênero. A natureza masculina e a natureza feminina. E Bourdieu escreve então “A Dominação Masculina”. Uma obra extraordinária. Uma obra absolutamente rica de investigação e de análise pra mostrar em função de que mecanismos sociais a dominação masculina se torna legítima, aceita e defendida por todos, homens e mulheres. E é curioso como ele levanta dados que estão presentes no nosso cotidiano, como até mesmo detalhes do parto, a maneira como o ginecologista lida no trabalho do parto pra mostrar o quanto no cotidiano aceitamos implicitamente uma superioridade que se evidencia nas práticas, e que de certa forma teria como fundamento uma natureza masculina e uma natureza feminina. Ora, dirá Bourdieu, a Biologia é responsável por um suporte biológico inequívoco, mas entre o macho com pênis e a mulher com seus correspondentes, entre isso e a masculinidade entre isso e o feminino há uma distância oceânica. Um trabalho propriamente simbólico de construção da identidade masculina que é cem por cento social. Um trabalho propriamente simbólico da construção da identidade feminina que é propriamente social. De certa maneira, o que se espera do comportamento masculino e o que se espera do comportamento feminino, só podem ser compreendidos dentro da análise daquele universo social específico, naquele momento da história, naquele momento da, daquela sociedade específica e assim por diante. E os exemplos vão ao infinito. Afinal de contas, ao longo da história é preciso aceitar que o que se exigia do comportamento masculino em outros séculos aí, fariam com que uma figura como eu fosse um marica, pederasta, ridículo, uma espécie de... Porque, imagina que eu nunca comi um cérebro de um animal vivo e isso pra um homem é uma lacuna espetacular. Eu nunca arranquei as tripas de um inimigo vivo com a mão. Eu nunca deflorei cinco mulheres a machadada. Nunca cortei a cabeça de um cara vivo. Então, é claro, eu só posso ser um indivíduo com inclinações femininas. É só estudar História e verificar que o que se espera do comportamento masculino em outros tempos, não é o que se espera do comportamento masculino hoje.

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Mas você não precisa ser historiador pra isso. Aliás, você não precisa ser historiador pra nada. É só mesmo analisar hoje. Diferentes universos sociais têm diferentes formas de definição da masculinidade. E, portanto é evidente que o que se espera do comportamento masculino em certos espaços é completamente diferente do que se espera do comportamento masculino em outros espaços. Por que não dizer regiões geográficas, né? Eu me lembro de um parente recém-adquirido e ele contava a seguinte história; ele foi abordado no trânsito e o sujeito saiu com um revólver, ele então disse: “Isso aí só funciona na mão de homem, seu bosta!”. E aí eu olhei aterrorizado. “Ó, imagina se eu ia voltar pra casa com a pecha de frouxo?!” Isso foi este ano, não é incursão histórica. Naturalmente que se alguém sai com um revólver na minha frente, eu me escondo, como já aconteceu. E é claro então que o que se exige de comportamento masculino em certos lugares é diferente do que se exige em outros lugares. E isso vai deixando claro a você que os processos de construção da masculinidade que começam com a cor azul na porta da maternidade, que começam com um nome masculino, são na verdade processos performativos. E um discurso performativo é sempre um discurso que visa fazer acontecer aquilo sobre o qual se fala. E a masculinidade é performativa no seguinte sentido, no sentido de que tudo o que é dito pra uma criança de um sexo ou de outro poderia se resumir no seguinte: “Veja se você vira o homem que eu já estou afirmando que você é”. Em outras palavras, a socialização masculina é uma socialização performativa que visa fazer acontecer aquilo sobre o qual ela já afirma estar acontecendo, de tal maneira que você só consegue entender a masculinidade se você entender o lugar aonde aquele macho virou homem. Você só consegue entender a feminilidade se você entender aonde aquela mulher virou mulher; aonde aquela fêmea virou mulher. Acho que você percebeu o suporte biológico é um pretexto inicial de uma construção simbólica complexa que varia de lugar pra lugar.

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Pra ficar ainda mais claro o que eu estou explicando, é preciso deixar claro que muitas vezes a identidade social do masculino e do feminino podem, de certa maneira, prescindir do suporte biológico supracitado. Exemplo... – O senhor já parece que esta falando como Bourdieu. Pois é, é inevitável. É o caso de certos meios homossexuais ou prisionais onde você tem o marido, você tem a esposa e é tudo homem. Portanto, você tem a identidade do masculino, a identidade do feminino, e você não tem o suporte biológico dando conta, deixando claro a independência e a soberania das construções simbólicas em relação ao pinto, ao clítoris e, a clitóris, sei lá como chama, e essas especificidades biológicas. Então, é claro, ora, a pergunta é: e por que apesar disso tudo, é, tanta importância ao biológico é dada? Por que o fundamento do biológico é sempre levantado? Porque de certa forma a identidade masculina ela é incorporada a golpes de “encucação”, relações sociais que “encucam” um certo jeito de ser, de pensar, de agir etc., que vão muito além da percepção consciente dessa gênese e desse processo. Em outras palavras, você vai virando homem sem perceber; vai virando mulher sem perceber, de tal maneira que quando você se dá por si você já virou homem, virando mulher, sem ter se dado conta do trabalho social de construção dessa identidade, o que te faz pensar que tudo isso nada mais é do que uma consequência da natureza e da biologia. É justamente pela incorporação e pela interiorização de uma identidade simbólica masculina socialmente construída, que você perde a dimensão social dessa construção, razão pela qual o que é simbólico acaba sendo interpretado como sendo biológico.

Identidade Social Muitas vezes então, os gestos destemperados de valentia ou gestos de covardia, são muitas

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vezes interpretados e atribuídos a cromossomos tortos, he he he, ou até mesmo filiações hereditárias: “Não, o pai já era macho. Esse tem o bago do pai”. Quando na verdade não é o bago do pai que ele tem, o que ele tem é a socialização que começou com o pai, e que de certa maneira foi patrocinada no meio que obviamente levou a esse tipo de comportamento como inevitável. E aí então, a valentia ou a covardia são construções sociais que quase nunca são explicadas como tais, mas quase sempre são explicadas em função de fatores que não são os bons. Sobre a dominação masculina, recomendo a leitura, “Pierre Bourdieu”, tá escrito em português e é um dos livros mais tranquilos do nosso autor. Mas essa questão da ilusão naturalista não é só de gênero. Afinal de contas, o gênero foi a coisa que menos atrapalhou Bourdieu. Essa ilusão naturalista tem a ver com tantas outras variáveis como étnicas, por exemplo. Afinal de contas, quem é que não relaciona um cabeça chata com uma série de outras reações e atribuí-lhe a uma certa genética nordestina, esta, este ou aquele comportamento. Toda origem do racismo, toda a origem da xenofobia está neste biologismo do comportamento humano. Está em tentar identificar nas origens genéticas e biológicas, comportamentos que na verdade são social e politicamente explicados. Uma natureza de negro, ah, quantos de nós, como é tentador dizer que negro tem a bunda mais dura. Como é tentador colocar em evidências diferenças biológicas pra justificar todos os nossos preconceitos. Como é tentador acreditar que pequenas diferenças biológicas possam justificar tanta discriminação, tanta distância. Afinal de contas, mesmo num país como o nosso, que todo mundo afirma não haver racismo, eu mesmo não consigo ver muita diversidade étnica por onde eu passo. E olha que eu ensino numa universidade pública, e nos últimos quinze anos eu não tive cinco alunos negros nesse país que não é racista. Não é legal? Mas deve ser porque ele tem a bunda mais dura. Por isso, aliás, eles correm mais. E por isso negro corre e homem vai pra univer... E branco vai pra universidade. Nada como justificar biologicamente aquilo que é.

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Você sabe por que, né? Porque quando você justifica biologicamente, você tá dizendo na verdade que não tem jeito. E sempre haverá um americano de extrema direita pra dizer que é o número de cromossomos que é menor, que deve ter algum problema de genética, que na verdade o que há é, é que o cérebro é menor, eu acho, né? Não sei se é pra mulher ou pra negro, o problema continua o mesmo. Sendo o cérebro menor, então, a divisão social do trabalho esta justificada: “os de cérebro maior, os cabeções, vão pra universidade e os de cérebro menor, você dá uma marreta, uma picareta etc. e tal”. E você faz uma divisão social do trabalho a partir do tamanho do suposto cérebro diferente. Então você percebe que a partir daí você tira da sociedade, da socialização, do preconceito todo o ônus da responsabilidade pela discriminação e você joga em diferenças biológicas quaisquer, como um músculo adutor da coxa desenvolvido ou até um pinto maior, eu sei lá, o que você quiser chamar. E aí então Bourdieu, ele se transtornava com essa perspectiva, é claro, o fato do negro e do branco ainda não era exatamente o problema dele. O problema dele, dele pessoal, é que ele era taxado pela sociedade parisiense de caipira, caipira, né? Que eles chamam de “provence”, é... O cara vem da Provence, ele é lerdinho e tal. E nossa, velho! E ele toda aula ele falava: “Eu vou mostrar o lerdinho agora!” E aí ele começava a falar e ninguém entendia porra nenhuma: “E aí, não entenderam? Então, sou eu o lerdinho?” E, claro, ele nunca digeriu isso. É, eu, a mim me faz rir quando alguém vê meu sotaque caipira, eu me divirto, é, não, não me irrito com nada disso, prefiro o sexo à raiva. Mas ele não deixava barato. Ele não deixava barato. Ele dizia: “Eu falo esquisito, mas você não me entende, porque o lerdinho é você. E aqui eu estou invertendo os processos de socialização, parisiense inferior, incapaz de me entender”. Espero que você entenda, não tem como separar a sua sociologia da sua própria trajetória. Aliás, coisa que ele confirma na sua obra. Muito respeitador do que fez Nietzsche também, que dizia: “A minha filosofia é o resultado da minha loucura”. E Bourdieu dizia: “A minha sociologia esta

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totalmente explicada pela minha sociologia”. Em outras palavras: “Eu sou um subversivo e tudo o que eu falo sobre dominação se aplica perfeitamente a todas as minhas estratégias de subversão do campo, e depois como dominante de conservação do campo”. Muito bem, sendo assim, espero que você tenha entendido esse nosso primeiro degrau, a ilusão naturalista. Depois do intervalo nós vamos atacar talvez aquele que é o mais fértil conceito da sociologia de Bourdieu, o conceito de campo, absolutamente imprescindível pra você entender do que ele esta falando. Eu tenho certeza que depois que você entender bem o que é um campo social a tua análise do mundo vai mudar, ela tem que mudar, ela tem que mudar. Depois que você entender bem o que é um campo social, de certa maneira a lógica das estratégias sociais vai ficar muito mais clara pra você, e de certa forma, muito do seu moralismo ingênuo vai ser substituído por uma espécie de sagacidade científica muito competente pra entender como as coisas funcionam de fato. Conceito de campo é fantástico, mas esse eu vou abordar depois do intervalo.

O conceito de campo Venham comigo! É, conceito de campo, nossa, é, quando eu digo isso sempre eu corro o risco de ser mal interpretado, mas corremos o risco de ser mal interpretado sempre. Se na minha trajetória eu tivesse tido uma aula como essa teria me facilitado a vida. O conceito de campo é um conceito que esta presente em todos os livros de Bourdieu. No entanto, dizer o que campo é, de forma didática, definitiva, que nem gente, ele não faz em momento algum. O lugar aonde você talvez possa ter um arremedo de didatismo é no livro “Questões de Sociologia” que é uma reunião de conferências e uma das conferências tem como título, Algumas Propriedades dos Campos. Só aí, no resto da obra inteira ele fala de campo como se fosse a maior

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obviedade do mundo e todo mundo já, né? Porque é o tipo da obra que ela já começa com o bonde andando. Você começa a lê e ele parte da premissa que você sabe já tudo. E é essa enorme dificuldade de ingressar na obra. O que é um campo social? Um campo social é um espaço de posições sociais. Agentes sociais, pra Bourdieu, ocupam posições sociais. E é claro que ao se relacionar, as relações sociais, elas estão a mercê das posições sociais ocupadas por aqueles que se relacionam. Então, todo campo é um espaço estruturado de posições sociais. Ora... – Professor, eu não sei se eu captei. Então venha comigo! Quando Bourdieu diz que é um espaço, a primeira coisa que vem a sua cabeça é um espaço físico, como, por exemplo, esta sala. E é claro que o espaço de que ele está falando não é esse. Essa é a primeira dificuldade. E, portanto, o espaço social é um espaço que é abstrato, ele não é físico, ele não é um lugar, não é um prédio. Eventualmente, espaços físicos podem conter agentes de um campo de forma muito recorrente e intensa, mas isso é uma coincidência. O espaço social não é um espaço físico e, portanto, as relações sociais que constituem esse espaço social são relações que podem se dar em qualquer lugar. Muito bem. Isto quer dizer que as posições sociais não são geográficas, elas são simbólicas, de tal maneira que elas podem não ter nada a ver com as posições físicas. E as distâncias sociais podem não ter nada a ver com as distâncias físicas. Exemplo: o CEO, que na França é PDG, Président Directeur Général, o CEO de uma empresa

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pode eventualmente tomar o elevador com a moça do café. A distância física se reduz, mas a distância social é oceânica, continua oceânica, talvez até nunca pareça tão oceânica quando a distância física se reduz. A distância física não elimina a distância social. Coisa que Relações Públicas nunca entendeu. Isso e o resto, é, é. Então, existe em Relações Públicas um negócio que é o café da manhã com o chefe. Então, o que, qual é a premissa? Colocando o empregado, de que nível for, pra tomar café da manhã com o chefe, eles ficam os dois na mesma sala e com isso a gente consegue... he he he, sei. É de uma ingenuidade extraordinária. O chefe já vai tomar café da manhã com o cara, como faria Maria Antonieta recebendo os seus súditos. E o cara já vai tomar café da manhã com o chefe, né? É, e ele vai comer meio croissant, né? Em casa ele comeria dezoito daqueles. É de uma artificialidade extraordinária, a distância social e a distância física... Só um RP pra não enxergar que as distâncias simbólicas não se encurtam botando uma pessoa na frente da outra. Ora, isto não quer dizer que as distâncias sociais possam ser simbolizadas geograficamente. O que é outra coisa. Se esse menino - levante-se aqui - ele é meu aluno, ele vai me abordar na faculdade, então a distância que ele vai manter é uma distância de aluno. E essa distância não é espontânea, essa distância é socialmente aprendida. E se porventura ele transgredir essa distância eu vou recuar de maneira a ele respeitar de qualquer jeito, por quê? Porque aluno e professor tem que conservar uma distância. Então, aqui você tem uma certa materialização física de uma distância simbólica, mas isso não significa que se eu chegar perto dele pra tirar uma foto, eu virei igual a ele ou quase igual. De jeito nenhum. Ele continua não valendo nada perto de mim. É evidente, porque ele nem mestrado tem, eu já cheguei no fim da carreira acadêmica, é preciso respeitar os títulos, portanto, vá se sentar, entendeu?

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O campo é um espaço de posições e de distâncias. E essas posições se definem como? Agora você tem que entender. Preste atenção, porque esse é o pulo do gato. Quando você vai definir uma coisa, você costuma definir uma coisa seguindo os preceitos da lógica clássica. Toda definição deve ser universal e própria. E o que isso quer dizer? Aquilo que é necessário pra conseguir, pra identificar a diferença específica, quer dizer, aquilo que tudo o que você define é, e aquilo que só o que você define é. Não sei se me entendeu, se não entendeu vá pra casa com esse problema. É, claro, se eu vou definir bananas eu tenho que dá uma definição que compreenda todas as bananas, e eu tenho que dá uma definição que não inclua pêra. Portanto, que inclua todas as bananas, mas só as bananas, universal e própria, não pode transbordar, e não pode ficar aquém. Tem que oferecer a diferença específica, o contorno daquele universo. Ta claro? Então, toda a definição costuma ser entendida na lógica clássica a partir do quê? A partir de um exame do objeto a definir. E é a partir do exame de um objeto a definir que eu vou encontrar a sua universalidade e a sua propriedade. Ora, as posições sociais de Bourdieu não conseguem ser definidas assim; não é assim que se define. E por quê? Porque elas não são definíveis por elas mesmas. Na sociedade as posições sociais não são definíveis por si só, elas só são definíveis em relação às outras. A definição, portanto, ela é relacional, ela é uma definição por tautologia. Uma coisa é o que o outro não é. E o outro? É o que esse não é. E assim a vida social, de acordo com Bourdieu, é estruturada em torno de polaridades que só tem significado no desmentido do seu contrário. – O senhor podia dar um exemplo? - Naturalmente, nunca deixei você na mão. Vamos imaginar que eu peça pra você definir um chefe. Exemplo clássico de Bourdieu, um

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chefe. Como é que você define um chefe? Fica claro que um chefe não é definível por ele mesmo. Mas um chefe só é definível em função do seu subordinado. Um chefe sem subordinado não tem sentido, não chefia, portanto, chefe só é chefe em função do que lhe é outro, tautologicamente. Do mesmo jeito que pêra e banana numa pereira, o que é banana não é pêra, e o que é pêra não é banana. Então, quem é chefe é chefe, quem é subordinado é subordinado. Se eu for definir subordinado e não fizer alusão a chefe eu não consigo definir o subordinado, porque as posições sociais só são definíveis assim, umas em relação às outras. Paradoxalmente, elas encontram no seu contrário a sua definição possível. É como norte e sul, né? Exemplo clássico de Bourdieu. Como é que você define sul? É o que esta do outro lado do norte. E o norte? É o que esta do outro lado do sul. Assim chefe e subordinado. Assim burguês e proletário. Assim rico e pobre. Assim escroto e gente fina. Assim brega e chique. Assim... Em outras palavras, a sociedade tem posições que só são definíveis relacionalmente, reflexivamente. Umas em relação às outras. E, portanto, no campo social, nesse espaço social, as posições só podem ser cernidas relacionalmente. Ah, mas sabe, pô! Você vai desculpar, se o universo é infinito, se você quer situar um ponto P, você precisa de referência. Onde é o ponto P? É o que tá embaixo do ponto E. E o E? É o que tá em cima do P. Quando Descartes situou um ponto P, ele não situa assim, mas ele situa assim: tem um eixo assim, um eixo assim, aí eu tenho um ponto P, né? Aqui ó, ó, ó, né? Aqui é A, aqui é B, A vírgula B. Então esse ponto P só é situável em relação a dois eixos cartesianos colocados em perpendicular. Portanto, percebeu? Desde Copérnico, Galileu e Newton, pra eu posicionar tem que ser em relação á. Ninguém posiciona em si, sempre em relação á. E Bourdieu não faz diferente. Ficou claro?

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A estruturação do campo social Muito bem. Um campo é um espaço de posições definíveis reflexivamente. Mas ele é estruturado. E o que significa estruturado? Significa que essa reflexividade ela sempre se dá a partir de eixos e são eixos estruturantes do campo. São eixos, portanto, em torno dos quais as posições ganham a sua simetria de reflexividade. Todo campo é estruturado, quer dizer, todo campo tem eixos que permitem facilitar o posicionamento dos agentes. Qualquer campo é assim. E à medida que nós formos dando exemplo de campos, você encontrará esse eixo com facilidade e outros eixos. Vamos pegar o exemplo do campo jornalístico. O campo jornalístico tem vários eixos. Um eixo do campo jornalístico é o eixo, é, jornalismo de massa, né? Jornalismo de massa, que tá na indústria cultural, e jornalismo alternativo, né? Então, a rigor, você sabe muito bem que a revista Veja aqui e o Jornal Nacional esta aqui e aqui você terá o Pasquim, você terá, é, a Tribuna Operária, você terá a Carta Capital etc. que estão aqui. Um outro eixo que estrutura o campo jornalístico é pelo veículo: televisão, não é? Televisão de um lado, jornalismo impresso do outro lado. E assim, todo campo tem uma série de eixos a partir dos quais você consegue ir situando os atores e eles vão se posicionando dentro do campo, e é claro que essa estrutura ajuda demais a explicar as manifestações dos agentes dentro desses espaços estruturados de posição que são os campos. Muito bem, terceiro elemento: todo campo tem regras. Essas regras podem ser jurídicas, são as que menos importam, ou essas regras podem ser resultado de uma aceitação tácita, mas que não tão escritas em lugar nenhum, mas são respeitadas por todos. Exatamente aqui chegamos a uma característica importantíssima dos campos: os campos são

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espaços ao mesmo tempo de conflito e competição, e de concordância implícita sobre o seu funcionamento. E é isso que faz do campo um certo paradoxo. O campo é ao mesmo tempo espaço e arena de luta e ao mesmo tempo espaço e arena de concordâncias. Exemplo: na época da redação da constituição, havia um deputado constituinte chamado Lula. E havia um outro, Guilherme Afif Domingos. Por razões de estrutura do campo, Lula era líder do PT, Guilherme Afif Domingos líder do PL, finado PL. Ora, pelo eixo direita/esquerda, absolutamente antagônicos. Lula e Afif eram adversários, mas ao mesmo tempo eram grandes amigos. Em outras palavras, como em todo jogo o campo é um espaço de adversários que também são super amigos porque jogam o mesmo jogo, levam a mesma vida, frequentam os mesmos restaurantes, falam das mesmas coisas, legislam. Em outras palavras, tem muito mais afinidade entre eles do que com qualquer um de nós. Não sei se me entendeu. Então, o campo é essa situação ambígua que é ao mesmo tempo de conflito e proximidade. Ao mesmo tempo de luta e cumplicidade. Ao mesmo tempo de enfrentamento e de defesa das regras do jogo, até porque todos são responsáveis pela proteção do jogo, porque se acabar o jogo, acaba pra todo mundo. Então eles são ao mesmo tempo competidores e defensores das condições de reprodução do jogo. Daí a ambiguidade de todo campo. Professor Clóvis é professor universitário. Pertence, portanto, ao campo universitário. Isto quer dizer que o Professor Clóvis joga esse jogo aqui. Muito bem, existe um eixo que corta o campo universitário que é um eixo importante: Universidade Pública, Universidade Privada. O Professor Clóvis já militou muito desse lado do campo. Hoje, o Professor Clóvis milita desse lado do campo. Muito bem, esse é um eixo divisor importantíssimo e que tem consequências espetaculares. Esses daqui fazem pesquisa, esses daqui menos. Esses daqui preparam pro mercado de trabalho, esses daqui preparam pra criticar o mercado de trabalho. Esses daqui trabalha... Então, há uma série de consequências desse eixo público/privado que criva o campo acadêmico.

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Muito bem. Ora, o Professor Clóvis é professor de Ética em escolas de Comunicação. Então, é claro, que ele ocupa um micro espaço aqui no campo da comunicação e dentro do campo da comunicação um outro micro espaço que é a ética e a reflexão crítica dos meios de comunicação. Muito bem. O Professor Clóvis divide a sala dele na USP com um fulano chamado L. L. Batista. E o que L. L. Batista faz da aula de Ética em faculdades de Comunicação? Quem é L. L. Batista? Meu concorrente. É simples assim. Meu adversário. Eu o enfrento. Eu o destruo. Eu o ataco. A situação é mais chata porque ele é um cara muito legal, e é muito chato ter que rivalizar com ele. Mas, curiosamente, somos dois dos professores mais queridos da escola e quase sempre ele é paraninfo da turma de Publicidade e eu de Jornalismo ou vice-versa. Estamos os dois disputando o quê? O carinho dos alunos, o aplauso, a coisa, o aplauso da faculdade, não sei o quê e tal, porque os dois fazemos a mesma coisa, ele é formado nos Estados Unidos, eu sou formado na França, temos visões muito diferentes de tudo, mas, claro, na hora H, hoje ele me chama e diz: “Clóvis, os caras tão querendo reformar o departamento e você vai passar pra lá e não sei o quê tal e nós temos que fechar a fileira aqui pra não deixar isso acontecer”. Aquele adversário foi o primeiro a me avisar que tavão me, querendo me tirar da sala dele, e ele sem esse adversário não ia conseguir sobreviver. Ele foi o primeiro a me avisar que ele era o primeiro a me defender naquela coisa. Acho que você entendeu, na hora que o jogo tá ameaçado é preciso fechar questão: somos adversários, mas também somos jogadores do mesmo jogo. Não tem como entender campo sem entender isso; essa dupla dinâmica, do enfrentamento e da cumplicidade.

Jogadores e pretendentes do campo social Muito bem. Todo o campo tem os jogadores que tão jogando, mas todo campo tem os que

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querem jogar. Bourdieu chama isso de pretendentes. He! E o que é um pretendente? É quem quer jogar e ainda não esta jogando. Querem exemplos? Eu dou aos montes. Sujeito quer ser professor universitário, Guguinha. Quer ser professor universitário, quer entrar no campo. Entendeu? Eu tô aqui dentro acenando pro Guguinha e o Guguinha do lado de fora, completamente? Não mais completamente, porque a porta de entrada do campo universitário qual é? Qual é? – Mestrado? (aluna responde) O mestrado. E ele já está no mestrado da USP, ele já entrou. A partir de agora é um competidor potencial, uma ameaça terrível. Olhe bem pra cara dele: fisionomia aparentemente anódina, mas alguém capaz de me passar uma rasteira a qualquer momento. Até outro dia ele tava do lado de fora, agora ele já tá do lado de dentro. Entrar no mestrado. O mestrado é o gatekeeper de entrada no campo; é o portão de entrada. E quem não entrou no mestrado? Não joga esse jogo. Não joga esse jogo. Não tem a menor noção. Não joga esse jogo. Não joga. O mestrado é a porta de entrada. Claro que é como toda porta de entrada é o primeiro degrau, mas sem ele não rola. – Ah, eu fiz MBA na Fundação... O jogo, esse jogo você não joga. Você tá qualificado pra jogar outro tipo de jogo, o jogo acadêmico você não joga. – Pô! Mas me cobraram uma fortuna! Não, pois é. Deve ter entendido, no mundo acadêmico dinheiro não é importante. Pode olhar bem pra mim. Hum! No mundo acadêmico dinheiro não é importante, he! Como todo campo de criação cultural, um dos eixos fundamentais é o eixo puro comercial. Não tem a música

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comercial e a música de qualidade? Não tem a pintura comercial e a pintura de qualidade? Também tem a ciência pura do professor da USP pobre, que tem uma Brasília etc. e você tem o quê? A profissão de conhecimento prostituída, palestras em Banco e outras coisas etc. e tal. Percebeu o eixo? Dos puros e dos impuros. Dos vendidos e dos que estão ainda se oferecendo, né? Então essa é a perspectiva. Mas tem o pretendente. E no campo jurídico. Tem os que tão jogando e têm os que querem entrar. Uma porta fodida do campo jurídico é o exame da Ordem. É evidente. Não passou no exame da Ordem, você tá do lado de fora. Passou no exame da Ordem, já foi convidado a entrar. O campo jurídico é um espaço de posições aonde os agentes ocupam um espaço em função de eixos. Tem um monte de eixos o campo jurídico. O campo jurídico em qualquer lugar é um dos mais bem estruturados, sempre, em qualquer lugar. Então têm eixos, por exemplo, como especialidade. Todo mundo sabe que um advogado trabalhista... O advogado de empresa, o tributarista, ou desses que cuidam de precatório, essas coisas, é outro nível, entendeu? É outro nível. Agora o trabalhista é uma figura... O advogado trabalhista ocupa no campo jurídico a mesma posição que o jornalista esportivo ocupa no campo jornalístico, entendeu? O Chico Lang, né? No campo jornalístico é o advogado trabalhista no campo jurídico. Agora, se tiver algum advogado trabalhista, tá querendo me matar, mas enfim, haverá de entender que as coisas são como são, né? Então, é, outro eixo que estrutura o campo jurídico é advogados de um lado e concurseiros do outro lado, né? Promotores, juízes etc. e tal. E depois dentro dessa coisa os juízes se acham mais, os promotores também tão se achando mais; aí tem defensores, delegados e blá blá blá, tudo... A coisa é muito engavetada, velho! Cheio de cada um no seu quadrado e a sociedade define

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categorias de forma muito cruel e muito contundente. Mas a porta de entrada, o exame da Ordem, o concurso público, tem várias portas de entrada e o campo jurídico é super coisa. Mas aí você entrou. Aí você entrou. E o que acontece quando você entra? Às vezes é melhor não entrar, porque quando você entra as pessoas vão deixar claro pra você que você acabou de entrar. Não sei se me entendeu. Que você é um bosta, na verdade. Você é um bosta. Então, o que você vai perceber? Que as pessoas que tão jogando o jogo não jogam o jogo com a mesma quantidade de fichas. E essas fichas, Bourdieu chama de capital social. E é claro que você tem que entender o capital não como dinheiro. Pra Marilena Chaui, ela tem um capital acadêmico incalculável, né? Mas não é o mesmo capital do Di Genio, eles não jogam o mesmo jogo. – Ah, mas o Di Genio não é dono de faculdade? Mas o Di Genio apesar de ser dono de faculdade não joga o jogo acadêmico, joga o jogo do campo econômico. Ele tem faculdade como ele poderia ter supermercado, açougue etc. e tal. Então, a Marilena Chaui tem um caminhão de capital acadêmico incalculável, mas isso não tem nada a ver com o salário que ela ganha, ou com a poupança dela, ou com não sei o quê, muito pelo contrário. E o que é o capital? O capital é o conjunto de recursos que cada jogador tem pra disputar os troféus específicos do campo. E, é claro, que cada campo tem capitais específicos. E o capital do campo acadêmico não tem nada a ver com o capital do campo jornalístico, que não tem nada a ver com o capital do campo jurídico, que não tem nada a ver com o capital do campo econômico e assim por diante. Não sei se tá me entendendo. E é exatamente por isso, é porque os capitais, eles são específicos, que toda tentativa de conversão de capital encontra uma taxa de conversão altíssima. Se Marilena Chaui for se meter a ser jornalista, pode ser a Marilena que for, vão botar ela... Vocês vão dizer: “Ah, mas e no Caderno

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Mais?” Caderno Mais não é jornalismo, isso não é campo jornalístico. Se ela se meter a ser jornalista, ela vai cobrir furo de asfalto na Marginal, você entendeu? E não quero saber. Toda vez que você tenta converter o capital de um campo em outro campo você paga um preço às vezes que corrói o teu capital. Assim Silvio Santos tentou se candidatar algumas vezes. Dotado de um capital gigantesco no campo econômico, foi tentar ser político e pagou um preço tão caro que nem conseguiu converter, né? É, e por que não lembrar do Antônio Ermírio que fez a campanha mais cara da nossa província, também não conseguiu se eleger. Isso deixa claro que cada campo tem suas regras, e não é tão fácil assim chegar cagando regra quando você não é do ramo. Ficou claro, velho? Então, xará, não adianta vim pra entrar no campo acadêmico, porque o pessoal vai... E olha, o campo acadêmico ele é dos mais nojentos, cara. Porque a pessoa vai dizer: “Nãoooo, venha, faz parte. Venha e tal”. Na primeira curva: chuuuuuuu, te joga um Bourdieu na cabeça, assim, pra te deixar claro que você não é do ramo. Não gostou? Ora, quem sabe um curso de técnico de televisão, alguma coisa, né? Pra você se divertir, aqui não é a sua praia. Acho que você entendeu: cada campo tem capital específico. E eu acho que você percebeu que dentro do campo a distribuição do capital é profundamente, he, desigual. Não é só dinheiro que se concentra dramaticamente nas mãos de uns. Todo tipo de capital se concentra. Marx tem razão além de Marx. Se no capitalismo o capital se concentra, na Academia o capital acadêmico se concentra dramaticamente. E pra você entender essa concentração de capital, basta ver o número de professores de Filosofia do ensino médio que adotam o livro da Marilena, e que quando encontram a Marilena tem o direito social de pedir o autógrafo ou de aplaudi-la quando ela fala. Não tá autorizado a parar na frente dela e fazer uma pergunta. Pra cada centena de milhar de professor, tem uma Marilena. Pra cada centena de milhar de professor, tem um Franklin. Pra cada centena de milhar

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de professor, tem um Jacóia. Pra cada centena de milhar de professor, tem um Karnal. Pra milhares de professores de História pelo mundo, pra cada centena de milhar, tem um Pondé, né? Então, e o que é que essa centena de milhar faz? Aplaude. Antes do cara entrar ele já está aplaudindo, por quê? Porque existe um reconhecimento de uma concentração de capital tal, a legitimidade é tamanha, que a pessoa não precisa nem chegar, não precisa nem ir, porque o que está sendo aplaudido não é o que ela vai dizer, coisa que quase sempre é entendida, quase nunca é entendida, o que esta sendo aplaudido é a posição social que ela já ocupa. Na verdade, é o que ela já fez. O que tá sendo aplaudido, na verdade, é a capacidade que ela teve de concentrar legitimidade e reconhecimento. É nesse ponto que você tem que entender que o capital social não é uma coisa que você ponha no bolso. Porque o capital social, na verdade, é reconhecimento dos outros. O capital social precisa o quê? A chancela do outro. Quem é que confere capital social a um professor? É o aluno. Sabe, não sei se você me entende. Quem é que confere reconhecimento ao jornalista, é o seu leitor? Então, na sociedade os recursos que alguém dispõe pra alcançar os troféus do campo são outorgados pelos seus pares, pelos demais jogadores, que reconhecem nele alguém com esta condição e com esses recursos pra conseguir o que se pretende. Sobre capital a gente vai consagrar muito mais tempo é que as ideias se entrecruzam.

Troféus do campo social E finalmente, todo campo tem troféus, como todo jogo tem o critério da vitória, né? Aquele jogo do dadinho que você corre com o peão, o troféu é chegar na frente, lá no meio. Todo jogo tem troféu. – Ah, tá gozado, não tô vendo com clareza.

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O campo político esta cheio de troféus. Mas o que é interessante aprender é que o valor do troféu só é completamente percebido por quem joga, porque quando você não joga o valor do troféu não aparece. Tanto quanto as posições só tem sentido em relação às outras posições, o valor do troféu só tem sentido na dinâmica do jogo. Fora da dinâmica do jogo os troféus parecem esdrúxulos pra quem olha de fora do campo. Tanto é assim, que você pode perfeitamente pegar um troféu, troféu, materializado em troféu, porque é claro que os troféus que eu estou falando aqui são simbólicos. Mas você pega um troféu, materializado em troféu de um campeonato de bocha que você encontra na esquina e você joga no lixo. Porque é claro, como você não é jogador de bocha, um troféu de um campeonato de bocha você não vai botar na tua estante, não faz o menor sentido, está totalmente fora do jogo, não tem valor nenhum. Eu me lembro que faz um tempo eu concorri a livre docência na USP. Isso é um troféu. A livre docência é o pior concurso. É uma carnificina mesmo. E eu me lembro que eu tive que segurar nas costas ainda um problema que eu ignorava: ser professor em uma instituição particular. Me apareceu um japonês revoltado. Eu tive que me justificar por quarenta minutos de por que eu dava aula aqui. Concurso terrível para o qual eu escrevi uma tese de mil páginas. E o meu filho, que naquela época era adolescente, virou pra mim e perguntou: “Pra que tudo isso?” Sabe quando você estuda domingo à noite? Eu peguei e falei: “Vou prestar um concurso”. “Ah é? Do quê?”. “Livre docente”. Porque o livre docente esta muito acima do doutor, mas o doutor encontra no senso comum uma espécie de significado pasteurizado. O livre docente é o tipo do troféu de identificação muito específica. E o meu filho falou: “Que porra é essa?”. Eu falei: “É uma porra muito importante”. Aí o meu filho disse: “Quanto você vai ganhar a mais por isso, se você ganhar?”. E eu respondi: “Nada”. Ele

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olhou e disse: “Deixa eu vê se eu entendi: você está se fodendo aí pra ganhar um título que ninguém sabe o que é, e pra não ganhar nada a mais de salário”. “É”. Então o meu filho, por não jogar o jogo acadêmico, não tem como entender a minha motivação. E é exatamente aqui que entra o último conceito da aula, o conceito de ilusio. E o que é ilusio? É a obviedade do valor do troféu pra quem é jogador do campo. Sabe, Nietzsche tem uma frase... Não faz essa fisionomia. Nietzsche tem uma frase que diz que tudo que precisa ser demonstrado não tem valor nenhum. E essa frase é ótima pra entender isso. Pra quem é jogador do campo acadêmico, ser livre docente da USP não precisa de explicar o valor. Se você é jogador, você entendeu. Mas entendeu mesmo... – Entendi, he he he. (aluno responde) Por quê? Porque jogar o jogo... o campo é um espaço privilegiado de socialização e um dos efeitos da socialização do campo é a naturalização do valor do troféu. Olha que frase pra soltar num bar agora, hein? Um dos efeitos da socialização do campo é a naturalização do valor do troféu. E a naturalização do valor do troféu se chama ilusio. Você não precisa demonstrar, ela é óbvia. Então, hoje em dia, muito se fala em motivação. He! E aí liga o cara do RH para o Professor Clóvis: “Professor, o senhor daria uma palestra motivacional?”. É preciso explicar que toda a motivação pressupõe um contexto social mais amplo do que uma palestra possa proporcionar. A motivação, na verdade, é a quantidade de energia que você disponibiliza pra buscar troféus em espaços específicos de convivência que são os teus. Portanto, não adianta me dar palestra pra eu me motivar pra competir num campeonato de badmiton. Não sei se me entendeu. Pode vim o palestrante que for, pode vim Maomé: “Você tem que ganhar o campeonato de badmiton”. “Ouuu”. Não, velho! Não, não. Porque a motivação pressupõe justamente a inscrição num contexto relacional de jogo que é social e que não é individual. Não sei se me entendeu.

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É por isso que o troféu é importante. A obviedade do valor do troféu faz com que você saia à busca daquele triunfo como sendo uma decorrência óbvia do teu pertencimento e da tua inscrição social. E é claro que quando Durkheim escreveu “O Suicídio” e ele diz que o suicídio tem causas sociais, ele não falou de campo, ilusio, troféu etc. Mas é muito menos provável que alguém que tem troféus claros, competidores claros, é, contextos de luta claros, é muito menos provável que esse alguém se suicide do que alguém que não joga o jogo, quem não continua jogando o jogo, não disputa nada. Não tem nada mais terrível do que esse tipo de exclusão social. E é por isso que é importante incluir pra botar pra jogar, porque tem troféu pra todo mundo ou pelo menos pra todos os níveis. Porque você sabe bem que se você acabou de entrar no campo jurídico, você não vai virar Ministro do Supremo amanhã. Não é esse o troféu que você disputa. Você disputa aqui embaixo, quando ganhar esse vai disputar o de cima. A sociedade é sábia na hora de mostrar a cenoura e perseguir cenoura é um excelente antídoto contra a depressão. Mas palestra nenhuma faz isso sozinho. É preciso de jogo, de jogador, de troféu, de pertencimento, de inscrição no jogo, e tudo isso palestrante nenhum consegue em uma hora e meia. E é exatamente a partir do conceito de campo jornalístico, jurídico, político, acadêmico, o que você quiser, que nós vamos continuar a nossa viagem. Haverá quem critique Bourdieu. Haverá quem critique Bourdieu por dizer que Bourdieu faz uma sociologia dos poderosos. Afinal de contas, o campo jurídico é fácil de ver. O jornalístico também, o publicitário também, o acadêmico também, o político também. Mas e o catador da bolinha de tênis, a que campo ele pertence? E a tua copeira, a que campo ela pertence? Que troféu ela disputa? Quais são as regras do jogo que ela joga? E você percebeu que a sociologia de Bourdieu acaba botando muita gente de fora, que não joga jogo nenhum, que não disputa troféu nenhum.

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Hoje, muito mais do que os troféus do campo acadêmico, hoje eu jogo num jogo diferente. O meu jogo hoje é um jogo de palestrantes. Os meus adversários passaram a ser outros. Hoje eu concorro com mágicos, ilusionistas, monges, cantores, e você dirá: “Ah, a competição ficou mais fácil”. Não, velho! He he. Ficou muito mais difícil, porque eu com a minha vã filosofia tenho que concorrer com gente que tem enorme capacidade de entreter, de fazer sorrir, de fazer chorar, de inventar. A competição ficou muito mais dura, sobretudo pra quem muitas vezes diz coisas que não são nada agradáveis de ouvir. Mas esse é o meu novo jogo, esse é meu novo desafio, eu mudei de jogo. De vez em quando eu tento converter o meu capital acadêmico em capital de palestrante, e sabe o que eu descobri? Que quando você diz que é professor o preço da palestra cai. E é por isso que eu sou consultor. E aí você percebeu como não é fácil converter capital acadêmico em qualquer outro. É preciso esconder o pertencimento, é preciso esconder o outro jogo, é preciso esconder pra poder jogar. E lá na USP eles dizem: “Você se serve do nome da USP para...”. “É exatamente ao contrário, amigo, pelo contrário, procuro não citar pra não ter o meu trabalho desvalorizado por essa tarefa ridícula e ilegítima que é a de educar”. A sociedade é o que é, os agentes sociais são o que são, a situação é essa, a profissão de professor, salvo dois ou três lugares de reconhecimento como esse, é uma profissão em que o professor apanha dentro da sala de aula. Se vê agredido, atacado e humilhado pelo salário que recebe. É preciso mesmo esconder que é professor pra tentar jogar outro jogo menos indigente. Eu terminei de maneira super bourdieusiana a minha primeira aula. Boa semana, até sextafeira.

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