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Brincando nos fortalecemos

Oficinas para enfrentar situações difíceis

Alicia Casas Gorgal & María Eugenia Goyret



Brincando nos fortalecemos Oficinas para enfrentar situações difíceis

BRASIL

Alicia Casas Gorgal & María Eugenia Goyret



Alicia Casas Gorgal e María Eugenia Goyret

Brincando nos fortalecemos Oficinas para enfrentar situações difíceis

Manual metodológico do Programa CLAVES: “Brincando nos fortalecemos para enfrentar situações difíceis”. Uma proposta de prevenção dos maus-tratos e da violência sexual por meio de oficinas com crianças e adolescentes e a promoção dos bons-tratos.

4ª edição Tradução: Beatriz C. Corrêa da Silva e Cristina Pilon Schultz

BRASIL

Curitiba 2016


Alicia Casas Gorgal e María Eugenia Goyret

Brincando nos fortalecemos Oficinas para enfrentar situações difíceis

Coordenação editorial: Walter Feckinghaus Edição: Claudio Beckert Junior Tradução: Beatriz C. Corrêa da Silva e Cristina Pilon Schultz Capa: Sandro Bier Título original: Manos al Taller: Herramientas lúdicas para la promoción del buentrato en familia Revisão e editoração eletrônica: Josiane Zanon Moreschi Desenhista: Maria Victoria Baglieto 1ª ed. em espanhol - março/2003 — Edições em português — agosto/2005 — maio/2009 — outubro/2012 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Casas Gorgal, Alicia Brincando nos fortalecemos : oficinas para enfrentar situações difíceis / Alicia Casas Gorgal e Maria Eugenia Goyet ; tradução Beatriz C. Corrêa da Sulva e Cristina Pilon Schultz. - - 4. ed. - - Curitiba, PR : Editora Esperança, 2016. Título original: Manos al taller : herramientas lúdicas para la promoción del buentrato en familia. “Manual metodológico do Programa CLAVES”. Bibliografia ISBN: 978-85-7839-134-8 1. Atividades lúdicas 2. Crianças e adolescentes - Assistência social 3. Crianças e adolescentes - Maus-tratos 4. Violência - Prevenção 5. Vítimas de abuso sexual I. Goyet, María Eugenia. II. Título. 15-10915

CDD-259.2

Índices para catálogo sistemático: 1. Crianças e adolescentes : Prevenção dos maus-tratos e da violência sexual : Pastoral da infância e da juventude : Cristianismo Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total e parcial sem permissão escrita dos editores. Editora Evangélica Esperança Rua Aviador Vicente Wolski, 353 - CEP 82510-420 - Curitiba - PR Fone/fax: (41) 3022-3390 comercial@esperanca-editora.com.br - www.editoraesperanca.com.br

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Sumário

Apresentação da edição em língua portuguesa...............................7

C. Os direitos das crianças e adolescentes.............................33

Prólogo à segunda edição em espanhol..............................................9

D. Resiliência. Da dor à esperança..........................................34 a) Ontem e hoje no conceito de resiliência......................34 b) Definições que envolvem concepções........................34 c) Propriedades e componentes de uma noção...........35 d) Da resiliência individual à geração de famílias resilientes....................................................39

1. O caminho percorrido..................................................................11 2. O que são maus-tratos e violência contra crianças e adolescentes?.................................................15 A. A alma ferida – maus-tratos emocionais.........................17 a) Tipos de maus-tratos emocionais...............................17 b) Um marco conceitual da infância...............................18 B. Não existo, sou transparente – negligência ou abandono.....................................................18 C. Os vestígios no corpo – maus-tratos físicos.....................19 D. Uma violência diferente: a violência sexual....................20 a) O que essas definições envolvem?.............................21 b) As formas e os números da violência sexual.............22 c) Os cenários da violência sexual..................................24 d) Como muitas crianças vivem a violência sexual crônica?...........................................27 e) Qual é o impacto nas vítimas?...................................29 3. Conceitos-chave do CLAVES......................................................31 A. Cosmovisão cristã.................................................................31 B. A promoção da saúde integral............................................32

E. Perspectiva de gênero...........................................................40 4. Aspectos metodológicos CLAVES............................................43 A. Uma opção pela prevenção.................................................43 B. Educação para a sexualidade..............................................44 C. A proposta do grupo............................................................45 D. Educadores, crianças e adolescentes como agentes de prevenção da violência sexual.......................45 E. Desenvolvimento de fatores protetores............................47 F. Uma proposta lúdica............................................................48 5. Como brincar para fortalecer e nos fortalecermos................51 A. Canções e danças...................................................................51 B. Dinâmicas e brincadeiras de grupo...................................59 C. Jogos teatrais..........................................................................70 D. Jogos de mesa........................................................................74


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E. Quebra-cabeças e colocando os pingos nos “is”.............80 F. Lâminas.................................................................................85 G. Conto e peças.........................................................................95 6. Chaves para o desenvolvimento de oficinas..........................101 A. Planejamento das oficinas..................................................102 B. Esquema dos módulos temáticos.....................................103 a) Proposta voltada para crianças de 4 a 7 anos........103 b) Proposta voltada para crianças de 8 a 11 anos........105 c) Proposta voltada para adolescentes de 12 anos em diante...................................................107 C. Uma possibilidade de desenvolvimento das oficinas...........................................................................109 a) Proposta voltada para crianças de 4 a 7 anos..........110 b) Proposta voltada para crianças de 8 a 11 anos.........113 c) Proposta voltada para adolescentes de 12 anos em diante...................................................116 7. O que o educador pode fazer diante de situações de abuso sexual?.........................................................................121 A. O que podemos fazer em relação à criança como educadores de sua confiança?...............................121 B. Recomendações para outros aspectos da intervenção......................................................................123 C. Que lugar ocupa o testemunho da criança?..................123 8. Sobre políticas públicas.............................................................127 A. O Estatuto da Criança e do Adolescente em destaque.........................................................................128 B. O que mudou com o ECA?................................................129 9. Planejamento global das oficinas.............................................133

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10. Apresentação institucional.......................................................137 11. Materiais publicados pelo programa CLAVES.....................139 12. Anexos........................................................................................142 A. Planejamento global da implementação da proposta do CLAVES....................................................142 B. Fichas de planejamento e avaliação de cada oficina (usar em cada oficina)..............................143 C. Avaliação para crianças de 4 a 7 anos.............................145 D. Avaliação para crianças de 8 a 11 anos e adolescentes (aplicar ao concluir o processo)...............147 E. Guia de avaliação final.......................................................149 F. Legislação...........................................................................153 G. Bibliografia selecionada.....................................................155


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Apresentação da edição em língua portuguesa “A criança é inerentemente vulnerável, porém, ao mesmo tempo, é forte em sua determinação de sobreviver e crescer”. Yarrow e Sherman Canções, danças, jogos de mesa, jogos teatrais, histórias, marionetes, adivinhações, quebra-cabeças e outras técnicas fazem parte da proposta que estamos apresentando aos que trabalham na prevenção do abuso sexual de crianças e adolescentes. Na realidade infantil misturam-se trabalho, brincadeiras e vida. A brincadeira é uma escola de vida, um laboratório de experiências, é motor e estímulo para novos pensamentos e afetos, fator inegável de desenvolvimento da criança. É brincando que a criança aprende a estabelecer e respeitar normas, a comunicar-se, a criar novos espaços de conhecimento interpessoal, a desenvolver diferentes hipóteses e estratégias de solução perante diversas situações e, com certeza, a divertir-se. Por isso, neste programa, a brincadeira ocupa um lugar preponderante, pois, aprendendo com alegria, com afeto e trocando experiências, a criança torna-se mais forte e tem mais e melhores ferramentas para enfrentar possíveis situações difíceis. Este manual apresenta uma proposta de trabalho para a prevenção dos maus-tratos e da violência sexual na infância e na adolescência, elaborada pelo Programa CLAVES da Juventud para Cristo no Uruguai. A proposta oferece três

programas de prevenção nessa área, bem como as instruções para a adequada utilização dos materiais didáticos anexos. Cada programa está voltado, respectivamente, para crianças de 4 a 7 anos, crianças de 8 a 11 anos e adolescentes de 12 anos em diante. Ele foi elaborado para todos (e todas) os que trabalham cotidianamente com essa população e visa fornecer ferramentas concretas que possam ser aplicadas em diversos contextos, enriquecendo a tarefa educacional, e acrescentar chaves de esperança na hora de abordar problemas tão complexos e mobilizadores. Esperamos, também, que seja fonte de inspiração para a construção de outros instrumentos aplicáveis a este ou outros problemas, dando novo significado às práticas habituais usadas para desenvolver a força e a firmeza das crianças, dos adolescentes e de suas famílias e comunidades. Alicia Casas Gorgal e Ma. Eugenia Goyret Moreira. Montevidéu – Uruguai Agosto 2005.

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Prólogo à segunda edição em espanhol “Há aqueles que observam a realidade tal qual é e se perguntam: Por quê? E há aqueles que imaginam a realidade como jamais foi e se perguntam: Por que não?” George Bernard Shaw

Com a nova edição deste manual queremos contribuir para que seus sonhos de não violência, de bons-tratos, de paz, de shalom, sejam uma realidade na comunidade onde você vive e trabalha. Queremos dar o reconhecimento a tantas crianças, adolescentes, famílias, educadores e educadoras que, dos diferentes contextos e culturas de nossa região, são protagonistas na construção de uma cultura de bons-tratos. Suas perguntas e sugestões são contribuições fundamentais para a construção desta proposta.

Estamos no caminho, não estamos sós e sabemos que o melhor está por vir quando colocamos as mãos à obra nas oficinas. Que Deus nos ilumine e fortaleça. Luis Antonio Cesari Coordenador de programas JPC – Juventud para Cristo no Uruguai.

Agradecemos à equipe do Programa CLAVES por mais de uma década de perseverança, escuta atenta, criatividade e abertura ao compartilhar a versão revisada, ampliada e enriquecida deste manual.

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1. O caminho percorrido

CLAVES – Brincando nos fortalecemos para enfrentar situações difíceis é um programa da Juventud para Cristo no Uruguai voltado para a prevenção dos maus-tratos e da violência sexual contra crianças e adolescentes. Assim como a promoção dos bons-tratos.

As múltiplas causas e a gravidade dessa problemática requerem uma abordagem integral. Para isso, é preciso levar em conta as causas e os efeitos, as dimensões individual e estrutural, os componentes corporais, psicológicos e espirituais, a necessidade de corrigir os danos produzidos e as demandas de um trabalho nos âmbitos educacional e social. No âmbito do trabalho comunitário desenvolvido pela JPC1 com a infância, a adolescência e a família surgiu, em 1

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1995, o CLAVES, como um programa que visa reunir esforços na promoção da cultura dos bons-tratos. Junto com o BICE2 (Bureau International Catholique de l’Enfance – Escritório Católico Internacional para a Infância), começamos um processo de busca de ferramentas para definir e desenvolver estratégias de intervenção preventiva dos maus-tratos e da violência sexual na infância e na adolescência. O aprofundamento teórico, a revisão de experiências de trabalho de campo e a reflexão caracterizaram a primeira etapa de trabalho da equipe inicial do programa. (María Eugenia Goyret e Alicia Casas Gorgal, pela JPC, e Heidi Siegfrid, pelo BICE). Mais tarde elaboramos uma proposta de trabalho piloto, que foi implementada durante os anos 1996 e 1997, com a seguinte estratégia de trabalho:

Juventud para Cristo no Uruguai, é uma organização cristã-evangélica, autônoma, de convicção ecumênica, que trabalha, desde 1972, em diferentes áreas da pastoral da infância e da juventude no Uruguai, da perspectiva da Missão Integral. Está voltada para o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes, jovens e suas famílias, por meio do trabalho direto e do apoio às comunidades de fé locais. Os setores populares são priorizados. É pessoa jurídica, membro da Federação de Igrejas Evangélicas do Uruguai e integra a Rede de Infância e Adolescência dos Setores Populares. Mantém relações fraternas com os grupos que integram o movimento de JPC em outros países. O Escritório Católico Internacional para a Infância é uma Organização Internacional Não-Governamental fundada em 1948, com estatuto consultivo perante a UNESCO e a UNICEF, presente, por meio de seus projetos, em mais de 40 países. O BICE está a serviço do crescimento integral da criança, de uma perspectiva cristã. Oferece atenção preferencial aos mais desfavorecidos, especialmente às crianças deficientes, trabalhadoras, de rua ou vítimas da droga, da guerra ou do mercado do sexo. Constitui uma plataforma de consulta para a pesquisa e a ação. Dessa ótica, mobiliza a sociedade civil e influencia nas políticas sociais em favor da dignidade e do interesse superior da criança. De acordo com a Convenção das Nações Unidas, o BICE promove os direitos e as responsabilidades da criança, direito ao respeito incondicional de sua pessoa, sua cultura, sua família, sua comunidade e sua religião.

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• Convocar 20 instituições, desenvolvendo tarefas educacionais com crianças e adolescentes, com as quais a JPC mantinha vínculos de trabalho e compartilhava objetivos; • Sensibilizar e capacitar seus educadores; • Formular um programa de trabalho em prevenção; e • Elaborar materiais didáticos a serem utilizados com crianças e adolescentes. O programa e os materiais foram aplicados aos grupos de cada educador participante, em três níveis: pré-escolar (4 a 7 anos), escolar (8 a 11 anos) e adolescente (12 a 17 anos), em diferentes bairros de Montevidéu, Uruguai, incluindo a população não alfabetizada, participando, no total, 250 crianças e adolescentes. Em 1998 organizamos uma etapa de avaliação interna e externa, que envolveu todos os participantes: crianças, adolescentes, educadores e técnicos. Em 1999 editamos a proposta educacional e seus materiais didáticos. A partir daquele momento, a JPC passou a levar adiante o programa em sua forma atual em Montevidéu e no interior do país, bem como em alguns países da América Latina. Em 2003 começou um processo de transferência conceitual e metodológica entre CLAVES da Juventud para Cristo no Uruguai e um grupo de organizações cristãs brasileiras comprometidas com o trabalho com a infância e a adolescência, parceiros do Tearfund UK.

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Nesse período houve momentos de capacitação de educadores e técnicos, de aplicação experimental da proposta do CLAVES em várias cidades do Brasil, bem como de avaliação e adaptação da mesma e de seus materiais didáticos. A primeira edição deste manual em português é resultado desse processo. Atualmente, o CLAVES intervém na problemática dos maus-tratos e da violência sexual em diferentes âmbitos: institucional, familiar e comunitário, procurando uma ação testemunhal do compromisso dos cristãos com a Saúde Integral e com a vida plena de crianças, adolescentes e jovens, por meio de: a) Sensibilização e difusão da problemática em instituições e organizações comunitárias (igrejas, escolas, ONGs, etc.), promovendo uma reflexão interna que determine a tomada de consciência a respeito da influência desse problema na infância e na adolescência; b) Capacitação de educadores, líderes eclesiásticos, famílias e diversos profissionais para abordar integralmente a situação, fornecendo ferramentas para a prevenção, detecção precoce e atenção dos diversos atores, com ênfase no primeiro aspecto;


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c) Promoção do fortalecimento das crianças e dos adolescentes ligados a diversas organizações para enfrentar situações de maus-tratos, violência sexual ou outras, nas quais seus direitos sejam desrespeitados, e impedir as situações de abuso, interrompendo-as ou minimizando as consequências das que já ocorreram; d) Promoção do papel protetor dos adultos da sociedade; e) Trabalho em redes, com vistas a enriquecer as experiências de diversos grupos, bem como a incidir nas políticas sociais em favor da infância e da adolescência; f) Assessoramento a instituições locais e estrangeiras; g) Reflexão bíblica e teológica em torno do assunto, como ferramentas espirituais para a construção do reconhecimento da dignidade humana; h) Elaboração de materiais didáticos para a abordagem da problemática, adequados para o trabalho nas comunidades; e i) Atenção direta a crianças, adolescentes e famílias em situações de maus-tratos e de violência sexual.

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2. O que são maus-tratos e violência contra crianças e adolescentes? Em um sentido amplo, podemos definir maus-tratos contra crianças e adolescentes como: ações, omissões ou tratamento negligente, não acidental, que privem uma pessoa menor de 18 anos de seus direitos e bem-estar, que coloquem em perigo ou interfiram em seu adequado desenvolvimento físico, psíquico, moral ou social, e cujos autores podem ser pessoas, instituições ou a própria sociedade, em relações de responsabilidade, confiança e poder. Para configurar maus-tratos não é imprescindível que tenha como resultado um dano à saúde, à sobrevivência, ao desenvolvimento ou à dignidade da criança, pois o surgimento de um dano depende da inter-relação de vários fatores, bem como de vulnerabilidades e forças individuais, familiares e comunitárias. Os maus-tratos são uma força em operação que se opõe à normalidade e à justiça e que causa dano real ou potencial, manifestando-se por meio de diversas modalidades. Essa força pode não apenas causar danos por si própria, mas também por impedir alguém de seguir seu curso, aqui entendido como o desenvolvimento normal, que deveria culminar na maturidade plena.

A classificação dos maus-tratos em violência física, emocional, por negligência ou sexual é uma tentativa de compreender esse fenômeno em suas diferentes manifestações, porém, sabemos que podem ocorrer de maneira intrincada. Ainda que os maus-tratos contra crianças permeiem toda nossa história, os números que temos, de prevalência e incidência, sobre a magnitude do problema são mais recentes. Vale salientar as seguintes estatísticas: • A OMS afirma que 40 milhões de menores de 14 anos sofrem algum tipo de maus-tratos e requerem atenção médica e social. • Estudos realizados em diversos continentes mostram que, em média, 22% das mulheres e 15% dos homens relatam ter vivido algum episódio de violência sexual, em suas diferentes modalidades, antes dos 17 anos. É importante reconhecer que as situações de maus-tratos ocorrem em diferentes contextos, independentemente da classe social, do nível educacional, da etnia, da religião, etc. De qualquer maneira, os aspectos contextuais incidem nas modalidades de apresentação e na visibilidade do problema. Por exemplo, na modalidade de exploração sexual comercial

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incidem aspectos como a pobreza, absoluta ou relativa, e a exclusão social. Sabemos que a maioria das pessoas que exercem violência foram socializadas em um contexto desse tipo, ainda que a maioria dos que sofreram violência consiga não transmiti-la à geração seguinte. Este último é muito esperançoso e nos fala da capacidade de mudança das pessoas. Pelo menos a metade das vítimas de maus-tratos importantes na infância sofrerá sequelas negativas a médio ou a longo prazo, sejam físicas, psíquicas, espirituais ou relacionais, com altos custos sociais. Ainda que os maus-tratos possam ser sociais ou institucionais, é nos contextos das relações próximas que eles alcançam maior magnitude e complexidade. A vigência de um modelo social e familiar que legitima o uso da violência para resolver conflitos faz com que o fenômeno fique naturalizado e seja de muito difícil visibilidade. A consciência de que crianças são seres humanos com direito ao cuidado e à proteção é um conceito relativamente recente na história da humanidade e ainda em construção. Da mesma forma, é recente o fato de poder assumir, dolorosamente, que nossas famílias têm a dupla potencialidade de ser, por um lado, portos seguros para crescer e desenvolver-se e, por outro, o contexto no qual mais se maltrata e desrespeita os direitos das crianças e dos adolescentes. Ainda que seja esta uma nova ferida em nosso ego humano, é imprescindível assumi-la para poder transformar, mesmo que modestamente, esta realidade.

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A existência de maus-tratos contra crianças e adolescentes no contexto familiar é um fenômeno muito complexo e não pode ser atribuído simplesmente a uma única causa. Raramente os maus-tratos têm uma única causa. Ao longo do tempo, podem coexistir e interagir diferentes fatores que interferem com a capacidade de proteção dos adultos responsáveis. Fatores de diferentes naturezas constituem um “caldo de cultura” que facilita o surgimento e a manutenção de situações violentas. Alguns destes fatores estão relacionados a características individuais dos diferentes protagonistas, que aumentam sua vulnerabilidade ao sofrer ou ao exercer os maus-tratos. Outros estão relacionados com dinâmicas familiares particulares em que alguns membros estão a serviço dos outros. Também podem influenciar situações conjunturais que superam as capacidades habituais de lidar com as frustrações, mas, acima de tudo, há uma grande dificuldade de perceber o outro como uma pessoa diferente, singular, com características próprias e não como um objeto com o qual se satisfazem determinadas necessidades. Existem também fatores que estão relacionados a crenças e pautas socioculturais muito arraigadas, como a naturalização da violência como forma de resolução de conflitos, os estereótipos de gênero que levam a desigualdade de poder, o desconhecimento da situação normal de vulnerabilidade e dependência própria da infância e da adolescência, assim como sua maneira de perceber o mundo.


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A classificação do maltrato em físico, emocional, por negligência ou sexual, é uma tentativa de compreender esse fenômeno em suas diferentes manifestações, mas sabemos que muitas vezes ocorrem de maneira intrincada.

A. A alma ferida – maus-tratos emocionais Falamos de maus-tratos emocionais quando há ausência de um ambiente evolutivamente adequado e acolhedor, bem como de alguma figura de apego primário que permita à criança desenvolver capacidades emocionais e sociais estáveis e complexas em relação a seu potencial próprio, dentro do contexto social no qual vive. Compreende as interações que têm alta probabilidade de causar danos à saúde da criança, seja a seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social, devido ao fato de serem evolutivamente inadequadas, insuficientes ou incoerentes em relação a ela. Deve ter existido a possibilidade de controle razoável dessas interações por parte dos pais/mães/ responsáveis ou pessoas em posição de responsabilidade, confiança ou poder. Apesar de ser um tipo de maltrato que ocorre à vista de todos, é dos mais difíceis de diagnosticar. Em geral, é detectado associado a outras formas de maus-tratos, mas pode existir isoladamente.

a) Tipos de maus-tratos emocionais Dayna Glaser, citada por Intebi e Osnajanski3, propõe 5 categorias que configuram os maus-tratos emocionais: 1) Falta de disponibilidade emocional ou de sensibilidade parental O adulto está preocupado com suas próprias dificuldades (desemprego, drogas, etc.), que lhe dificultam responder às necessidades das crianças a seu cargo, e não busca uma alternativa adequada para satisfazer estas necessidades. 2) Atribuição inadequada de características negativas à criança O responsável desvaloriza e rechaça a criança e é hostil com ela porque acredita que ela merece esses comportamentos. As crianças são percebidas de maneira distorcida como más, pervertidas, sem-vergonhas, estúpidas, preguiçosas, etc., e podem crescer ou comportar-se como se essas crenças negativas fossem verdadeiras. 3) Interações inadequadas ou incoerentes Incluem: expectativas inadequadas, para mais ou para menos, a respeito das capacidades da criança, a superproteção ou a limitação na exploração e na aprendizagem e a exposição a situações confusas ou traumatizantes para seu momento de vida. 3 Intebi e Osnajanski: “Maltrato de niños, niñas y adolescentes”, in: ISPCAN – Famílias del nuevo siglo. (Buenos Aires, 2003.)

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4) Fracasso em reconhecer ou aceitar a individualidade da criança e respeitar seus limites psicológicos

• A criança é um ser social que irá interagir e comunicar-se de maneira crescente com seu ambiente social

Refere-se a ações nas quais os pais utilizam o/a filho/a para a satisfação de suas necessidades psicológicas, o que se evidencia em condutas que mostram a incapacidade dos pais em diferenciar suas próprias crenças e desejos da realidade da criança.

A violação ou falta de respeito pelos responsáveis de alguns desses fatos, que definem as necessidades de uma criança, caracteriza os comportamentos enquadrados em maus-tratos emocionais.

Esta modalidade encontra-se frequentemente nas disputas durante divórcios conflitivos. 5) Fracasso em alentar a adaptação social da criança Compreende as condutas que promovem adaptações ruins, incluindo a corrupção. Nesta categoria incluem-se atos de comissão ou omissão, tais como isolar a criança de um meio social saudável ou envolvê-la em comportamentos criminosos, antissociais ou de abuso de substâncias.

b) Um marco conceitual da infância Conceituar os maus-tratos emocionais dessa maneira envolve sustentar um marco conceitual a respeito da infância, baseado nos seguintes critérios propostos por Intebi: • A criança é uma pessoa que existe • A criança tem seus próprios atributos ou características • A criança é, por definição, vulnerável, dependente e encontra-se em desenvolvimento e crescimento permanente • A criança é um indivíduo que possui e experimenta seus próprios sentimentos, pensamentos e percepções

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B. Não existo, sou transparente – negligência ou abandono. Entendemos que existe negligência ou abandono quando há omissão da pessoa responsável de prover aquilo que a criança necessita para seu desenvolvimento. Essa omissão pode ser enquadrada como negligência quando tiver alta probabilidade de produzir danos à saúde ou ao desenvolvimento psicológico, físico, mental, espiritual, moral ou social da criança, e quando estiver dentro do contexto dos recursos disponíveis para a família ou responsáveis. A negligência inclui a falta de supervisão e de proteção adequadas perante as possibilidades de que a criança sofra algum dano. Ainda que se minimize as consequências deste tipo de maustratos, é importante saber que uma criança que não receba proteção ou estímulo emocional, cognitivo ou físico, nem cuidados médicos ou alimentação adequada, de maneira crônica, pode sofrer retardos irreversíveis em seu desenvolvimento. A criança não pode prover a satisfação de suas próprias necessidades básicas de alimentação, vestuário, habitação, supervisão, limites, afeto, contenção emocional, formação moral, atenção médica, educação, etc.


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Algumas modalidades de negligência analisadas por Intebi e Osnajanski4 podem ser: • Negligência física (desnutrição crônica, acidentes por desatenção, síndrome de falta de progresso em lactentes, desidratação por falta de cuidados, etc.) • Negligência emocional, falta de atenção às necessidades emocionais, de contenção e de bem-estar emocional. Costuma estar associada a outras formas de maus-tratos (evidencia-se em transtornos graves do desenvolvimento, descuido em situação de perigo, expectativa exagerada sobre a capacidade de autoproteção da criança, pais que, devido a seus próprios transtornos, não podem proteger seus filhos e não tomam as medidas necessárias ou os deixam aos cuidados de outras crianças, ou pais que, conhecendo a situação de maus-tratos de seus filhos, não tomam medidas para impedir) • Negligência médica (crianças sem atenção médica, não vacinadas, etc.) • Negligência educacional (crianças não escolarizadas ou com muitas ausências injustificadas) Quais são as causas dos erros nas condutas parentais? Intebi propõe que pais e mães fracassam em oferecer às crianças as possibilidades de um desenvolvimento saudável devido, fundamentalmente, a: • Fracasso no processo de apego (“erros” no âmbito biológico) 4 Op. Cit.

O apego é um vínculo forte de impregnação que se produz entre a criança que nasce e as pessoas que se ocupam de seu cuidado. Ainda que tenha uma base biológica, pode ser facilitado ou obstaculizado pelo contexto social. Para que se estabeleça, é necessário muito tempo, capacidade de satisfazer as necessidades primárias de alimento, carinho, olhar, abrigo, etc. Também requer uma grande capacidade de adaptação, flexibilização e tolerância. O bebê cria este vínculo forte com as pessoas que percebe como mais capazes de protegê-lo. Inclui a capacidade de aceitação da pessoa e do sexo dos filhos. Esses vínculos primários são altamente protetores e desenvolvem a capacidade de cuidado dos responsáveis. É possível trabalhar para reconstruir o apego quando ele é inseguro ou frágil. • Transmissão transgeracional de modelos de criação inadequados ou perigosos para as crianças (erros no âmbito cultural). • Ausência de recursos no ambiente (erros no âmbito contextual).

C. Os vestígios no corpo – maus-tratos físicos. Os maus-tratos físicos configuram-se quando se produz um dano físico, real ou potencial, a partir de algum tipo de interação dentro dos parâmetros razoáveis de controle de um ou ambos os progenitores, ou de alguma pessoa em posição de responsabilidade, confiança ou poder.

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A maioria dos maus-tratos físicos a que são submetidos crianças e adolescentes está profundamente naturalizada, racionalizada e justificada como uma modalidade de formação e educação. Intebi e Osnajansky5 insistem que é fundamental distinguir dois conceitos radicalmente diferentes, mas que costumam ser confundidos: limites e castigos. Ter limites é necessário e é um direito de crianças e adolescentes. É um treinamento e um guia para ajudar as crianças a desenvolverem seus próprios juízos, sua capacidade de autocontrole, seu senso de eficácia e autonomia e comportamentos sociais adequados à cultura em que vivem. A colocação positiva de limites fortalece a crença da criança em si mesma e, a partir dessa perspectiva, permite que desenvolva suas potencialidades. Ao colocarmos limites, estamos respeitando a criança, levando em conta suas capacidades e estimulando para que desenvolva certa autodisciplina. O objetivo central é fortalecer a crença positiva da criança em si própria e em sua capacidade de se desenvolver adequadamente no mundo. O castigo é diferente. Não visa apoiar a criança para que desenvolva seus próprios controles internos e sua capacidade de tomar decisões. Em geral, trata-se de uma reação de braveza do adulto, que não tem uma conexão clara com a idade da criança e seu nível evolutivo. Já foi comprovado que o castigo físico como forma disciplinar, em que pese seu exercício muito arraigado e de grande difusão, não é uma estratégia reflexiva capaz de educar, pois a criança normalmente não está em condições de compreender o que se espera de seu comportamento. Da mesma 5 Op. Cit.

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forma, o castigo emocional, por meio de insultos ou palavras que ferem ou humilham, não educa. Pelo contrário, favorece uma autoimagem negativa. Controles externos desse tipo apenas impõem o poder e o domínio, provocando a ruptura dos vínculos e, geralmente, a humilhação de quem recebe esses castigos.

D. Uma violência diferente: a violência sexual Apesar da existência da violência sexual ser conhecida desde a mesma época que outros tipos de maus-tratos, esta tem ficado mais oculta. Em geral, apenas as formas de violação, exibicionismo e pedofilia têm chamado a atenção. Quanto ao tema do incesto, percebemos muita dificuldade de falar sobre este tipo de violência. Falamos de violência ou abuso sexual quando uma criança é envolvida em atividades sexuais que não chega a compreender totalmente, perante as quais não está em condições de dar seu consentimento, ou para as quais não está evolutivamente madura para dar seu consentimento, ou em atividades sexuais que transgridam as leis ou as restrições sociais. Nos últimos anos tem havido um esforço para definir melhor a violência sexual contra crianças e adolescentes de uma forma operacional, incluindo aspectos inerentes à mesma e contemplando as diferentes modalidades em que se manifesta. O fato de haver várias definições mostra a complexidade deste tema. Não obstante, transcrevemos as que nos parecem mais adequadas e aceitáveis.


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Uma das definições clássicas de violência sexual contra crianças e adolescentes é a proposta por Kempe e Kempe:

Uma definição mais sintética e operacional de violência sexual pode ser:

“O envolvimento de crianças ou adolescentes em atividades sexuais exercidas pelos adultos e que buscam principalmente a satisfação destes, sendo os menores de idade imaturos e, portanto, incapazes de compreender o sentido radical destas atividades e de dar consentimento real. Estas atividades são inapropriadas a sua idade e a seu nível de desenvolvimento psicossocial e são impostas sob pressão pela violência, ameaça, chantagem ou por sedução e transgridem tabus sociais concernentes aos papéis familiares”6.

“toda atividade de tipo sexual imposta a uma criança ou adolescente”.

Outra definição nesta linha, de Maria Iglesias, diz: “A utilização sexual de uma criança em benefício de outra pessoa, normalmente adulta, que se encontra em situação de vantagem frente àquela, seja por razões de seu maior desenvolvimento físico e/ou mental, pela relação que o une à criança, ou por sua posição de autoridade ou poder”7.

O National Center on Child Abuse and Neglect dos Estados Unidos, define violência sexual infantil como: “Contato entre uma criança e um adulto em que se utiliza a criança como objeto de satisfação para as necessidades ou desejos sexuais do adulto, interferindo ou tal experiência podendo vir a interferir no desenvolvimento normal da saúde da criança”. 6 KEMPE, R., KEMPE H. Niños maltratados. (Morata, 1982.) 7 IGLESIAS, Maria Elena. CESIP. (Perú, 1996.)

a) O que essas definições envolvem? • Gratificação do ofensor O propósito da violência sexual é a gratificação do adulto ofensor ou de outros adultos nos casos de exploração sexual comercial ou pornografia infantil. Devemos destacar que essa gratificação pode ser tipos diversos. Não é estritamente sexual, muitas vezes ocorre pela gratificação que produz a relação de domínio-submissão-controle. Muitos autores concordam que o que realmente gratifica o abusador é o prazer de dominar, de controlar alguém dependente. Neste sentido, a violência sexual contra a criança seria a expressão máxima do exercício do poder expresso sexualmente. • Assimetria de poder A assimetria de poder é dada não apenas pela desigualdade de idades, enfatizada por muitos autores, mas também, e fundamentalmente, pelo tipo de relação que une os protagonistas. Nessas situações existe uma relação de poder hierarquicamente desigual, desequilibrada e, portanto, estruturalmente violenta. Não basta que exista uma relação de poder assimétrica, mas aquele que detém o poder deve utilizá-lo de maneira abusiva.

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Os protagonistas podem até ter idades semelhantes, como entre adolescentes, mas se existir essa relação de abuso de poder, configura-se a situação violenta. A assimetria pode ocorrer por diferenças de idade, de gênero, de conhecimentos, de força física e pela ascendência e autoridade que o próprio abusador tem, reconhecidas pela criança ou pelo contexto imediato. É importante mencionar que esse desequilíbrio de poder em que se baseia toda situação de violência nem sempre é visível para um observador externo. Com frequência, é produto de uma construção de significados que somente se tornam compreensíveis a partir dos códigos interpessoais. É suficiente que alguém acredite no poder e na força do outro para que se produza o desequilíbrio. • Coerção A coerção está presente de diferentes maneiras, seja por pressão, ameaça, chantagem, prêmios e castigos, sedução, engano ou, mais raramente, pela força física. Quando a coerção existe, é suficiente para definir uma conduta como violenta ou abusiva, sem importar que haja ou não diferença de idade entre os protagonistas. Isso é especialmente importante em situações em que os envolvidos são adolescentes. • Consentimento inválido As características previamente mencionadas da relação fazem com que o aparente consentimento da criança ou adolescente não seja válido, pois é necessário estar em uma posição de igualdade para poder escolher livremente. O desequilíbrio

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de poder e a coerção anulam essa possibilidade. É importante esclarecer esse ponto, pois é muito frequente que tanto o agressor, quanto outras pessoas da comunidade tentem justificar o fato por meio de frases como: “sim, ela gostava”, “eu só fazia o que me pedia”, “movimentava-se de maneira provocativa para me convidar”, “se deixava, era porque queria”.

b) As formas e os números da violência sexual A violência sexual, como já vimos, não se reduz nem se relaciona somente com a esfera genital, o que dificulta muitas vezes o diagnóstico. Há condutas que passam despercebidas pela comunidade, que são as que ocorrem com maior frequência e também as que se mantém em segredo. Trata-se de atos ou gestos com os quais o adulto obtém gratificação. Algumas dessas condutas podem fazer parte de modelos culturais ou costumes familiares, em cujo caso deveríamos poder analisar se existe uma intencionalidade de gratificação sexual. • Tipos A violência sexual pode ocorrer com ou sem contato físico. Engloba múltiplas modalidades, como exibicionismo, voyeurismo, manuseio da genitália, frotteurismo8, exposição a comentários obscenos, exposição à pornografia, sexo oral, penetração anal ou vaginal, abusos rituais, exploração sexual comercial (prostituição, produção de pornografia), etc. Na maioria dos casos é uma atividade que se mantém em segredo. 8 Frotteurismo é a excitação sexual resultante da fricção dos órgãos genitais no corpo de uma pessoa completamente vestida (popularmente conhecido como encoxar ou sarrar em algumas regiões do Brasil), no meio de outras pessoas, como nos trens, ônibus e elevadores. (N. de Revisão)


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Os estudos mostram uma relação de 2 para 1 aproximadamente entre as vítimas do sexo feminino e masculino. Parece haver um sub-registro no que se refere aos homens vítimas de violência.

consequências a curto ou longo prazo. A maioria das vítimas mantém o silêncio durante a infância e a adolescência. Progressivamente, devido à difusão do tema, um número maior de vítimas vai podendo revelar sua situação.

• Distribuição dos agressores por sexo

• Transmissão transgeracional da violência sexual

• Distribuição das vítimas por sexo

A imensa maioria dos agressores são do sexo masculino. As cifras atuais estão por volta de 95%. O abuso realizado por mulheres é de reconhecimento mais recente. Parece estar mais mascarado do que o cometido por homens, como cuidados maternais, rotinas de limpeza ou condutas que são vividas como iniciação genital. • Relação com a vítima Em cerca de 85 a 90% dos casos, o agressor faz parte do círculo de confiança das crianças. É seu conhecido ou de sua família, ou faz parte da família. Em cerca de 10 a 15% dos casos, o agressor é desconhecido da criança.

Ainda que a grande maioria das pessoas que violentam crianças e adolescentes tenha vivido, em sua infância, situações de violência de algum tipo, o inverso não é verdadeiro. A maioria das pessoas (até 70%) que estiveram expostas à violência sexual ou de outro tipo na infância, conseguiram não transmiti-la à geração seguinte. Isso contradiz a crença, muito difundida, de que aquele que foi abusado vai abusar. Essa crença errada tem contribuído para a estigmatização das vítimas e a justificação de algumas pessoas que violentam outras, amparando-se no fato de que foram violentadas na infância.

• Orientação sexual dos agressores As pessoas com orientação heterossexual abusam sexualmente na mesma proporção que as pessoas com orientação homossexual. • Consequências para as vítimas Não são uniformes. Para muitas pessoas vítimas de violência sexual na infância, esse evento não provocou um impacto significativo em suas vidas, o que é muito alentador. Para outro setor importante, aproximadamente a metade, gerou

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c) Os cenários da violência sexual O vínculo das pessoas envolvidas na situação violenta ou abusiva pode ser situado em um contínuo, no qual um extremo é o abuso sexual intrafamiliar, isto é, o abuso cometido por um familiar da criança, e o outro extremo é o abuso extrafamiliar, cometido por um desconhecido, encontrando-se no resto do contínuo as demais possibilidades de abuso. Não incluímos aqui a exploração sexual comercial, ainda que costume ser precedida por alguma das modalidades não-comerciais de violência sexual. • Violência sexual por desconhecidos o São aproximadamente de 10 a 15% do total das situações de violência sexual. o Em algumas ocasiões são planejadas e em outras, mais impulsivas. o Costumam ser incidentes únicos na vida da vítima.

o São mais violentos quando se usa a força física e podem chegar à morte da vítima. o O abusador tem prazer ao submeter sua vítima pela humilhação, pelo sofrimento, pela força e pelo terror que provoca. o A criança ou o adolescente que sobrevive pode reconhecer-se como vítima.

• Violência sexual por conhecidos • Extrafamiliar Perpetrada por vizinhos, amigos da família, professores, religiosos, responsáveis, etc. Por ser a pessoa que violenta muito chegada à vítima e sua família, aproveita-se do contato contínuo que tem com a criança e da proteção decorrente de não estar sujeito à suspeita. O espaço físico onde tem lugar o abuso é, na maioria dos casos, o próprio domicílio da vítima, podendo também ocorrer no domicílio do abusador. Nessas situações fica muito difícil para a criança dar-se conta da rede em que está caindo, dado o caráter confuso e manipulador da relação. “A criança vive os gestos e discursos de seu abusador como amistosos, afetivos e gratificantes. Valem-se do carinho, da persuasão, da mentira ou da pressão psicológica e da autoridade e confiança de que gozam e, de maneira enganosa, levam as vítimas a participarem de atividades sexuais. A agressão sexual ocorre de maneira doce e velada, provocando na criança, em muitos casos, sensações corporais e, inclusive, de gozo sexual”9.

o Há lesões físicas e transtornos por estresse pós-traumático na imensa maioria dos sobreviventes.

E assim pode passar algum tempo antes que a vítima perceba que está sofrendo abuso. Quando o faz, costuma culpar-se da situação, pois se vê em um plano de igualdade com o agressor e não pode vivenciar-se como vítima.

o A família e a comunidade costumam oferecer apoio.

o O abusador manipula a confiança que a criança e a fa9 BARUDY, J. El dolor de la infância. (Paidós, Barcelona, 1998.)

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mília têm nele. o Escolhe crianças com carências afetivas, frequentemente em famílias monoparentais. o O abuso é gradativo e progressivo, começando com aproximações corporais não sexuais que, em seguida, vão se sexualizando. o O vínculo de afeto é muito forte. Geralmente, não se usa força física. o O abusador apoia a família de muitas maneiras, no cuidado com as crianças, nas necessidades materiais, nos conselhos. É como se fosse da família. o A criança demora a perceber que é uma relação abusiva. o É difícil que se reconheçam como vítimas. • Intrafamiliar É perpetrada por membro(s) da unidade familiar primária nuclear: pai, mãe, padrasto, madrasta, irmãos ou por membros da família estendida: avós, tios, primos. Este tipo de violência sexual é denominado incesto. É muito grande o número de crianças e adolescentes que são vítimas desta forma de violência. A idade de maior incidência é em torno da puberdade (de 9 a 12 anos), mas a encontramos em qualquer idade, inclusive em bebês. Raramente é uma situação ocasional, trata-se em geral de uma história de anos, de uma trama de sentimentos contraditórios de amor e ódio, de segredos, longamente tecida. Há uma clara manipulação do vínculo familiar.

Vários autores tentaram compreender o incesto a partir das características da relação. Entre outras, uma contribuição é a de Perrone e Naninni10 ao descreverem o desequilíbrio de poder no vínculo abusivo. “O pai não seduz a filha, mas a confunde e a faz perder o senso crítico, de maneira que a ela resulta impossível qualquer rebelião. O abusador descobre que sua ação provoca estupor e confusão nos membros da família e observa que cada vez pode levar mais longe sua prática de predomínio psicológico sobre os outros. A experiência é semelhante a um encantamento: o cotidiano converte-se em uma cerimônia e um ritual de feitiço.”

Apesar de a forma mais frequente de incesto ser a paterna, o incesto entre irmãos é também bastante comum. Pode adquirir a forma de interação sexual irmão-irmã ou irmãos do mesmo sexo. Alguns autores salientam que a interação sexual entre irmãos não tem a mesma carga emocional que o incesto pai-filho, portanto é mais comum e passa mais despercebida do que as outras formas de incesto. Entretanto, a disfunção familiar não está ausente nesses casos e, muitas vezes, a sexualização crônica do vínculo fraterno pode responder a uma tentativa de superar situações de estresse familiar, carências afetivas, abandonos ou negligências severas.

10 PERRONE, R., NANNINI, M. Violencia y abusos sexuales en la família. (Paidós, Barcelona, 1998.)

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→ Masturbação, sexo oral → Penetração digital da vagina e do ânus → Penetração seca (entre as pernas) → Coito vaginal ou anal O abusador impõe a lei do silêncio. Corta vínculos familiares e sociais que poderiam ser protetores. A criança não tem outra alternativa a não ser adaptar-se. Os outros membros da família estão ausentes ou são cúmplices de uma ou outra forma. Se começar quando a criança é pequena, ela, muitas vezes, não sabe que se trata de uma situação abusiva. Ao ir crescendo e conhecendo outras famílias, vai percebendo. Não pode reconhecer-se como vítima. Sente-se como parte da relação e como sua causadora. Pode ter várias fases (J. Barudy)11: 1) Fase da sedução → Manipulação da dependência e da confiança → Convite à participação, contatos ambíguos → Planejamento cuidadoso → Preparação do lugar e do momento do abuso 2) Fase da interação seXual abusiva → Processo gradativo e progressivo → Condutas exibicionistas e voyeuristas → Carícias com intenções eróticas 11 Op. Cit.

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3) Fase da divulgação → Acidental ou premeditada → Tardia, conflitiva e pouco conveniente → A família e a comunidade entram em crise 4) Fase repressiva → A família tenta, desesperadamente, voltar ao seu equilíbrio → Tenta manter, a qualquer preço, a unidade familiar → A criança se retrata ao perceber que não acreditam nela, que começa a ocorrer o que o abusador havia dito que ocorreria, ao ver o impacto que causa. Passado um tempo, volta a instalar-se a situação abusiva.


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d) Como muitas crianças vivem a violência sexual crônica? Esta breve enumeração menciona vivências habituais para crianças submetidas à violência sexual crônica e pode ajudar a entender suas reações. Nem todos os afetados passam por todas elas, mas são muito frequentes. Quando o abuso é realizado por uma pessoa conhecida e de confiança, com a qual a criança tem um vínculo de afeto, é gerada uma série de sentimentos na vítima que fazem com que fique ainda mais paralisada e não possa ver uma saída para sua situação. Por outro lado, há crianças que não têm consciência da natureza abusiva da situação, ou não a sexualizaram, especialmente quando são pequenas. • Culpa “Essa coisa tão desagradável que acontece não pode ser culpa dessa pessoa a quem quero tanto. Deve ser minha culpa.” O agressor envia mensagens todo o tempo para que a criança se sinta culpada pelo abuso. Também se sente culpada pela relação e pelos sentimentos de hostilidade contra a mãe. Se o abuso é descoberto, sente-se culpada pelas repercussões da descoberta (seja a prisão do pai, a separação dos pais, a dissolução da família, etc.). Se, depois da descoberta, a criança é separada da família, isso é experimentado mais como um castigo do que como uma proteção, o que gera grande ansiedade, temor, raiva, tristeza, vergonha e um sentimento de culpa cada vez maior. Este é um dos sentimentos que tendem a permanecer por mais tempo nas pessoas abusadas sexualmente.

• Vergonha Há uma percepção quase inata de que algo muito privado não está sendo bem tratado. O senso de pudor, que já é claro a partir dos 4 ou 5 anos, é violentado. Sensação de estar marcado, lesado, de que todos sabem. Alteração profunda da autoestima. • Traição e desconfiança Seja pela pessoa que abusa ou pelos que falham em proteger. As pessoas em quem confia falharam e a criança pode crescer desconfiando de todos e de tudo. Se o abuso for descoberto e a mãe e as pessoas próximas não acreditarem e não lhe derem apoio, aumenta o sentimento de traição. Se, depois da descoberta, a criança for enviada para fora da família ou sofrer novas vitimizações em procedimentos institucionais, aumentará ainda mais o sentimento de traição e de não poder confiar nos outros. • Dissonância cognitiva “Disse que está tudo bem, mas não posso contar.” “Disse que todos os pais querem seus filhos assim, mas só faz comigo e não com meus irmãos.” “Isso que acontece é muito estranho.” Crianças, especialmente as mais novas, não têm o desenvolvimento cognitivo suficiente para decodificar os acontecimentos dessa natureza. • Confusão As mensagens que as crianças recebem são contraditórias e confusas: da mesma pessoa recebem agressão e afeto. O abuso provém da mesma pessoa em quem acreditam, a quem querem bem e de quem dependem. A pessoa que os ataca é a mesma que lhes dá amor e um lugar especial na família.

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Sobre o livro: Formato: 27,5 x 21 Tipo e tamanho: Palatino Linotype 12/16 Papel: Capa - Cartão 250 g/m2 Miolo - Offset 75 g/m2 Impressão e acabamento: Imprensa da Fé



Manual metodológico do Programa CLAVES: "Brincando nos fortalecemos para enfrentar situações difíceis". Uma proposta de Prevenção dos Maus-tratos e da Violência Sexual por meio de oficinas com crianças e adolescentes e a promoção dos Bons-tratos.

A associação civil Juventud para Cristo en el Uruguay (JPC) é uma organização cristã de trabalho autônomo no Uruguai desde 1972. Sua ação é voltada para meninos, meninas, adolescentes, jovens e suas famílias, em três níveis de intervenção: pessoal (procurando um desenvolvimento integral), familiar e comunitário (favorecendo o fortalecimento familiar, o desenvolvimento de redes locais e a participação) e político estrutural (participando na construção de políticas sociais e metodologias de intervenção adequadas). No contexto do trabalho comunitário da JPC, no ano de 1995 surgiu o Programa CLAVES: Brincando nos fortalecemos para enfrentar situações difíceis, que visava unir esforços na prevenção do abuso e na promoção da cultura dos bons-tratos. O Programa CLAVES trabalha na sensibilização e na capacitação da temática, com e para meninos, meninas, adolescentes, famílias, educadores e técnicos. Por sua vez, procura gerar conhecimento, construir ferramentas de ensino e possibilitar espaços de participação e liderança. Apoio:

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