Gênesis Vo l u m e 2
C O M E N T Á R I O E S P ER A N ÇA A n t i g o Te s t a m e n t o
Hansjörg Bräumer
Comentรกrio Esperanรงa
Hansjörg Bräumer
Gênesis II Comentário Esperança 1ª edição Tradução: Doris Körber
Curitiba 2016
Gênesis II
Comentário Esperança Hansjörg Bräumer Título do original em alemão: Wuppertaler Studienbibel Das erste Buch Mose Copyright © 2005 R. Brockhaus Verlag, Wuppertal Coordenação editorial: Walter Feckinghaus Tradução: Doris Körber Revisão: Josiane Zanon Moreschi Capa: Sandro Bier Editoração eletrônica: Josiane Zanon Moreschi 1ª edição brasileira: 2016
www.comentarioesperanca.com.br contato@comentarioesperanca.com.br facebook.com/comentarioesperanca
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bräumer, Hansjörg Gênesis II : comentário Esperança / Hansjörg Bräumer ; tradução Doris Körber. -1. ed. -- Curitiba : Editora Esperança, 2016. Título original : Das erste Buch Mose Bibliografia. ISBN 978-85-7839-151-5 1. Bíblia. A. T. Gênesis - Comentários I. Título. 16-07207
CDD-222.1107
Índice para catálogo sistemático: 1. Gênesis : Comentários 222.1107
O texto bíblico utilizado, com a devida autorização, é a versão Almeida Revista e Atualizada (RA) 2ª edição, da Sociedade Bíblica do Brasil, São Paulo, 1993. É proibida a reprodução total ou parcial sem permissão escrita dos editores. Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela:
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Sumário QUESTÕES INTRODUTÓRIAS Orientações............................................................................................................................11 Índice de abreviaturas...........................................................................................................13 Prefácio..................................................................................................................................15 Prefácio do autor....................................................................................................................16 Prefácio do autor para Parte 1.............................................................................................17 PARTE 1 – Capítulos 25 a 36
COMENTÁRIO
A. INTRODUÇÃO........................................................................................................18 I.
A HISTORICIDADE DOS PATRIARCAS.....................................................19
II.
A TERRA DOS PATRIARCAS E SEUS MORADORES............................21 1. Nomes egípcios......................................................................................................23 a. Asiáticos.........................................................................................................23 b. Guerreiros, selvagens.......................................................................................23 c. Moradores da areia..........................................................................................23 d. Pastores.........................................................................................................23 e. Terra dos “andarilhos da areia” ou “terra dos estrangeiros”..................24 f. Terra ardente e sedenta...................................................................................24 g. Os horeus...........................................................................................................24 2. A terra ocidental (Amurru) e os amorreus......................................................24 3. Autodenominações da população do istmo sírio-palestino...........................25 a. A terra de Canaã................................................................................................25 b. A terra dos hebreus...........................................................................................27 c. A terra de Israel................................................................................................27 d. Palestina..........................................................................................................28
III. A TERRA ENTRE AS GRANDES POTÊNCIAS...........................................29 1. Mesopotâmia.................................................................................................29 2. Egito..............................................................................................................29 3. O reino dos hititas..................................................................................................31 IV. A ÉPOCA DOS PATRIARCAS............................................................................31 Quadro cronológico....................................................................................................36 B.
ABRAÃO E ISAQUE (comentário).....................................................................40
I.
OS ÚLTIMOS ANOS DE VIDA DE ABRAÃO..............................................40 1. Abraão e Quetura: 25.1-6.....................................................................................40 2. A morte e o enterro de Abraão: 25.7-11...........................................................41 3. Os descendentes de Ismael: 25.12-18................................................................43
C.
JACÓ E ESAÚ...........................................................................................................46
I. O NASCIMENTO DE ESAÚ E JACÓ: 25.19-28.............................................46 EXCURSO I: Eleição e fé......................................................................................................50 1) Predestinação divina por livre escolha.........................................................51 2) Jesus, homem eleito e Deus que elege...........................................................52 Eleição e fé no testemunho da Escritura (gráfico).............................................54 II.
A PRIMEIRA TRAIÇÃO: 25.29-34.......................................................................56
III. ISAQUE, O HERDEIRO DA PROMESSA: 26.1-35......................................58 1. A fome na época de Isaque: 26.1-6.......................................................................58 2. A meia mentira de Isaque: 26.7-11.......................................................................60 3. A inveja dos filisteus: 26.12-17.............................................................................61 4. O poço entre Gerar e Berseba: 26.18-22.............................................................62 5. A manifestação divina em Berseba: 26.23-25...................................................63 6. O pacto de paz com Abimeleque: 26.26-33......................................................64 EXCURSO II: Paz.................................................................................................................66 1) Paz, o nome de Deus e do Messias.................................................................66 2) Os pacificadores................................................................................................67 3) Paz e divisão......................................................................................................58 7. A tristeza de Isaque e Rebeca: 26.34–1.35.......................................................69 IV. A SEGUNDA TRAIÇÃO: 27.1-46........................................................................70 1. Jacó intercepta a bênção: 27.1-29........................................................................71 2. As explosões de raiva de Esaú e a “bênção póstuma” de Isaque: 27.30-40.................................................................................................74 EXCURSO III: Bênção........................................................................................................77 1) A bênção é uma palavra acompanhada de ação..........................................77 2) A bênção é uma ação de Deus........................................................................78 3) A bênção é uma força salvífica.......................................................................78 4) A bênção promove a comunhão.....................................................................79 5) A bênção é irrevogável.....................................................................................79 6) Condições para a bênção................................................................................80 7) Os limites da bênção.......................................................................................81 3. O propósito assassino de Esaú e o plano de Rebeca: 27.41-45...................81 4. O lamento de Rebeca: 27.46................................................................................82 V.
A FUGA E A VOLTA DE JACÓ: 28.1–33.20.....................................................83 1. A bênção de despedida para Jacó e a reação de Esaú: 28.1-9.........................83 2. A revelação de Deus em Betel: 28.10-22............................................................85 a. Jacó adora Deus.................................................................................................87 b. Jacó edifica um memorial................................................................................88 c. Jacó unge o memorial com óleo.....................................................................88 d. Jacó dá ao lugar o nome de Betel................................................................89 e. Jacó faz um voto..............................................................................................89
3. A bigamia de Jacó: 29.1-30....................................................................................89 4. Os filhos de Jacó: 29.31–30.24.............................................................................94 EXCURSO IV: Os filhos de Jacó e as tribos de Israel....................................................98 1) Rúben............................................................................................................98 2) Simeão...........................................................................................................99 3) Levi............................................................................................................99 4) Judá......................................................................................................101 5) Dã...............................................................................................................102 6) Naftali......................................................................................................103 7) Gade.......................................................................................................104 8) Aser..........................................................................................................104 9) Issacar...................................................................................................105 10) Zebulom..................................................................................................105 11) José..........................................................................................................106 12) Benjamim...............................................................................................108 5. A separação de Labão: 30.25–32.1.....................................................................109 a. A conversa interrompida: 30.25-36...............................................................109 b. A terceira traição de Jacó: 30.37-43..............................................................111 c. A fuga de Jacó e o furto dos terafins: 31.1-21.............................................112 d. Perseguição e briga: 31.22-43........................................................................115 e. O acordo entre Labão e Jacó: 31.44-54.........................................................119 f. A volta de Labão: 31.55..................................................................................122 6. O encontro entre os irmãos: 32.1–33.20..........................................................122 a. A manifestação de Deus em Maanaim: 32.1-2............................................122 b. O envio dos mensageiros: 32.3-8.................................................................123 c. A oração no medo: 32.9-12............................................................................125 »» A lembrança da orientação de Deus......................................................125 »» O grito por salvação..................................................................................126 »» A invocação das promessas de Deus....................................................126 d. Presentes para Esaú: 32.13-21.......................................................................126 e. Na escuridão da provação: 32.22-32...........................................................128 »» Deus é, ao mesmo tempo, desconhecido e conhecido.........................129 »» Deus é confundível e mesmo assim revelado......................................130 »» Deus é, ao mesmo tempo, aquele que fere e aquele e abençoa........131 f. O reencontro entre Jacó e Esaú: 33.1-11....................................................133 7. Caminhos separados: 33.12-20...........................................................................136 VI. ESTAÇÕES NA TERRA DOS PATRIARCAS: 34.1–35.29.........................138 1. O estupro de Diná e o massacre em Siquém: 34.1-31..................................138 2. O retorno para Betel: 35.1-15.............................................................................145 a. A convocação para a saída: 35.1....................................................................146 b. A destruição dos ídolos: 35.2-5......................................................................146 c. O altar em Betel: 35.6 e 7...............................................................................148 d. A morte de Débora: 35.8................................................................................149 e. A manifestação divina em Betel: 35.9-15...................................................149 3. O nascimento de Benjamim e morte de Raquel: 35.16-20..............................150 4. A infâmia de Rúben em Migdal-Éder: 35.21 e 22a........................................152
5. Os doze filhos de Jacó, o retorno para Hebrom e a morte de Isaque: 35.22b-29.............................................................................153 VII. ESAÚ E SEUS DESCENDENTES: 36.1-43.....................................................154 1. A separação definitiva entre Esaú e Jacó..........................................................157 2. A terra dos horeus...............................................................................................157 3. Conquista e miscigenação...................................................................................158 4. O reino de Edom..................................................................................................158 5. A fé dos edomitas...............................................................................................189 PARTE 2 – Capítulos 37 a 50 Prefácio do autor para a Parte 2........................................................................................160 A.
INTRODUÇÃO à Parte 2.......................................................................................161
I.
A HISTORICIDADE DE JOSÉ..........................................................................161
II.
A HISTÓRIA BÍBLICA DE JOSÉ E OS ROMANCES SOBRE JOSÉ............................................................................................................162
B.
JACÓ E JOSÉ (comentário)..................................................................................163
I.
JOSÉ NA CASA DE SEU PAI: 37.1-17.............................................................163 1. O fim da paz na casa de Jacó: 37.1-4.................................................................163 2. Os sonhos de José: 37.5-11.................................................................................167 a. O sonho dos feixes: 37.5-8.............................................................................168 b. O sonho do sol, da lua e das estrelas: 37.9-11..........................................168 3. Jacó manda José procurar os irmãos: 37.12-17............................................170
II.
A TENTATIVA DE HOMICÍDIO CONTRA JOSÉ E O OCULTAMENTO DO ATO: 37.18-36..............................................................171 1. A decisão de matar e a intervenção de Rúben: 37.18-24................................171 2. José é vendido: 37.25-30.....................................................................................173 3. O ocultamento do ato: 37.31-36........................................................................177
III. FAMÍLIA E COSTUMES: 38.1–39.20...............................................................183 1. A ameaça à família: 38.1-5...................................................................................183 2. O levirato e a recusa: 38.6-11..............................................................................184 3. A decisão de prostituir-se: 38.12-23..................................................................187 4. A absolvição e o nascimento de Perez e Zera: 38.24-30...............................189 EXCURSO I: O casamento com uma mulher (monogamia), o casamento com várias mulheres (poliginia) e a visita a prostitutas (prostituição)........................................................193 1) O casamento com uma mulher (monogamia) – uma ordem do Criador...........................................................................................194 2) O casamento com várias mulheres (poliginia)........................................196
3) A visita a prostitutas (prostituição).............................................................199 a. Prostituição profissional...........................................................................199 b. Prostituição religiosa................................................................................203 5. Terra estranha e costumes estranhos: 39.1-6a.................................................204 6. Tentativa de sedução: 39.6b-12...........................................................................207 7. Calúnia e veredito sábio: 39.13-20....................................................................210 IV. JOSÉ NA PRISÃO: 39.21–40.23..........................................................................213 1. José se torna supervisor da prisão: 39.21–40.4.................................................213 2. Os sonhos dos funcionários da corte: 40.5-8.................................................215 3. José interpreta o sonho do copeiro: 40.9-15...................................................217 4. José interpreta o sonho do padeiro: 40.16-19................................................219 5. O pedido esquecido: 40.20-23............................................................................221 V.
A SABEDORIA DE JOSÉ: 41.1-57....................................................................222 1. Os dois sonhos do faraó: 41.1-8 ........................................................................223 2. José é lembrado: 41.9-13......................................................................................226 3. José se apresenta ao faraó: 41.14-16..................................................................227
EXCURSO II: José e o faraó falam de Deus...................................................................229 1) Os deuses egípcios.........................................................................................229 2) O deus de Aquenáton...................................................................................230 3) Falas genéricas sobre Deus...........................................................................231 4) Os deuses dos hicsos.....................................................................................232 4. José interpreta os sonhos do faraó: 41.17-32...................................................233 EXCURSO III: Sonhos e sua interpretação no Antigo e no Novo Testamento.......235 1) Sonhos e visões...............................................................................................235 2) Sonhos, a forma de Deus falar com alguém que dorme........................237 a. Os sonhos com mensagens no Antigo Testamento.............................237 b. Os sonhos com mensagens no Novo Testamento.............................237 »» Deus orienta no sonho.........................................................................237 »» Deus consola no sonho .....................................................................238 »» O conteúdo do sonho não salva........................................................238 »» Ninguém pode escrutinar o mistério de Deus por meio de sonhos.............................................................................238 3) Sonhos metafóricos (sonhos parabólicos)..................................................238 a. Sonhos parabólicos no Antigo Testamento..........................................239 b. Sonhos parabólicos no Novo Testamento............................................239 »» A visão de Pedro (At 10.9-16)..............................................................239 »» A visão de Paulo em Trôade (At 16.8-10)..........................................240 4) Os sonhos dos falsos profetas......................................................................240 a. Sonhos sedutores.......................................................................................240 b. Sonhos mentirosos.....................................................................................241 c. Visões políticas...........................................................................................242 d. Sonhos reconfortantes...............................................................................243
5) Sonhos, um reflexo do coração humano....................................................244 a. O sonho desejável......................................................................................244 b. O pesadelo..................................................................................................245 c. Sonhos eróticos..........................................................................................246 6) Sonhos apocalípticos .....................................................................................247 a. Os sonhos de Daniel.................................................................................247 b. Sonhos sobre o fim dos tempos..............................................................247 c. João, o vidente, em Patmos......................................................................248 d. Visões de futuro posteriores...................................................................248 5. O conselho de José: 41.33-36..............................................................................248 6. José torna-se o segundo homem no reino: 41.37-46......................................250 7. Os sete anos bons e os sete anos difíceis: 41.47-57.........................................258 VI. AS VIAGENS DOS IRMÃOS PARA O EGITO: 42.1–45.28.....................262 1. A primeira viagem: 42.1-38................................................................................262 a. Saída e viagem para o Egito: 42.1-4.............................................................263 b. O primeiro encontro com José: 42.5-24......................................................263 c. A volta e a chegada à casa do pai: 42.25-38.................................................269 2. A segunda viagem: 43.1-34.................................................................................273 a. A saída dos irmãos com Benjamim: 43.1-15..............................................273 b. A conversa com o despenseiro: 43.16-25....................................................276 c. O segundo encontro com José: 43.26-34.....................................................277 3. José se identifica: 44.1–45.28..............................................................................279 a. O copo: 44.1-17................................................................................................280 b. A fala de Judá: 44.18-34.................................................................................284 c. O reconhecimento: 45.1-15............................................................................287 d. O convite do faraó: 45.16-20.........................................................................290 e. O retorno dos irmãos e a notícia para Jacó: 45.21-28................................291 VII. JACÓ NO EGITO: 46.1–48.22............................................................................294 1. A saída: 46.1-27....................................................................................................294 2. O encontro com José: 46.28-34...........................................................................299 3. Jacó é apresentado ao faraó: 47.1-12.................................................................301 4. A política agrária de José: 47.13-27...................................................................304 5. Jacó faz seu testamento: 47.28-31......................................................................308 6. Jacó e seus netos Efraim e Manassés: 48.1-22.................................................310 VIII. D ESPEDIDA E MORTE DE JACÓ E O PERDÃO DE JOSÉ: 49.1–50.26................................................................................................317 1. A despedida de Jacó: 49.1-28.............................................................................318 2. A morte de Jacó: 49.29-33..................................................................................338 3. O sepultamento de Jacó: 50.1-14.......................................................................339 4. A confirmação do perdão: 50.15-21..................................................................342 5. Velhice e morte de José: 50.22-26.......................................................................345 Bibliografia.......................................................................................................................347
ORIENTAÇÕES PARA OS USUÁRIOS DO COMENTÁRIO ESPERANÇA Com referência ao texto bíblico: O texto bíblico está impresso em negrito. Repetições do texto bíblico que está sendo tratado também aparecem em negrito. O itálico é usado apenas para esclarecer as ênfases. Com referência aos textos paralelos: A citação abundante de textos bíblicos paralelos é intencional. Para o seu registro foi reservada uma coluna à margem. Com referência aos manuscritos: Para as variantes mais importantes do texto, geralmente identificadas nas notas, foram usados os sinais abaixo, que carecem de explicação: O texto hebraico do Antigo Testamento (também chamado de “Texto TM Massorético”). A transmissão exata do texto do Antigo Testamento era muito importante para os estudiosos judaicos. A partir do século 2 ela tornou-se uma ciência específica nas assim chamadas “escolas massoretas” (massora = transmissão). Originalmente o texto hebraico consistia só em consoantes; a partir do século 6 os massoretas acrescentaram sinais vocálicos na forma de pontos e traços debaixo da palavra. Manuscritos importantes do texto massorético: Manuscrito:
redigido em:
pela escola de:
Códice do Cairo (C)
895
Moisés ben Asher
Códice da sinagoga de Aleppo
depois de 900
Moisés ben Asher
Códice de São Petersburgo
1008
Moisés ben Asher
Códice nº 3 de Erfurt
séc. 9
Ben Nafthali
Códice de Reuchlian
105
(provavelmente destruído em um incêndio)
Ben Nafthali
Textos de Qumran. Os manuscritos encontrados em Qumran, em sua Qumran maioria, datam de antes de Cristo, portanto, são mais ou menos 1.000 anos mais antigos do que os mencionados acima. Não existem entre eles textos completos do AT. Manuscritos importantes são • o texto de Isaías • o comentário de Habacuque O Pentateuco samaritano. Os samaritanos preservaram os cinco livros Sam da lei, em hebraico antigo. Seus manuscritos remontam a um texto muito antigo.
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Targum A tradução oral do texto hebraico da Bíblia para o aramaico, no culto na sinagoga (dado que muitos judeus já não entendiam mais hebraico), levou, no século 3, ao registro escrito no assim chamado Targum (= tradução). Essas traduções são, muitas vezes, bastante livres e precisam ser usadas com cuidado. LXX A tradução mais antiga do AT para o grego é chamada de “Septuaginta” (LXX = setenta), por causa da história tradicional da sua origem. Diz a história que ela foi traduzida por 72 estudiosos judeus por ordem do rei Ptolomeu Filadelfo, em 200 a.C., em Alexandria. A LXX é uma coletânea de traduções. Os trechos mais antigos, que incluem o Pentateuco, datam do século 3 a.C., provavelmente do Egito. Como esta tradução remonta a um texto hebraico anterior ao dos massoretas, ela é um auxílio importante para todos os trabalhos no texto do AT. Outras Ocasionalmente recorre-se a outras traduções do AT. Estas têm menos valor para a pesquisa de texto, por serem traduções do grego (provavelmente da LXX), ou pelo menos fortemente influenciadas por ela (que é o caso da Vulgata). • Vulgata (tradução latina de Jerônimo) a partir do ano 390 • Copta séculos 3-4 • Etíope século 4
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ÍNDICE DE ABREVIATURAS 1. Abreviaturas gerais AT = Antigo Testamento cf. conforme = col. = coluna gr = grego hbr = hebraico km = quilômetros lat = latim LXX Septuaginta = NT = Novo Testamento par = texto paralelo p.ex. = por exemplo pág. = página(s) qi = questões introdutórias TM = Texto Massorético v. versículo(s) = vol. volume =
2. Abreviaturas de livros Bill
= Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, H. L. Strack, P. Billerbeck Bl-De = Grammatik des ntst Griechisch, 9ª edição, 1954, Blass-Debrunner CE = Comentário Esperança Ki-ThW = Kittel: Theologisches Wörterbuch NTD = Das Neue Testament Deutsch Radm = Neutestl. Grammatik, 1925, 2ª edição, Rademacher W-B = Griechisch-deutsches Wörterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der frühchristlichen Literatur, Walter Bauer, editado por Kurt e Barbara Aland
3. Abreviaturas das versões bíblicas usadas O texto adotado neste comentário é a tradução de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada no Brasil, 2ª ed. (RA), SBB, São Paulo, 1997. Quando se fez uso de outras versões, elas são assim identificadas:
RC = NVI = BJ = NTLH = BV = VFL = TEB =
Almeida, Revista e Corrigida, 2009. Nova Versão Internacional, 2000. Bíblia de Jerusalém, 1987. Bíblia na Nova Tradução na Linguagem de Hoje, 2000. Bíblia Viva, 1981. Versão Fácil de Ler, 1999. Tradução Ecumênica da Bíblia, 1995.
4. Abreviaturas dos livros da Bíblia Antigo Testamento = Gn Gênesis = Êx Êxodo = Lv Levítico = Nm Números = Dt Deuteronômio = Js Josué = Jz Juízes = Rt Rute 1Sm = 1 Samuel 2Sm = 2 Samuel = 1 Reis 1Rs = 2 Reis 2Rs = 1 Crônicas 1Cr = 2 Crônicas 2Cr = Ed Esdras = Ne Neemias = Et Ester = Jó Jó = Sl Salmos = Pv Provérbios = Ec Eclesiastes = Cântico dos Cânticos Ct = Is Isaías = Jr Jeremias = Lamentações de Jeremias Lm = Ez Ezequiel = Dn Daniel
16 Os Oseias = Jl Joel = Am Amós = Ob Obadias = Jn Jonas = Mq Miqueias = Na Naum = Hc Habacuque = Sf Sofonias = Ag Ageu = Zc Zacarias Ml Malaquias =
Novo Testamento = Mt Mateus = Mc Marcos = Lc Lucas = Jo João = At Atos = Rm Romanos 1Co = 1 Coríntios 2Co = 2 Coríntios
Gl Gálatas = Ef Efésios = Fp Filipenses = Cl Colossenses = 1Te = 1 Tessalonicenses 2Te = 2 Tessalonicenses 1Tm = 1 Timóteo 2Tm = 2 Timóteo Tt Tito = Fm Filemom = Hb Hebreus = Tg Tiago = 1Pe = 1 Pedro 2Pe = 2 Pedro 1Jo = 1 João 2Jo = 2 João 3Jo = 3 João Jd Judas = Ap Apocalipse = Cf. CE Mt pág.... = conforme Comentário Esperança Mateus pág. Cf. CE Mc pág.... = conforme Comentário Esperança Marcos pág.
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Prefácio A coleção da “Wuppertaler Studienbibel” é uma série voltada para a igreja que lê a Bíblia. Ela parte do princípio de que a Bíblia é a Palavra de Deus, anotada e transmitida por pessoas. Ou seja: seus comentários precisam fazer justiça a esse caráter duplo da Escritura Sagrada. Portanto, ela pressupõe que a Bíblia seja comprovação da fala e da ação divina na Criação e na História, inspirada pelo Espírito Santo e acompanhada e protegida por ele desde sua origem. Ao mesmo tempo, a exegese mantém em vista que a Bíblia, assim compreendida, foi redigida por pessoas em situações e locais históricos e concretos, que por sua vez têm sua própria história (história da tradição, do cânone; dos efeitos, do testemunho). Por isso, uma interpretação adequada olhará para trás, pesquisando a História. Afinal, a fé baseia-se na realidade da fala e da ação de Deus no mundo. Ele não pode nem quer abrir mão de um esclarecimento preciso a respeito da revelação divina acontecida. Além disso, a interpretação precisa manter-se aberta ao fato de que Deus trabalha na e por meio da Palavra na vida do leitor e ouvinte. Ela acontece, assim, na expectativa por novas mensagens e ações de Deus, que correspondam ao que está relatado no texto. Na interpretação do Antigo Testamento, isso significa, em primeiro lugar, que é preciso conservar sempre o caráter indicativo do texto veterotestamentário em relação a Jesus Cristo e ao Novo Testamento: a história do Antigo Testamento é vista, à luz do Novo Testamento, como história da salvação. Isso significa também que é preciso demonstrar claramente o aspecto profético do texto, isto é, aquilo que transcende tempo e local de sua dispensação ou acontecimento originais e que, assim, ainda esteja esperando pelo seu cumprimento. Por fim, todo o trabalho histórico e teológico com o texto não passa de obra “preparatória”. A real obra é feita pelo próprio Deus, na medida em que ele nos concede ouvir e compreender o texto como sua Palavra em nós e para nós – e em outros e para outros. Por isso, a interpretação da Escritura Sagrada coloca-se abaixo, e não acima do objeto de sua interpretação. Ela nunca poderá controlar se seu objetivo, o de tornar a Palavra de Deus audível, será realmente alcançado; ela se limita a ser serva e auxiliar nesse processo. Por isso, uma coisa não pode faltar durante todo o trabalho de interpretação: a oração. Oração durante a leitura, a interpretação e a verificação da interpretação à luz da própria Escritura. Quando isso acontece, escancara-se a porta aos novos conhecimentos e compreensões da revelação divina e da vontade de Deus. Os editores
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Prefácio do autor A presente interpretação da história primitiva não pretende ser científica. Só tive acesso às fontes extrabíblicas por meio de comentários clássicos sobre a história primitiva e das coletâneas de fontes indicadas na bibliografia. A primeira etapa da interpretação foi a pregação sobre os textos dos primórdios na Igreja do Bom Pastor, da missão Lobetal, em Celle (Alemanha). O objetivo do comentário para leigos é fornecer ferramentas para ler a Bíblia, ouvir pregações e preparar seus próprios estudos. Sou grato aos meus professores de Antigo Testamento: Martin Wittenberg (Neuendettels-au); Hans Joachim Kraus (Hamburgo); Gerhard von Rad (Heidelberg – falecido em 31/10/1971); Claus Westermann (Heidelberg) e Walter Zimmerli (Göttingen). Além da pesquisa feita na Alemanha, minhas viagens levaram-me também às terras bíblicas do Oriente próximo. Amigos em Jerusalém apresentaram-me o trabalho de Umberto Cassuto. Para Cassuto, os cinco livros do Pentateuco formam uma unidade harmoniosa e não há nenhum motivo para duvidar da idade avançada e do valor histórico destes conteúdos. O trabalho do presente comentário nunca teria sido terminado sem as conversas com minha esposa, Rosemarie (nascida Wernick), e sua múltipla colaboração. Junto com ela, dedico este comentário aos nossos pais: Herta Wernick (+1945) — Hermine Wernick e Emil Wernick (+1971) Elise Bräumer e Emil Bräumer (+1952). As lembranças gratas e permanentes de nossos pais estão especialmente ligadas à interpretação das genealogias, devido a um aspecto: a origem ensina o ser humano a entender. Minha gratidão também aos editores, à editora e ao sr. Kurt Meinel, que mais uma vez assumiu a tarefa de revisão. St. Peter, janeiro de 1983 Hansjörg Bräumer
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Prefácio do autor para Parte 1
O Antigo Testamento nunca foi fácil de ler. Também o presente comentário não pode nem deseja transformá-lo em literatura leve. O objetivo do comentário sobre os patriarcas é dirimir dificuldades, para que os textos se tornem novamente diretos. Não é nossa intenção empurrar o leitor em determinada direção, nem imobilizá-lo. Cada um deve ter a possibilidade de tirar suas próprias conclusões a partir do texto. O tradutor e comentarista “transforma-se em microfone para a voz desconhecida, que ele torna audível atravessando o tempo ou o espaço” (F. Rosenzweig). Os aspectos difíceis e, em parte, escandalosos dos textos são conservados. O leitor precisará de tempo para absorvê-los e coragem para enfrentar o questionamento que eles apresentam. Se quiser empreender uma análise compreensiva, o leitor precisará, em primeiro lugar, aceitar o que o texto diz. “Quem se ocupa com o Antigo Testamento precisa agarrá-lo com firmeza, não se satisfazendo com impressões sentimentais genéricas” (G. von Rad). Nenhuma palavra do texto bíblico é supérflua, nenhum termo, nenhum nome, nenhuma indicação de lugar. A explicação detalhada sobre os nomes dos lugares pretende convidar o leitor a movimentar-se como um nativo pela terra onde Deus se revelou. O conhecimento a respeito do lugar ajuda na compreensão dos acontecimentos. O mesmo vale para a História. “Quanto mais contextualizarmos as matérias em seu mundo antigo e distante, mais claras e atuais elas se tornam para nós” (G. von Rad). O presente comentário foi escrito durante as férias e durante o dia de repouso semanal. Agradeço à minha esposa, Rosemarie, por sua ajuda, seu conselho e sua compreensão. Nós dedicamos este comentário aos nossos filhos Erika e Carsten. Ao mesmo tempo, também rogamos a Deus que abençoe o dia de seu noivado. Os anos de aprendizado e estudo não terminam com as provas finais. No fim das contas, o que vale é: “Se você tiver estudado muito a Torá, não deixei que isso lhe suba à cabeça, pois para isso você foi criado” (rabino Yochanan ben Zakai). Minha gratidão também vai para os membros do grupo de trabalho do Antigo Testamento em Lobetal. Apresentei os primeiros esboços deste comentário a esse grupo de amigos e colaboradores. Deus abençoe a todos os que lerem com paciência os textos bíblicos e permitirem que os comentários os levem a refletir, crer e proclamar. Keswil, abril de 1987 Hansjörg Bräumer
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Parte 1 – Capítulos 25 a 36 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS
A. INTRODUÇÃO
A história dos patriarcas (Gn 12-50) é uma grandeza própria entre a história da humanidade e a história da nação de Israel (que começa no Êxodo). Os patriarcas não participam do cultivo da terra. Eles eram pastores nômades. As histórias sobre eles dão um vislumbre da tensão que cercava as primeiras células de comunidade humana. A história de Abraão (Gn 12-25) é marcada pelo relacionamento do pai (ou dos pais) com seus descendentes. O relato sobre Jacó e Esaú (Gn 25-36) gira em torno do relacionamento entre irmãos. A história de José (Gn 37-50) mostra os problemas de uma comunidade composta por vários membros.1 Ao mesmo tempo, a história dos patriarcas esclarece o mundo religioso em que viviam os antepassados de Israel. O único Deus, o Deus do céu e da terra, revelou-se a Abraão. Ele chamou Abraão para fora de seu ambiente pagão. Abraão seguiu o chamado de Deus e passou a adorá-lo. O Deus que se revelou a Abraão mais tarde é chamado pelo povo de Israel de “o Deus de Abraão”.2 Depois de seu chamado, a fé e o culto celebrado por Abraão não apresentam “nenhum traço de uma influência politeísta de seu entorno”.3 Em toda a história dos patriarcas, a oração é um componente fixo e natural do relacionamento com Deus. O clamor a Deus em louvor, lamento ou súplica nasce a partir de determinadas situações de vida. Abraão e Rebeca se lamentam (Gn 15.2s; 25.22); Jacó suplica por salvação (Gn 32.11). O pedido pela mão de Rebeca é totalmente permeado pela oração (Gn 24), e o louvor a Deus é perpetuado, entre outras coisas, pelos nomes escolhidos: “Deus ouve” (Gn 16.15) ou “Deus proverá” (Gn 22.14). O relacionamento com Deus, do qual o povo de Israel mais tarde se gloria, é a aliança que Deus estabeleceu com os três patriarcas: Abraão, Isaque e Jacó. Os Evangelhos pegam o gancho do significado soteriológico de Abraão (Mt 8.11; Mc 12.26; Lc 16.22; 19.9). No Novo Testamento, Jesus está acima de Abraão (Jo 8.52-59). Pedro assume o lugar de Abraão como portador da revelação, tornando-se a rocha neotestamentária (Is 51.1s; Mt 16.18)!4 Os herdeiros da promessa abraâmica são os cristãos de descendência judaica e gentia (Rm 4.1,12; 9.7s; Gl 3.7,9,29; 4.22ss; Hb 2.16; 6.13ss; Tg 2.21). A Antiga Aliança transformou-se em uma aliança nova, isto é, ampliada. Na Antiga Aliança, é típica a expressão “Abraão, Isaque e Jacó” (Êx 2.24; 3.6; 6.8; Dt 1.8; 6.10; 9.27; Jr 33.26). Para os fariseus, a fórmula Abraão, Isaque e Jacó é “um símbolo do judaísmo fiel, do verdadeiro Israel”.5 1 Westermann, Genesis I/2, pg. VI e 1ss. 2 Cf. Metzger, pg. 24. 3 Westermann, Genesis I/2, pg. 700. 4 Jeremias, Abraham, pg. 8 e 9. 5 Odeberg, Jakob, pg. 191.
A historicidade dos patriarcas
Na época do Novo Testamento, os judeus que desejam enfatizar sua fé recorrem aos três patriarcas: Abraão, Isaque e Jacó. O judaísmo tardio chama estes três patriarcas de “servos fiéis” de Deus (2 Macabeus 1.2). Os cristãos enxergam uma sombra de sua própria vida projetada na vida dos três patriarcas: “Devem recordar-se como nosso pai Abraão foi tentado, e, depois que foi provado por meio de muitas tribulações, chegou a ser o amigo de Deus. Assim Isaque, assim Jacó, assim Moisés e todos os que agradaram a Deus, passaram por muitas tribulações, permanecendo fiéis” (Judite 8.22s). Até a época do Novo Testamento, todos os pais de Israel podiam ser chamados de patriarcas. Segundo a tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, o livro de Crônicas usa o termo “patriarca” de forma genérica para chefes de família (1Cr 24.31; 2Cr 19.8; 26.12). Os “patriarcas” são os “maiores entre os pais” ou os “pais mais elevados” (em hebraico: rosh aboth). No Novo Testamento, o termo “pais” ou “patriarcas” é usado apenas para personagens de destaque do Antigo Testamento. Estêvão chama os filhos de Jacó de “os doze patriarcas” (At 7.8s), e Pedro fala do “patriarca Davi” em seu discurso por ocasião do Pentecostes (At 2.29). Paulo também faz menção aos “patriarcas” (Rm 9.5; 11.28). A Carta aos Hebreus chama Abraão de “o patriarca” (Hb 7.4). Ao longo da História, o título “patriarca” acabou ficando restrito apenas a Abraão, Isaque e Jacó (mas não José). O motivo para isso está no fato de que o Novo Testamento costuma mencionar Abraão, Isaque e Jacó em conjunto (Mt 22.32; Mc 12.26; Lc 20.37; At 3.13). Assim como os demais patriarcas de Israel, Abraão, Isaque e Jacó são “indivíduos reais”.6 Eles viveram no 2º milênio antes de Cristo7 no istmo sírio-palestino. I. A HISTORICIDADE DOS PATRIARCAS Atualmente, apenas alguns poucos pesquisadores ainda duvidam da realidade histórica dos patriarcas: “Antigamente a historicidade dos patriarcas era questionada; eles eram interpretados como divindades astrológicas, antigos deuses cananeus, fundadores míticos de santuários cananeus, figuras de contos de fadas ou de lendas populares. Hoje há ampla concordância de que os patriarcas realmente foram figuras históricas, indivíduos reais, ainda que seja absolutamente impossível escrever sua biografia”.8 A estrutura dos nomes dos patriarcas “exibe correlações inconfundíveis com nomes de pessoas comuns em determinada camada populacional surgida por volta do século 18 a.C., e que podem ser historicamente comprovados tanto na Mesopotâmia quanto na Síria e Palestina”.9 Os textos de Mari são especialmente importantes no que diz respeito aos nomes pessoais. Durante escavações em Mari (Tell Hariri), junto ao Eufrates do Meio, arqueólogos franceses descobriram cerca de 20.000 pequenas tábuas em escrita cuneiforme, os assim chamados “textos de Mari”. Elas foram encontradas no palácio real e datam de 1800 a 1750 a.C.10 6 Auerbach, pg. 60. 7 Fuchs, JL, vol. II, col. 499. 8 Kilian, pg. 11. 9 Noth, Hat die Bibel doch recht? vol. I, pg. 27. 10 Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 390.
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A historicidade dos patriarcas
Muitos dos nomes pessoais conhecidos a partir dos textos de Mari não são acádios nem sumérios, mas semitas. Para diferenciá-los de nomes pessoais semitas acádios, eles foram chamados de “semitas do oeste”. O nome Jacó mostrou ser um “típico nome mesopotâmico semita do oeste”, assim como também Isaque. O nome Abraão faz parte de um “tipo de nome pessoal semita amplamente disseminado”.11 Naturalmente há pesquisadores, como Thomson e Seters, que contestam o significado das descobertas arqueológicas para a historicidade dos patriarcas. Seus argumentos são fracos. As descobertas arqueológicas comprovaram a viabilidade da vida e do nomadismo dos patriarcas na época anterior ao sedentarismo alcançado pelas tribos em Canaã.12 Os patriarcas são figuras histórias, que podem ser chamadas pelo nome e de cuja vida se conhece fatos concretos. Eles eram pastores nômades, “os primeiros prenúncios do futuro Israel”.13 Já antes da assim chamada “revolução arqueológica”, pesquisas relacionadas à história da religião concluíram: os patriarcas não eram “antigos deuses”, nem “tribos desaparecidas”, mas pessoas de verdade, que realmente viveram.14 Abraão, Isaque, Jacó, José, Ismael e tantas outras figuras da história dos patriarcas “devem ser entendidos como pessoas reais”.15 São personagens históricos. As descobertas arqueológicas comprovaram essa conclusão. No entanto, nem a “arqueologia muda” – materiais, construções e instalações das épocas bíblicas – e tampouco a “arqueologia falante” – os poucos textos, principalmente os nomes das pessoas – são suficientes para estabelecer a história dos patriarcas. As descobertas em território palestino não têm comparação com as enormes construções junto ao Nilo, ao Eufrates e ao Tigre. Também “não se encontrou em lugar algum da Palestina um registro escrito original tão amplo quanto os grandes papiros e inscrições do Egito e os arquivos em barro da Mesopotâmia”.16 Mas o que é singular para a história de Israel e seu passado antes da caminhada pelo deserto e da conquista de Canaã é o testemunho do Antigo Testamento. “A existência desse testemunho é um fato histórico, que pertence à história de Israel; ignorar esse fato realmente singular seria inapropriado”.17 O Antigo Testamento é uma coletânea de documentos que abrange cerca de um milênio, sendo que partes específicas destes textos se baseiam em manuscritos muito mais antigos. Mas o objetivo da coletânea dos textos do Antigo Testamento não era transmitir um retrato histórico sem lacunas; na verdade, o Antigo Testamento quer relatar os atos de Javé. Eles dão testemunho de que “o Deus de Israel se revelou em todos os tempos como o único Deus vivo, presente e poderoso”.18 Por isso, o Antigo Testamento é, e continua sendo, “um tesouro de notícias históricas transmitidas”.19 11 Noth, Mari und Israel, vol. II, pg. 225. 12 Westermann, Genesis I/2, pg. 52ss, 73s e 87ss. 13 Noth, Geschichte, pg. 117. 14 Kittel, Wissenschaft, pg. 168. 15 Kittel, Geschichte, vol. I, pg. 278. 16 Herrmann, Geschichte, pg. 48. 17 Noth, Geschichte, pg. 52. 18 Herrmann, Geschichte, pg. 54. 19 Noth, Geschichte, pg. 52.
A terra dos patriarcas e seus moradores
Sem os relatos bíblicos, sabemos muito pouco sobre a época dos patriarcas. Se não houvesse a Bíblia, não saberíamos nada a respeito de Israel, a não ser o nome do povo. Ele foi registrado na coluna de Merenptah (1210 a.C.). O nome de Jeroboão aparece em um selo, sem qualquer indicação da época em que ele viveu; em fontes assírias, é possível encontrar os nomes dos reis Onri, Acabe e Jeú. Somente no século 8 a.C. as fontes extrabíblicas começam a trazer mais informações. Nos últimos séculos, as fontes históricas bíblicas foram minadas pelo desmanche crítico analítico. A fragmentação dos relatos bíblicos em várias fontes transformou-se em uma “ciência secreta complicada, acessível apenas a iniciados”. A subdivisão do texto com ajuda de marcações como J, E, P, D, R, JE, H, S, etc., “foi tão longe que agora o olhar só se limita a vagar de um tijolinho para outro”.20 O presente comentário dispensa a fragmentação do livro de Gênesis em várias fontes. Assim como todo o Antigo Testamento, também a história dos patriarcas é “singular e surpreendente”, uma “literatura histórica” autônoma.21 Quando comparado ao restante da literatura do antigo Oriente, a singularidade de todo o Antigo Testamento se mostra também no fato de que ele não é a literatura gerada por uma potência mundial, mas pelo menor de todos os povos. E o Antigo Testamento não fala somente da camada dominante deste pequeno povo, mas, principalmente, dos pobres dentro do povo escolhido por Deus.22 II. A TERRA DOS PATRIARCAS E SEUS MORADORES A terra em que os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó viveram como nômades era o assim chamado “istmo sírio-palestino”.23 A Bíblia menciona uma série de nações em uma extensão de mais de 5.000 km na direção leste-oeste: de Susã, no atual Irãa, até Társis, na Espanhab. Na direção norte-sul, a distância entre os países citados, do Sudão (Cuxec) e Sabád, no Iêmen, até Araratee, na Armênia, é de cerca de 3.000 km. Em comparação com esse território, o istmo sírio-palestino é uma terra minúscula. Jerônimo, pai da igreja que viveu durante o Império Romano, escreve o seguinte ao nobre gaulês Dárdaro, no ano 414: “Quase me envergonho de mencionar a largura da Terra da Promessa, pois não quero suscitar a zombaria dos gentios. De Jafa até a nossa localidade de Belém são 46 milhas (aprox. 70 km, cerca de 55 km em linha reta). Depois disso vem um enorme deserto...”.24 No entanto, uma olhada para este lado do globo terrestre mostra a posição centralizada do istmo sírio-palestino.25
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Auerbach, pg. 34. Para uma avaliação mais recente da divisão das fontes cf. Maier, G., Kritisches zur Pentateuchkritik, pg. 286-290. Nem a história dos patriarcas nem a pré-História dão motivo ou indicação para a necessidade da divisão das fontes; cf. Bräumer, Gênesis 1, pg. 18-22. Meyer, E.; citado por Auerbach, pg. 34. Cf. Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 201. Cf. Herrmann, Geschichte, pg. 66. Jerônimo para Dárdaro; citado por Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 182. Cf. Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 183s.
23
a Ed 4.9; Ne 1.1; Dn 8.2 b Rm 15.24 c Gn 2.13; 10.6; 2Rs 19.9; Jó 28.19; Sl 7.1; Is 11.11; 20.3; 43.3; Jr 46.9; Ez 29.10; 30.4; Na 3.9; Sf 3.10 d Gn 10.7,28; 25.3; 1Rs 10.1; Jó 1.15; 6.19; Is 60.6; Jr 6.20; Ez 27.22; Jl 3.8 e Gn 8.4; 2Rs 19.37; Jr 51.27
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Istmo sírio-palestino
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Reproduzido mediante autorização a partir de Othmar Keel/Max Küchler/Christoph Uehlinger: Orte und Landschaften der Bibel, volume 1, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht 1984, pg. 183
A pequena terra da Bíblia é o ponto de encontro de três continentes: Europa, África e Ásia. O istmo sírio-palestino não fica em algum canto isolado do mundo, mas é o ponto central entre dois mares e encruzilhada de grandes rotas comerciais. As setas indicam caminhos percorridos por inúmeras caravanas, provenientes do interior da China, da Arábia, da África e da Europa. Os primeiros traços do povoamento da Palestina datam dos primórdios da Idade da Pedra. O homo galilaeus, encontrado em uma caverna nas proximidades do lago de Genezaré, é considerado uma mistura do neanderthal e do homo sapiens, tendo vivido na região por volta de 50.000 a.C. Nas cavernas de Wadi el-mughara, no monte Carmelo, foram encontrados traços do povoamento mais antigo, com numerosas descobertas, como ossos e equipamentos para cozinhar, uma empunhadura de foice
A terra dos patriarcas e seus moradores
feita de osso, objetos esculpidos e enfeites.26 Restos de povoamentos do período paleolítico e do neolítico (bifaces, lanças, pontas de seta, facas, serras e foices) foram descobertos em muitos lugares que, mais tarde, se tornaram pontos de culto religioso, p.ex., Gezér, Megido, Ta’anach, Bete-Seã, Jerusalém, Betel, Modi’in Illit e Bete-Semes.27 No período neolítico, Jericó já era uma cidade fortificada. Mesmo que a conhecida torre de Jericó só possa ser datada por volta de 7.000 a.C., ela é 4.000 anos mais velha do que as pirâmides do faraó Djoser, em Sacará, e 5.000 anos mais velha do que as pirâmides de Gizé.28 Mas os acontecimentos históricos na região palestina só se tornam detectáveis no 3º milênio a.C., isto é, no começo da Idade do Bronze. Nesta época, a Palestina estava dividida em pequenas cidades-estado, e apenas parte dos nomes dos lugares é semita.29 Nos milênios seguintes, mudaram não somente as fronteiras, mas também o nome do país. 1. Nomes egípcios As fontes egípcias citam sete nomes para o istmo sírio-palestino e seus moradores.30 a. Asiáticos (setshet): nome dado aos vizinhos ao norte do Egito no período pré-dinástico (por volta de 3.000 a.C.). b. Guerreiros, Selvagens (mentshu): os trabalhadores baratos que vinham do norte, por volta de 2.400 a.C. Foram aproveitados na extração de turquesa e cobre. c. Moradores da areia (heriusha): população sedentária do litoral palestino (povoado desde 2.300 a.C.). Em contraste com essa população sedentária, os nômades eram chamados de “andarilhos da areia” ou “corredores da areia”. Sob Ramsés III, os assim chamados povos do mar tentaram invadir o Egito, entre outros, os filisteus. Por volta de 1.200 a.C., Ramsés III deu a estes o litoral entre o delta do Nilo e a Síria, formando uma espécie de zona de amortecimento “Palestina”. Em textos egípcios posteriores, os filisteus também são chamados de “moradores da areia”. Durante a conquista da terra, as tribos israelitas inicialmente não conseguiram ganhar os territórios filisteus. Somente Davi conseguiu se livrar do domínio filisteu, por volta de 1.000 a.C. d. Pastores (aamu) é o termo genérico para as tribos seminômades, sem definição clara da abrangência territorial. Este termo só é usado para a população da região sírio-palestina sob Senuseret II (1897-1878 a.C.). Os pastores (aamu), obrigados a sobreviver com poucos recursos naturais, eram vistos pelos mimados egípcios da corte como uma constante ameaça. Os pastores tinham ocupado o delta do Nilo no assim chamado Primeiro Período Intermediário (2134-2040 a.C.). Durante o 26 Kenyon, pg. 40-42. 27 Lichtenstein, JL, vol. IV/1, col. 669. 28 Kenyon, pg. 47s. 29 Alt, Kanaan, col. 1109. 30 Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 207-223.
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A terra dos patriarcas e seus moradores
Império Médio (2040-1785 a.C.), construiu-se a assim chamada Muralha do Soberano, para evitar que os pastores (os aamu) continuassem a invadir o Egito. Depois da construção do muro, conta um texto egípcio, os aamu “voltarão a pedir água para seus rebanhos” da forma como faziam antigamente.31 e. Terra dos “andarilhos da areia” (jaa) ou também “terra dos estrangeiros” (retshenu) é o nome dado ao istmo sírio-palestino na história de Sinué. A história de Sinué acontece na época de Senuseret I (1971-1926 a.C.). É possível que ela só tenha sido escrita por volta de 1780 a.C. Sinué tinha acompanhado Senuseret em uma campanha militar pela Líbia. Quando irromperam conflitos em torno da sucessão do trono, ele fugiu para o istmo sírio-palestino e descreveu essa terra da seguinte forma: “É uma terra bela, chamada Jaa (= “andarilhos da área”). Ali há figos, uvas e mais vinho do que água. Seu mel é abundante, e numerosos seus óleos, e todos (os tipos) de frutas (pendiam) das árvores. Nesta terra há cevada e trigo e inúmeros rebanhos de toda espécie”.32 Naquela época, o istmo sírio-palestino era dividido em uma região ao norte e outra ao sul. A fronteira geográfica entre as duas regiões era a planície de Jezreel. f. Terra ardente e sedenta (Dschahi): outro nome para a “terra dos estrangeiros” ao norte, usada desde o Império Novo (1540-1070 a.C.). g. Desde a Idade do Bronze Média (2000-1550 a.C.), os horeus (churu/chor) pertencem à camada dominante nas cidades-estado da região sírio-palestina.33 No Antigo Testamento, os horeus são a população original de Seir, a leste de Araba (deserto) (Gn 14.6). Foram expulsos de lá pelos edomitas (Dt 2.12,22). Já na segunda metade do terceiro milênio, os horeus fundaram os primeiros principados perto da nascente do rio Tigre. Na cultura suméria-acádia, os horeus desempenharam um papel importante como mediadores. Nas cartas de Amarna (por volta de 1350 a.C.), o príncipe de Jerusalém tem o nome horeu de “servo de Hebat”. Hebat era uma deusa dos horeus. 2. A terra ocidental (Amurru) e os amorreus Enquanto os egípcios tinham muitos nomes para o istmo sírio-palestino, na Mesopotâmia dominava o termo “Amurru”, que significa terra ocidental. Nos textos acádios, o nome Amurru começa a aparecer a partir da metade do terceiro milênio. Ele se refere à região sírio-palestina e aos seus grupos nômades. Estes ameaçavam o reino da Acádia a partir das bordas do deserto sírio-árabe. A partir de 2000 a.C., eles se tornaram dominantes nas cidades-estado acádio-sumérias, e fundaram o Primeiro Império Babilônico por volta de 1850 a.C. Sob Hamurabi (1792-1750 a.C.), o Império Babilônico estendia-se do Golfo Pérsico até o deserto da Síria. Em conjunto com moradores do litoral sírio-palestino, os amurru (ou amorreus) fundaram a cultura da cidade-estado na 31 32
a.a.O., pg. 214. “Das Leben des Sinuhe und seine Abenteuer in Palestina”“, in: Greßmann (ed.), Altorientalische Texte, pg. 57. 33 Noth, Aufsätze zur biblischen Landes- und Altertumskunde, vol. I, pg. 29.
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Palestina.34 No Antigo Testamento, os amorreus formam parte da população pré-israelita.35 Durante a conquista da terra, os amorreus viviam nas montanhas, os cananeus junto ao mar e nas planícies (Nm 13.29; Js 5.1; 10.6). “Em lugar algum fica claro que os amorreus sejam um grupo etnicamente definido e passível de ser associado a alguma região determinada”.36 O termo amorreu é meramente geográfico. Ele descreve um povo proveniente da terra dos “amurru”, o país ao norte do istmo sírio-palestino. Sempre que o Antigo Testamento menciona os amorreus, a lembrança que os israelitas têm deles é que eram muito altos. O rei de Basã era considerado um gigante (Dt 3.11), e Amós descreve um amorreu cuja altura era como a dos cedros, e que era forte como os carvalhos (Am 2.9). 3. Autodenominações da população do istmo sírio-palestino
f Jó 41.6; É preciso discernir entre dois grupos de nomes para o istmo sírio-pales- Pv 31.24; Is 23.8; tino: por um lado, temos os nomes que os grandes impérios davam à peEz 17.4; quena terra na intersecção de dois mares e três continentes; por outro, há Zc 14.21
os nomes que surgiram na própria pequena nação: as autodenominações g Gn 9.18s; Canaã, terra dos hebreus, Israel e Palestina. a. A terra de Canaã A comprovação mais antiga para o nome “cananeus” está em uma carta de Mari (1800-1750 a.C.). Os “assaltantes cananeus” mencionados ali provavelmente sejam mercenários assírios rebeldes. O termo geográfico “Canaã” aparece pela primeira vez na estátua do príncipe de Alalakh (1480 a.C.) e depois nas listas das pilhagens de Amenófis II (1427-1401 a.C.). Aqui os cananeus provavelmente eram integrantes de uma classe social elevada. Nas cartas de Amarna (por volta de 1350 a.C.), Canaã é uma província egípcia. Ela é administrada por um procurador sediado em Gaza e intitulado “diretor das terras estrangeiras”. O significado do termo “Canaã” é desconhecido. As diferentes ortografias usadas no entorno indicam que Canaã provavelmente fosse uma autodenominação dos próprios cananeus.37 Em textos posteriores do Antigo Testamento, cananeu significa comerciantef. Antes da conquista da terra pelos israelitas, os textos do Antigo Testamento chamam todos os grupos populacionais da Palestina de “cananeus”. De acordo com as genealogias da pré-História, Cam é tanto pai de Canaã quanto do Egito.g O Antigo Testamento apresenta os povos cananeus em listas de dozeh, setei, seisk, cincol, quatrom, trêsn e doiso, dependendo de seus diferentes elementos. Na época dos patriarcas, o relacionamento entre os povos cananeus e os antepassados de Israel era “pacífico, até mesmo muito amistoso”.38 Os cananeus organizavam-se em cidades-estado, normalmente não
10.6; 1Cr 1.8
h Gn 10.15-18; 1Cr 1.13-16 i Dt 7.1; Js 3.10; 24.11; At 13.19 k Gn 15.20s; Êx 3.8,17; 23.23; 33.2; 34.11; Dt 20.17; Js 9.1; 11.3; 12.8; Jz 3.5; Ne 9.8 l Êx 13.5; 1Rs 9.20; 2Cr 8.7 m Nm 13.29 n Êx 23.28; 2Sm 24.6,7; Ez 16.3
o Gn 13.7; 34.30; Dt 1.7; 34 Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 636s. Js 7.7-9; 35 Os amorreus são citados 22 vezes na lista dos 7 povos de Canaã, veja abaixo: 3 (1): “A terra de Jz 3.3; Canaã”, nota h)-o). Ez 16.45 36 Noth, Amoriter, col. 328. 37 38
Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 240s. Selms, A. v.; citado por Westermann, Genesis I/2, pg. 66.
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A terra dos patriarcas e seus moradores
muito extensas. Sua cultura era enriquecida por elementos egípcios, hititas, horeus e mesopotâmicos. Na segunda metade da Idade do Bronze Média (2000-1550 a.C.), as cidades-estado cananeias eram tão fortes, que os grupos cananeus assumiram o domínio do Baixo Egito, e durante algum tempo até mesmo do Alto Egito. É concebível que elementos populacionais cananeus sejam a base dos assim chamados hicsos.39 O nome egípcio “hicso” significa “dominador das terras estrangeiras”, sem dar qualquer indicação sobre sua origem. O termo hicso é usado no Egito desde a 12ª dinastia (1991-1785 a.C.) para designar “chefes asiáticos”. Não há qualquer informação sobre uma conquista violenta do Egito.40 A entrada dos hicsos no Egito possivelmente aconteceu de forma dissimulada. Por volta de 2000 a.C. já havia “escravos asiáticos” no Egito.41 Uma última onda migratória permitiu a tomada do poder no Egito em 1785-1540 a.C. Este período é chamado de Segundo Período Intermediário, o período das dinastias dos hicsos. Os nomes dos hicsos são em parte egípcios, em parte semitas e em parte compostos com nomes de deuses cananeus. Os principais governantes são Scheschi, Yakobher, Chian e Apopi.42 Os hicsos assumiram amplo controle da cultura egípcia. Eles mantinham laços estreitos com a Palestina. Sua capital era Aváris, perto de Tanis, na parte leste do delta. Durante a época dos hicsos, surgiram algumas inovações no Egito e na Palestina: a cimitarra, um novo tipo de sustentação para trincheiras e, principalmente, cavalos e carros, o que geraram uma nova casta de “aristocratas cavaleiros”.43 A guerra de libertação começou por volta 1550 a.C., e a capital dos hicsos, Aváris, foi tomada. Depois de três anos de sítio, caiu também o último bastião dos hicsos na Palestina, e Canaã passou para o controle dos egípcios. Na época de Amenófis IV (= Aquenáton; 1353-1336 a.C.), Canaã era província egípcia, como fica claro pelas cartas de Amarna. O domínio egípcio só foi quebrado por volta de 1200 a.C. Nessa época, o istmo sírio-palestino foi invadido por povos do mar pelo oeste, e por arameus, amonitas e as tribos de Israel pelo leste. Os povos do mar rapidamente se adaptaram à cultura cananeia. Nas tribos de Israel, o conflito foi severo: alguns elementos cananeus foram absorvidos, outros, rejeitados. Era uma luta constante entre as influências do entorno e os sagrados mandamentos dados pelo Deus das tribos de Israel, começando por “Eu sou o Senhor, teu Deus”. Israel adotou a escrita e a linguagem de Canaã (Is 19.18). Alguns conceitos e práticas religiosos, como as estátuas sagradas de bezerros e touros, foram inicialmente adotados, mas depois exterminados. O reinado cananeu foi rejeitado no primeiro momento, mas depois aceito. Os sacrifícios infantis e as divindades femininas nunca foram oficialmente aceitos.44 39 Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 659 e 662. 40 Hirmer/Otto, vol. I, pg. 202. 41 Posener; citado por Brunner, Hyksos, col. 498. 42 Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 659. 43 Brunner, Hyksos, col. 499. 44 Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 662 e 663.
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A terra dos patriarcas e seus moradores
b. A terra dos hebreus Os hebreus provavelmente são um grupo dos assim chamados habiru. Habiru é a autodenominação popular de um grupo étnico que viveu do fim do terceiro milênio até o fim do segundo milênio antes de Cristo. Eles povoavam a região que vai do sul da Mesopotâmia até o Egito. Dependendo de qual grande império produziu o respectivo relato, eles são chamados de habiru, chapiru, chabiru ou apiru. Em textos cuneiformes, o nome “habiru” aparece na Babilônia desde o terceiro milênio, e desde o segundo milênio na Ásia Menor, na Síria e na Palestina. De acordo com as fontes, os “habiru” eram hordas sedentas por guerra.45 Os “habiru” não são um grupo étnico fechado, pois não possuem nomes característicos. Eles aparecem como guerreiros, como trabalhadores ou como escravos. O único ponto em comum é que são estrangeiros. As migrações dos “habiru” e sua transição para o sedentarismo concentraram-se principalmente nas terras semitas, de forma que sua cultura também é preponderantemente semita. Sua presença na região sírio-palestina é comprovada principalmente pelas cartas de Amarna (por volta de 1350 a.C.). Na época de Aquenáton (1353-1336 a.C.), povos estrangeiros – os “habiru” – haviam invadido Canaã. As cartas falam de bandos nômades de “habiru” que conquistaram Siquém e as montanhas de Efraim.46 Do ponto de vista filológico, não há dúvidas sobre a identidade dos dois nomes “habiru” e “hebreus”.47 A designação “habiru”, “hebreus” caracteriza o “estrangeiro”: Abraão é um “hebreu” (Gn 14.13). José e Moisés são “hebreus” (Gn 39.14,17; Êx 1.15ss). Mais tarde, os israelitas foram chamados de “hebreus” em comparação com os filisteusp. Nas leis, os israelitas são chamados de “hebreus” para diferenciá-los de todos aqueles que viviam sem a lei de Deusq. Javé é chamado de “Deus dos hebreus”r, de forma que a frase “sou hebreu” passa a equivaler a um credo.s c. A terra de Israel A comprovação extrabíblica mais antiga do nome Israel é o nome pessoal que aparece em uma lista ugarita de guerreiros em carruagens (por volta de 1225 a.C.), além de aparecer como designação para um povo na assim chamada coluna israelita de Merenptah (1210 a.C.). Aqui o nome Israel designa um grupo de tribos que vivia no istmo sírio-palestino. A terceira menção a Israel fora dos textos do Antigo Testamento está na coluna do rei moabita Mesa (por volta de 850 a.C.).48 No período histórico mais antigo atualmente ao nosso alcance, Israel não é nome de um país nem de uma tribo, mas de uma aliança sagrada composta por várias tribos. Israel designa a “comunhão religiosa daqueles que adoram o único Deus verdadeiro”.49 Esse significado abrangente do nome Israel foi restringido na época da divisão dos reinos. Sob Roboão, sucessor de Salomão, as tribos israelitas do norte separaram-se em 932 a.C. das tribos Judá e Simeão, que 45 Alt, Hebräer, col. 105. 46 Lichtenstein, JL, IV/1, col. 672. 47 Kenyon, pg. 177s; Auerbach, pg. 50; Lichtenstein, JL, IV/1, col. 672. Sobre os “hebreus” que descendem de Sem via Héber, veja Bräumer, Gênesis I, Parte 1, o comentário sobre Gênesis 10.21. 48 Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 253. 49 Kuhn, vol. III, pg. 360.
p 1Sm 4.6-9; 13.3,19; 14.11,21; 29.3 q Êx 21.2; Dt 15.12; Jr 34.9,14 r Êx 3.18; 5.3; 7.16; 9.1 s Jn 1.9; 2Co 11.22; Fp 3.5
30
t 1Rs 12.21,23; 2Rs 19.30; Is 22.21 u Ed 2.1; Ne 7.6; 11.3 v Is 5.7; 8.18; Mq 2.12; 3.1,8s; 5.1s
A terra dos patriarcas e seus moradores
ficavam no sul. As tribos do norte formaram o reino de Israel, e as tribos do sul, o reino de Judá. A queda do reino do norte e o cativeiro assírio em 772 a.C. representaram uma ruptura no significado e no uso do nome Israel: “O nome Israel passa a ser usado pelo reino do sul, remanescente, tornando-se novamente designação do povo inteiro. Israel é uma autodenominação espiritual, hierarquicamente superior às designações políticas, como a Casa de Judát e mais tarde a província (LÜ: “paisagem”) de Judáu.50 Imediatamente depois da queda do reino do norte, os profetas passaram a chamar o reino do sul de Israelv. Israel não é designação política, mas o nome do povo de Deus. Israel é autodenominação do povo escolhido. Já a denominação “judeus”, derivada de “Judá”, é o nome usado pelo mundo não judeu para referir-se aos israelitas. “Israel” é “autodenominação religiosa”. Desde cedo, o nome “judeu” na boca de não judeus adquiriu uma conotação depreciativa e zombeteira.51 No Antigo Testamento, o nome Israel aparece 2.514 vezes. Israel é sempre primordialmente a comunidade religiosa do povo. Mas também pode referir-se à terra nas quais as tribos caminham e moram. A área habitada pelas tribos antes da escravidão no Egito provavelmente estava nas regiões montanhosas no centro da Palestina.52 Pelo fato de Israel ser sempre em primeiro lugar a autodenominação religiosa de todo o povo de Deus, esse nome não é adequado para designar o istmo sírio-palestino na época dos patriarcas. d. Palestina De acordo com as fontes atualmente disponíveis, a história inicial do nome Palestina começa no Egito. O nome em si deriva dos filisteus.53 Por volta de 1200 a.C., Ramsés III tinha dado a terra entre o delta e a Síria aos filisteus. O país dos filisteus tornou-se, mais tarde, a Palestina. Não é possível determinar com exatidão a partir de quando o nome Palestina começou a se impor. Heródoto (450 a.C.) chama os moradores do istmo sírio-palestino de palestinos. Os autores judeus não aceitam o nome Palestina. Filo de Alexandria (13 a.C. - 45/50 d.C.) escreve sobre a antiga Canaã, que, na sua época, era chamada de “Síria palestina”. Depois que Adriano (135 d.C.) reprimiu a revolta judaica, Palestina passa a ser o nome oficial da antiga província da Judeia. Jerusalém passa a chamar-se Aelia Capitolina, e o país, Síria Palestina. Com este nome, os judeus deveriam perder até o último resquício de alguma posição especial.54 “Palestina” é um termo político. Até 1948 d.C. Israel designava todo o povo eleito de Deus. Depois da fundação do Estado de Israel, o nome 50 51 52 53 54
von Rad, Israel, vol. III, pg. 358. Cf. Kuhn, vol. III, pg. 368. Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 255. Sobre os filisteus, veja acima, 1. Nomes egípcios (3) Moradores da areia. Sobre o surgimento do nome Síria Palestina, cf. Noth, sobre a história do nome Palestina, in: Aufsätze zur biblischen Landes- und Altertumskunde, vol. I, pg. 300. Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 277-280.
A terra entre as grandes potências
também passou a ser altamente político. É por isso que, atualmente, se dá tanto destaque à designação “Terra Santa”, pois é a que carrega o menor índice de explosividade política. Os escritos judeus só começam a falar da Terra Santa a partir do século 2 a.C. O livro de Sabedoria de Salomão designa como Terra Santa toda a área que Javé destinou a Israel (Sabedoria 12.3). O presente comentário dá preferência à expressão istmo sírio-palestino. A intenção é definir – meramente do ponto de vista geográfico – a área em que todos os povos da região moravam. A terra prometida a Abraão e seus descendentes fica no istmo sírio-palestino. É ali que se desenrola a história de Deus, de Moriá até o Gólgota. É ali que um dia também será decidido o destino deste mundo. III. A TERRA ENTRE AS GRANDES POTÊNCIAS O istmo sírio-palestino é a área entre as grandes potências Mesopotâmia e Egito. No período de 1600 a 1200 a.C., houve também uma terceira potência, o império hitita.55 1. Mesopotâmia No terceiro milênio a.C., o conquistador sumério Lugalzagesi (por volta de 2650 a.C.) estendeu seus domínios até o mar Mediterrâneo. Desde 2500 a.C. havia relações comerciais entre a Mesopotâmia e a região palestina. O rei Gudea, de Lagash, comprava cedros no Líbano.56 Sargão I (2334-2279 a.C.) – que pertencia aos imigrantes de fala semita – conquistou primeiro o sul da Mesopotâmia e estabeleceu o chamado reino da Acádia, que ia do Golfo Pérsico até o mar Mediterrâneo.57 Na Palestina, a escrita e a língua babilônicas se impuseram como língua culta, assim como as tábuas de barro para escrita e as medidas e pesos da Babilônia.58 Hamurabi (1792-1750 a.C.) fundou seu reino no período do Primeiro Império Babilônico (1850-1594 a.C.). O Código de Hamurabi passou a ter grande influência também no istmo sírio-palestino. De forma geral, a cultura babilônica impôs-se na língua, na religião, no sistema numérico e no sistema de pesos naquela região. A luta de Abraão com os “reis” Anrafel, Arioque, Quedorlaomer e Tidal aconteceu na época de Hamurabi.59 2. Egito Em praticamente todas as épocas de sua história, o Egito buscou dominar o istmo sírio-palestino. Talvez até mesmo o derrotado que o faraó Narmer (por volta de 3000 a.C.) agarrou pela cabeça já fosse morador dessa região.60 As primeiras conquistas registradas por escrito aconteceram no 55 56 57 58 59 60
Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 657. Auerbach, pg. 46. Schippmann, pg. 14s. Lichtenstein, JL, IV/1, col. 671. Auerbach, pg. 46; veja o comentário sobre Gênesis 14. Cf. o quadro de vitórias de Narmer; cf. Lambelet, pg. 244-247.
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A terra entre as grandes potências
Império Antigo (2640-2155 a.C.). O faraó Pepi I tinha sido tirado de uma posição inferior e recebera cargos importantes. Ele recebeu a tarefa de rechaçar os beduínos que invadiam o país pelo nordeste. Em cinco campanhas, Pepi I arrasou a terra síria-palestina. O conflito foi encerrado pela marinha egípcia, que atracou junto ao “Nariz da Gazela” (possivelmente uma saliência do Carmelo).61 Um funcionário da época de Pepi conta em seu epitáfio que ele realizou onze viagens para Biblos. Desde a 4ª dinastia havia comércio entre o Egito e a região sírio-palestina. O faraó Seneferu (2575-2551 a.C.) importava cedros do Líbano, que vinham de navio. Da época do Império Médio (2040-1785 a.C.), ficou conhecida a campanha empreendida por Senuseret III (1878-1841 a.C.). Uma coluna edificada em Abidos, diante de Sebek-Chu, fala da derrota de Siquém e de Betel.62 Depois do Segundo Período Intermediário (1785-1540 a.C.), quando os hicsos dominaram o Egito (a partir de 1750-1550 a.C.), vem um período de 300 anos de domínio do Egito sobre a área síria-palestina. Ele começa com as campanhas de Tutmés I (1494-1482 a.C.) e atinge seu auge sob Tutmés III (1479-1425 a.C.). Da época do governo de Tutmés III são conhecidas 17 campanhas na Ásia. Tutmés III mandou eternizar suas campanhas no templo do deus imperial Amon, em Karnak, no assim chamado “Salão dos Anais”. A primeira campanha, com a conquista de Megido, é descrita de forma detalhada.63 Ao todo, são mencionadas 119 cidades que Tutmés conquistou na região síria-palestina. Na época dos sucessores de Tutmés III, a autoridade dos egípcios sobre o istmo sírio-palestino diminuiu. Ainda assim, os moradores daquela região eram súditos do faraó, como mostram as cartas de Amarna.64 As cartas de Amarna foram encontradas em Tell el-Amarna – no palácio de Aquenáton (1353-1336 a.C.). As inscrições em acádio nas tábuas de barro formam um retrato vivo das confusões vigentes na área sírio-palestina. Entre os remetentes das cartas também está o dominador de Jerusalém. Naquela época, a cidade chamava-se Urusalim. Alguns príncipes acusavam-se mutuamente de infidelidade para com o Egito, outros pediam ajuda contra rebeldes e invasores. Uma das cartas diz: “Que faraó mande tropas para conservar o domínio sobre o território real, mas se as tropas não vierem, as terras serão tomadas pelos apiru”.65 Sob Seti I (1293-1279 a.C.) e Ramsés II (1279-1213 a.C.), o domínio egípcio na região sírio-palestina fortaleceu-se novamente. Seti I recompôs o controle sobre esta região depois da época de Amarna. As inscrições em duas colunas, encontradas em Bete-Seã, celebram-no como o conquistador da fortaleza da Síria e o aniquilador dos “apiru nas montanhas do Jordão”.66 61 Lichtenstein, JL, IV/1, col. 670. 62 Auerbach, pg. 48. 63 Hirmer/Otto, vol. I, pg. 231. 64 Auerbach, pg. 49. 65 Brunner, Amarna, col. 304. 66 Kenyon, pg. 211; Greßmann (ed.), Altorientalische Texte, pg. 94s.
A época dos patriarcas
Durante dois milênios, o istmo sírio-palestino era a “entrada do Egito”. A escrita usada continuava a ser a babilônica, mas a cultura egípcia impunha-se mais e mais. Durante séculos havia uma guarnição egípcia lotada em Bete-Seã. Os faraós Tutmés III, Amenófis III, Seti I e Ramsés II edificaram prédios aqui.67 3. O reino dos hititas Perto do fim do terceiro milênio a.C., uma tribo indo-germânica invadiu o nordeste da Anatólia (= a atual Ásia Menor), provavelmente pelo Cáucaso. Por volta de 1600 a.C., esses imigrantes, já misturados com a população original do lugar, estabeleceram um reino, cuja capital era Hattusa. O chamado Império Antigo dos hititas durou até cerca de 1500 a.C. Os hititas possuíam armas de ferro e usavam carros de combate puxados por cavalos. Com a conquista da Síria, começou, então, o chamado Império Hitita (1420-1200 a.C.).68 Depois da queda de Hattusa, os estados vassalos dos hititas se desfizeram. No norte da Síria, restaram as cidades-estado hititas Carquemis, Alepo e Hamate (= Novo Império Hitita). Com a inclusão dos últimos estados hititas no sistema de províncias da Assíria, passou a ser usado o nome hatti (hititas) para toda a área do Eufrates até a fronteira egípcia. A designação “hititas” deixou de ter conotação étnica.69 “No que diz respeito à história dos patriarcas, é impossível tirar alguma conclusão sobre a relação entre o termo “hititas”, que aparece nela, com o antigo reino hitita e as novas cidades-estado na Síria”.70 Os hititas mencionados na história dos patriarcas são um pequeno grupo étnico na região sírio-palestina. O povo hitita está entre os sete povos da terra de Canaã (Dt 7.1; Js 3.10; 24.11). Possivelmente moravam na região de Hebrom. Os moradores de Hebrom são chamados de hititas (ou heteus) (Gn 49.29ss), mas também de amorreus (Gn 14.13) ou cananeus (Jz 1.10). Abraão comprou a caverna de Macpela dos filhos de Hete, para ali enterrar Sara (Gn 23.3-20; 25.10; 49.32). Esaú escolheu esposas hititas na região de Berseba (Gn 26.34; 27.46; 36.2), que também são chamadas de cananeias (Gn 28.1ss; 36.2). IV. A ÉPOCA DOS PATRIARCAS O ponto de orientação para datar a época da vida dos patriarcas são duas grandes ondas migratórias: a protoarameia (séc. 19/18 a.C.) e a arameia (séc 14/13 a.C.). A decisão por uma ou outra onda migratória, dentro da qual se situa também a caminhada de Abraão de Harã até Canaã, leva a diferentes datações para a época da vida dos patriarcas. A “datação posterior” parte do princípio de que a permanência de algumas tribos israelitas no Egito não durou mais de 400 anos, mas apenas algumas décadas. A entrada em Canaã seria, então, uma vida nômade “em busca de melhores pastagens”, coincidindo com “a primeira fase da tomada da terra das tribos israelitas”.71 67 Auerbach, pg. 51. 68 Keel/Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 657. 69 Auerbach, pg. 51 e 52. 70 Westermann, Genesis I/2, pg. 67. 71 Kilian, pg. 12.
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Mar Morto
Damasco
DESERTO SÍRIO-ÁRABE
Mari
Lago Van
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Eu f
Kalache
ASSÍRIA Nuzu
Assur
Nínive
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Lago Úrmia
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Umma Uruk Larsa
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Babilônia
BABILÔNIA
re
SINAI
Tell Brak Tell Halaf
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Milid
Lago Sevan
URARTU
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EGITO
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Biblos Beirute Sidon
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KIZZUWATNA
MAR MEDITERRÂNEO
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MAR NEGRO
GOLFO PÉRSICO
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Horst Kiengel: Geschichte und Kultur Altsyriens. Leipzig: Koehler & Amelang (VOB) 1979. Reprodução autorizada.
Nilo
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34 A época dos patriarcas
A época dos patriarcas
A “datação anterior”, que situa a saída de Abraão de Harã em direção a Canaã na época da migração protoarameia, desloca a vida do patriarca para a Idade do Bronze Média (aprox. 2000-1550 a.C.).72 Situar a época dos patriarcas na Idade do Bronze Média é favorecida pelas indicações cronológicas da Bíblia e também pelo fato de que permite uma associação conclusiva e harmoniosa entre a época de vida dos patriarcas e a história dos grandes impérios na Mesopotâmia e no Egito. Os textos bíblicos dizem que os israelitas ficaram 400 anos no Egito (Gn 15.13), e também há um registro indicando que a permanência total dos filhos de Israel no Egito foi de 430 anos (Êx 12.40). Os dois registros do Antigo Testamento falam de um período de vários séculos. É concebível que a duração da vida de Israel no Egito tenha sido calculada pelo sistema babilônico. Na Babilônia, um período de tempo de 60 anos é chamado de “šuš”. Um período infinitamente longo equivalia a 6 x 60 = 360 anos. Se a intenção fosse indicar um período de tempo ainda mais longo, em geral acrescentava-se um número composto por 7. 430 anos equivalem a 360 + 70 anos. Ou seja: o tempo da escravidão foi extremamente longo.73 De acordo com o conceito babilônico e palestino a respeito de números e tempo, a escravidão durou cerca de 400 anos. Antes disso, os patriarcas tinham vivido como nômades no istmo sírio-palestino durante cerca de 200 anos.74 Portanto, o período dos patriarcas e da formação do povo de Israel abrangeu seiscentos anos. Comparando isso com a história da Mesopotâmia e do Antigo Egito, resultam as seguintes indicações cronológicas: 2000: Os antepassados de Abraão vivem em Ur da Caldeia. A era da 3ª dinastia de Ur (2100-2000 a.C.) era caracterizada por um estado de governo rígido e centralizado. O governante Ur-Nammu era conhecido por suas construções. Ele construiu vários zigurates em Ur, Eridu e Uruk (templos em vários níveis). Depois da morte de Ur-Nammu, o reino se esfacelou. Começou então um período de “cidades-estado”.75 Algumas cidades-estado revezaram-se na tentativa de impor sua liderança: Isin, Larsa, Eshnunna, Assur, Mari e Babilônia. 1859: Tera muda-se com seu clã de Ur para Harã. 1800: Abraão e Ló mudam-se para Canaã. Abraão deixa a região da Mesopotâmia antes de Hamurabi (17921750 a.C.) estabelecer seu império. O império de Hamurabi, com sede na Babilônia, ia do Golfo Pérsico até o deserto sírio.
72 73 74 75
A datação anterior é discutida e fundamentada em profundidade por de Vaux, pg. 36. Também Bardtke defende a datação anterior; Bardtke, pg. 161. Sobre a contagem de tempo dos babilônios e antigos palestinos, cf. Cassuto, Exodus, pg. 86. Os 200 anos resultam do tempo de vida dos patriarcas conforme registrados em Gênesis; cf. König, Genesis, pg. 451. Schippmann, pg. 16.
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A época dos patriarcas
1800 - 1600: Abraão, Isaque e Jacó vivem como nômades ou seminômades na região sírio-palestina. Por volta de 1800, Abraão muda-se de Siquém para o Egito, passando por Betel e o Neguebe, e de volta para Betel. Hebrom torna-se o lar de Abraão. 1600: José é vendido para o Egito e lá se torna grão-vizir de um faraó. A ascensão de José coincide com a época dos hicsos (a partir de 17501550 a.C.). Os hicsos chegaram ao Egito vindo do norte pelo istmo sírio-palestino. A maioria dos nomes mencionados nos escarabeus hicsos é semita76. O parentesco semita dos hicsos77 possibilitou a ascensão de José. José destinou a terra de Gósen aos clãs dos doze filhos de Jacó. 1350: O faraó Amenófis IV (= Aquenáton, 1353-1336 a.C.) incentivou o monoteísmo, por meio da adoração ao rei sol Aton. Ele morava em Aquematon (Tell el-Amarna, no Médio Egito). Durante seu governo, os descendentes de Jacó tinham grande liberdade. O procurador que Aquenáton instituiu na Síria e Palestina era de origem semita, como fica claro pelo seu nome Jahaman.78 1300 - 1200: O período da escravidão. Os quase cem anos da 19ª dinastia (1295-1188 a.C.) foi uma época de muitas construções. Principalmente Seti I (1293-1279 a.C.) e Ramsés II (1279-1213 a.C.) eternizaram-se por meio de edifícios monumentais. O túmulo do faraó Seti I no Vale dos Reis, em Tebas, tem 100 metros de comprimento. O templo em Abidos, com seus salões de colunas e pilares foi construído por Seti I. Em um registro escrito dedicado à consagração do templo de seu pai, Seti I, em Abidos, o faraó Ramsés II fala sobre seus planos de reconstruir vários templos e terminar vários outros que seu pai tinha começado.79 Assim, o templo do deus imperial Amon, em Karnak, cujo começo remonta à 11ª dinastia, e o templo de Amon, Mut e Khonsu em Luxor exibem partes construídas por Seti I e Ramsés II. O templo mortuário de Ramsés II é o assim chamado Ramesseum, em Tebas. Ramsés II ficou famoso pela construção do templo em Abu Simbel, escavado na rocha, e pelas numerosas e colossais estátuas, das quais a mais conhecida, no templo de Ptah, em Mênfis, tem mais de 13 metros de altura.80 A escravidão dos israelitas mencionada em Êxodo incluía o trabalho no campo e também o preparo de tijolos e telhas de barro, usados na construção das cidades-celeiro de Pitom e Ramessés (Êx 1.11,14). Pitom significa “a casa do deus Aton” (ou Atum), a atual Tell er-Retaba, no delta do Nilo. Ramessés é a atual 76 77 78 79 80
Kenyon, pg. 177. Junto com os hicsos, “o Egito, antes tão fechado, foi inundado por uma corrente de influências semitas”, e isso em todas as áreas, até mesmo no idioma e na escrita; cf. Auerbach, pg. 49. Na história egípcia, é comum que funcionários semitas alcançassem altas posições na corte do faraó; cf. Auerbach, pg. 66. Beyerlin (ed.), pg. 55. Hirmer/Otto, vol. II, pg. 409-442.
A época dos patriarcas
Tanis, a cidade que Ramsés II tinha escolhido como sua capital. Tanto Pitom quanto Tanis foram reconstruídas sob Ramsés II.81 No 34º ano de seu reinado, Ramsés II casou-se com a hitita Nefertari, filha de Hatusil III. A posição dessa hitita era mais destacada do que a das demais “grandes esposas reais” no Egito. Nefertari detinha posição igual a Ramsés II!82 Nefertari adotou o bebê Moisés, que uma das filhas de faraó tinha encontrado no Nilo, na corte do faraó, para que fosse educado ali. Moisés cresceu como meio-irmão de Merenptah. 1203: Saída do Egito. O ano de 1203 a.C. é o ano da morte do faraó Merenptah (12131203 a.C.). De acordo com as fontes egípcias, as circunstâncias da morte de Merenptah são desconhecidas. Egiptólogos supõem que ele tenha sido assassinado ou destronado.83 De acordo com o relato bíblico, a misteriosa morte de Merenptah ocorreu quando ele afundou no Mar Vemelho.84
81 Cassuto, Exodus, pg. 11. 82 Hirmer/Otto, vol. II, pg. 367. 83 a.a.O., pg. 443. 84 Cf. o quadro cronológico, pg. 41-44. Os números dos anos correspondem às indicações de Keel/ Küchler/Uehlinger, vol. 1, pg. 466-511.
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Quadro cronológico
QUADRO CRONOLÓGICO
Períodos Idade da Pedra 2.000.000 – 4500 a.C.
Mesopotâmia 50.000 a.C. Primeiros traços de caçadores e coletadores em Zagros. 9.000 a.C. Cultivo; domesticação de animais; comércio; primeiras indicações de sedentarismo!
Idade do Cobre 4500 – 3150 a.C. (Calcolítico) 3300 – 2900 a.C. Pré-história Primeira alta cultura na Suméria; um dos centros é Uruk.
Palestina Egito 50.000 a. C. homo galilaeus Local da descoberta: caverna próxima ao lago de Genezaré Cavernas em Wadi elMughara, no Carmelo. Traços de povoamentos do período paleolítico e neolítico em Gezér, Megido, Ta’anach, BeteSeã, Jerusalém, Betel, Quiriate-Sefer e Beit Shemesh. 7000 a.C. Jericó Primeiros indícios de vida sedentária. A grande torre de Jericó.
Idade do 3000 a.C. DesenvolBronze 3150 – vimento da escrita e 1200 a.C. invasão dos povos de fala semita. Idade do Bronze Inicial (BI) 3150 – 2200 a.C.
2900 – 2340 a.C. Época pré-dinástica = época das cidades-estado Uruk (Gilgamesh). Ur Lagash Umma
2950 – 2640 a.C. Época Tinita 1ª/2ª dinastia Quadro de vitórias do faraó Narmer. O derrotado que o faraó agarra pela cabeça talvez seja um semita.
2650 a.C. O conquistador sumério Lugal-Zage-Si estende seu domínio até o mar Mediterrâneo. 2640 – 2155 a.C. Império Antigo
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Quadro cronológico
Períodos Idade do Bronze Inicial (BI) 3150 – 2200 a.C.
Mesopotâmia 2350 a.C. Mais antiga reforma social conhecida.
Idade do Bronze Média (BM) BM I 2200 – 2000 a.C.
2340 – 2198 a.C. Período acádio. Sargão da Acádia, um imigrante de fala semita, une toda a Mesopotâmia em um único império.
Palestina 2575-2551 a.C. Faraó Seneferu (4ª dinastia) enviou navios, para buscar cedros no Líbano.
Egito 2575 – 2465 a.C. 4ª dinastia Seneferu (25752551 a.C.) Quéops, Khaf-Re, Menkauré, Pirâmides de Gizé 2465 – 2155 a.C. ~ 2400 a.C. 5ª/6ª dinastia Primeira menção às Pepi I cidades Tel Hazor, Me- (2300 – 2268 a.C.) gido, Laquis, Gaza e Jerusalém (Urusalim), Cinco campanhas conTábuas de barro dos tra beduínos asiáticos arquivos de Ebla. em território palesPrimeira conquista tino. pelo Egito.
Sargão I invade a Palestina e chega até Chipre. O babilônico torna-se o idioma culto.
2200 a.C. Queda do impédio devido à derrota para um povo das montanhas de Zagros. 2144-2124 a.C. O rei Gudea, de La2160 – 2000 a.C. gash, compra cedros Período de Gudea, de do Líbano. Lagash, e do Ur-nammu de Ur (= 3ª dinas- Domínio egípcio sotia de Ur, 2100 – 2000 bre a maior parte da a.C.). Palestina.
Registro nominal de Siquém e Betel
2134 – 2040 a.C. 1º Período Intermediário. 2040 – 1785 a.C. Império Médio.
Senuseret III (1878 – 1841 a.C.) Campanha na Ásia – o epitáfio de Sebek-Chu em Abidos menciona os nomes Siquém e Betel.
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Períodos Idade do Bronze Média (BM) BM II 2000 – 1550 a.C.
Quadro cronológico
Mesopotâmia Palestina ~ 2000 a.C. Fim do império de Ur pela ascensão das cidades-estado! Antepassados de Abraão em Ur!
Egito
2017 – 1783 a.C. Época de Isin e Larsa. Época das cidades-estado. Ida de Tera para Harã. As seguintes cidades-estado tentaram impor seu domínio nos séculos seguintes: Isin, Larsa, Eshnunna, Assur, Mari, Babilônia. Ida de Abraão para Canaã.
1800 a.C. Abraão chega em Canaã. Siquém – Betel – Ai –Neguebe. Ida para o Egito e retorno para Canaã. Abraão no Egito
1850 – 1594 a.C. Primeiro Império Babilônico. A Babilônia se impõe por meio de Hamurabi (1792 – 1750 a.C.). Sob Hamurabi, a Mesopotâmia volta a ser um único império, do Golfo Pérsico ao deserto sírio.
Abraão luta contra os reis da região de Hamurabi. Amorreus. Influência da cultura de Hamurabi. Código de Hamurabi/ língua/religião/números/pesos. 200 anos de existência dos patriarcas em Canaã.
1750 – 1500 a.C. Novos povos surgem na região mesopotâmica (mitanni, chuvritas) e destroem tudo o que sumérios e semitas produziram ao longo de um século.
1600 a.C. José é vendido para o Egito. Jacó e seus filhos no Egito.
1785 – 1540 a.C. Segundo Período Intermediário Dinastias hicsos (a partir de 1750 – 1550 a.C.). hicsos = “dominadores dos estrangeiros”.
Ascensão de José! 1600-1200 a.C. Os “filhos de Jacó” no Egito, formação do povo de Israel.
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Quadro cronológico
Períodos Idade do Bronze Final (BF) 1550 – 1200 a.C.
Mesopotâmia 1600 – 1150 a.C. 1ª dinastia da Babilônia Cassitas 1594 a.C. Hititas conquistam a Babilônia, retraem-se; cassitas retomam o domínio.
Palestina
2000 – 1100 a.C. Ascensão da Assíria ao lado da Babilônia. 1350 a.C. A Assíria assume o domínio. 1234 a.C. Tukulti-Ninurta I, o assírio, conquista a Babilônia.
Os habiru
Os habiru = hebreus Abdi-Heba rei de Jerusalém Tutancâmon (1334/33 – 1327 a.C.) 1295 – 1070 a.C. 19ª/20ª dinastia A tolerância desaparece quando os antigos deuses são reintroduzidos. Colunas de Seti I (1293 – 1279 a.C.) e Ramsés II (1279 – 1213 a.C.)
a partir de 1200 a.C. Domínio dos filisteus ao longo da costa sírio-palestina. As cidades-estado Gaza, Ascalom, Asdode, Ecrom e Gade Jerusalém ficaram nas mãos da população cananeia original. 1203 a.C. Saída sob liderança de Moisés – 40 anos no Sinai. 1160 a.C. Josué invade a Palestina.
Escravos hebreus constroem Pitom e Ramessés, a residência de Ramsés. Merenptah (1213 – 1203 a.C.) Campanha na palestina, conquista do domínio, coluna de Merenptah. O nome Israel aparece pela primeira vez! Morte desconhecida de Merenptah! Assassinato (Hirmer) – Mar Vermelho (Êx).
300 anos de domínio do Egito sobre a Palestina. Tutmés III conquista Megido e outras 118 cidades na região palestina.
2000 – 1200 a.C. Império hitita com a capital Hattusa (por volta de 1600).
Idade do Ferro 1200 – 586 a.C.
Império hitita destruído pelos filisteus. Os filisteus invadem a área palestina, junto com os povos marítimos. Estes chegaram dos Bálcãs ou do mar Egeu, por via marítima, via Creta (= Caftor) ou então por terra, via Ásia Menor, aniquilando o império hitita.
Egito 1540-1070 a.C. Novo Império Campanha de Tutmés I (1494 – 1482 a.C.) e principalmente as 17 campanhas de Tutmés III (1479-1425 a.C.). Amenófis IV (= Aquenáton) (1353 – 1336 a.C.). Tell el-Amarna, 1350 ~ 1350 cartas de Amarna.
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Gênesis 25.1-6
B. ABRAÃO E ISAQUE I. OS ÚLTIMOS DIAS DE VIDA DE ABRAÃO 1. Abraão e Quetura: 25.1-6 1 Desposou Abraão outra mulher; chamava-se Quetura. 2 Ela lhe deu à luz a Zinrã, Jocsã, Medã, Midiã, Isbaque e Suá. 3 Jocsã gerou a Seba e a Dedã; os filhos de Dedã foram: Assurim, Letusim e Leumim. 4 Os filhos de Midiã foram: Efá, Efer, Enoque, Abida e Elda. Todos estes foram filhos de Quetura. 5 Abraão deu tudo o que possuía a Isaque. 6 Porém, aos filhos das concubinas que tinha, deu ele presentes e, ainda em vida, os separou de seu filho Isaque, enviando-os para a terra oriental. Abraão – dez anos mais velho que Sara (Gn 17.17) – ainda viveu mais quase quarenta anos depois da morte dela (Gn 23.1; 25.7). Nesta época, ele casou-se com Quetura. Quetura é chamada de mulher (hebraico: ‘isha) de Abraão, como já tinha acontecido com Agar (Gn 16.3). Ainda assim, nem Agar nem Quetura ocuparam a mesma posição que Sara. Ainda que, de acordo com o relato bíblico, o casamento com Quetura tenha sido um novo casamento depois da morte de Sara, tanto Agar quanto Quetura são chamadas de “concubinas” (hebraico: pilagshim) de Abraão (v. 6).85 Ao listar os descendentes de Quetura, o livro de Crônicas a chama de “concubina de Abraão” (1Cr 1.32). Abraão teve seis filhos com Quetura. Além disso, são mencionados sete netos (dois filhos de Jocsã e cinco filhos de Midiã), além de três tribos descendentes de um dos netos de Abraão (Dedã). Resulta assim a seguinte árvore genealógica dos filhos de Abraão com Quetura: Abraão Quetura
Jocsã
Zinrã
Medã
Midiã
Isbaque
Suá
Seba Dedã Efá Efer Enoque Abida Elda l Gn 37.28, 36; Êx 2.15s; Nm 22.7; 25.6-18; 31.1-12; Assurim Letusim Leumim Jz 6.33; 7.1-8.3; Dos nomes dos seis filhos, quatro (Zinrã, Jocsã, Medã e Isbaque) são Sl 83.9; desconhecidos, ou seja, esta é a única ocorrência destes nomes no Antigo Is 9.4; 10.26 85
Delitzsch, pg. 246.
Gênesis 25.7-11
Testamento.86 Midiã aparece com frequêncial como nome de uma tribo. Os seis filhos de Midiã são os líderes de tribos nômades na península do Sinai (cf. 1Rs 11.18; Hc 3.6s).87 Suá aparece mais uma vez no Antigo Testamento, como nome de um lugar. Um dos amigos de Jó, Bildade, vem de Suá (Jó 2.11). Deve-se imaginar uma região nas proximidades da terra de Uz, nas estepes de Edom e Midiã.88 Seba (=Saba), o neto de Abraão, provavelmente deu origem ao povo comerciante dos sabeusk. Os sabeus moravam no sul da Arábia, em uma k Jó 6.19; região conhecida por seu ouro e pedras preciosas, mas também pelos Ez 27.22s; Jl 3.8 perfumes e especiarias.89 Os três grupos tribais descendentes dos filhos de Dedã (Assurim, Letusim e Leumim) só aparecem aqui no Antigo Testamento e são desconhecidos. É possível que sejam tribos árabes. Os assurins não têm qualquer relação com os assírios.90 A região na qual as tribos descendentes dos filhos de Quetura moravam era o deserto sírio-árabe, a leste do Jordão.91 Também o nome Quetura aponta para esta região, além da orientação de Abraão para que fossem morar ali (v. 6). O nome Quetura deriva da mesma raiz que a palavra “incenso” (hebraico: ketoret). Quetura é a mãe dos povos árabes.92 A terra oriental é a 6 Arábia no seu sentido mais amplo.93 Abraão tinha instituído Isaque como seu herdeiro universal ainda antes de morrer, além de também já lhe transferir a posse sobre todas as propriedades (Gn 24.36). Os filhos de suas duas “concubinas” (v.6) foram indenizados com presentes. Essa decisão de Abraão ia contra o que estava previsto no Código de Hamurabi (1792-1750 a.C.). De acordo com esta lei, todos os filhos, de todas as mulheres de um homem, tinham direitos iguais à herança. “Quando um homem toma uma mulher e esta lhe dá filhos, quando esta mulher morre e ele toma uma segunda mulher, que também lhe dá filhos, quando este pai morre... todas as propriedades devem ser distribuídas igualmente entre eles”.94 Abraão considerava Isaque como seu único filho legítimo. Ele não tratava como herdeiros os filhos das “concubinas”, assim como os de Quetura. Ele lhes deu presentes, ou seja, indenizou-os antes de morrer. 2. A morte e o enterro de Abraão: 25.7-11 7 Foram os dias da vida de Abraão cento e setenta e cinco anos. 8 Expirou Abraão; morreu em ditosa velhice, avançado em anos; e foi reunido ao seu povo. 9 Sepultaram-no Isaque e Ismael, seus filhos, na caverna de Macpela, no campo de Efrom, filho de Zoar, o heteu, fronteiro a Manre, 86 87 88 89 90 91 92 93 94
Westermann, Genesis I/2, pg. 484. Odelain/Seguineau, pg. 224. Westermann, Genesis I/2, pg. 484. Odelain/Seguineau, Saba, pg. 229; Dedã, pg. 80. Sobre a descendência de Saba e Dedã a partir de Cam, via Cuxe, cf. Gênesis 10.7; Bräumer, 1ª parte, pg. 169. von Rad, Mose, pg. 224 Westermann, Genesis I/2, pg. 484. Odelain/Seguineau, pg. 211. Delitzsch, pg. 348. Citado por König, Genesis, pg. 571, nota 4.
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Gênesis 25.7-11
10 o campo que Abraão comprara aos filhos de Hete. Ali foi sepultado Abraão e Sara, sua mulher. 11 Depois da morte de Abraão, Deus abençoou a Isaque, seu filho; Isaque habitava junto a Beer-Laai-Roi [ou: “poço daquele que vive e olha por mim].
8
l Rm 6.23
Ao sair de Harã, Abraão tinha setenta e cinco anos (Gn 12.4). Morreu depois de viver durante cem anos como seminômade na terra de Canaã, na idade de cento e setenta e cinco anos. Em ditosa velhice (hebraico: saken) e avançado em dias (hebraico: sabea’) significa tudo, menos alquebrado e cansado da vida.95 Ancião (hebraico: saken) não é aquele que tem idade avançada, mas é “marcado pelas experiências”.96 “Avançado em dias” não é uma fase da vida em que “o corpo está cansado, os olhos baços, as mãos tremendo e os membros inseguros”;97 antes significa “maduro e realizado”.98 “Satisfeito” é o contrário de “esfomeado”. O satisfeito não tem mais fome.99 O satisfeito está “em paz”.100 Ele pôde aproveitar tudo,101 “desfrutou plenamente o que Deus colocou em sua vida”,102 teve uma “vida completa”.103 Abraão expirou depois de completar sua vida, plena e marcada pelas experiências, em ditosa velhice, e foi reunido ao seu povo. A morte de Abraão é descrita com três palavras diferentes: ele expirou (hebraico: gawa’), ele morreu (hebraico: mut), e ele foi reunido (hebraico: ‘asaph). A palavra traduzida aqui por “expirar” significa literalmente “perecer”, e refere-se primordialmente à “morte violenta”.104 A vida humana é limitada, algum dia será interrompida.105 A morte que encerra a vida é “antinatural”, “uma catástrofe na criação de Deus”.106 A palavra genérica para morrer (hebraico: mut) é usada no Antigo Testamento quase que exclusivamente para o ser humano.107 O ser humano está destinado a morrer. Cada indivíduo vivo caminha em direção à sua morte. A morte é uma consequência do distanciamento entre o ser humano e Deus (Gn 3.3)l. Cada pessoa precisa passar sozinha pela morte. Ninguém pode eximir outra pessoa de morrer. Na morte, cada ser humano é único, individual e insubstituível. A morte rompe todas as ligações com os vivos. Ao mesmo tempo, morrer é ser reunido com os que vieram antes. Depois de morrer, Abraão está entre os falecidos. Deus havia prometido a Abraão: Tu irás para os teus pais em paz (Gn 15.15). Isso aconteceu 95 96 97 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107
Ao contrário de Lutero, Ersten Moses, vol. II, pg. 206. Veja o comentário sobre Gênesis 24.1. Ao contrário de Calvino, pg. 261. Hirsch, Genesis, pg. 390. Gerlemann, saba‘, satisfazer, col. 819 e 820. König, Genesis, pg. 572. Procksch, pg. 532. von Rad, Mose, pg. 225. Westermann, Genesis I/2, pg. 486. Gerlemann, mut, morrer, col. 894. von Rad, Mose, pg. 225. Thielicke, Tod, pg. 106. Mut aparece cerca de mil vezes no Antigo Testamento, mas somente em vinte ocasiões se refere à morte de animais ou de plantas; normalmente, está relacionada à morte de um ser humano. Gerlemann, mut, sterben, col. 894.
Gênesis 25.12-18
na sua morte. Ir aos seus pais em paz ou ser reunido com seu povo “não é somente uma reunião dos corpos, mas das pessoas”.108 A reunião com os pais é a entrada na imortalidade.109 Ao morrer, o ser humano vai “até os seus... para o seu lar original”.110 No Antigo Testamento, a expressão “ser reunido ao seu povo ou aos seus pais” é usada apenas para mortes pacíficas.111 O ensino judaico sobre o além baseia-se no conceito de “ser reunido aos pais”. O além é o “verdadeiro lar do ser humano, e o lado de cá são os anos da difícil peregrinação estrangeira, da qual o espírito volta para encontrar morada no círculo dos seus, que o aguardam”.112 O “ser reunido ao seu povo” é o “anúncio ou comunicação da imortalidade”.113 É o retorno do espírito para Deus, diferente do enterro, no qual o corpo é devolvido à terra. ... o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu (Ec 12.7). Abraão foi enterrado na caverna de Macpela, onde tinha enterrado também sua esposa, Sara.114 Também Ismael participou do enterro. O texto não diz se ele voltara para Abraão depois da morte de Sara,115 ou se tinha havido uma reconciliação entre ele e Isaque, em face da morte de Abraão – como aconteceu mais tarde entre Jacó e Esaú (Gn 35.29). Depois do enterro de Abraão, o texto destaca mais uma vez que a promessa dada aos descendentes de Abraão vale somente para Isaque (v.11). O lugar onde Isaque mora naquela época, na condição de seminômade, é o “poço daquele que vive e que olha por mim”.116 3. Os descendentes de Ismael: 25.12-18 12 São estas as gerações de Ismael, filho de Abraão, que Agar, egípcia, serva de Sara, lhe deu à luz. 13 E estes, os filhos de Ismael, pelos seus nomes, segundo o seu nascimento: o primogênito de Ismael foi Nebaiote; depois, Quedar, Abdeel, Mibsão, 14 Misma, Dumá, Massá, 15 Hadade, Tema, Jetur, Nafis e Quedemá. 16 São estes os filhos de Ismael, e estes, os seus nomes pelas suas vilas e pelos seus acampamentos: doze príncipes de seus povos. 17 E os anos da vida de Ismael foram cento e trinta e sete; e morreu e foi reunido ao seu povo. 18 Habitaram desde Havilá até Sur, que olha para o Egito, como quem vai para a Assíria. Ele se estabeleceu fronteiro a todos os seus irmãos. 108 109 110 111 112 113 114 115 116
Delitzsch, pg. 348f. Hertz (ed.), pg. 88. Hirsch, Genesis, pg. 391. Jenni, ab, pai, col. 11. Hirsch, Genesis, pg. 391. Hertz (ed.), pg. 88, “intimation of immortality”. Veja o comentário sobre Gênesis 23. Como supõe Strack, pg. 82. Veja o comentário sobre Gênesis 16.7-14 e Gênesis 24.62.
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Gênesis 25.12-18
Os doze filhos de Ismael correspondem a doze príncipes, isto é, a doze chefes de tribos políticos e religiosos.117 Eles lideraram as doze tribos ismaelitas. Estas tribos eram, em parte, sedentárias, em parte, nômades (v. 16). Alguns tinham cidades fixas, moravam em vilas, outros andavam de um lado para outro em acampamentos beduínos.118 Os limites de sua habitação eram Havilá e Sur.119 Sur é um lugar na fronteira do Egito, e Havilá possivelmente seja o Golfo Pérsico.120 m 1Cr 1.29-31 O nome dos doze filhos, príncipes e tribosm eram os seguintes:121 n Gn 28.9; 36.3; Is 60.7 o Sl 120.5; Ct 1.5; Is 21.16s; 42.11; 60.7; Jr 49.28; Ez 27.21
p Jó 6.19; Is 21.14; Jr 25.23
q Jó 1.3
1) Nebaioten o primogênito de Ismael. Sua tribo era famosa por seus carneiros. 2) Quedaro
(= “de cor marrom escura”). A tribo é conhecida por seus valentes arqueiros e grandes rebanhos.
3) Abdeel
(= “servo de Deus”). Não há outras informações sobre esta tribo.
4) Mibsão
Tribo desconhecida. Um dos descendentes de Saul, pai de Simei (1Cr 4.25).
5) Misma
(= “rumor, boato”). Assim como Mibsão, Saul também tem um descendente chamado Misma (1Cr 4.25).
6) Dumá
(= “silêncio”?), uma tribo do norte da Arábia, vizinha de Edom (Is 21.11). O nome aparece mais uma vez como nome de uma cidade nas montanhas de Judá (Js 15.52).
7) Massá
(= “oráculo”), uma tribo do norte da Arábia (Pv 30.1).
8) Hadade
(desconhecido).
9) Tema
um povo de caravanas. Tema também é nome de um oásis no sul da Arábia. Talvez Tema fosse um centro religioso.122
10) Jetur
tribo árabe da região oriental do Jordão. A Bíblia registra uma aliança entre Jetur e os hagarenos, contra as tribos transjordanianas de Israel (1Cr 5.19).
11) Nafis
(= “grande riqueza”). Esta tribo árabe da região oriental do Jordão vivia em conflito com as tribos de Israel que moravam além do Jordão (1Cr 5.19).
p
12) Quedemá Quedemá é visto como pai dos assim chamados filhos do Orienteq. 117 von Rad, Mose, pg. 225. 118 Gunkel, pg. 279. 119 Sobre Havilá, nome para o qual há mais de dez propostas de interpretação, veja o comentário sobre Gênesis 2.11, Bräumer, 1ª parte, pg. 60; sobre Sur, veja o comentário sobre Gênesis 16.7. 120 Cf. Westermann, Genesis I/2, pg. 488. 121 Sobre cada um dos nomes, cf. Odelain/Seguineau, Nebaiote, pg. 257; Quedar, pg. 208; Abdeel, pg. 2; Mibsão, pg. 243; Misma, pg. 246; Dumá, pg. 84; Massá, pg. 235; Hadade, pg. 121; Tema, pg. 347; Jetar (Jetur), pg. 179; Nafis, pg. 254; Quedemá, pg. 209. 122 von Rad, Mose, pg. 225s.
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Gênesis 25.12-18
Logo depois da genealogia de Ismael vem a notícia de seu falecimento. Ismael morreu com a idade de centro e trinta e sete anos. Sua morte é relatada como a de Abraão, com as três palavras expirar – morrer – ser reunido com seu povo.123 A última notícia de Ismael, seus filhos e as tribos que estes governavam como príncipes é: Ele se estabeleceu fronteiro a todos os seus irmãos. As tribos de Ismael – conforme profetizado pelo mensageiro de Deus antes mesmo do nascimento de Ismael – guerreiam contra todas as tribos e povos com os quais elas têm contato.124 Os ismaelitas sempre afrontarão todos os seus inimigos, isto é, conquistarão regiões e terras e tomarão posse delas. A história de Abraão termina com esta segunda genealogia de doze componentes. O irmão de Abraão, Naor, tinha doze filhos, os patriarcas das tribos arameias. Os laços de parentesco foram reforçados pelo casamento de Isaque com Rebeca.125 O casamento de Abraão e Quetura gerou seis filhos, patriarcas de seis tribos árabes. Os laços de parentesco de Abraão com as tribos árabes estendem-se também para seus sete netos, os filhos de Midiã e de Jocsã, e também aos três povos que descendem de seu neto Dedã.126 As genealogias de Naor e de Ismael, além da lista dos filhos de Quetura e de seus descendentes demonstram o parentesco entre Abraão, o pai de Israel e os povos arameus e árabes. Assim como qualquer outro parentesco, também este que havia entre os descendentes de Abraão e os povos arameus e árabes possui um aspecto ao mesmo tempo esperançoso e fatídico. O parentesco permanece, apesar das inimizades que insistem em surgir. “A ligação humana e familiar tem raízes mais profundas do que a separação política”.127 Mas ao mesmo tempo vale: nenhum ódio é mais profundo e mais desgraçado que o ódio entre irmãos.
123 124 125 126 127
Cf. o comentário sobre Gênesis 25.8. Veja o comentário sobre Gênesis 16.12. Veja o comentário sobre Gênesis 22.20-24; Gênesis 24. Veja o comentário sobre Gênesis 25.1-6. Westermann, Genesis I/2, pg. 489.
18
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Gênesis 25.19-28
C. JACÓ E ESAÚ A história dos patriarcas começou com a escolha de Abraão entre a multidão dos povos. Depois veio a escolha de Isaque entre os descendentes de Abraão. Isaque foi abençoado por causa de Abraão e abençoou com a bênção de Abraão. Dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, Isaque é o “mais passivo”.128 No começo da vida dos gêmeos de Isaque e Rebeca está a eleição de Deus. “Deus trata com Jacó; ele deverá se tornar o patriarca do povo de Deus, e, por isso, Deus o guiará por onde quer que ele for”.129 O relato sobre Jacó e Esaú (Gn 25-36) trata do relacionamento entre irmãos.130 Durante longos períodos, os conflitos entre os irmãos parecem ser uma “selva de atitudes humanas nada edificantes”.131 Chegam às raias do conflito armado. Mas a guerra não acontece, “Esaú continua sendo irmão de Jacó”.132 Em nada disso a família, célula mãe de qualquer comunidade humana, é glorificada ou idealizada. Não há desculpas para as traições, e a luta das mulheres em torno do marido é narrada em detalhes. Mas o que realmente importa no relato sobre as vidas de Jacó e Esaú não são as artimanhas humanas, mas a ação de Deus. Há grandes temas inseridos neste matagal de atitudes humanas: eleição e fé, paz e bênção, manifestação de Deus e encontro com Deus, a escuridão da provação, mas também a história das doze tribos de Israel, que começa com os doze filhos de Jacó, pais de todo o povo de Israel. I. O NASCIMENTO DE ESAÚ E JACÓ: 25.19-28 19 São estas as gerações de Isaque, filho de Abraão. Abraão gerou a Isaque; 20 era Isaque de quarenta anos, quando tomou por esposa a Rebeca, filha de Betuel, o arameu de Padã-Arã, e irmã de Labão, o arameu. 21 Isaque orou ao Senhor por sua mulher, porque ela era estéril; e o Senhor lhe ouviu as orações, e Rebeca, sua mulher, concebeu. 22 Os filhos lutavam no ventre dela; então, disse: Se é assim, por que vivo eu? E consultou ao Senhor. 23 Respondeu-lhe o Senhor: Duas nações há no teu ventre, dois povos, nascidos de ti, se dividirão: um povo será mais forte que o outro, e o mais velho servirá ao mais moço. 24 Cumpridos os dias para que desse à luz, eis que se achavam gêmeos no seu ventre. 25 Saiu o primeiro, ruivo, todo revestido de pêlo; por isso, lhe chamaram Esaú. 26 Depois, nasceu o irmão; segurava com a mão o calcanhar de Esaú; por isso, lhe chamaram Jacó. Era Isaque de sessenta anos, quando Rebeca lhos deu à luz. 128 129 130 131 132
Delitzsch, pg. 356. von Rad, Theologie, vol. I, pg. 175. Westermann, Genesis I/2, pg. VI e pg. 1ss. von Rad, Theologie, vol. I, pg. 175. Westermann, Genesis I/2, pg. 699.
Gênesis 25.19-28
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27 Cresceram os meninos. Esaú saiu perito caçador, homem do campo; Jacó, porém, homem pacato, habitava em tendas. 28 Isaque amava a Esaú, porque se saboreava de sua caça; Rebeca, porém, amava a Jacó. A nova menção ao casamento de Isaque e Rebeca demonstra que aqui começa um novo capítulo da história dos patriarcas.133 A origem de Rebeca é registrada em detalhes. Abraão tinha enviado seu servo para que este buscasse uma esposa para Isaque entre os parentes de seu senhor. O servo tinha ido à Mesopotâmia, para uma região chamada de “Arã dos dois rios”.134 Esta região, terra natal de Betuel, pai de Rebeca, também é chamada de Padã-Aa Gn 28.2,5rãa. É a “terra dos arameus” (hebraico: sadah’aram; cf. Os 12.13). Isaque tinha quarenta anos quando se casou, e Esaú e Jacó nasceram 7; 31.18; só quando ele já estava com sessenta anos. Durante vinte anos, ele e Re- 33.18; beca tinham ficado sem filhos. Durante duas décadas, Isaque teve que es- 35.9,26; perar pelo cumprimento da promessa dada. É possível que durante esse 46.15; 48.7 tempo Isaque tenha duvidado que Rebeca realmente seria mãe do futuro povo. Mas ele nunca deixou de ter esperança. Orou por sua esposa. E o 21 Senhor lhe ouviu as orações. A oração de Isaque é caracterizada por um termo que pertence ao grupo verbal de “lamentar”. Isaque queixou-se a Deus sobre sua dor e, ao mesmo tempo, intercedeu por Rebeca. A intercessão em lamentos (hebraico: ‘atar) é uma forte influência sobre Deus.135 Jacó insistiu com Deus da mesma forma como, mais tarde, Moisés insisb Êx 8.4s,24tiu com Deus em sua oração pelo faraó (hebraico: ‘atar)b. A exegese judaica aponta para a semelhança sonora entre os verbos 26; 9.28; “intercessão lamentosa, poderosa” (hebraico: ‘atar) e “perfurar” (hebrai- 10.17s co: chatar).136 Dessa forma, a intercessão é uma invasão no Reino de Deus, um ataque ao seu coração. Em uma parábola de Jesus, o amigo que pede recebe o que deseja por causa de sua persistência e “por causa da importunação” (Lc 11.8). Nessa parábola, Jesus incentiva os discípulos a apresentarem uma “insistência persistente”.137 Devem “pedir a Deus repetidamente, sem desistir”.138 Isaque orou insistentemente por sua esposa. Na época dos patriarcas, o marido e pai assumia o papel de mediador entre Deus e sua família.139 Antes da instituição de Aarão como sacerdote, o pai da família exercia esse papel.140 Deus ouviu a oração de Isaque. Rebeca engravidou. Assim como o filho de Sara e mais tarde os dois filhos de Raquel, também os filhos de Rebeca nasceram depois de muitos anos de espera e intercessão.141 Aqui fica claro, como em nenhum outro lugar: os filhos são um presente, uma dádiva de Deus.142 133 134 135 136 137 138 139 140 141
Hertz (ed.), pg. 93. Veja o comentário sobre Gênesis 24.10. Albertz, vol. II, col. 386. Hirsch, Genesis, pg. 396. Gollwitzer, pg. 130. Ernst, pg. 249. Cf. Westermann, Genesis I/2, pg. 504. Scofield, pg. 38, nota 3. Sobre Sara, cf. o comentário sobre Gênesis 21.1 e 2, e sobre Raquel, o comentário sobre Gênesis 29.31; 30.22,23. 142 Cf. Hertz (ed.), pg. 93.
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Gênesis 25.19-28
22a
c Gn 27.46; Jr 20.18; Tobias 3.15; 1 Macabeus 2.7,13; 4 Esdras 5.35
22b
23 d Lc 1.57; 2.6s
e Gn 27; 48.13s
Quando os dois filhos começam a lutar no ventre, Rebeca se assusta. Estes cutucões no ventre materno são descritos com o verbo “correr”, “apressar-se” (hebraico: ruz). Pode ser entendido como “um não deixava o outro em paz”.143 Rebeca queixou-se a Deus. Se é assim, por que vivo eu? Este clamor de Rebeca é o “antiquíssimo lamento em torno do ‘porquê’, que gira em torno do sentido da vida”.144 É uma expressão de dor, repetidamente ouvida ao longo da história da humanidadec. Rebeca está desesperada. Ela tem medo do destino dos bebês que ainda não nasceram; será que ela teme um aborto ou sua própria morte durante o parto? O que quer que tenha movido Rebeca, ela expõe seu medo diante de Javé: E consultou ao Senhor. Os relatos da época dos reis de Israel contam que os reis mandavam consultar Deus por meio dos profetas, p.ex. em tempos de doença (2Rs 8.7-15) ou guerra (1Rs 22; 2Rs 3).145 Assim como os reis fizeram mais tarde, Rebeca consultou Javé na época dos patriarcas. Como naquela época Abraão ainda vivia, é perfeitamente concebível que Rebeca tenha pedido que Abraão consultasse Javé.146 A consulta a Deus sobre o resultado de alguma dificuldade, feita com a ajuda de um homem de Deus, inclui o pedido de intercessão.147 Rebeca pediu ajuda a Abraão: interceda por mim diante de Deus! Deus responde informando que nascerão gêmeos e que seus dois filhos andarão por caminhos separados: Duas nações há no teu ventre, dois povos, nascidos de ti, se dividirão: um povo será mais forte que o outro, e o mais velho servirá ao mais moço.148 Quando a hora chegou,d Rebeca deu à luz os gêmeos. Na época dos patriarcas, o nascimento de gêmeos tinha “um significado especial”.149 Qual dos dois teria o direito da primogenitura? Naquela época, o primogênito era considerado o melhor e mais capaz entre seus irmãos (Gn 49.3; Dt 21.17). Ele assumia o lugar do pai e se tornava senhor de seus irmãos (Gn 27.29; 49.8). Diferentemente do que acontecia no direito babilônico, o direito familiar praticado pelos hebreus já na época dos patriarcas previa que a maior parte das propriedades da família ficaria na família. O Código de Hamurabi ditava que, depois da morte dos pais, “bens e propriedades da casa paterna deveriam ser distribuídos igualmente”.150 Já o direito hebraico previa que dois terços de toda a herança cabiam ao primogênito (Dt 21.15-17), ou então o pai escolhia um herdeiro universal entre seus filhose no momento de sua morte.151 Mas como fica isso em caso de gêmeos? Quem será o melhor e mais capaz dos irmãos? Quem receberá a maior parte da herança? Tendo nascido ambos no mesmo dia, não poderiam os dois demandar o mesmo direito? Desde o nascimento de Esaú e Jacó, esta pergunta e outras semelhantes passaram a determinar a vida 143 144 145 146 147 148 149 150 151
Hirsch, Genesis, pg. 396. Westermann, Genesis I/2, pg. 504; veja também o comentário sobre Gênesis 27.46. Cf. Gerlemann/Ruprecht, darasch, vol. I, col. 462s. Hertz (ed.), pg. 93. Cf. Gerlemann/Ruprecht, darasch, vol. I, col. 463. Sobre o mistério da eleição de Deus, cf. Excurso I, Eleição e fé. Westermann, Genesis I/2, pg. 505. Código de Hamurabi, § 167, Greßmann, Altorientalische Texte und Bilder, vol. I, pg. 159. Cf. Gunkel, pg. 298.
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Gênesis 25.19-28
familiar de Isaque e Rebeca. Somava-se a isso a diferença óbvia que havia entre os irmãos desde o momento do nascimento. O filho que veio primeiro era ruivo, e ele era todo revestido de pelo. Recebeu o nome de Esaú. O Antigo Testamento só tem mais uma menção a cabelos ruivos, a saber, quando descreve a beleza de Davi (1Sm 16.12; 17.42). A imagem do bebê todo “revestido de pelo”f expressa que “Esaú era tão peludo que parecia usar um casaco de peles natural”.152 A aparência peluda do recém-nascido motivou o nome Esaú. Esaú significa “cabeludo”.153 Até hoje, a escolha do nome de recém-nascidos no mundo oriental pode ser determinada por acontecimentos ou fatos observados no momento do nascimento. O nome mais usado para meninas beduínas que nascem à noite é Lela (noite). Se ela nascer durante uma nevasca, será chamada de Thelga (neve). Se a mãe olhar para um formigueiro durante o parto, ela é chamada de Nimla (formiga).154 Mais tarde, o nome Esaú passa a ser associado a Edom. Edom é um povo que mora entre o mar Morto e o golfo de Aqqaba (Js 15.1,21; Jz 1.36). Esaúg, patriarca desse povo, também é chamado de Edom.155 Os edomitas são chamados de filhos de Esaúh. Mais tarde, Esaú/Edom vai morar na terra de Seiri. A palavra “peludo” (hebraico: sear), usada para descrever Esaú no seu nascimento, já contém uma alusão à terra de Edom, nas montanhas de Seir. O segundo filho a nascer é chamado de Jacó. O nome pessoal Jacó também era conhecido no entorno dos patriarcas. É um nome que contém um desejo divino. Originalmente, o nome era Jahkub-ila156 ou Ja’akob’el157. A tradução de ambos os nomes é: “Que Deus proteja”.158 O nome Jacó era uma oração impulsiva que seus pais fizeram no momento de seu nascimento. Um fato que Isaque e Rebeca observaram no momento do nascimento de Jacó levou à interpretação do nome como “segurando o calcanhar”159 ou “aquele que segura o calcanhar”.160 Jacó saiu do ventre materno “com a mão estendida acima de sua cabeça e agarrando o calcanhar do irmão”.161 Essa interpretação baseia-se na sonoridade semelhante entre o nome Jacó e a palavra “calcanhar” (hebraico: ‘akeb). Outra interpretação para o nome Jacó nasce do direito de primogenitura adquirido de forma fraudulenta. Esaú acusa seu irmão de ser um enganador, e diz que é com razão que se chama Jacó, “usurpador”,162 “suplantador”,163 pois já me enganou duas vezes. O ponto de partida 152 von Rad, Mose, pg. 231. 153 Odelain/Seguineau, pg. 100. 154 Cf. Delitzsch, pg. 358, nota 2. 155 Sobre Edom e a história dos edomitas, veja o comentário sobre Gênesis 27.30-40. 156 Noth, Mari und Israel, vol. II, pg. 235. 157 Odelain/Seguineau, pg. 157. 158 Ibid. 159 Buber, Fünf Bücher der Weisung, pg. 70. 160 Menge, sobre esta passagem, Gênesis 25.26. 161 Delitzsch, pg. 358. 162 Buber, Fünf Bücher der Weisung, pg. 77. 163 Menge, sobre esta passagem, Gênesis 27.36.
25 f Zc 13.4; 2Rs 2; Mt 3.4
g Jr 49.8,10; Ob 6,8s, 19,21 h Dt 2.4,8, 12,22, 29; 1 Macabeus 5.3, 65 i Gn 32.4; 33.14, 16; 36.6-9; Dt 2.4s, 8,29; Js 24.4
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Excurso I: Eleição e fé
dessa segunda interpretação é a semelhança entre o nome Jacó e o verbo “suplantar”, “enganar” (hebraico: ‘akab). Ao crescerem, os gêmeos escolhem formas de vida completamente 27 separadas. Esaú saiu perito caçador, homem do campo; Jacó, porém, homem pacato, habitava em tendas. Na época dos patriarcas, o istmo sírio-palestino ainda tinha muitas florestas. Os caçadores vagavam pelas florestas. Os pastores viviam nas estepes e nas terras cultivadas. Iam de um pasto para outro com seus rebanhos. Se a região era fértil, ficavam mais tempo. Por causa das necessidades diferentes, pastores e caçadores tinham muito pouco em comum. O relacionamento entre eles era tenso.164 Esaú, o caçador, normalmente dormia ao relento, era independente e k Gn 10.8-10; levava uma vida rude, como o patriarca, o caçador Nimrodek. Ele era um 1Cr 1.10; homem do campo. Mq 5.6 Jacó participava da “vida cultivada”.165 Assim como seu pai, Isaque, ele também era seminômade. Era um homem pacato. “Pacato” (hebraico: tam) também pode ser traduzido como “ordeiro” e “decente”, mas no presente contexto se refere à “inserção na vida comunitária com suas regras morais, diferentemente do modo de vida do caçador, que é muito mais solitário”.166 Já no começo dos tempos acontecia de irmãos com os mesmos pais viverem em culturas diferentes, às vezes “um ao lado ou mesmo conl Gn 4.1-16; tra o outro”,167 como mostra o exemplo de Caim e Abell. A separação na Mt 23.35; forma de viver de Esaú e Jacó, que, em si, já era preocupante, ainda veio 1Jo 3.12; acompanhada pelo partidarismo dos pais. Rebeca amava Jacó, que estaJd 11 va inserido na comunidade. Para Isaque, o resultado da caça de Esaú era determinante. Ele preferia Esaú.
❖ EXCURSO I: Eleição e fé ...a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé (Rm 1.17). ...ninguém será justificado diante dele por obras da lei (Rm 3.20). E ainda não eram os gêmeos [de Rebeca] nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela [Gn 25.23]: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito [Ml 1.2,3]: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú (Rm 9.11-13). Porque Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos (Rm 11.32).
164 165 166 167
Cf. von Rad, Mose, pg. 231. Westermann, Genesis I/2, pg. 506. von Rad, Mose, pg. 231. Westermann, Genesis I/2, pg. 506.
Excurso I: Eleição e fé
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Na carta aos Romanos, Paulo aborda a questão da relação entre eleição e fé. A carta aos Romanos é “expressamente doutrinária”.168 Diferentemente do que acontecia em outras cartas, aqui Paulo não precisava tratar de perguntas, pedidos e problemas da igreja. Na carta aos Romanos, Paulo desenvolve, de forma sistemática, a mensagem de Jesus Cristo, da forma como ele a tinha recebido do Senhor ressurreto e exaltado. Essa mensagem não está separada da ação de Deus na época do Antigo Testamento. No resumo introdutório da carta como um todo, Paulo se baseia em uma palavra do Antigo Testamento: O justo viverá pela sua fé (Hc 2.4). Menge traduz: “O justo viverá por meio de sua fé”. A associação com o Antigo Testamento e com o povo de Deus da antiga aliança perpassa toda a Carta aos Romanos. Paulo busca sua resposta somente na Escritura (cf. Martinho Lutero: “sola scriptura”). 1) Predestinação divina por livre escolha Paulo estuda o caminho e o destino de Israel e, nas suas reflexões teológicas sobre Israel (Rm 9-11), analisa detalhadamente a eleição por Deus. A eleição, isto é, a livre graça de Deus, aparece já na pré-História. Deus rejeita o sacrifício de Caim, mas aceita o presente de Abel. Por mais que seja possível explicar uma série de aspectos individuais,169 a questão não é a oferta do ser humanoa nem depende de quem quer ou de quem corre, a At 10.34; Rm 2.11; mas de usar Deus a sua misericórdia (Rm 9.16). Deus é livre em sua eleição, não está preso à sequência de nasci- Ef 6.9 mento nem ao direito à herança. Ele pode ignorar o primogênito e conceder sua graça a outro. Ismael e Isaque são filhos de Abraão. No entanto, a promessa de Deus não vale para Ismael, o primogênito, filho de Abraão e Agar, mas para Isaque, o filho de Sara. Jacó e Esaú têm a mesma mãe. Mas a promessa não valeu para ambos. A eleição divina faz do mais velho o servo do mais novo. A promessa para Jacó decorreu de seu nascimento. Deus escolheu Jacó antes que este pudesse agir por conta própria. Deus voltou-se em amor para um filho e ignorou o outro. Aborreci a Esaú (Ml 1.3) significa: não dediquei meu amor a Esaú. Não fiz caso dele. Ao voltar-se para Jacó, Deus decidiu-se em favor dos descendentes de Jacó. Tornaram-se herdeiros da promessa dada a Abraão. Assim, Deus voltou-se para um povo que levaria o nome de Jacó (= Israel, cf. Gn 32.29). Isso é feito mediante “preterição e desconsideração”170 de Esaú. A concessão da graça não vale primariamente para o indivíduo Jacó, b Nm 16.5; mas para sua condição de elo de ligação com o povo de Israel. Como pa- Dt 7.6; triarcas do povo de Israel, escolhido por Deus, Abraão, Isaque e Jacó são Sl 65.5; portadores da graça. b 105.6,43; Deus percorre caminhos separados na história da antiga aliança. Isa- 106.5; que e Jacó são os descendentes de seus pais, a quem Deus deu uma tarefa Is 41.8s; na sua história com a humanidade. Ismael e Esaú são filhos de seus pais, 43.10,20ss; 44.1s, 21,24; sem tarefa específica na dispensação. 168 Michel, Römer, pg. 5. 169 Bräumer, 1ª parte, pg. 94 e 95. 170 Weber, Dogmatik, vol. II, pg. 490.
48.12; 49.7; 54.10; 65.9, 15,22
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Excurso I: Eleição e fé
Caim, Ismael, Esaú e Saul estão “na sombra escura”.171 Da linha de Abel, Isaque, Jacó e Davi vem o Messias. A observação da livre e ilimitada graça de Deus é a base da doutrina da eleição. João Calvino (1509-1564) levou esse pensamento até as últimas consequências. A eleição não depende de nascimento ou herança, tampouco da fé ou descrença. O caminho do ser humano está pré-determinado desde antes do seu nascimento. No entanto, se Deus determina antes do nascimento de uma pessoa se esta poderá vir à fé, em última análise ele se torna responsável também pela descrença. Calvino não teme esta conclusão. Sua doutrina da eleição é a da predestinação dupla. O próprio Deus determina, de antemão, qual pessoa crerá e será salva, e qual será condenada por sua descrença. Mas essa doutrina da eleição dupla passa por cima de outros conceitos decisivos que também estão na Escritura Sagrada. Calvino perdeu de vista o testemunho geral da Escritura. Ele desconsiderou os seguintes conteúdos da Escritura: a) Deus não é um tirano, “que concede seu favor a um, mas o retém a outro, como se aceitasse ser governado por caprichos e arbitrariedades”.172 b) Deus não escolheu parte dos filhos de Abraão para a vida eterna, condenando os outros para toda a eternidade, mas deu a Isaque e Jacó tarefas diferentes do que a Ismael e Esaú: “Não se trata do fato de Deus ter emitido um decreto imutável que determina a vida eterna de uns e a morte eterna de outros, mas de sua posição e sua tarefa na história, da questão de como Deus age na execução de seu plano de salvação para o mundo inteiro”.173 c) Em outra ocasião, Deus interfere mais uma vez diretamente na história do mundo. Jesus, o Filho de Deus, sofre a morte amaldiçoada na cruz. Ele sofre vicariamente o destino de todos os condenados. Por isso, Paulo encerra suas reflexões teológicas sobre Israel na Carta aos Romanos com a seguinte constatação: Porque Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos (Rm 11.32). 2) Jesus, homem eleito e Deus que elege Em Jesus Cristo, Deus entra neste mundo como ser vivo, concreto e Senhor. “O Deus que elege é o Pai de Jesus Cristo”.174 Por meio de Jesus, eleito pelo Pai antes da fundação do mundo, todas as pessoas devem receber salvação e vida (cf. Ef 1.3-14). O Escolhido de Deus é Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Jesus é ao mesmo tempo “homem eleito” e “Deus que elege”.175 Depois da morte de Jesus no Gólgota, não há mais dois caminhos separados, o caminho da eleição e o caminho na sombra da eleição. Como a morte de Jesus na cruz expiou 171 172 173 174 175
Cf. ibid. Iwand,Gênesis 4.1-16, pg. 412. Gaugier; citado por Michel, Römer, pg. 235, nota 1. Weber, Dogmatik, vol. II, pg. 491. Barth, K.; citado por Weber, Dogmatik, vol. II, pg. 491 e 492.
Excurso I: Eleição e fé
o pecado de toda a humanidade, cada indivíduo tem a chance de ser um eleito de Deus. O tempo da espera de Deus chegou ao fim. Em Jesus Cristo, Deus elegeu todas as pessoas para a salvação. Essa eleição de Deus não é dupla, isto é, Deus não escolhe uns para a salvação e outros para a condenação. A eleição visível em Jesus é “a determinação de todas as pessoas para a salvação”.176 Mas Paulo não para nessa mensagem. É verdade que o ser humano é justificado por Deus sem nenhuma contribuição de sua própria parte. Mas aquele que foi justificado por Deus vive pela fé a partir da fé (Rm 1.17). Sem a fé necessária para a vida do justo, a mensagem da eleição conduz para a sedutora direção do universalismo. O universalismo é a doutrina que ensina que, depois do encerrar sua história com este mundo, Deus salvará todas as criaturas. No fim – dizem os representantes desse movimento – todo o universo criado por Deus será reconciliado com ele.177 A doutrina universalista tem um efeito trágico sobre a instrução de Jesus em relação a missões e evangelismo. Ela mina a comissão missionária e nivela por baixo a decisão pessoal por Jesus. A Escritura Sagrada exige e pressupõe a fé do indivíduo. Por isso, Martinho Lutero estabelece sua confissão reformadora em duas etapas: “somente pela graça” (sola gratia), mas também “somente pela fé” (sola fide). A fé, por sua vez, não possui nenhuma qualidade de obra redentora. De maneira alguma o ser humano conseguirá ganhar sua salvação com sua fé, nem mesmo contribuir para sua justificação diante de Deus. A fé só consegue reconhecer o que Deus fez em Jesus Cristo: “A fé não justifica por ser uma obra, mas justifica por levar a pessoa a agarrar a misericórdia oferecida em Cristo Jesus”.178 O ato reconciliatório de Jesus é completamente independente de qualquer ação humana. Jesus foi feito pecado por Deus. A morte de Cristo significa: diante de Deus, todos são considerados mortos e justificados por meio de Jesus (2Co 5.14,21). A morte de Jesus não depende de alguma condição a ser cumprida pelo ser humano. É uma ação de Deus na liberdade de sua graça. Não há nada que o ser humano possa acrescentar à morte de Jesus ou à sua própria redenção. A fé não é uma obra que justifica. Crer significa: Dar razão a Deus. Reconhecer a obra de Deus. Receber a dádiva de Deus em gratidão.
176 Vorländer, pg. 61. 177 Sobre a refutação desta especulação, cf. Symank e Hansen. 178 Lutero, M.; citado por Aland (ed.), pg. 269.
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Excurso I: Eleição e fé
ELEIÇÃO E FÉ NO TESTEMUNHO DA ESCRITURA
Deus Pai, Filho e Espírito Santo Criaturas de Deus Caminhos separados na época do Antigo Testamento O povo escolhido Abel Isaque Jacó Davi
Os povos colocados de lado Caim Ismael Esaú Saul
Porque Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos (Rm 11.32) Deus escolheu Jesus antes da fundação do mundo (Ef 1.4) Jesus, o homem eleito
Jesus, Deus que elege
Todos foram escolhidos para a salvação: Judeus e gentios Aquele que foi justificado por Deus, eleito em Jesus, vive pela fé a partir da fé (Rm 1.17).
Encruzilhada
Os salvos vivem na glória. Eles responderam à graça de Deus (sola gratia) com a sua fé. São judeus e gentios.
Comissão missionária
Os condenados estão perdidos para sempre. Rejeitaram a graça de Deus. Recusaram-se a crer. São judeus e gentios. ❖
A harmonia entre eleição e fé só pode ser compreendida a partir do testemunho geral da Escritura Sagrada como um todo. (Cf. o sola scriptura de Lutero e sua regra básica: a Escritura interpreta a Escritura!) João Calvino isolou a referência sobre a eleição pela livre graça do contexto geral da Escritura e entrou no beco sem saída da dupla predestinação. A mensagem “somente pela graça” (sola gratia) precisa do segundo princípio, sola fide, “somente pela fé” (cf. Lutero). Colocar como absoluto a graça sem a fé conduz ao caminho errado de salvação universal. É uma sentença de morte para Missões e Evangelismo. A fé pessoal e a obediência à comissão missionária são respostas à graça de Deus. No final dos tempos, haverá judeus e gentios salvos “somente pela graça e somente pela fé”, e também haverá judeus e gentios condenados por terem rejeitado a fé.
Sobre o livro: Formato: 16 x 23 cm Tipo e tamanho: Palatino Linotype 10,5/11,5 Papel: Capa - CartĂŁo 250 g/m2 Miolo - Lux Cream 70 g/m2
Gênesis
Vo l u m e 2
C OMENTÁRIO ESPERANÇA A n t i g o Te s t a m e n t o
A coleção da “Wuppertaler Studienbibel” é uma série voltada para a igreja que lê a Bíblia. Ela parte do princípio de que a Bíblia é a Palavra de Deus, anotada e transmitida por pessoas. Ou seja: seus comentários precisam fazer justiça a esse caráter duplo da Escritura Sagrada. Uma interpretação adequada olha para trás, pesquisando a História e mantem-se aberta ao fato de que Deus trabalha na e por meio da Palavra na vida do leitor e ouvinte. Mas todo o trabalho histórico e teológico com o texto não passa de obra “preparatória”. A real obra é feita pelo próprio Deus. Por isso, uma coisa não pode faltar durante todo o trabalho de interpretação: a oração. Oração durante a leitura, a interpretação e a verificação da interpretação à luz da própria Escritura. Quando isso acontece, escancara-se a porta aos novos conhecimentos e compreensões da revelação divina e da vontade de Deus. A edição em português dos Comentários Esperança – Antigo Testamento primou pela qualidade na tradução e revisão, para apresentar um trabalho primoroso e edificante aos leitores.
Hansjörg Bräumer Dr. Hansjörg Bräumer (1941), é teólogo, professor emérito do Antigo Testamento, pastor, diretor e conselheiro em Lobetalarbeit (Celle Alemanha). Atuou como professor de Hebraico em várias faculdades alemãs como Phillipps-Universität Marburg, Eberhard Karls Universität Tübingen e professor convidado na Universidade Hebraica de Tel Aviv (Israel).
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