ENVIADOS PARA SERVIR

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Fred R. Bornschein

SERVIR A vida consagrada na perspectiva da diaconia e da vida comunitรกria como um desafio para a igreja



SERVIR



Fred R. Bornschein

SERVIR A vida consagrada na perspectiva da diaconia e da vida comunitária como um desafio para a igreja 1ª edição

Curitiba 2014


Fred R. Bornschein

Enviados para servir

A vida consagrada na perspectiva do celibato, diaconia e vida comunitária como um desafio para a igreja evangélica Coordenação editorial: Walter Feckinghaus Revisão: Josiane Zanon Moreschi Edição: Sandro Bier Capa: Sandro Bier Editoração eletrônica: Josiane Zanon Moreschi Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bornschein, Fred R. Enviados para servir : a vida consagrada na perspectiva da diaconia e da vida comunitária como um desafio para a igreja / Fred R. Bornschein. - - 1. ed. - - Curitiba, PR : Editora Esperança, 2014. Bibliografia ISBN 978-85-7839-108-9 1. Comunidade 2. Igreja e o mundo 3. Vida religiosa I. Título. 14-12152

CDD-261.1

Índices para catálogo sistemático: 1. Comunidade, Igreja e sociedade : Teologia social 261.1 As citações bíblicas foram extraídas da Bíblia Almeida Revista e Atualizada da Sociedade bíblica do Brasil (1988, 1993), salvo indicação junto ao texto. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total e parcial sem permissão escrita dos editores. Editora Evangélica Esperança Rua Aviador Vicente Wolski, 353 - CEP 82510-420 - Curitiba - PR Fone: (41) 3022-3390 - Fax: (41) 3256-3662 comercial@esperanca-editora.com.br - www.editoraesperanca.com.br


Sumário

Introdução........................................................................9 1. O amor na teologia de João............................................13 1.1 A relevância do amor na teologia de João...........13 1.2 A prática do amor na teologia de João................19 1.3 Orientações para a vida de consagração a partir dos textos de João.....................................21 2. A diaconia..........................................................................25 2.1 O uso dos termos no Novo Testamento..............26 2.1.1 Servir (diakoneo, douleuo)...............................26 2.1.2 Serviço (diakonia)............................................29 2.1.3 Servo (diakonos, doulos)..................................30


2.2 Jesus Cristo como servo..........................................34 2.3 A comunidade como serva.....................................41 2.4 Conclusão da reflexão sobre diaconia...................43 3. A koinonia...........................................................................45 3.1 O conceito bíblico de koinonia...............................46 3.2 A necessidade da vida em comunhão...................48 3.3 Conclusão da reflexão sobre koinonia...................57 4. O celibato...........................................................................61 4.1 A conceituação do celibato......................................61 4.2 A fundamentação bíblica do celibato....................63 4.2.1 O ensinamento de Jesus Cristo..................63 4.2.2 O ensinamento do apóstolo Paulo.............69 4.3 O celibato como carisma.........................................80 4.4 O propósito do celibato..........................................82 4.4.1 A consagração a Jesus Cristo.....................82 4.4.2 O relacionamento místico com Jesus Cristo.....................................................83 4.4.3 A razão apostólica.........................................86 4.4.4 A razão escatológica.....................................87 4.5 O celibato e a sexualidade.....................................89 4.6 O celibato e as igrejas evangélicas.......................92 4.7 Conclusão da reflexão sobre o celibato...............94 5. A comunidade cristã........................................................97 5.1 Elementos essenciais para a vida da comunidade.........................................................98 5.2 A comunidade e a vida consagrada...................105


5.2.1 Definição teológica das comunidades religiosas de vida consagrada..................106 5.2.2 A vida consagrada e a espiritualidade..........................................108 6. A Irmandade Evangélica Betânia e a vida consagrada........................................................113 6.1 O histórico da Irmandade Evangélica Betânia..................................................114 6.1.1 As Casas Matrizes de Kaiserswerth........114 6.1.2. Associação Alemã de Comunidades e Diaconia (AACD).....................................121 6.1.3. O ministério das diaconisas no Brasil.........................................................123 6.1.3.1 O envio das primeiras diaconisas ao Brasil..........................................123 6.1.3.2 A Casa Matriz brasileira..............124 6.1.3.3 Mudança de paradigmas..............125 6.1.3.4 A vida fraternal na Irmandade Evangélica Betânia........................128 6.2 Conclusão da reflexão sobre a Irmandade Evangélica Betânia..................................................128 Conclusão.............................................................................131 Bibliografia..........................................................................135



Introdução

O título deste livro foi tirado da palavra de Jesus: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21b). Jesus foi enviado pelo Pai ao mundo para servir, e serviu até as últimas consequências, dando sua vida para a salvação da humanidade. Os discípulos de Jesus são enviados por ele com o mesmo propósito: servir! Servir a Deus e servir às pessoas. Servir de multiformes maneiras. Servir conforme o contexto singular da vida e da vocação de cada um. A tônica principal desta obra é o servir. Um serviço fruto de uma experiência pessoal com o amor de Deus. Um serviço realizado no contexto de uma comunidade. Um serviço que, de acordo com o chamado e o dom de Deus,


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pode ser vivenciado na renúncia a qualquer outro compromisso em uma dedicação integral ao propósito de Deus. Neste livro, com uma ênfase especial nos ensinos do apóstolo João, trataremos dos seguintes assuntos vinculados ao tema maior do serviço: 1. A prioridade do amor na teologia de João (cap. 2); 2. A diaconia como expressão nuclear da vida cristã (cap. 3); 3. A koinonia, a comunhão, como necessidade fundamental para a vida e o serviço cristão (cap. 4); 4. O celibato como uma possibilidade de vida para pessoas dotadas desse carisma, visando a liberação de outros encargos para a realização de ministérios específicos (cap. 5); 5. A comunidade cristã como o lugar próprio de se viver a vida cristã e realizar o ministério de servir. A igreja é a comunidade cristã básica e fundamental, mas ela encontra expressão em muitas formas e vivências. Uma delas são as “congregações de vida religiosa consagrada”, onde pessoas realizam, de forma comunitária, sua vocação comum. Uma dessas congregações é a Irmandade Evangélica Betânia, que é apresentada neste livro como um exemplo de vida dentro de uma dessas congregações (cap.6). 6. A Irmandade Evangélica Betânia como um exemplo, dentre outros que podem ser usados, de uma comunidade composta por Irmãs Diaconisas que, por tempo limitado ou vitalício, renunciaram ao casamento para estarem livres de encargos de família para uma


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dedicação exclusiva ao ministério para o qual foram chamadas e enviadas pelo Senhor. A Irmandade, além das diaconisas, é composta por homens e mulheres, solteiros e casados voltados para o serviço dentro da vocação ministerial da irmandade. Este livro foi desenvolvido na expectativa de que contribua para que a vida de serviço em amor, especialmente na sua vertente mais controversa, que é o celibato, se torne, no âmbito das igrejas evangélicas, um ministério conhecido, reconhecido, apreciado e praticado.



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1 O amor na teologia de João

O objetivo deste capítulo é analisar os conceitos de amor e serviço a Deus e ao próximo que constituem a essência da vida cristã. Nesta análise nos basearemos nos escritos de João devido à importância dos conceitos dentro desses textos.

1.1 A Relevância do amor na teologia de João A relevância que o amor tem nos textos do apóstolo João se percebe na frequência com que se usa as palavras “amor” (agape) e “amar” (agapao), que são as expressões usuais para se referir ao amor e ao amar em todo o NT. No NT, o amor é uma das ideias centrais que expressam o conteúdo total da fé cristã. Deus é amor e procura o amor recíproco do homem.


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O amor, especialmente no Evangelho de João, descreve o relacionamento íntimo e profundo entre Deus, o Pai, e seu Filho, Jesus: O Pai ama ao Filho (Jo 3.35); “o Pai me ama” (Jo 10.17); “eu amo o Pai” (Jo 14.31); “Como o Pai me amou” (Jo 15.9). O amor do Pai para com o Filho e do Filho para com o Pai é, portanto, o modelo essencial e a fonte original de todo o amor. O verbo amar (agapao) descreve, também, o sentimento e a ação de Deus em favor da humanidade. O amor de Deus é uma realidade tão marcante que o apóstolo João afirma de forma categórica: Deus é amor (1Jo 4.8). “O amor é a realidade maior e o regente da vontade divina. É a característica fundamental em todo o querer e agir de Deus. O amor moveu Deus a criar o mundo e governa todo o seu agir. [...] Todas as palavras e obras de Deus só podem ser compreendidas a partir de seu amor”.1 Nos textos de João “amar” e “amor” assinalam igualmente a vida de Jesus: “Novo mandamento vos dou: que vos ameis [...] assim como eu vos amei” (Jo 13.34); “Como o Pai me amou, também eu vos amei” (Jo 15.9); “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos” (Jo 15.13). Nos textos de João, o sacrifício de Jesus é a maior expressão do amor do Pai, que entregou seu Filho para a salvação da humanidade2, e do Filho, que deu sua vida por amor a nós. Foi uma doação feita de forma absoluta a favor dos seus: [...] sabendo Jesus que era chegada a sua 1 SCHLATTER, Adolf. Die Briefe und die Offenbarung des Johannes. (Stuttgart, Alemanha: Calver Verlag, 1964): p. 90,91. 2 “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito” (Jo 3.16); Nisto consiste o amor: [...] em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados (1Jo 4.9-11).


O amor na teologia de João

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hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim (Jo 13.1), amou-os até as últimas consequências. Na teologia de João a expressão maior do amor de Deus reside no sacrifício de Jesus (Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós, 1Jo 3.16). Essa importância é afirmada em vários textos. João Batista apresenta Jesus como o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1.29) descrevendo-o como aquele que, por seu sacrifício, cumpriu o que os sacrifícios do Antigo Testamento apontavam. O Evangelho de João menciona a serpente erguida no deserto como prefiguração de Cristo levantado na cruz (Jo 3.14s). Jesus se apresenta como o Bom Pastor que “deu sua vida pelas ovelhas” (Jo 10.11.15). Procurado pelos gregos, sentindo que a hora de seu sacrifício se aproximava, Jesus usou a imagem do grão de trigo que, caindo na terra, tem que morrer para frutificar (Jo 12.23s). De acordo com Brown3,4 a importância do derramamento de sangue na carreira de Jesus é salientada na passagem: “Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo, não com a água somente, mas com a água e o sangue” (1Jo 5.6). Um Jesus verdadeiramente humano que foi batizado e derramou seu sangue é aquele que o autor caracteriza como “o Deus verdadeiro e a vida eterna” (1Jo 5.20).

O apóstolo João afirma que o amor é “conhecido” (no grego: ginosko) pelo fato de Cristo ter dado sua vida por nós (1Jo 3.16). O Novo Testamento (NT), no uso do termo 3 Brown (1983, p. 127) comenta que nos seguintes textos do Evangelho de João “há ligeiras referências à importância salvadora de morte de Jesus”: 6.51; 11.51s; 12.24; 18.14. 4 Cf. BROWN, 1983, p. 127.


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ginosko, segue o significado que lhe dá o Antigo Testamento (AT). “O Antigo Testamento encara o conhecimento como sendo alguma coisa que surge continuamente de um encontro pessoal”.5 Nos escritos joaninos o conhecimento de Deus é um conhecimento que recebemos pela revelação de Deus através da pessoa de Jesus. Desse modo, quem conhece Jesus, conhece também o Pai (cf. Jo 14.7). Na teologia de João não há conhecimento de Deus desligado da revelação em Jesus, pois a vida eterna é conhecer o Pai, o único Deus verdadeiro, e Jesus Cristo, enviado pelo Pai (Jo 17.3). A Filipe, Jesus pode dizer: “[...] há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?” (Jo 14.9). O próprio Jesus é conhecido por meio da experiência, do encontro pessoal e não apenas por um conhecimento teórico. Filipe após seu encontro com Cristo afirma: [...] Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas: Jesus, o Nazareno, filho de José (Jo 1.45). Natanael, extasiado diante da pessoa do Senhor, exclama: [...] Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel! (v. 49). O apóstolo Pedro, como porta-voz dos demais e como fruto de sua vivência com Jesus, afirmou: e nós temos crido e conhecido (ginosko) que tu és o Santo de Deus (Jo 6.69). Conhecer Cristo é conhecer seu amor, que se mostrou no fato de ele “ter dado sua vida por nós” (1Jo 3.16). O amor tornou-se transparente, visível, concreto, na cruz de Cristo e o conhecimento deste amor foi uma experiência transformadora na vida dos discípulos.

5 SCHMITZ in: BROWN, 1981, p. 476.


O amor na teologia de João

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Nos textos de João, amor tinha uma importância nuclear devido à sua compreensão de dois fatores. • Em primeiro lugar, o amor é o sinal que caracteriza o ser discípulo de Cristo, é a logomarca do cristão. Jesus afirmou: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13.35). “Esta passagem revela o sinal que Jesus dá para rotular um cristão [...] em todos os tempos e em todos os lugares. [...] O ponto principal é que é possível ser cristão sem mostrar o emblema, mas se esperamos que os não cristãos saibam quem somos, é necessário que o mostremos”.6 • Em segundo lugar, porque o amor é aquilo que Schaeffer7 chama de a “apologética final”. Fundamenta-se no pedido que Jesus fez ao Pai na oração em João 17.21: “[...] a fim de que todos sejam um [...] para que o mundo creia que tu me enviaste”. Esta verdade é sublinhada por Jesus uma segunda vez, agora usando a palavra “conhecer”: “[...] a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste” (Jo 17.23). Em João 13 a questão era que, se um cristão não demonstra amor para com os outros cristãos, o mundo tem o direito de julgá-lo um não cristão. (Mas aqui, em Jo 17) Jesus está afirmando algo muito mais cortante, muito mais profundo: Não podemos esperar que o mundo creia que o Pai mandou o Filho, que as reivindicações de Jesus sejam verdadeiras e que o cristianismo seja verdadeiro, a não ser que o mundo veja alguma realidade na unidade de cristãos verdadeiros.8 6 SCHAEFFER, Francis A. A igreja no ano 2001. (Goiânia: Casa Editora APLIC, 1970): p. 168,9. 7 SCHAEFFER, 1970, p. 176. 8 SCHAFFER, 1970, p. 177.


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Por conseguinte, o amor que se expressa na união entre os cristãos é o testemunho por excelência da realidade de que Jesus é o enviado de Deus. Como a exigência do amor perpassa todos os escritos joaninos, podemos perguntar se é possível exigi-lo? A resposta de João é digna de nota: nós amamos porque fomos amados. O nosso amor é sempre um ato segundo em resposta ao ato primeiro do amor de Deus e de Cristo. Antes de exigir que amemos, Deus nos ama, antes de sermos exortados a dar a vida pelos irmãos, conhecemos o amor de Cristo que deu sua vida por nós (cf. 1Jo 3.16). Provavelmente essa percepção se originou na observação de que Jesus, ao dar aos seus discípulos o novo mandamento do amor, subordinou o imperativo “que vos ameis” ao indicativo “assim como eu vos amei”. Esse fato está sumarizado na afirmação: Nós amamos porque ele nos amou primeiro (1Jo 4.19). Afirma a Carta Encíclica “Deus caritas est”: Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos, agora o amor já não é apenas um “mandamento”, mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro [...] Ele amou-nos primeiro, e continua a ser o primeiro a amar-nos; por isso, também nós podemos responder com o amor. Deus não nos ordena um sentimento que não possamos suscitar em nós próprios. Ele ama-nos, faz-nos ver e experimentar o seu amor, e desta “antecipação” de Deus pode, como resposta, despontar também em nós o amor [...] Amor a Deus e amor ao próximo são inseparáveis, constituem um único mandamento. [...] Deste modo, já não se trata de um “mandamento” que do exterior nos impõe o impossível, mas de uma experiência do amor proporcionada do interior.9

9 BENTO XVI. Carta encíclica Deus caritas est. 2005. n. 1, 17, 18. Disponível em http:// goo.gl/GQI3. Acesso em: 17/10/2014.


O amor na teologia de João

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1.2 A prática do amor na teologia de João Na teologia de João, o amor de Deus tem que se traduzir em ações e obras concretas e jamais deve permanecer apenas no campo das ideias, da teoria, da retórica. Assim o autor exorta a comunidade: Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade (1Jo 3.18). De acordo com Brown, é como se, para João, existisse um único mandamento que inclui todos os demais: “Este é o meu preceito: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15.12). “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13.35). O autor da epístola também, embora fale de mandamentos (no plural), traduz tudo em amor fraterno (1Jo 3.22-24;4.21;5.3). O único mandamento específico que ele pode citar é “amarmo-nos uns aos outros, como ele nos deu o mandamento” (1Jo 3.23); “E este mandamento dele recebemos: aquele que ama a Deus, ame também o seu irmão” (1Jo 4.21). [...] Consequentemente, o único pecado específico que o autor menciona, quando ataca os separatistas e seu descaso em observar os mandamentos, é não amar os irmãos (1Jo 2.9-11; 3.11-18; 4.20).10

Como Jesus manifestou seu amor dando sua vida por nós, assim ninguém dá maior prova de amor do que aquele que oferece a própria vida pelos irmãos (1Jo 3.16). Este é um fato que a Constituição Dogmática Lumen Gentium destaca: O ato supremo de amor, a doação que Jesus Cristo fez de sua vida, é usado pelo autor como referencial para o amor que deve nortear a comunidade. Da mesma forma como “Cristo deu sua vida por nós”, nós devemos “dar a nossa vida pelos irmãos” (1Jo 3.16). A consagração da vida do cristão a Deus deve ser irrestrita, mas, também, a história da igreja e a caminhada da humanidade estão pontuados por atos notáveis de desprendimento e amor de pessoas 10 Cf. BROWN, 1983, p. 137.


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Enviados para servir que, literalmente prontificaram-se a morrer e deram suas vidas, para o bem de seus irmãos e seus semelhantes.11

Todavia o exemplo usado por João para exemplificar o “dar a vida a favor dos irmãos”, não é morrer, mas ver as necessidades do irmão e supri-las: [...] aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus? (1Jo 3.17). Colocando o texto na forma positiva, temos: “Aquele que tem recursos e vê seu irmão passar necessidade e a supre, nele permanece o amor de Deus”. A afirmação do autor é prática e realista. Existem os que têm “recursos” e os que têm “necessidades”. Esse contraste é uma constante e existe tanto nas comunidades cristãs quanto na sociedade em geral, tanto no passado quanto em nossos dias. Mesmo que a gama das necessidades humanas seja inumerável, o texto, por seu fraseado, destaca as necessidades materiais. Os “necessitados” são, preferencialmente os pobres. De acordo com 1Jo 3.17, a ação a favor dos necessitados começa com o olhar: “Aquele que vir12 a seu irmão padecer necessidade”. Uma pessoa deve ter a visão das necessidades dos indivíduos. Ela enxerga o Lázaro à sua porta, o assaltado à beira do caminho, o desabrigado que precisa ser amparado e atende a essas necessidades. Toda ação diacônica começa com uma visão das necessidades que resulta em uma ação concreta para supri-las. Essa visão inspirou a afirmação da Exortação Apostólica Vita Consecrata: 11 LUMEN GENTIUM, Constituição dogmática sobre a Igreja (1964). n. 42 Disponível em http://goo.gl/HbI9. Acesso em: 17/10/2014. 12 O termo grego para “ver”, theoreo, de acordo com Strong (2005, g2334), significa: ser um espectador, ver, observar, olhar atentamente, ter uma visão de, examinar, perceber com os olhos, discernir, distinguir, averiguar.


O amor na teologia de João

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A busca da beleza divina impele as pessoas consagradas a cuidarem da imagem divina deformada nos rostos de irmãos e irmãs: rostos desfigurados pela fome, rostos desiludidos pelas promessas políticas, rostos humilhados de quem vê desprezada a própria cultura, rostos assustados pela violência quotidiana e indiscriminada, rostos angustiados de menores, rostos de mulheres ofendidas e humilhadas, rostos cansados de migrantes sem um digno acolhimento, rostos de idosos sem as mínimas condições para uma vida digna.13

1.3 Orientações para a vida de consagração a partir dos textos de João A teologia dos escritos do apóstolo João em todos os textos, com destaque para 1Jo 3.16-18, com sua ênfase no amor e no serviço, é uma fonte de orientação e inspiração para os cristãos que têm a visão de viver uma vida de consagração e serviço a Deus e ao próximo. Entre essas percepções, listamos: a. A essência do ser divino é amor: Deus é amor (1Jo 4.8). O amor de Deus é um amor irrestrito que abrange, envolve, o “mundo” (Jo 3.16) de forma incondicional. Esse amor “é manifestado à humanidade através da morte de Jesus Cristo, seu Filho, cujo sacrifício cancelou os pecados dos homens. Se quisermos saber o que é o amor, o veremos supremamente neste ato”.14 b. O amor precisa ser “conhecido” o que implica em uma experiência pessoal, e não em um mero conhecimento teórico. 13 VITA, 1996, n. 75. 14 MARSHALL, I. Howard. Teologia do Novo Testamento: diversos testemunhos um só evangelho. (São Paulo: Vida Nova, 2007): p. 466.


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Enviados para servir

c. “O amor a Deus deve ser expresso na obediência ao seu mandamento, que nos ordena amar uns aos outros”.15 d. O nosso amor é sempre uma resposta ao amor de Deus, que nos amou primeiro. A dádiva do amor de Deus nos capacita a amar ao nosso próximo. e. O sacrifício de Cristo “dando sua vida por nós” foi o ato culminante de sua consagração a Deus. Em obediência à vocação divina (cf. Jo 4.32-34), renunciou à constituição uma família a fim de estar completamente disponível para a sua missão (cf. Jo 17.4). Desse modo, a consagração de Cristo é exemplo, inspiração e força para todos os que, respondendo ao chamado de Deus, consagram sua vida a Deus optando pela vida célibe16 por causa do Reino de Deus. f. O apóstolo João sublinha na sua primeira carta que Cristo serviu dando sua vida na cruz e, no Evangelho, apresenta Jesus como o Servo que lavou os pés dos discípulos (cf. Jo 13.1-17). No ensino joanino, pelo fato de Jesus ter lavado os pés dos discípulos, devemos lavar os pés uns dos outros e, assim como deu a vida por nós, devemos dar a vida pelos irmãos. Esse “dar a vida” é interpretado pelo apóstolo como ver as necessidades dos irmãos e supri-las. g. O amor de Deus não deve ser apenas conhecido, mas deve “permanecer” (meno) no coração. Esta palavra, 15 MARSHALL, 2007, p. 466. 16 A palavra “célibe”, referindo-se àquele que não casou, que está solteiro, ou como sinônimo de “celibatário”, é usual no espanhol e não aparece nos verbetes dos dicionários de língua portuguesa. Todavia é usada frequentes vezes em nosso vernáculo.


O amor na teologia de João

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meno, é um conceito-chave para a comunidade cristã. Não se trata apenas de conhecer o amor de Cristo, mas de permanecer em Cristo (cf. Jo 15.4-7) como um ramo na videira, e permanecer no amor de Cristo (cf. Jo 15.9s) e de Deus (cf. 1Jo 3.17). Quem “fecha seu coração para o irmão em suas necessidades, nele o amor de Deus não permanece” (cf. 1Jo 3.17).


Enviados para servir é mais do que um título para um livro: é a síntese do ser cristão. Jesus Cristo nos dignifica como participantes da vocação divina: “Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio”. O autor, teólogo e professor, Fred Bornschein, nos leva a uma profunda reflexão bíblica, sustentada por uma atitude de quem serve ao Senhor com alegria. A Irmandade Evangélica Betânia considera um privilégio ter, há muitos anos, o pastor Fred Bornschein fazendo parte da liderança, sendo por oito anos o presidente da entidade. Agradeço a ele por ter escrito este livro. Jesus Cristo está em busca de pessoas, independentemente de idade, profissão ou estado civil, que respondam: “eis-me aqui!”. Gabriele Kumm


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