Indígenas no nordeste

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INDIGENAS NO

NORDESTE



BARBARA BURNS E THOMAZ LITZ (ORGS.)

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INDIGENAS NO

NORDESTE HISTORIA, IDENTIDADE E EVANGELHO 1ª edição

Curitiba/PR 2021


Barbara Burns e Thomaz Litz (Orgs.)

Indígenas no Nordeste História, identidade e Evangelho

Coordenação editorial: Claudio Beckert Jr. Revisão: Josiane Zanon Moreschi Capa: Endrik Silva

Diagramação: Josiane Zanon Moreschi

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sueli Costa CRB-8/5213

Indígenas no Nordeste: história, identidade e evangelho / Barbara Burns, Thomaz Litz (organizadores). – Curitiba, PR : Editora Evangélica Esperança, 2020. 192 p. ISBN 978- 65-87285-22-1 1. Índios - Nordeste brasileiro III. Título.

2. Indígenas – Cristianismo

I. Burns, Barbara

II. Litz, Thomaz CDD-254.1

Índices para catálogo sistemático:

1. Índios do Brasil : Missões 254.1

Salvo indicação, as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia na versão Nova Almeida Atualizada © Sociedade Bíblica do Brasil, 2017. Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução total e parcial sem permissão escrita dos editores.

Editora Evangélica Esperança Rua Aviador Vicente Wolski, 353 - CEP 82510-420 Curitiba - PR Fone: (41) 3022-3390

comercial@editoraesperanca.com.br www.editoraesperanca.com.br


Sumário

Prefácio...........................................................................................................7

Introdução.....................................................................................................11 1 - Novos Tempos, Nova História, Novos Desafios................................................17

2 - Preconceito, alteridade e (in)visibilidade: uma abordagem antropológica dos índios do Nordeste............................35 3 - Cinco desafios no plantio de igrejas....................................................................51

4 - Plantio de igrejas em comunidades tradicionais (indígenas) do Nordeste do Brasil.................................................................................................63

5 - Discipulado e formação de líderes eclesiásticos indígenas evangélicos no Nordeste do Brasil........................................................................97

6 - O perfil do plantador de igrejas pioneiro entre indígenas do Nordeste...................................................................................................................125

7 - Indígenas na região Nordeste: uma visão geral..........................................145 Reflexões Finais...................................................................................................................173 Anexo 1: Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (CONPLEI)....................................................................................177

Anexo 2: Aliança Evangélica Pró-Indígenas do Nordeste (AEPIN)...............179 Anexo 3: Seminário Juvep — Teologia e Missões.................................................181



Prefácio

N

aquela noite quente de novembro eu passei no hotel para pegar o paraninfo da turma concluinte do Seminário Teológico da Missão Juvep, cujo Culto Solene de Colação de Grau incluía os formandos do nosso Centro de Preparo Missionário. A igreja deveria superlotar e eu estava muito contente.

O ilustre paraninfo, nosso amigo há anos, estava à vontade e fomos conversando ao longo dos catorze quilômetros sobre os desafios missionários do Nordeste. Ele enfatizava as necessidades dos indígenas do Brasil e foi mostrando que as etnias nordestinas eram tão esquecidas pela igreja brasileira que nem as missões indígenas lhes davam a atenção de que careciam. Confesso, eu não sabia disso, pois até aquele momento não me interessava muito pelos indígenas de nossa região, nunca havia visitado uma aldeia e nem lido muito sobre o tema. Mas o paraninfo disse coisas que me comoveram, até que desfechou a última flechada: “Sérgio, eu gostaria de ver a Juvep levantar a bandeira dos indígenas do Nordeste como levantou a bandeira do Sertão”. Acertou-me em cheio! A flechada, bem dada, me traspassou de modo que aquela frase/flecha foi fincada na memória do meu coração. Nunca esqueci! Nesse tempo Deus foi colocando no nosso coração, e de toda Juvep, um crescente interesse pelos povos minoritários do interior nordestino também presentes no Sertão, que sempre foi nossa grande paixão.

Começamos a ler, pesquisar e encontrar informações que inflamavam cada vez mais nosso peito: os indígenas, quilombolas e ciganos do Nordeste


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eram bem menos alcançados que os sertanejos! “Ôxe, será verdade?”, pensava com meus botões... era! Esses três povos possuíam no máximo 3% de crentes, bem menos que os sertanejos. Algo desolador! Pelo menos, para quem ama Jesus e os povos da terra e quer ver o Senhor salvando essa gente e exaltado entre todos eles. Nesse tempo Alisson Medeiros foi se envolvendo com pesquisas missionárias, trazendo-nos informações que contribuíam para entendermos melhor o tamanho desses desafios, e em que estávamos nos metendo! O tempo foi passando, passando...

Em abril de 2012, Henrique Terena, líder do CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas) foi um dos preletores do Congresso Juvep e em um café da manhã eu contei a história da flechada (lembra?) e fiz um apelo: “Se conhecer algum especialista em missões indígenas que está em transição ministerial fale que precisamos de ajuda”. Henrique foi muito usado por Deus em suas pregações, seus desafios em favor da evangelização dos primeiros habitantes do nosso país me tocaram ainda mais. Os indígenas do Nordeste já faziam parte de nossos alvos, mas ainda só em oração. Henrique Terena ficou com nosso apelo guardado no peito.

Em outubro do mesmo ano, por iniciativa do nosso ex-paraninfo, foi realizada na sede da Missão Juvep a Consulta Indígenas do Nordeste com apenas dezessete participantes, mas foi marcante! Pela primeira vez os dados de pesquisas estavam sendo unificados e algumas informações que vinham à luz eram desconhecidas pela igreja. Foi chocante o descortinar de uma realidade tão triste sobre a presença (ou ausência!) do Evangelho das etnias indígenas do Nordeste. No final nosso ex-paraninfo sugeriu que, para dar continuidade aos objetivos da Consulta, fosse criada uma coalizão em favor da evangelização e plantio de igrejas entre as etnias indígenas de nossa região. Assim foi criada a Aliança Evangélica Pró-Indígenas do Nordeste. “Ideia brilhante!”, pensei. “E por que não fazer consultas semelhantes no próximo ano?” Esse tipo de consulta para mobilizar líderes estratégicos é estratégico! Compartilhei com a liderança da Juvep sobre a ideia de fazer de 2013 um ano de eventos pequenos e estratégicos focados no desafio da evangelização e plantio de igrejas entre sertanejos, ciganos e quilombolas do Nordeste. Dois mil e treze foi um ano inesquecível, sabe? Começou com a Consulta Pró-Quilombolas, convidamos nosso ex-paraninfo para coordenar e ele


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aceitou, mas em troca nos desafiou: “Vamos fazer uma consulta para os quilombolas do Brasil, não apenas do Nordeste, pois nunca foi realizada uma consulta dessas”. O desafio foi aceito e em menos de 50 dias reunimos representantes de 14 estados brasileiros. Deus estava agindo! Depois vieram as consultas do sertão e dos ciganos, foram ótimas! A partir daí começaram a ser tecidas as Alianças dos demais segmentos.

Então alguém teve a ideia de realizar em 2015 uma multiconsulta, a Consulta Nacional Povos Minoritários do Brasil, e de uma só tacada reunir líderes para pensar e trocar ideias sobre a evangelização dos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, ciganos e sertanejos sob a coordenação da AMTB e assessoria da Juvep. Mais uma vez a sede da Juvep hospedou corações apaixonados por ver Jesus glorificado entre os minoritários do nosso país. Nosso ex-paraninfo, que também coordenou a multiconsulta, ficou muito contente, como todos os líderes presentes e eu. A essa altura já estávamos atuando com ciganos e quilombolas, mas ainda nada de concreto em favor dos indígenas. O tempo foi passando... passando...

Em 2016 Henrique falou para Ricardo Poquiviqui sobre nosso interesse pelos indígenas do Nordeste e, para encurtar a história, em janeiro de 2018 a Família Poquiviqui montou sua oca em definitivo em nossa cidade, nas proximidades de nossa aldeia, quer dizer, da sede da Missão Juvep.

Todo esse movimento e a presença da Família Poquiviqui inspirou a equipe do nosso Centro de Preparo Missionário a organizar em 2019 o Aperfeiçoamento Missionário Indígenas, com foco nas etnias do Nordeste, que foi marcante e a primeira vez que várias organizações se sentaram para compartilhar as realidades e desafios desse tema tão importante. A presença de Carlos Carvalho (Instituto Bíblico Peniel, MNTB), Flávio Veras (UniEvangélica), Edward Luz (Missão Novas Tribos do Brasil ), Edmilson Almeida (ANAJURE), Iraquitan Carvalho (Juvep/WEC) e Thomaz Litz (Juvep) deram ao Aperfeiçoamento Missionário Indígenas uma marca especial de paixão, compromisso e dedicação que influenciou cada participante nas aulas de rico conteúdo e nos momentos devocionais permeados de piedade e adoração, encorajando os presentes a servirem ao Senhor entre os indígenas nordestinos com todo empenho, para que Jesus seja exaltado por todas as etnias do Nordeste brasileiro por um número cada vez maior de indígenas.


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O ambiente fraterno do Aperfeiçoamento Missionário Indígenas foi tão inspirador que surgiu a ideia de espalhar seu conteúdo através da organização deste livro que você tem em mãos.

Nossa expectativa é que esta obra, que reúne a experiência e a piedade dos seus colaboradores, seja uma bênção para os plantadores de igrejas entre os indígenas do Nordeste do Brasil, e inspire o surgimento de muitos outros. Nós da Juvep desejamos que através do nosso Departamento de Missões Indígenas façamos nossa parte neste imenso desafio, aprendendo e somando com as missões que já atuam nessa seara há mais de meio século, como a MNTB, a JMN da CBB, a APMT, ALEM, MEIB e outras mais.

O meu desejo sincero é que o Senhor levante casais, solteiros, igrejas e apoiadores mais que suficientes para que, nos próximos dez anos, vejamos iniciativas missionárias engajadas em todas as etnias indígenas do Nordeste, o Evangelho tocando em todas as suas aldeias, e muitíssimos indígenas alcançados pela graça de Deus, louvando e exaltando ao Senhor Jesus Cristo. Que assim seja! Agradeço a Deus pela oportunidade que nos dá de servirmos à sua igreja e aos indígenas nordestinos por meio deste livro. Minha gratidão se estende aos colaboradores e a Thomaz Litz e Barbara Helen Burns, os organizadores. Ah, não poderia deixar de agradecer ao nosso ex-paraninfo, que faz parte dessa história, nosso querido irmão Ronaldo Lidório. E agradecemos à Editora Esperança pela parceria que viabilizou o seu lançamento e chegar às suas mãos. Agora, aproveite ao máximo a leitura das próximas páginas e que elas fortaleçam o seu compromisso de conduzir os povos indígenas do Nordeste brasileiro aos pés de Cristo. Sérgio Ribeiro

Fundador e Presidente da Missão Juvep João Pessoa / PB, Outono de 2020


Introdução

É

um privilégio participar desta publicação, tanto pela relevância do tema quanto pela admiração que tenho pelos editores e autores. Minha oração é para que este livro seja usado por Deus no despertamento, encorajamento e direcionamento da igreja brasileira rumo a uma relação amorosa, respeitadora e frutífera entre os indígenas do Nordeste.

Há três perspectivas que devem ser inicialmente apresentadas ao olharmos para as diversas etnias indígenas no Nordeste brasileiro. A primeira é teológica, abordando as intenções e motivações nesse relacionamento. A segunda é sociocultural, observando a complexa realidade das etnias da região. Por fim, estratégica, indicando caminhos para uma relação biblicamente fiel e culturalmente aplicável.

Em uma perspectiva teológica, há uma profunda correlação entre quem somos em Cristo Jesus (nossa identidade) e o que somos chamados a fazer (nossa missão). O apóstolo Pedro relacionou identidade e missão ao afirmar que somos ... geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, com um propósito: ... a fim de proclamar as virtudes daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (1Pe 2.9). O Senhor Jesus fez o mesmo ao declarar que somos sal da terra e luz do mundo, alertando-nos sobre nossa identidade — sal e luz — a qual deve estar associada a nossa missão, sob o risco de nos tornarmos um sal sem sabor e uma luz que não brilha. Conclui com um comando: “Assim brilhe também a


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luz de vocês diante dos outros, para que vejam as boas obras que vocês fazem e glorifiquem o Pai de vocês, que está nos céus” (Mt 5.13-16). No ensino de Cristo a nossa missão — salgar e brilhar — deve ser pública (“diante dos outros”), visível (“para que vejam as boas obras que vocês fazem”) e resultando sempre na glória de Deus (“e glorifiquem o Pai de vocês, que está nos céus”).

Nessa dimensão, a Palavra apresenta uma missão geral e uma particular para a igreja. A missão geral envolve tudo o que somos e tudo o que fazemos. Fazer um curso universitário, ajudar o caído e necessitado, realizar uma pesquisa médica, promover a limpeza em uma área poluída, viver, trabalhar, se divertir, tudo o que fazemos deve acontecer a partir da cosmovisão cristã, pelos motivos cristãos e para a glória de Cristo.

Mas há uma missão particular, aquilo que somente a igreja, aqueles que creem e seguem o Senhor Jesus, pode cumprir. Essa missão não será cumprida por governos, ONGs, instituições privadas ou voluntários, mas pela igreja. Trata-se da comunicação do Evangelho de Cristo. E essa missão é exclusiva, singular e intransferível. É exclusiva, pois não há outro corpo, grupo ou comunidade, além da igreja, com o chamado para a proclamação da verdade de Cristo. Nem mesmo os anjos. É singular, pois não há nada igual à evangelização. Nada substitui a sincera e bíblica comunicação da mensagem de que Deus se encarnou, viveu entre nós, foi morto pelos nossos pecados, ressuscitou, está vivo, voltará e governará em um reinado eterno. É também intransferível, pois a igreja não deve — nem pode — terceirizar aquilo para o que foi chamada a fazer.

A missão da igreja não se reduz a um lugar, povo ou época. Toda a Palavra demonstra o determinante plano de Deus de ser conhecido e adorado entre todos os povos da Terra. Em Gênesis 12 Deus chamou Abrão e prometeu abençoá-lo para que nele fossem abençoadas todas as famílias da terra (Gn 12.3). Os Salmos afirmam que O Senhor fez notória a sua salvação; manifestou a sua justiça diante dos olhos das nações (Sl 98.2). E conclamam: Louvem o Senhor, todos os gentios; que todos os povos o louvem” (Sl 117.1). Apocalipse afirma, na visão de João sobre Deus entronizado, que haverá perante ele pessoas redimidas “de toda tribo, língua povo e nação (Ap 5.9). É desejo manifesto de Deus que todos os povos conheçam a sua salvação e coube à igreja a missão de transmitir essa mensagem.


Introdução

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Entendo, assim, que a missão evangelizadora da igreja deve ser universal, pois envolve todo o mundo; multicultural, aplicada a cada povo, língua, tribo e nação; e transtemporal, em todas as gerações. E em meio a esse desafio global parece haver uma prioridade das prioridades, bem resumida pelo apóstolo Paulo quando aponta para “onde Cristo não foi anunciado” (cf. Rm 15.20). É ali, entre os que pouco ou nada ouviram do Senhor Jesus, que deve estar a prioridade máxima da igreja para semear a boa semente do Evangelho. Dessa forma, a igreja de Cristo e, de forma particular, a igreja brasileira, é chamada por Deus a compartilhar o Evangelho de Cristo a todas as nações, incluindo e também priorizando os povos indígenas do Nordeste de nosso país, tendo em vista não haver igrejas evangélicas em 29 das 58 etnias indígenas do Nordeste.1 No cumprimento da missão devemos centralizar o Evangelho de Cristo tendo em mente que, em uma visão bíblica, esse Evangelho jamais promove a luta das classes, mas a luta contra o pecado; não vem vitimizar ou exaltar o ser humano, mas redimi-lo na cruz de Cristo; não é motivado pelo potencial de simples aperfeiçoamento social, mas pela convicção de que todos pecaram e igualmente carecem da graça de Deus (Rm 3.23; 6.23; Ef 2.4s). A segunda perspectiva que abordo é a sociocultural. Devemos observar que as etnias indígenas do Nordeste fazem parte de um universo antigo e complexo. Antigo, pois a história desses povos antecede em muito a chegada dos europeus na era colonial. E complexo, pois o panorama tem sofrido crescentes mudanças, incluindo a vitalidade linguística.

O cenário é preocupante, pois 27% das línguas sul-americanas não são mais aprendidas pelas crianças2 e, das mais de 1.200 línguas faladas na época colonial, mais de 80% se perdeu.3 Essa perda se deu em todo o território brasileiro e, de forma talvez ainda mais acentuada, no Nordeste. Além disso, a realidade é sensível em outras áreas. Vários desses povos vivem debaixo de forte pressão identitária, visto que há um estereótipo indígena que a sociedade brasileira tem em mente (o índio na mata, falando uma língua diferente e distante da sociedade externa) levando ao distanciamento daqueles que não se adequam a essa imagem. 1 2 3

MEDEIROS, 2018, 99. KRAUS, 1992. RODRIGUES, 1993.


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Assim, creio ser importante caminharmos com os povos indígenas do Nordeste a partir de uma relação de reconhecimento e respeito a três realidades vitais: sua identidade atual, não o estereótipo do imaginário coletivo; sua diversidade étnica, visto que cada grupo possui sua história, sua identidade e seu contexto; e seu processo de urbanização, tendo em mente que as etnias indígenas no Nordeste participam, em diferentes medidas, da vida ou da influência urbana. Quanto à perspectiva estratégica, faço algumas breves considerações. Em primeiro lugar, estou convencido de que é por meio da comunhão do povo de Deus que a missão será cumprida. João 13.35 nos ensina que seremos vistos pelo mundo como verdadeiros discípulos de Cristo à medida que amarmos uns aos outros. Assim, é momento de juntar forças e resistir a qualquer inclinação à competitividade. O último encontro promovido pela Aliança Evangélica Indígenas do Nordeste e apoiado pela AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras) em Serra Talhada/PE, em 2019, foi um ótimo exemplo em que irmãos e irmãs estrangeiros, brasileiros e indígenas, representantes de diversas denominações, agências missionárias e igrejas, se juntaram em verdadeira comunhão enquanto partilhavam realidades e discutiam caminhos. Que Deus nos dê um espírito de colaboração e não competição em nome de Jesus.

Em segundo lugar, devemos buscar um sincero relacionamento pessoal como paradigma de ação missionária. Alguns movimentos missionários são orientados por projetos, eventos e modelos formais. Entendo que o trabalho com os povos indígenas, e nesse caso com os indígenas do Nordeste, ganhará raízes profundas na medida em que cultivar os relacionamentos pessoais. Conhecer pessoas e não estatísticas; conversar com gente e não com projetos; viver entre comunidades, não apenas promover eventos. Essa parece ser uma abordagem adequada para uma relação saudável, respeitosa e significativa. Assim, o perfil missionário para tais ações deve envolver também esse aspecto: pessoas que valorizam o contexto e buscam relacionamentos sinceros e prolongados na presença de Deus. Devemos ter em mente que em 1 Tessalonicenses 1.5 Paulo afirma que o Evangelho floresceu naquela cidade também pelo ... nosso modo de agir entre vocês e para o próprio bem de vocês. E no verso seguinte ele aponta o resultado: eles passaram a seguir Cristo.


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Introdução

Em terceiro lugar, devemos considerar as diferentes realidades ao promover o conhecimento do Evangelho, não simplesmente copiar modelos de outros trabalhos entre indígenas brasileiros ou qualquer outro contexto. A região Nordeste possui suas próprias particularidades. Muitas etnias não falam mais as línguas tradicionais, usando agora o Português. Isso não significa, porém, que não tenham uma cosmovisão distinta. É necessário um estudo responsável de cada cultura para uma comunicação saudável, não confundindo acesso linguístico com acesso cultural. Outra particularidade é a urbanização. Boa parte das etnias indígenas do Nordeste se relaciona ou transita com frequência em regiões urbanas. E várias são urbanizadas. Não devemos pensar, porém, que o contexto seja imperativo. Assim, os indígenas, mesmo aqueles que vivem plenamente em contexto urbano distinto de sua realidade tradicional, continuam — em boa medida — mantendo uma forma própria de pensar e entender o universo ao seu redor, sua cosmovisão. Torna-se altamente necessário primeiramente conhecer a cultura antes de comunicar o Evangelho, a fim de que a comunicação seja teologicamente fiel e culturalmente inteligível e aplicável.

Minha oração é para que a igreja de Cristo se sinta profundamente movida pelo Senhor para amar, se relacionar e partilhar o Evangelho com todos, inclusive os povos menos evangelizados no Brasil e, nessa ênfase, os povos indígenas do Nordeste. E o faça debaixo da poderosa autoridade da Palavra e doce presença de Cristo. Ronaldo Lidório

Missionário da WEC / APMT

Referências bibliográficas KRAUSS, Michael. The world’s languages in crisis. Language, 68, 6-10. 1992. MEDEIROS, Alisson. Relatório Como Ouvirão. (Missão Juvep, 2018.)

RODRIGUES, Aryon. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. DELTA, V. 9, N.1, p. 83-103. 1993.



1 Novos tempos, nova história, novos desafios Carlos A. L. Carvalho4

“Chegou a hora de a etnologia enfrentar a turbulência.” Claude Lévi-Strauss, Histoire et Ethnologie

“O pensar nos ameríndios, uma espécie de clinamen5 filosófico parece indispensável para que, em qualquer setor do cosmos ou da sociedade, as coisas não permaneçam em seu estado original e que um dualismo instável, em qualquer nível que esteja, sempre resulte em outro dualismo instável.” Claude Lévi-Strauss, Histoire et Ethnologie

Uma velha história... Uma nova realidade. As citações acima nos levam a pensar no quão distantes temos andado da verdade, tanto histórica quanto antropologicamente, das sociedades indígenas, com especial ênfase nos grupos do Nordeste brasileiro. Em grande medida nossa percepção da indigeneidade destes grupos tem sido ofuscada pela presunção de que “índio de verdade” vive na selva, usa pouca ou 4

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Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana, pós-graduado em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitário de Anápolis-GO, com experiência nas áreas de Antropologia e Linguística aplicadas ao ministério missionário transcultural e como docente nas áreas de Teologia, Antropologia e Linguística no treinamento missionário. Clinamen: nome latino que Lucrécio deu ao desvio imprevisível de átomos, a partir da doutrina atomista de Epicuro.


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nenhuma “roupa de branco” e que fala uma língua ancestral pouco conhecida. Todo este estereótipo, que não deixa de ser real ainda para muitos povos chamados “povos da selva” — isolados ou de recente contato com a sociedade não indígena envolvente — não se aplica aos grupos nordestinos, sejam grupos historicamente conhecidos ou aqueles que foram considerados aculturados, mestiçados ou mesmo extintos, até os grupos novos, sociopolíticos, que chamarei de etnizados. Como consequência deste equívoco a missiologia tem tratado tais grupos como de menor interesse para o olhar transcultural, uma vez que os classificamos como sem língua nativa e “sem cultura”. Não é preciso dizer que tanto o termo quanto a ideia são absurdos, mas falas como esta são comuns nos meios missiológico e missionário, e geraram um abandono destes povos, entregando-os aos esforços das igrejas locais daqueles rincões no alcance das populações sertanejas.

Ocorre que estas mesmas igrejas locais são compostas por populações que historicamente têm vivido em conflito com os grupos indígenas desde os primeiros dias da colonização. Nos dias atuais, cidades inteiras vivem em conflito com aldeias urbanas, vivendo uma no limiar da outra ou, muitas vezes, uma dentro da outra, ao ponto de alguns estudiosos usarem hoje os termos “aldeia urbana” e “cidade indígena”.

É extremamente importante este momento que vivemos de uma discussão aberta sobre essa questão. É imperativo que tomemos consciência dessa nova realidade que inclui tanto uma revisão histórica do processo de colonização, mestiçagem, aculturação ou reorganização cultural, pseudoextinção, ressurgimento e até o que chamo de etnização ou etnogênese, e que, à luz disso, possamos rever nossa maneira de pensar os indígenas nordestinos e nossas estratégias de treinamento de missionários e de atuação entre estes povos, de forma a conhecer e respeitar suas origens e sua história, para podermos comunicar-lhes um Evangelho compreensível e relevante. Para tanto, quero traçar um caminho resumido da história, desde o descobrimento das terras e dos povos brasileiros até a situação atual das populações indígenas remanescentes no nosso Nordeste, especialmente dentro do período quinhentista, que, conforme observo, nos dá um esboço da história dos últimos quinhentos anos.


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Mas o que justifica essa revisão histórica com relação aos povos indígenas da nossa região Nordeste? Em primeiro lugar, Nordeste porque foi a primeira região do país a sofrer a influência da colonização e seus povos foram os primeiros a experimentar a invasão, a perseguição, a escravidão e a destruição do seu mundo e modo de vida. Em segundo lugar, uma revisão histórica, neste caso, se justifica pelo fato de não buscar a negação de algo que aconteceu, como no caso do holocausto judeu, mas da afirmação de atos e fatos históricos que foram omitidos e “apagados” pela história contada pelos colonizadores.

A Realidade a partir da História “A reflexão sobre o lugar dos índios (nordestinos) na história, considerando sua invisibilidade enquanto sujeitos históricos no século XIX e o protagonismo crescente revelado pela historiografia atual, implica, a meu ver, analisar de forma conjunta algumas questões [...] Refiro-me à política indigenista do Império, à cultura política indígena, ao nacionalismo e à etnicidade, enfocando a problemática das controvérsias e imprecisões sobre as classificações étnicas e os conflitos de terra nas antigas aldeias coloniais.”6

Embora não seja específico sobre os índios no Nordeste, o livro Os índios e a Civilização, com o subtítulo A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno, do antropólogo Darcy Ribeiro, teve a primeira edição publicada no Brasil em 1970. No capítulo “Os Índios do Nordeste” o autor fez uma retomada histórica sobre os processos de esbulhos às terras indígenas na Região. Ao tratar dos indígenas que habitavam no Sertão do São Francisco o antropólogo afirmou que em função da expulsão dos seus territórios, os índios se dispersaram, vivendo, no início do século XX, “aos bandos que perambulavam pelas fazendas, à procura de comida”, e de forma pejorativa, e talvez sarcástica, completou: “vários magotes desses índios desajustados eram vistos nas margens do São Francisco.7

Desde os primeiros momentos da chegada dos Portugueses ao litoral Nordeste brasileiro, as populações indígenas ali presentes em grande número e diversidade foram abruptamente confrontadas com a realidade de que havia outros mundos, diferentes, assustadores e perigosos. Estas novas criaturas 6 7

ALMEIDA, 2003. (Ênfase acrescentada pelo autor) RIBEIRO, 2017.


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não apenas se vestiam e tinham uma aparência diferente, mas falavam uma “voz estranha” e se comportavam de maneira pouco educada e desrespeitosa. A invasão de domicílio e de privacidade, era vista pelos recém-chegados como natural, uma vez que estas criaturas não eram na verdade humanas.

Pero Vaz de Caminha, poucos dias depois do “achamento”, declarava que “… eles, segundo parece, não têm nem entendem nenhuma crença”. Também pouco tempo depois de sua chegada, em sua “informação das terras do Brasil” (agosto de 1549), o padre Manuel da Nóbrega afirmava categoricamente que “esta gentilidad a ninguna cosa adora”. Pero Magalhães de Gândavo, em 1570, e Gabriel Soares de Souza, em 1587, escreviam que os índios não têm “nem fé, nem lei, nem rei”. Também para o jesuíta Cardim, “este gentio não tem conhecimento algum de seu Creador, nem de cousa do Céo… e, portanto, não tem adoração nenhuma, nem cerimônias, ou culto divino”.8

A Europa clássica, centro do desenvolvimento nos idos de 1500, não apenas observava as populações do novo mundo como algum nível inferior de gente, ou menos que isso, mas ainda as avaliava pelo filtro do olhar religioso cristão católico romano, pelo qual se desenvolveu a ideia de paganismo ainda hoje presente em alguns círculos. Tanto o contato inicial quanto os primeiros anos do pós-contato geraram graves problemas para as populações indígenas. Doenças, mortes, que na verdade aconteceram dos dois lados, sobretudo entre os nativos, dominação, apropriação de terras, tudo isso contribuindo para um processo de colonização destrutivo.

Diferentemente do negro africano, que posteriormente também seria inserido como variante nesta equação, o índio não se sujeitaria à dominação e à escravidão, apesar de muitas das tribos dominantes também fazerem seus escravos entre os grupos que venciam nas inúmeras guerras indígenas. Algumas cobravam tributo e intimidavam os grupos menores ou menos representativos. Contudo, uma combinação de características culturais provou não permitir que os índios se mostrassem bons escravos dos colonos portugueses. Ainda que para muitos dos escritores e historiadores da época o índio fosse “preguiçoso” e de “pouco lidar”, satisfazendo-se apenas da caça e da pesca, o tempo mostrou que este estilo de vida não era, de maneira alguma, fácil nem de pouco trabalho. 8

CAMINHA, 1999.


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O regime de escravidão não foi apenas um suplício físico para os indígenas, também foi um suplício espiritual. Além das diversas atividades a que foram submetidos — como ocorre em qualquer regime escravocrata — os indígenas, por sua natureza de liberdade e extrema ligação com o meio ambiente, sofreram desde muito cedo pelo afastamento total de seu meio, de seus companheiros e, mais ainda, de sua cultura e religiosidade. Eram submetidos a uma catequese da qual nada entendiam, além de serem obrigados a um batismo totalmente sem sentido, bem como a adotar nomes de origem europeia. Obrigados a trabalhos forçados, tanto nas fazendas quanto nos meios urbanos, desestruturaram-se completamente. Vieram as doenças, a fraqueza física, a saudade e a desesperança. Viram-se perdidos em seu novo meio, tornando-se alvo fácil para o vício da bebida. O alcoolismo generalizou-se entre eles e a degradação como seres humanos levou-os à morte prematura. Nada disso incomodava os colonos, pois novas presas poderiam substituir aquelas que se fossem. Já o negro africano, na visão dos colonizadores, se mostrou muito mais “próprio” e resistente ao trabalho escravo, já que, mesmo tendo o desejo ardente de ser livre, demonstrava esperança de um futuro de liberdade e uma resistência passiva, conferindo-lhes uma disposição para continuarem vivos, mesmo como escravos. Mas esta história dos primeiros habitantes das terras brasileiras e de como eles conheceram os habitantes do velho mundo, que chegavam curiosos e ávidos pelos tesouros do novo mundo, se desenrolou de maneira inicialmente pacífica, mais pelo temor mútuo, pela estranheza, e menos pelo respeito, e logo se transformou em uma história de dominação, espoliação e destruição, como nos conta Antonio Carlos Olivieri, escritor e jornalista: O contato inicial entre índios e brancos não chegou a ser predominantemente conflituoso. Como os europeus estivessem em pequeno número, podiam ser incorporados à vida social do índio, sem afetar a unidade e a autonomia das sociedades tribais. Isso favoreceu o intercâmbio comercial pacífico, as trocas de produtos entre os brancos e os índios, principalmente enquanto os interesses dos europeus se limitaram ao extrativismo do pau-brasil. Em geral, nas três primeiras décadas de colonização, os brancos se incorporavam às aldeias, totalmente sujeitos à vontade dos nativos. Mesmo em suas feitorias, os europeus dependiam de articular alianças com os indígenas, para garantir a alimentação.9

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OLIVIERI, 2014.


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Toda a história dos quatro séculos seguintes pode ser vista claramente na sequência de eventos do primeiro século da colonização, isto é, os chamados quinhentos.

Desde os primeiros momentos da chegada ao que seria o Brasil, a corte portuguesa via aqui a grande oportunidade de ampliar e renovar seus recursos e riquezas escassos no contexto da Europa. Assim, em pouco tempo a corte portuguesa tomou medidas para que a terra fosse dominada e explorada. Inicialmente terras que iam desde a costa do Pará até a Bahia foram dadas em consignação a alguns nobres e pessoas de considerável posição na sociedade portuguesa na colônia. Mas estes primeiros signatários não tiveram muito sucesso na administração dessas terras, o que levou o Rei D. João a alterar um pouco o regime de colonização criando assim as capitanias hereditárias que teriam uma administração mais oficial e ligada ao estado português. Uma carta foi despachada pelo rei de Portugal, D. João III, em 20 de novembro de 1530, concedendo jurisdição a Martim Afonso de Sousa sobre todos os integrantes de sua armada e todos os habitantes do Brasil. Martim Afonso de Sousa pertencia a uma família nobre. Vivendo na corte, foi nomeado pajem do duque de Bragança e, posteriormente, do infante dom João, futuro rei de Portugal. Em 1521, foi para Castela, acompanhando a corte de dona Leonor, viúva do rei dom Manuel. A carta dizia: A quantos essa minha carta de poder virem, faço saber que eu a envio ora a Martim Afonso de Sousa do meu conselho por capitão-mor da armada que envio à terra do Brasil e assim de todas as terras que ele achar e descobrir [...] aos capitães da dita armada, e fidalgos, cavaleiros, escudeiros, gente de armas, pilotos, mestres, mareantes e todas as outras pessoas que haja ao dito Martim Afonso de Sousa por capitão-mor da dita armada e terras e lhe obedeçam em tudo e por tudo o que lhes mandar.10

Essa divisão e distribuição de terras, além de não dar certo e gerar então o surgimento das Capitanias Hereditárias, geraria o primeiro grande problema, tanto ecológico quanto social. Para o estabelecimento das fazendas agrícolas, grandes desmatamentos começaram a acontecer e com eles a destruição de grandes áreas de perambulação de muitos povos nativos, os quais se viam agora sob franca agressão do seu modo de vida. 10 OLIVIERI, 2005.


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Ao mesmo tempo os colonizadores perceberam que não poderiam usufruir da terra, plantar, colher sem uma grande mão de obra, e a mão de obra mais à disposição seriam as populações indígenas. Mas, como mencionado anteriormente, as populações indígenas reagiram a este processo enganoso de aproximação por parte do colono, inicialmente amigável, mas que levaria à escravidão, diferentemente da população negra que, aos olhos do colono escravagista, se adaptou bem ao regime de trabalho escravo. Com as populações indígenas isso não ocorreu, suponho, por duas razões. Primeiro, pela situação de exclusão e marginalidade em que desde o início da colonização foram mantidas, sempre submetidas a uma forte e direta tutela, que outorgava a outros o direito de pensar e falar por eles.11

Maria Hilda Paraíso12, da UFBA, nos diz:

Inicialmente cabe chamar a atenção para o fato de que a colonização da América portuguesa exigiu, entre outras questões, repensar as relações de trabalho, passando esse a ser um dos temas centrais de discussão sobre a colonização. [...] O modelo que se buscou implantar tentava conciliar uma base de dominação política, centralizando o poder nas mãos de agentes governamentais e uma organização econômica mercantilista, menos centralizada, que procurava incorporar a atuação e a iniciativa de agentes particulares. [...] Após o fracasso dos arrendamentos de grandes porções do território colonial a particulares, em 1532, a Coroa deliberou por implantar o sistema das capitanias hereditárias.13

O futuro das capitanias, no entanto, foi desastroso, quer pela incompetência administrativa dos donatários, quer pela resistência dos indígenas que de uma forma ou outra já começavam a ser compulsoriamente incluídos no trabalho agrícola e extrativista. Dentre os problemas com os indígenas se destaca a violação de suas terras originariamente de habitação e perambulação com a expansão das fronteiras agrícolas e o aumento gradativo do uso da mão de obra nativa de forma impositiva, compulsória, e, porque não dizer, escravagista. Vale ressaltar aqui que a mencionada “violação de terras de habitação e perambulação” se explica pelo fato de que, por natureza, os povos nativos viviam em um regime de nomadismo ou seminomadismo, já que não eram agricultores nem criadores, mas caçadores, pescadores e coletores. O 11 OLIVEIRA, 2016. 12 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. 13 PARAÍSO, 2011.


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sedentarismo europeu não compreendia isso, e, portanto, não via a necessidade desses povos por terra para a perambulação.

Alguns grupos indígenas, especialmente os grandes grupos litorâneos que primeiro encontraram os europeus, tiveram a impressão inicial de que era possível estabelecer uma relação amigável de escambo, coisa comum ao seu universo, mas logo perceberam que isso não seria possível, e esta relação frágil logo daria lugar à dominação e, claro, à resistência ou às chamadas “guerras indígenas”.

Entre os anos de 1530 e 1546 a política de arrendamento de terras e de capitanias hereditárias foi a tentativa da coroa portuguesa de desenvolver e extrair da terra tudo que pudesse em termos de riquezas para suprir a demanda e a ganância dos reis e nobres. Como já mencionado, tal estratégia não foi adiante por diversos fatores. Além disso, a constante ameaça de outros potenciais colonizadores como França, Espanha e Holanda criava um clima de permanente apreensão e da necessidade de possuir a terra de maneira mais real e eficiente. A relação entre portugueses e indígenas cada vez mais se agravava em toda a região, pois apesar da proposta de convivência amigável, as constantes incursões de colonos nas aldeias em busca de trabalhadores mostrava que a relação não era verdadeira, o acordo de não ataque não era respeitado e demonstrava um claro desrespeito às alianças, até mesmo a alianças matrimoniais que se havia constituído entre colonos e indígenas. Para os indígenas, as únicas maneiras de resistir e protestar contra esses desmandos eram a rebelião e a guerra, mesmo que estas fossem fadadas ao insucesso.

A década dos 1540 foi especialmente marcada por estas revoltas, como conta Paraíso: As contradições e os conflitos se acentuaram na década de 40. Estão registradas as revoltas na Bahia, em 1545; em São Tomé, em 1546; no Espírito Santo, em 1546 e em Porto Seguro, em 1546. Tais eventos preocupavam o governo português ante a vulnerabilidade dos estabelecimentos litorâneos ameaçados pelos ataques dos indígenas e dos franceses, além de representarem graves prejuízos quanto aos investimentos feitos e a perda da vida de moradores que para ali haviam sido deslocados com grande dificuldade pelos donatários.14

14 Ibid.


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João Pacheco de Oliveira nos conta que as primeiras décadas da colonização do Nordeste brasileiro foram marcadas por várias mudanças de paradigma na relação entre a coroa, os colonos e os povos indígenas. Como já foi dito, a sensação inicial de que seria possível a convivência pacífica logo começou a ser substituída pela sensação de trabalho forçado e espoliação de bens e terras.

Outro fator interessante neste momento da história e que perduraria por muito tempo é a visão antropológica evolucionista, que entendia que a evolução das sociedades vem sempre pelo fator externo, isto é, se as sociedades indígenas, se é que podiam ser consideradas sociedades, evoluiriam, seria através da atuação do “civilizado” europeu. Curiosamente, segundo Oliveira, esta compreensão evolucionista da história não é vista apenas no período colonial do século 16, mas também no século 19 e no pensamento antropológico evolucionista europeu. Assim, a dominação colonial e a consequente desintegração e desaparecimento daquelas populações seria um resultado natural do desenvolvimento, no qual o selvagem seria absorvido pelo civilizado, justificando qualquer atuação ou comportamento, sem qualquer preocupação ou lembrança de que antes que o europeu aqui chegasse e se instalasse a farsa do “descobrimento”, o novo mundo e sua população nativa já existiam e aqui viviam e morriam por séculos.

Se, antes da chegada dos portugueses, os indígenas eram os detentores exclusivos dos recursos naturais, a narrativa sobre eles dentro dessa história em ciclos deveria ser feita preferencialmente antes da colonização. Uma vez iniciada, os indígenas só poderiam ser concebidos como flores que fenecem, que precisam ser descritas e compreendidas antes que murchem e desapareçam. A superioridade tecnológica e militar dos colonizadores, as violências e epidemias dariam conta de explicar a sua extinção.15

Como mencionado anteriormente, a relativa paz dos primeiros anos do contato europeu-nativos logo se tornou em conflito de intensidade crescente. A distribuição e tomada das terras nativas, o extrativismo e o comércio do pau-brasil que instalou um regime de mercado e de trabalho forçado, somados à presença e à relação belicosa entre portugueses e seus aliados indígenas e franceses e seus aliados indígenas, foram fatores que, direta e indiretamente, contribuíram para duas vertentes históricas. Primeiro, as 15 OLIVEIRA, 2016, p. 47.


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alianças indígenas-europeus criaram a visão idílica do indígena no cenário europeu, onde essas associações produziriam até mesmo certo prestígio aos monarcas envolvidos.

Contudo, essa crescente relação sociocultural levaria à rápida mudança de costumes e comportamentos dos indígenas, que além de perderem aos poucos suas terras e suas ligações com sua própria história, perderiam também sua identidade através da miscigenação, produzida até mesmo pela prática dos senhores colonos de “gerar” mão de obra casando-se ou mesmo engravidando índias de maneira a produzir uma nova geração de trabalhadores. Mas a miscigenação, ou mestiçagem, como ficou conhecida na história, não se deu apenas com os colonos europeus, mas também entre os diferentes grupos indígenas que vinham para perto das colônias para evitar serem caçados, ou fugiam para os interiores encontrando com outros grupos indígenas, encontros estes que geravam um novo modelo de reorganização cultural.

A realidade dos movimentos migratórios A professora Luana Polon16 nos conta que:

Mesmo antes da chegada dos europeus para a colonização das Américas (aliás, que também não passou de uma migração), já havia um dinâmico fluxo migratório no que hoje denotamos como o território nacional brasileiro, mas estendendo ao espaço continental americano entre os povos indígenas, possibilitando trocas culturais, materiais e econômicas entres as civilizações pré-colombianas e tribos indígenas. Após o século XVI, o território hoje compreendido pelo Brasil, passa a receber imigrantes portugueses (em toda faixa litorânea do Sudeste ao Norte) e espanhóis (ao Sul e Oeste) no sentido de explorar e colonizar o continente. Além destes, há uma migração francesa, no sentido de disputar territórios com as nações ibéricas (Portugal e Espanha) no Sudeste brasileiro e no Norte (Amapá). Ainda, no período colonial há a migração holandesa no Nordeste, disputando a região com os portugueses. Em todo período de colonização, por parte dos europeus, do território brasileiro, são realizadas as “migrações forçadas”, de indígenas do interior do continente sul-americano e de negros oriundos de várias partes do continente africano como mão de obra escrava, no âmbito do desenvolvimento colonial.17

16 Mestre em Geografia e graduada em Geografia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. 17 POLON, 2013.


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Esses movimentos, quer naturais, antes da chegada dos colonos, ou forçados pela perseguição e pela invasão de terras, produziam uma mistura de culturas que é a expressão exata da dinâmica cultural, ou seja, de que cada cultura tem a capacidade de evoluir, mudar, atualizar-se, não apenas através do elemento externo nos encontros interétnicos, mas, também pelo fator interno dos inovadores de cultura. Certamente estes movimentos de fuga migratória intensificados pelo medo da dominação foram determinantes para a reorganização de padrões culturais e linguísticos das populações indígenas nordestinas de forma agressiva e desagregadora, gerando mais perda do que apenas transformação ou redefinição cultural.

O avanço das vilas, que logo se tornariam cidades rurais e grandes aglomerados de população mista, atrairia cada vez mais os antigos moradores das terras tradicionais para uma integração sociopolítica que aos poucos foi sendo considerada, em uma abordagem radical, como a “morte” das sociedades indígenas da região. Muitos desses grupos, no entanto, decidiram no íntimo do lar, da família e mesmo do coração, manter vivas suas crenças, valores e até mesmo expectativas de futuro, sem, contudo, poderem escapar da inexorável transformação de suas cosmovisões, crenças e valores em um novo modelo cultural sincrético e, no futuro, para uma diluição não apenas cultural, mas também social. É desta realidade histórica que vem minha percepção das três categorias de sociedades indígenas nordestinas que podemos identificar nos nossos dias, isto é: 1) as sociedades indígenas históricas resistentes, 2) as sociedades indígenas históricas ressurgentes, isto é, aquelas que se concebia extintas ou desaparecidas, e 3) os grupos sociopolíticos que, pela força da política indigenista das últimas décadas e da ação antropológica aplicada às causas políticas, vêm se organizando em torno de uma “cultura nova” que tem sido observada e elogiada por muitos segmentos da sociedade nacional como um “milagre de ressurgimento”.

A realidade a partir de uma “nova” observação etnológica Em minha opinião o quadro que atualmente se pinta do ressurgimento destes grupos dados como historicamente desaparecidos, trata, em um âmbito específico e não geral, de uma etnogênese artificial, a qual se dá em pouquíssimo


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tempo, décadas no máximo, e de forma consciente, diferentemente do processo longo e subconsciente de nascimento de uma etnia na forma mais real e pura, a qual se dá como produto da história mitológica acumulada e passada entre gerações, que gera uma cosmovisão étnica, natural, única, coesa, que por sua vez gera um sistema de crenças e valores que identificam um povo como povo único em sua autoconsciência e autodesignação étnica. Bem, é fato inegável, exceto para aqueles que, motivados por outros interesses que não o conhecimento e a prática antropológica o negam, que as sociedades humanas nunca — repito, nunca — na história viveram em completo isolamento, a não ser que se considere isolamento quando ele se refere ao contato, por exemplo, entre uma tribo indígena e a sociedade majoritária de um país. Contudo, é facilmente provável que exista sempre uma rede de comércio e interatividade social entre grupos minoritários isolados em maior ou menor grau da sociedade envolvente. Todos esses contatos interétnicos produzem alterações, para melhor ou para pior, em todos os envolvidos. Além do fator externo, reconhece-se ainda o fator interno, no próprio dinamismo cultural, no qual ideias e inovações transformam conceitos, relacionamentos e artefatos de produção material, de um nível simples para um mais complexo. Para ser justo, me permito apresentar este contraponto ao pensamento ideal acadêmico tradicional, na avaliação da professora Maria Regina Almeida18, que nos diz: Entender cultura e etnicidade como produtos históricos, dinâmicos e flexíveis, que continuamente se constroem através das complexas relações sociais entre grupos e indivíduos em contextos históricos definidos, permite repensar a trajetória de inúmeros povos que por muito tempo foram considerados misturados e extintos. Mudanças culturais vivenciadas pelos índios ganham outras interpretações e passam a ser vistas não apenas como perda ou esvaziamento de uma cultura dita autêntica, mas em termos do seu dinamismo, mesmo em situações de contato extremamente violentas como foi o caso dos índios e dos colonizadores.19

E ainda...

O mesmo se pode dizer em relação às identidades indígenas que, transformadas e invisibilizadas, emergem hoje em conjunturas mais favoráveis, graças aos inúmeros processos de etnogênese. Tais processos evidenciam a falácia dos discursos

18 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, RJ, Brasil. (reginacelestino@uol.com.br) 19 ALMEIDA, 2003.


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de desaparecimento no século XIX. Alguns grupos, sobretudo no Nordeste, recuperam identidades indígenas com base nas antigas aldeias missionárias do período colonial que foram declaradas extintas pelo estado de mistura e «civilização» dos seus habitantes. Se, como afirmou Pacheco de Oliveira, esses processos não surgem do nada, é mister reconhecer que os índios nunca deixaram de existir, mas foram invisibilizados em conjunturas políticas e ideológicas desfavoráveis.20

Almeida parte do princípio de que este processo de “ressurgimento”, como diz Oliveira, “não surge do nada”. Mas esse discurso, apesar de interessante politicamente falando, é no máximo isso mesmo, porque não há como negar que, ao longo de quase três séculos, vários destes grupos étnicos tiveram não apenas suas aldeias, mas seu modo de pensar, de viver e de falar alterados, e tiveram seu sentido de identidade diluído ao ponto de se dispersarem. Suas visões de mundo, autodesignações e autodefinições, suas autoconsciências como povo, se perderam.

De muitos destes, não de todos, o que resta hoje são, sim, descendentes que trazem consigo a carga genética de seus antepassados. Contudo, são pessoas que não sabem mais como foram seus ancestrais, quais eram suas crenças e como se definiam, a não ser pelo pouco que podem ler nos escassos relatos históricos existentes e nos ainda mais escassos registros antropológicos. Uma questão que pode parecer filosófica, mas não é de fato, me incomoda quando penso neste processo que chamo de etnização e não etnogênese, é o fato bem compreendido pelos etnólogos de que a identidade de um povo se forma através de sua cosmovisão, de como e eles entendem seu universo e de qual é o seu lugar nele.

É esta compreensão do SER que leva ao FAZER o que eles fazem, ao FALAR o que e como eles falam. Neste processo de etnização a busca primeira destes grupos é a de um fazer, fazer igual, falar igual, arranjado, pensado, planejado, ou seja, é um FAZER que levará ao SER. Como já disse, reafirmo que esse processo não foi totalmente igual para todos os grupos originários do Nordeste brasileiro, até porque sabemos que o processo de reorganização sociocultural (termo atualmente usado para o antigo termo aculturação) é definido pela história de cada grupo e segue diferentes caminhos e graus. Uma observação importante nessa direção é o que nos diz Guillermo Bonfil em seu trabalho sobre a teoria do Controle Social. Ele nos diz: 20 Ibid. (Ênfase acrescentada)


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Indígenas no Nordeste Os povos indígenas eram essenciais para a economia colonial e as metrópoles e, posteriormente, foram exercidos através de vigários do sistema capitalista internacional. Na maioria dos casos, não havia isolamento ou autonomia, mas sujeição indireta, o que leva à expansão da sociedade dominante que assedia as comunidades indígenas, devora seu território e leva à falência e desaparecimento de mais povos indígenas21.

Em sua Teoria de Controle Cultural, ele nos propõe:

O controle cultural é uma forma de controle social em que a capacidade de decidir sobre os elementos culturais é afetada. O controle cultural, portanto, não é absoluto nem abstrato, mas histórico. Embora existam vários graus e níveis possíveis de capacidade de tomada de decisão, o controle cultural não implica apenas a capacidade social de usar um determinado elemento cultural, mas — mais importante — a capacidade de produzi-lo e reproduzi-lo. De acordo com o momento histórico de seu desenvolvimento, uma sociedade pode ter uma 1cultura de resistência, uma 2cultura de inovação ou uma 3cultura de apropriação; esses três momentos dependem do grau de controle dos elementos culturais que uma sociedade possui, seja ela própria ou a dos outros. As decisões próprias (autonomia) resultam, com seus próprios elementos, culturas autônomas e com elementos estrangeiros, culturas apropriadas; As decisões impostas (dominação) resultam em culturas alienadas com seus próprios elementos ou em culturas imposta com elementos estranhos. A partir da autonomia é possível construir a cultura da pluralidade, um espaço onde as diferenças são admitidas e valorizadas. Em situações de dominação colonial, ou seja, quando a relação entre grupos com culturas diferentes é uma relação assimétrica, de dominação/subordinação, será possível distinguir, na cultura do grupo subalterno, a presença de elementos culturais que correspondem a cada um dos grupos.22

Como avaliar, então, o cenário atual no Nordeste indígena do nosso país? Como defini-lo? Como entendê-lo? A que ponto a história que já observamos destes antigos grupos indígenas do nosso Nordeste nos leva em termos de resultado atual? São perguntas para as quais quero propor aqui de forma inicial algumas respostas. Para tanto gostaria de me ater aos casos mais graves, isto é, daqueles grupos que hoje se denominam como renascidos e que eu denomino de etnizados. Quero evocar o artigo de João Pacheco de Oliveira intitulado “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”. 21 BONFIL, 1995. (Ênfase acrescentada) 22 Ibid.


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O autor vai nos confrontar com a ideia de que, para a maioria dos antropólogos e até da Antropologia como ciência, a identificação de uma cultura original pela análise etnográfica ou etnológica só poderia ser feita nos tempos iniciais de encontro entre povo e observadores, porque o envolvimento histórico com as culturas dominantes, seja dos colonizadores, seja de outros povos, levaria a uma descaracterização cultural e, assim, o que restaria seria uma tentativa de descrever o que estes povos foram, e nunca o que eles são ou se tornaram, o que seria apoiado pela citação de Darcy Ribeiro que fala de “resíduos da população indígena no nordeste...” e “... índios desajustados”. Diferentemente dessa tendência, dois movimentos que surgiram durante os anos 70 (PINEB e ANAI) passaram a valorizar a indigeneidade presente no Nordeste do Brasil como “uma unidade, isto é, um ‘conjunto étnico e histórico’ integrado pelos ‘diversos povos adaptativamente relacionados à caatinga e historicamente associados às frentes pastoris e ao padrão missionário (católico) dos séculos XVII e XVIII”.23

Encurtando a conversa, o fato verificável é que, ao longo de séculos de história de invasão, destruição, desapropriação e efetiva mistura dos povos nativos originários do Nordeste brasileiro, seja com as populações colonizadoras, seja com outros povos indígenas, desenvolveu-se um processo de transformação, para dizer o mínimo, que, sim, descaracteriza quase totalmente vários daqueles povos e os integra à sociedade nacional, ao ponto de não mais se identificarem, eles mesmos, como “tal povo” ou “tal etnia”. Também não se pode negar, e não pretendo fazer isso, que outros grupos de uma maneira ou outra resistiram de forma mais firme ao avanço da influência externa, de maneira que tanto o processo quanto os resultados não foram homogêneos nas realidades indígenas atuais na região. Contudo, especialmente nos casos mais extremos, o grande desafio ao estudo e à compreensão desta nova realidade “ressurgida” é como considerar uma entidade étnica legítima um grupo claramente composto por descendentes, não só do mesmo grupo que se propõe a ser reconhecido, mas ainda de afrodescendentes, de outras origens indígenas e até não indígenas, todos estes mestiçados, sem nenhum sentido pejorativo ou discriminatório, em um grupo heterogêneo unido apenas pelo desejo de ser reconhecido e aceito como povo indígena? 23 DANTAS, SAMPAIO e CARVALHO, 1992:433.


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Como lidar com o fato facilmente observável de grupos que se reúnem para ler antigos relatos históricos e/ou antropológicos que narram um ou outro aspecto de uma cultura antiga que já não existe, e assim escolher e combinar entre si quais comportamentos vão adotar para ser sua “nova cultura”? De qualquer forma, meu objetivo neste texto era trazer à luz a história, ainda que de forma muito resumida, de povos, raças, tribos, mas mais o que isso, de pessoas, que foram assaltadas pelo arrastão da colonização, perseguidas, mortas e escravizadas em nome da civilização.

O presente dos nossos povos nativos da região Nordeste são sem dúvida fruto de um passado triste que, a princípio, foi propositadamente escondido e maquiado. O tempo passou e a verdade foi de fato esquecida. Mas no presente, a sociedade brasileira tem sido despertada pela busca de alguns por esta verdade histórica nos poucos, mas importantes registros que chegaram até nós. A realidade presente desafia a sociedade, os estudiosos e todos os mais que desejem verdadeiramente compreender e respeitar essas pessoas, que é o que são no fim das contas.

Referências bibliográficas ALMEIDA, Maria Regina Celestino. “Os índios na História do Brasil no Século XIX: Da invisibilidade ao Protagonismo”, Revista História Hoje, v.1, nº 2. Disponível em https://cutt.ly/6gAPoI8 (Acesso em 03/11/2020).

BONFIL, Guillermo. 1995. “Diversidad y Democracia: Un Futuro Necesario”, in: OLIVEIRA, João Pacheco de. “Uma Etnologia dos ‘Índios Misturados’”. Disponível em https://cutt.ly/3gAAyKx (Acesso em 03/11/2020).

CAMINHA, Pero Vaz de. “Carta de Pero Vaz de Caminha”, in: PEREIRA, Paulo Roberto (org.). Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. (Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.)

DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L. e CARVALHO, Maria do Rosário G. 1992. “Os Povos Indígenas no Nordeste Brasileiro: Um Esboço Histórico”, in: OLIVEIRA, João Pacheco de. “Uma etnologia dos ‘Índios Misturados’”. Disponível em https://cutt.ly/3gAAyKx (Acesso em 03/11/2020).


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OLIVEIRA, João Pacheco de. O Nascimento do Brasil e Outros Ensaios. (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.) OLIVIERI, Antonio Carlos. “Martim Afonso de Sousa: Navegador português, primeiro colonizador do Brasil.” 2005. Disponível em https://cutt.ly/ 0gAzn6J (Acesso em 03/11/2020). __________. “Índios – O Brasil antes do descobrimento.” 2014. Disponível em https://cutt.ly/vgAlCno (Acesso em 03/11/2020).

PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. “Revoltas indígenas, a criação do governo geral e o regimento de 1548”, in: Clio: Revista de Pesquisa Histórica. 2011. Disponível em https://cutt.ly/WgAnZ4y (Acesso em 03/11/2020). POLON, Luana. “Movimentos migratórios no brasil”, 2013. Disponível em https://cutt.ly/cgADT67 (Acesso em 03/11/2020).

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a Civilização: A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno. 7ª ed. (São Paulo: Global Editora, 2017)



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