Christoph Morgner (ed.)
Tinta, Teses, Temperamentos Seguindo os passos de Martinho Lutero
Christoph Morgner (ed.)
Tinta, Teses, Temperamentos Seguindo os passos de Martinho Lutero
Christoph Morgner (ed.)
Tinta, Teses, Temperamentos Seguindo os passos de Martinho Lutero
1ª edição Tradução: Doris Körber
Curitiba 2017
Christoph Morgner (ed.)
Tinta, teses, temperamentos
Seguindo os passos de Martinho Lutero Coordenação editorial: Claudio Beckert Jr. Tradução: Doris Körber Revisão: Josiane Zanon Moreschi Edição: Sandro Bier Capa: Sandro Bier Editoração eletrônica: Josiane Zanon Moreschi Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Morgner, Christoph (ed.) Tinta, teses, temperamentos : seguindo os passos de Martinho Lutero. / Christoph Morgner (ed.) ; tradução Doris Körber. - - 1. ed. - - Curitiba : Editora Esperança, 2017. Título original : Tinte, Thesen, Temperamente Vários autores. ISBN 978-85-7839-159-1 1. Igreja - História 2. Lutero, Martinho, 1483-1546 3. Protestantismo 4. Reforma 5. Teólogos - Alemanha I. Morgner, Christoph. 14-00657
CDD-230 Índices para catálogo sistemático: 1. Reforma luterana : Teologia : Cristianismo
230
Salvo indicação diferente, os textos bíblicos citados foram extraídos da tradução Almeida Revista e Atualizada, Sociedade Bíblica do Brasil, 1988, 1993.
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Para minha querida esposa Elfriede, pelos mais de 50 anos de companhia na caminhada, na fÊ e no serviço.
Sumário
Antes de começar, alguns pensamentos indispensáveis...................11
Hans-Dieter Frauer Quando o mundo começou a balançar........................................................15 Christoph Morgner De Luder a Luther Estações de uma vida extraordinária.........................................................21 Datas da vida de Lutero....................................................................................31 Christoph Morgner Marcos da proclamação evangélica.............................................................35 Theo Schneider Martinho Lutero e sua mensagem Um quadro aponta o caminho........................................................................41 Ursula Koch “Sr. Käthe”...............................................................................................................51 Stefan Lämmer Como Lutero lidava com a Bíblia....................................................................57 Karl-Heinz Bormuth Olhando para “a boca do povo” Martinho Lutero e a língua alemã..................................................................63
Ernst Lippold Martinho Lutero e seus hinos..........................................................................69 Eberhard Winkler Lutero e Erasmo...................................................................................................77 Axel Noack Aprendendo a orar com Martinho Lutero..................................................83 Rolf Sons Lutero como conselheiro...................................................................................91 Christoph Morgner Lucro a qualquer custo? Martinho Lutero e a vida econômica............................................................97 Christoph Morgner Martinho Lutero e os judeus.........................................................................105 Jürgen Werbick Deus misericordioso? Martinho Lutero e nós, católicos..................................................................113 Thomas Kuhlgatz Lutero e suas doenças.....................................................................................119 Horst Hirschler Lutero e a política..............................................................................................125 Hans-Dieter Frauer e Christoph Morgner “Aprendi o Evangelho com Martinho Lutero” Filipe Melâncton – o educador da Alemanha........................................131
Christoph Morgner Uma visita que vale a pena Conhecendo estações da vida de Lutero.................................................137 Jürgen Werth Lutero e o castelo – o castelo e eu..............................................................141 Reinhard Holmer Martinho Lutero na Alemanha Oriental..................................................149 Manfred Siebald Martinho Lutero na América........................................................................155 Hans-Dieter Frauer “É óbvio que Deus está trabalhando aqui” A Reforma em Württemberg........................................................................163 Michael Hobrack Wittenberg entre ontem e hoje...................................................................169 Claus Schwambach Missão a partir da teologia de Martinho Lutero...................................147
Antes de começar, alguns pensamentos indispensáveis
Mais um livro sobre Lutero? Como se as prateleiras das livrarias já não estivessem repletas deles! Há Lutero por toda parte. Mas vale a pena mergulhar na sua vida e época. Podemos observar e aprender muito com isso. Boa parte desses ensinamentos nos será útil nos dias de hoje. Quando refletimos a respeito de Martinho Lutero e da Reforma, precisamos tomar muito cuidado para não avaliar os acontecimentos daquela época com base em critérios adquiridos ao longo dos últimos 500 anos, com contribuições vindas do Renascimento, do Humanismo, da própria época da Reforma, do Iluminismo, etc. É preciso levar em conta que antigamente muitas situações eram vistas de maneira diferente da atual. Vivendo debaixo de uma democracia liberal e um Estado de bem-estar social, é fácil tachar Lutero de “totalitário” e “antissemita”, como acontece com frequência. No entanto, no fim da Idade Média os conceitos de normalidade e o espírito de época eram diferentes dos de hoje. Por isso, não faremos justiça aos acontecimentos de então se lhes aplicarmos os padrões de pensamento de hoje e, orgulhosamente, emitirmos nossos juízos. Antes, importa tentar classificar a Reforma de acordo com o contexto de sua era e tentar compreendê-la a partir de seu próprio tempo. Constatamos assim que ela não é um evento isolado daquela fase histórica, mas que foi favorecida pelas circunstâncias desta. A Reforma não surgiu por acaso. A invenção de novas técnicas para
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Tinta, teses, temperamentos
a impressão de livros criou o pressuposto necessário para que a Reforma se tornasse o primeiro evento de mídia global da História. Os assim chamados pré-reformadores, como John Wycliff (por volta de 1330-1384), Jan Hus (entre 1371 e 1415) e outros, prepararam o conteúdo. Criticavam sua igreja e propunham mudanças: cultos no idioma do povo, Bíblias ao alcance dos cristãos, ministros religiosos com vida ética exemplar e outras. Desejavam renovar segmentos da vida eclesiástica, mas encontraram forte resistência. No caso de Martinho Lutero, no entanto, a questão não girava em torno de elementos específicos, mas do conjunto da Igreja e da sua teologia. A diferença decisiva em relação à Reforma luterana está no ponto de partida, isto é, a descoberta da “justiça de Deus” como conceito de salvação e da dimensão qualitativa e quantitativa que derivou da sequência deste processo. Assim, a Reforma no início do século 16 moldou a cultura, promovendo o “evangélico” como uma marca registrada confessional.
Não pretendemos, neste livro, descrever minuciosamente cada pequeno detalhe da vida e da obra de Martinho Lutero, mas nos concentramos em aspectos essenciais.
Tinta
Conta-se que o cavaleiro Jorge, como Lutero era conhecido no castelo Wartburg, teria jogado um frasco de tinta na parede para espantar o diabo. Mais tarde ficou claro que isso não passa de uma lenda religiosa. Mas, ainda assim, a tinta teve um papel importante na vida de Lutero. Ela ainda não tinha secado no papel quando os mensageiros do tipógrafo apareceram para buscar os manuscritos. Isso acontecia dia após dia… a uma média de cinco páginas por dia se considerarmos toda a duração da sua vida!
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Antes de começar, alguns pensamentos indispensáveis
Teses Foram elas que deram o empurrão inicial à Reforma. Não tinha sido intenção de Lutero imprimi-las e distribui-las. Ele queria apenas preparar-se para um debate na universidade. E vejam só o que aconteceu! Lutero foi totalmente atropelado pelo desenrolar dessa história.
Temperamentos
Lutero apresentava vários tipos de temperamentos. Ele sabia vociferar em alto e bom som, mas em outros momentos era carinhoso e atencioso. Cultivou uma amizade que durou a vida inteira com Filipe Melâncton, professor de Grego na universidade de Wittenberg, embora ambos tivessem temperamentos muito diferentes. “[Sou] o rude lenhador que abre picadas e prepara trilhas. Mas mestre Filipe caminha com tranquilidade e calma”. Falaremos, neste livro, sobre tudo isso. Tenho muitos motivos para agradecer de coração aos autores que contribuíram para o conteúdo desta obra com seus ricos artigos. Também agradeço de maneira especial às duas mulheres que pacientemente fizeram a revisão de tudo isso: Elfriede, minha esposa, e nossa neta Miriam Morgner.
Dr. Christoph Morgner, Garbsen - Alemanha Maio de 2016
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Hans-Dieter Frauer
Quando o mundo começou a balançar
Ao pregar suas teses naquela porta, Martinho Lutero “colocou fogo no mundo” (como ele mesmo formulou em uma conversa à mesa com amigos). E, de fato, a Reforma mudou o passo da História. Essa mudança começou de maneira bem discreta: um monge publica teses em latim a fim de convidar para um debate científico – e dessa forma liberta forças que alteram o rumo do mundo. Isso só pode ser explicado a partir das turbulências daquela época.
A partir do ano 1450, mais ou menos, uma quantidade atordoante de invenções, descobertas e novas ideias foi despejada sobre a humanidade. Convicções e crenças antigas e aparentemente bem fundamentadas começaram a desmoronar. As pessoas sentiram o mundo desequilibrar-se e viram-se diante de desafios novos, desconhecidos e inesperados. Por isso, eram atormentadas pelo medo, temiam que o fim do mundo estivesse próximo e aterrorizavam-se com a ideia do Juízo Final, do Purgatório e do Inferno. Os sinos que batem às 12h, chamando para o ofício da hora sexta (meio-dia), lembram esses medos até hoje. Esse ofício surgiu em 1456, como “oração contra o perigo turco”. Três anos antes – em 29 de maio de 1453 – os otomanos pagãos tinham conquistado a cristianizada Constantinopla, varrendo do mapa o antiquíssimo Império Romano Oriental. Agora estavam passando pelos Bálcãs. Durante séculos, os invencíveis otomanos eram o terror da Europa – como demonstra o “ofício dos turcos”.
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Tinta, teses, temperamentos
A expressão “Novo Mundo”, que ainda hoje é usada para referir-se à América, nasceu do medo. Com a descoberta desse novo continente, rompia-se uma imagem de mundo religiosa, derivada da Bíblia. A visita dos magos do oriente ao recém-nascido Jesus levara à conclusão de que haveria três continentes; cada um dos três presentes era interpretado como dádiva de gratidão de um deles. Agora, de uma hora para outra, aparecia um continente que nem deveria existir! E as mudanças não afetavam apenas a superfície da terra – nesta mesma época, descobriu-se que o planeta, na verdade, era redondo. Até então, o universo girava em torno da Terra, que tinha Jerusalém como centro – uma vez que este era o lugar dos acontecimentos salvíficos relatados na Bíblia. Agora essa nova ciência, a Astronomia, comprovava que a terra não era um ponto fixo no espaço, mas apenas um planeta entre muitos outros. Isso também era impensável. Os representantes da Igreja daquela época defenderam sua cosmovisão com persistência e teimosia. Em 1660 ainda houve uma execução relacionada a isso: o tribunal da Inquisição, em Roma, condenou Giordano Bruno à morte e executou-o na fogueira, tudo porque ele postulava um cosmos infinito e heliocêntrico.
Por fim, as novas ideias foram ganhando espaço. Surgiu interesse pela Antiguidade, suas formas, culturas e escritos. O Renascimento e o Humanismo cristão trouxeram novos ares à cultura e à pesquisa, com sua postura afirmativa em relação à vida e ao mundo. Pela primeira vez, formava-se uma economia mundial. Famílias, como os Fugger e Welser, acumularam fortunas de dimensões até então impensáveis. Ao mesmo tempo, a mudança da economia para o sistema monetário e o recém-introduzido direito romano pioraram a situação do povo humilde. O sistema feudalista tornou-se cada vez mais opressor para os agricultores, que levavam uma vida verdadeiramente miserável – sujeitos ao pagamento de impostos pesadíssimos e ameaçados por constantes más colheitas.
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Quando o mundo começou a balançar
Estes poucos – e incompletos – exemplos mostram o quanto a vida naquela época mudou em quase todas as áreas. Convicções e crenças antigas e bem fundamentadas esmigalharam-se, e uma nova mídia – o texto impresso – difundia as novidades com rapidez e abrangência inéditas. Também isso contribuiu para atiçar o medo e a expectativa pelo fim do mundo. Todos estavam convictos de que viviam os tempos do fim.
O povo inseguro e amedrontado buscava refúgio na Igreja. Esta arrogava para si a posição de única intermediária para a salvação (bula Una sanctam, de 1302) e desenvolveu uma devoção quase desesperada e marcada pelas “boas obras”. Propagavam-se peregrinações a locais sagrados e em trilhas específicas (como o Caminho de Santiago de Compostela). Surgiu o Santo Rosário. A quantidade de feriados religiosos com procissões e desfiles ficou exorbitante. A adoração idólatra de Maria andava de mãos dadas com um culto a relíquias cada vez mais descarado. O luxo da igreja era exibido nas procissões em quase cem dias por ano. As décadas que precederam a Reforma são consideradas as mais religiosas de toda a História, mas os meios de graça dispendidos pela Igreja não eram suficientes para eliminar superstições, crenças em milagres, visões do diabo e do Inferno. No fim da Idade Média, a vida das pessoas era determinada pelo medo de Deus.
A Igreja institucionalizada estava mais interessada em garantir para si o domínio mundial e a conservação de seu poder político. Junto com isso, vinha a decadência do papado renascentista; há muito tempo o Vaticano tornara-se um antro de depravação e crimes. “Todos faziam de tudo com todos”, escreveu alguém que participou de festas papais. Os próprios papas – e muitas vezes havia vários deles ao mesmo tempo – eram figuras das mais indignas. Sua conduta era escandalosa até para os padrões atuais. Recusavam obstinadamente qualquer reforma na cabeça e nos membros da Igreja, uma demanda que já se levantava há tempo e
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Tinta, teses, temperamentos
com insistência cada vez maior. Vários concílios convocados para essa finalidade fracassaram. A instituição Igreja queria manter a situação como estava, por ser financeiramente muito lucrativa. Compra de cargos e subornos estavam na ordem do dia. O alto clero multiplicava suas riquezas, enquanto o baixo clero se degradava em sua má formação teológica. Uma Igreja assim não conseguia encontrar respostas para as perguntas e questionamentos da época nem para o medo das pessoas. Agarrava-se tenazmente ao status quo e opunha-se contra qualquer mudança. Por isso, Copérnico só ousou publicar sua tese sobre o sistema solar quando já estava em seu leito de morte. Tentativas de reforma como a dos valdenses ou de João Hus foram reprimidas com violência. O princípio máximo passara a ser garantir o poder da Igreja e eliminar qualquer questionador ou pensador incômodo. O gatilho direto para a Reforma foi o comércio de indulgências, em que o dinheiro comprava graça. Foi isso que incendiou a crítica de Martinho Lutero. Em suas intensas pesquisas na Bíblia, o erudito monge agostiniano chegara ao conceito reformador sola gratia (somente pela graça). O cristão não recebe salvação por suas boas obras ou pela intercessão dos santos, nem pela intermediação sacramental de sacerdotes ordenados e muito menos pela compra de indulgências. Ele recebe salvação para sua alma apenas e tão somente com base em sua fé em Deus (sola fide; somente pela fé) e por pura graça. A única autoridade válida é a da Sagrada Escritura, e não o ensino da Igreja oficial. A Reforma desencadeou uma mudança no mundo cujos efeitos alcançam a nossa época. Antigamente as pessoas tinham mais consciência de que a Reforma libertou o ser humano e o chamou para assumir a responsabilidade por sua própria conduta. Por isso, durante muito tempo o dia 31 de outubro, dia em que Lutero publicou
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Quando o mundo começou a balançar
suas teses, era comemorado na Alemanha como uma festa de júbilo pela Reforma. A Reforma foi mais do que uma rebelião contra os abusos da Igreja. Martinho Lutero, de fato, mudou o mundo.
Hans-Dieter Frauer atuou durante várias décadas na mídia cristã evangélica. Mora em Herrenberg, próximo a Stuttgart - Alemanha.
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Christoph Morgner
De Luder a Luther Estações de uma vida extraordinária
Quando Martinho Lutero nasceu, ninguém imaginava que um dia ele se tornaria uma das pessoas mais marcantes da História mundial. Sua casa natal ficava em Eisleben. No dia 10 de novembro de 1483, ele veio ao mundo como Martin Luder(!)1, filho de Hans e Margarete Luder. Dias depois, foi batizado. Seu pai era de família humilde, de agricultores. Em Mansfeld, para onde a família se mudou poucos meses depois, Luder pai arrendou várias minas de cobre. Homem enérgico e determinado, ele obteve prestígio e fortuna por meio de trabalho duro. A mãe veio de família nobre da região de Eisenach. O pai dela era conselheiro da cidade. Mais tarde, Martin Luder expressou sua gratidão pelo fato de seus pais lhe terem possibilitado frequentar a escola: começou seus estudos na escola latina em Mansfeld, sobre a qual afirmou: “Éramos torturados por causa da gramática e, de tanta chicotada, tremor, medo e choro, não aprendemos nada”. Mais tarde, Martinho frequentou a escola catedralícia em Magdeburgo, onde seus professores lhe apresentaram a piedade monástica. Seguiu-se então a escola latina em Eisenach. Lá ele passou a ganhar um pouco de dinheiro cantando com outros estudantes na frente das casas. Uma família aristocrática o hospedou durante este período. 1
Em alemão, Luder também pode ser uma isca usada na caça (muitas vezes um animal morto) ou então, de forma pejorativa, uma designação para “malandro” (N. de Tradução).
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Tinta, teses, temperamentos
Da escola para a universidade A posição social elevada facilitou o caminho de Martinho para a universidade. A partir de 1501, ele estudou as sete artes livres na assim chamada faculdade de Artes em Erfurt. Isso criou a base para o verdadeiro estudo que Lutero começou por volta de 1505. Seu pai queria que ele fizesse Direito, para que tivesse a oportunidade de construir uma carreira mais tarde. O estudo lembrava muito a escola, e a rotina era monástica. O dia começava às 4 horas. No dia 2 de julho de 1505, Martinho estava no campo em Stotternheim, nas proximidades de Erfurt, quando foi pego por uma forte tempestade. Com medo de morrer, ele gritou, desesperado: “Ajuda-me, Santa Ana, pois quero me tornar monge!” Mais tarde ele se arrependeu desse voto, mas sentiu-se obrigado a cumpri-lo. Duas semanas mais tarde, entrou para o mosteiro dos eremitas agostinianos em Erfurt – contra a expressa vontade de seu pai: “Quando me tornei monge, meu pai só faltou enlouquecer”.
Tudo muda
Luder “decidiu-se pela mais piedosa das vidas daquela época” (Martin Brecht). O fim da Idade Média borbulhava de tanta religiosidade. A Igreja era parte dominante da sociedade. Ela intermediava entre Deus e o indivíduo cristão. A cena do Juízo Final era especialmente drástica no imaginário popular: no fim, Jesus, o Juiz irredutível, recompensará os bons com o Céu e mandará os maus ao Inferno. Para cair nas suas graças, o cristão precisava trilhar o caminho da virtude indicado pela Igreja. O problema: o relacionamento com Deus permanecia sem garantias. Entrar para o convento era a melhor solução possível para salvar a alma. Luder submeteu-se a todas as exigências da vida monástica. Depois de um ano, fez seus votos. Em 1507, sua ordem o consagrou
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De Luder a Luther - Estações de uma vida extraordinária
ao sacerdócio na catedral de Erfurt. Só depois disso (!) Luder foi enviado para Wittenberg a fim de estudar Teologia. “Por volta de 1500, a formação universitária não era comum para sacerdotes responsáveis pelo aconselhamento; em muitos casos, é possível que não se exigisse nem mesmo o estudo na escola latina. Os ministros religiosos aprendiam seu ofício com outro padre: os conhecimentos de latim frequentemente eram insuficientes”. Não é à toa que “a situação espiritual oferecia ampla ocasião à crítica” (Christine Tropper). Nos anos 1510/11, a ordem encarregou Martinho de fazer uma viagem oficial a Roma. “Em nenhum outro lugar alguém poderia fazer tanto pela salvação de sua alma e de outras pessoas quanto em Roma. Luder aproveitou ao máximo essas oportunidades” (Martin Brecht). Ele flagrou a si mesmo lamentando “que meus pais ainda estejam vivos, pois gostaria muito de salvá-los do Purgatório com minhas missas, obras excelentes e orações”. Ao mesmo tempo, ficou horrorizado com o luxo nos palácios cardinalícios e com as atitudes frequentemente zombeteiras em relação às coisas santas.
O monge torna-se professor
Em 1512 Luder recebeu o grau de doutor em Teologia. Ao mesmo tempo, assumiu a cadeira de Bíblia na universidade de Wittenberg. Sua tese científica sobre a Bíblia foi impulsionada por seus próprios questionamentos. Também atuava como pregador e confessor na igreja da cidade. Nesse contexto, foi confrontado com o problema do comércio de indulgências. Em 1517, o monge dominicano Johannes Tetzel percorreu o país. Encarregado pelo bispo Alberto de Mainz, ele vendia cartas de indulgência. O comprador era, assim, absolvido do castigo da Igreja por seus pecados, incluindo o Purgatório depois da morte – um negócio financeiro brilhante diante do anseio por salvação que as pessoas da época tinham! Vendia-se até mesmo cartas de indulgência para mortos.
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Tinta, teses, temperamentos
O professor Luder balançou a cabeça: “Entrementes recebi notícia de que Tetzel, aquele malhador de bolsas, teria pregado artigos horríveis, a saber: quando alguém coloca dinheiro na caixa em favor de uma alma no Purgatório, assim que a moeda cai tilintando no chão, a alma se eleva em direção ao céu. Quando alguém compra indulgências, não precisa de arrependimento ou dor ou remorso pelo pecado”.
Famoso contra sua vontade
A crítica de Luder contra o comércio de indulgências tornou-se o pontapé inicial da Reforma. Para promover um debate acadêmico, ele elaborou 95 teses sobre tal comércio e fixou-as no mural da Universidade – a porta da igreja do castelo – no dia 31 de outubro de 1517. Sem que ele soubesse, as teses foram traduzidas para o alemão, impressas com rapidez e distribuídas em toda a Europa. “As 95 teses tornaram-se a sensação do momento, pois não apenas o homem culto, mas também o homem simples se via representado nelas, em raciocínios e palavras acessíveis a todos. De uma hora para outra, Lutero ficou famoso em toda a Europa” (Kurt Aland). Luder não ficou nem um pouco entusiasmado com isso. Sentiu-se atropelado e, meio ano depois, registrou em uma carta: “Não era meu propósito nem meu desejo que elas fossem disseminadas. Queria debatê-las com alguns poucos que moram por aqui, para que fossem, então, pela avaliação de vários, abandonadas e esquecidas ou aceitas e distribuídas. Mas agora estão sendo impressas e distribuídas muito além das minhas expectativas, a tal ponto que me arrependo de tê-las produzido… Este método não (é) adequado para ensinar o povo. Eu mesmo tenho várias dúvidas e certamente teria eliminado ou dito muitas coisas de forma diferente ou mais segura, se soubesse o que me esperava”.
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De Luder a Luther - Estações de uma vida extraordinária
As teses de Luder giram em torno da questão central do pecado e da graça. O que é confiável em relação à vida e à morte? Como exegeta, Luder chegou aqui a novos conceitos. Seus estudos da Bíblia confrontaram-no repetidas vezes com a ideia da “justiça” de Deus. Ela a interpreta de acordo com a teologia existente: Deus é justo. Ele castiga os pecadores e recompensa os piedosos. Neste sentido, o conceito tinha um quê de ameaça para Luder, uma vez que ele se sabia pecador. Pecado – para ele, isso não se referia apenas aos atos em si, mas também às motivações que os geram: desejo, ódio, falta de amor, etc.
Apesar de todos os seus esforços, Luder não conseguia fazer frente ao seu pecado. Não resistiria na presença do Deus justo. No entanto, justamente o Antigo Testamento trata da justiça de Deus como algo bom e desejável (p.ex. no Salmo 31.1). Luder não conseguia conciliar isso com sua teologia, até que, aos poucos, seus olhos se abriram para aquilo que consideramos a descoberta da Reforma: a “justiça” é um bem salvífico dado por Deus. Deus declara como “justo” o ser humano que confia nele pela fé (cf. Rm 1.17). É isso que dá certeza da salvação. Luder encontrou o caminho da fé medieval nas obras para a fé na graça.
Luder torna-se Lutero
A partir de então, Lutero começou a acrescentar a palavra eleutherios à sua assinatura: o liberto, o livre. Isso logo se transformou em “Luther”, o nome pelo qual o reformador se tornou conhecido.
Lutero desejava corrigir a teologia medieval, mas não subverter os fundamentos da Igreja. No entanto, a aceitação que ele encontrou chamou a atenção da Igreja oficial e ele enfrentou forte oposição entre os líderes eclesiásticos. Sua teologia definiu-se cada vez mais ao longo dos debates e dos inquéritos. Entre outros assuntos,
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Tinta, teses, temperamentos
ele contestou a necessidade do papa para obter salvação e a infalibilidade dos concílios da Igreja.
Em 1520, recebeu do papa Leão X a bula Exsurge Domine, ameaçando-o de excomunhão. Poucos meses depois, Lutero queimou o documento em público, o que o levou a ser oficialmente expulso da Igreja. Até mesmo o imperador Carlos V se viu desafiado. Assim, em 1521 Lutero recebeu ordens para se apresentar à dieta em Worms, a fim de retratar-se de seus escritos. Depois de pensar durante algum tempo, ele se recusou: “Não posso e não quero retratar-me de nada, pois não é seguro nem saudável agir contra a consciência. Que Deus me ajude! Amém”.
Sequestro noturno
O imperador baniu Lutero do reino. Como este agora corria risco iminente de ser assassinado, o príncipe-eleitor Frederico, o Sábio, encenou um sequestro nas proximidades de Eisenach. Em uma ação encoberta pela noite e pela neblina, Lutero foi levado ao castelo Wartburg. Lá ele traduziu o Novo Testamento do grego para o alemão. Meio ano depois, surgiram perturbações religiosas em Wittenberg. Cristãos exacerbados arrancaram das igrejas tudo o que lhes parecia católico. Os iconoclastas depredavam sem dar atenção aos prejuízos. Contra a vontade do príncipe-eleitor, Lutero saiu do castelo Wartburg e restabeleceu a ordem em Wittenberg por meio de oito prédicas, os chamados “sermões de Invocavit”. Sua principal acusação: apesar de todos os princípios corretos, os revoltosos tinham se esquecido do principal – o amor e a consideração pelos mais fracos. A Guerra dos Camponeses em 1524-1525 tornou-se uma dura prova para Lutero. O padre Thomas Müntzer deu um caráter quase religioso aos combates: o que os camponeses faziam correspondia
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De Luder a Luther - Estações de uma vida extraordinária
ao Evangelho. Já Lutero falou seriamente tanto com os camponeses quanto com os nobres. Mas suas exortações à paz não foram atendidas. A rebelião foi esmagada sem piedade.
Amor e livros
Em 1525 Martinho Lutero se casou com a ex-freira Catarina de Bora. As reservas iniciais de Lutero transformaram-se em amor e apreciação: “Pela graça de Deus tive sorte, pois tenho esposa piedosa e fiel, em quem o coração do homem pode confiar”. Catarina liderou o “Mosteiro Negro”, a casa de Lutero, como uma pequena empresa familiar. O casal teve seis filhos, dos quais quatro alcançaram idade adulta.
Na década de 1520, Lutero produziu uma série de escritos nos quais definiu o conceito “evangélico”. Isso ajudou outros a encontrarem uma vida livre sob o Evangelho e, em vários de seus textos, estimula o leitor a formatar sua vida pessoal e também a vida em sociedade de acordo com estes princípios: • À nobreza cristã da nação alemã (1520) • Do cativeiro babilônico da Igreja (1520) • Da liberdade cristã (1520)
No texto Missa alemã (1526), Lutero regulamenta a liturgia do culto evangélico. Ele deve ser realizado em alemão. O sermão é o centro do culto. A congregação participa, entre outros, por meio do cântico de hinos. Pouco depois ele publicou também o Catecismo Maior e o Catecismo Menor, nos quais delineia os fundamentos da doutrina cristã.
A Reforma seguiu seu curso. Cada vez mais paróquias se tornaram evangélicas. Incansavelmente, Lutero lutou nos anos seguintes pelo fortalecimento doutrinário e estrutural da Reforma: no
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Tinta, teses, temperamentos
púlpito, no auditório da universidade e à mesa do escritório, mas também em viagens e conversas. No Colóquio de Marburgo (1529), Lutero e o reformador suíço Ulrico Zuínglio discutiram sobre o significado correto da Santa Ceia. Enquanto Zuínglio destacou o caráter memorial da Ceia, Lutero enfatizou a presença real de Jesus no pão e no vinho.
Em 1530, os evangélicos apresentaram seu credo na Dieta de Augsburgo, que, no entanto, não foi reconhecido pela Igreja Católica. Do lado evangélico, as negociações foram conduzidas por Filipe Melâncton, uma vez que Lutero estava impedido de pisar em solo da Baviera por causa da proscrição imperial. No ano seguinte, em 1531, os príncipes protestantes se uniram para formar a Liga de Esmalcalda. Lutero escreveu uma declaração de fé para a Liga (1537).
Em 1543, Lutero passou algum tempo em Eisleben, sua cidade natal, para intermediar o conflito entre dois condes. Foi bem-sucedido. Mas então veio uma severa crise de saúde. Suas forças diminuíram perceptivelmente. Ele faleceu em 18 de fevereiro de 1546, e sua morte foi descrita em minúcias por amigos. Eles testificaram que Lutero morreu em paz. O funeral aconteceu em Wittenberg, onde foi sepultado na igreja do castelo.
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De Luder a Luther - Estações de uma vida extraordinária
Referências bibliográficas: SCHILLING, Heinz. Martin Luther, Rebell in einer Zeit des Umbruchs. (Munique, 2014.) LEPPLIN, V. e SCHNEIDER-LUDORFF, G. (eds). Das Luther-Lexikon. (Regensburg, 2014.)
Dr. Christoph Morgner, presidente honorário do Evangelischer Gnadauer Gemeinschaftsverband. Mora em Garbsen, próximo a Hannover - Alemanha.
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Christoph Morgner
De Luder a Luther Datas da vida de Lutero
1483
• Nascimento em Eisleben (10 de novembro) • Batismo (11 de novembro)
até 1497
• Aluno em Mansfeld
1497
• Aluno da escola catedralícia de Magdeburgo • Nascimento de Filipe Melâncton
1499
• Nascimento de Catarina de Bora
1498–1501 • Aluno da escola latina de Eisenach 1501–1505 • Estudo inicial na universidade de Erfurt (faculdade de Artes) 1505
• Magister artium; início do curso de Direito • Tempestade em Stotternheim (2 de julho) • Entrada para o mosteiro dos eremitas agostinianos
1507
• Consagração ao sacerdócio na catedral de Erfurt/primeira missa (2 de maio) • Início do curso de Teologia
1508
• Estudo de Teologia; ao mesmo tempo, leciona Ética em Wittenberg
1509
• Cátedra de Dogmática no mosteiro de Erfurt
1510/11
• Viagem a Roma por encargo da ordem
1512
• Grau de doutor em Teologia; assume cátedra de Teologia Bíblica em Wittenberg
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Tinta, teses, temperamentos
1517
• Divulga as 95 teses no dia 31 de outubro
1518
• Controvérsia de Heidelberg • Inquérito sob cardeal Tomás Caetano em Augsburgo
1519
• Controvérsia de Leipzig com o Dr. João Maier
1520
• Bula de advertência Exsurge Domine (15 de junho) • Queima da bula de advertência (10 de dezembro)
1521
• Bula de excomunhão Decet Romanum Pontificem (3 de janeiro) • Intimação à dieta de Worms pelo imperador Carlos V (6 de março) • Diante do imperador e do reino: recusa à retratação (17 e 18 de abril) • Sequestro e condução ao castelo Wartburg (4 de maio) • Proscrição real sobre Lutero e seus seguidores (26 de maio) • Tradução do Novo Testamento
1522
• Ataque a imagens sagradas em Wittenberg e retorno de Lutero • Oito sermões de Invocavit (de 9 a 16 de março) • “Testamento de setembro”
1523
• Fuga de freiras do convento de Nimbschen • Retomada das aulas
1524
• Discussões com Müntzer e Karlstadt • Lutero abandona o mosteiro
1525
• Alguns textos sobre a revolta dos camponeses • Casamento com Catarina de Bora (13 de junho) • Controvérsia com Erasmo de Roterdã
1526
• Primeira dieta em Speyer
34
De Luder a Luther - Datas da vida de Lutero
1529
• Segunda dieta em Speyer (protesto em 19 de abril) • Colóquio de Marburgo com Ulrico Zuínglio (1 a 4 de outubro)
1530
• Parlamento de Augsburgo; leitura da Confissão de Augsburgo • Lutero no castelo Veste Coburg
1531
• Organização da Liga de Esmalcalda
1532
• Por causa do perigo trazido pelos otomanos, os protestantes recebem um salvo conduto temporário garantindo liberdade de religião
1534
• Término da tradução da Bíblia (AT e NT)
1544
• Construção da primeira igreja evangélica, em Torgau; inaugurada por Lutero
1546
• Falecimento em Eisleben (18 de fevereiro) • Sepultamento na igreja do palácio em Wittenberg (22 de fevereiro)
1552
• Falecimento de Catarina Lutero em Torgau (20 de dezembro)
1560
• Falecimento de Filipe Melâncton (19 de abril)
35
Quando refletimos a respeito de Martinho Lutero e da Reforma, precisamos tomar muito cuidado para não avaliar os acontecimentos daquela época com base em critérios adquiridos ao longo dos últimos 500 anos, com contribuições vindas do Renascimento, do Humanismo, da própria época da Reforma, do Iluminismo, etc. Por isso, não faremos justiça aos acontecimentos de então se lhes aplicarmos os padrões de pensamento de hoje e, orgulhosamente, emitirmos nossos juízos. Antes, importa tentar classificar a Reforma de acordo com o contexto de sua era e tentar compreendê-la a partir de seu próprio tempo.
Tinta - A tinta teve um papel importante na vida de Lutero. Ela ainda não tinha secado no papel quando os mensageiros do tipógrafo apareceram para buscar os manuscritos. Isso acontecia dia após dia… Teses - Foram elas que deram o empurrão inicial à Reforma. Não tinha sido intenção de Lutero imprimi-las e distribui-las. Ele foi totalmente atropelado pelo desenrolar dessa história. Temperamentos - Lutero apresentava vários tipos de temperamentos. Ele sabia vociferar em alto e bom som, mas em outros momentos era carinhoso e atencioso.