Ferramentas lúdicas para a promoção dos bons-tratos em família
María Eugenia Goyret & Alicia Casas Gorgal
Vamos aprender bons-tratos Ferramentas lúdicas para a promoção de bons-tratos em família
María Eugenia Goyret e Alicia Casas Gorgal
Vamos aprender bons-tratos Ferramentas lúdicas para a promoção de bons-tratos em família
1ª edição Tradução: Sandro Bier
Curitiba 2015
María Eugenia Goyret e Alicia Casas Gorgal
Vamos aprender bons-tratos
Ferramentas lúdicas para a promoção de bons-tratos em família
Coordenação editorial: Walter Feckinghaus Edição: Claudio Beckert Junior Tradução e capa: Sandro Bier Título original: Aqui buentrato: Herramientas lúdicas para la promoción del buentrato en familia Revisão e editoração eletrônica: Josiane Zanon Moreschi Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Goyret, María Eugenia Vamos aprender bons-tratos : ferramentas lúdicas para a promoção de bons-tratos em família / María Eugenia Goyet e Alicia Casas Gorgal ; tradução Sandro Bier. - - 1. ed. - - Curitiba : Editora Esperança, 2015. Título original: Aqui buentrato : herramientas lúdicas para la promoción del buentrato en família ISBN: 978-85-7839-123-2 1. Atividades lúdicas 2. Crianças - Bons-tratos 3. Crianças : Educação : Vida familiar 4. Crianças - Maus-tratos 5. Família - Aspectos sociais I. Gorgal, Alicia Casas. II. Título. 15-07066
CDD-370 Índices para catálogo sistemático: 1. Crianças : Bons-tratos : Educação
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total e parcial sem permissão escrita dos editores. Editora Evangélica Esperança Rua Aviador Vicente Wolski, 353 - CEP 82510-420 - Curitiba - PR Fone/fax: (41) 3022-3390 comercial@esperanca-editora.com.br - www.editoraesperanca.com.br
Sumário 1. Apresentação de Vamos aprender bons-tratos..................................................................7 2. O que é Vamos aprender bons-tratos?...............................................................................9 3. Histórias de ontem, hoje e amanhã..............................................................................10 4. Chaves conceituais sobre famílias e bons-tratos........................................................17 5. Ferramentas de bons-tratos para com o corpo...........................................................27 6. Ferramentas de bons-tratos para com a mente..........................................................31 7. Ferramentas de bons-tratos para com o espírito......................................................35 8. Ferramentas de bons-tratos para com filhos e filhas..............................................43 9. Ferramentas de bons-tratos entre irmãos e primos.................................................49 10. Ferramentas de bons-tratos para com os idosos......................................................55 11. Ferramentas de bons-tratos em tempos de mudanças............................................61 12. Ferramentas de bons-tratos para com o meio ambiente.........................................67 13. Famílias saudáveis..........................................................................................................71 14. Músicas e danças na promoção dos bons-tratos em família...................................73 15. Instruções de recursos....................................................................................................75 16. Aspectos metodológicos CLAVES.................................................................................92 17. Nota para facilitadores de Vamos aprender bons-tratos...........................................97 18. O que podemos fazer diante de situações de abuso sexual...................................116 19. Sobre políticas públicas................................................................................................121 20. Apresentação institucional...........................................................................................127 Outros materiais publicados pelo Programa CLAVES....................................................130
Vamos aprender bons-tratos
O desenvolvimento saudável de uma criança é a consequência do predomínio das experiências de bons-tratos que ela tenha conhecido em sua vida. Esses bons-tratos não somente correspondem ao que os pais são capazes de oferecer, mas também são o resultado dos recursos que uma comunidade põe a seu serviço para, por um lado, garantir a satisfação das necessidades infantis e o respeito de seus direitos e, por outro, apoiar e reabilitar as funções parentais. Portanto, o bem-estar infantil é produto dos bons-tratos que a criança recebe, e este, por sua vez, é o resultado da capacidade dos pais para responder adequadamente às necessidades dos filhos. Para que isso possa acontecer, deve existir, além disso, recursos comunitários que ajudem os pais a cumprirem sua tarefa e as crianças a satisfazerem suas necessidades.1
1 Jorge Barudy, “Promover os bons-tratos e os recursos adaptáveis como base da prevenção e tratamento das consequências da violência humana”. www.peretarres.org
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1. Apresentação de Vamos aprender bons-tratos Esse “organismo vivo”, que é a família biológica ou social, tem a dupla potencialidade de ser, por um lado, o âmbito mais seguro para crescer e desenvolver-se e, por outro, o lugar onde mais se maltratam e são feridos os direitos de crianças e adolescentes. Vamos aprender bons-tratos é uma proposta do Programa CLAVES, da JPC Uruguay2, que apresenta uma série de ferramentas para trabalhar com famílias a partir de um enfoque que, sem esquecer essa dupla potencialidade, busca chamar a atenção para as possibilidades e para as capacidades, mais do que para as carências, com a convicção de que são muitas as famílias que desejam cumprir melhor seu papel a cada dia. Vamos aprender bons-tratos traz à reflexão as modalidades de relacionamento intrafamiliar com o propósito de promover uma comunicação mais efetiva, a expressão do amor em família, a resolução de conflitos de forma não violenta, o reconhecimento e a aceitação das diferenças e uma convivência harmônica que favoreça o crescimento e o desenvolvimento saudável de todos os integrantes da família. Tudo isso mediado pelo jogo como ferramenta-chave de fortalecimento.
2 Veja cap. 15, “Apresentação Institucional”.
A primeira edição de Vamos aprender bons-tratos, resultado de uma ótima construção coletiva3, foi aplicada em diversos contextos da América Latina desde sua publicação em 2003. A sistematização de algumas dessas experiências4 nos mostrou que Vamos aprender bons-tratos é uma proposta muito flexível para promover os bons-tratos dentro e fora de casa, uma vez que traz elementos para analisar a realidade social de cada família e comunidade. Vale a pena continuar insistindo na prevenção, na possibilidade de identificar a tempo fatores de risco que geram estresse e predispõem à violência, mas também observar e promover aqueles fatores protetores que fortalecem as relações entre as pessoas e permitem um tratamento diário marcado pela justiça a que todos aspiramos.5
3 Veja cap. 3, “Histórias de ontem, hoje e sempre”. 4 Lucía Píriz e Rosario Sánchez, “De pura costumbre”. Sistematização de quatro anos de aplicação de Vamos aprender bons-tratos. 5 L. Píriz e R. Sánchez, “De pura costumbre”.
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Vamos aprender bons-tratos
Na segunda edição, Vamos aprender bons-tratos foi corrigido, reescrito e ampliado, abrangendo novas temáticas. Buscamos torná-lo o mais versátil possível, de modo a servir como uma “caixa de ferramentas” a qual contivesse propostas que pudessem ser aplicadas nos mais diversos contextos característicos da América Latina. Para facilitar a aplicação destes materiais didáticos, as ferramentas foram agrupadas em capítulos que apontam para diferentes dimensões da existência (corpo, mente, espírito, ambiente, etc.), sem que isso signifique desconhecer a integridade das pessoas e das famílias, em virtude de quaisquer aspectos individuais ou coletivos que afetam o todo. A presente edição tem algumas pequenas modificações que ajudam a uma melhor compreensão e aplicação.
Juntamente com S.O.S. Pais e Mães61 (ferramentas lúdicas para ajudar pais e responsáveis na educação da sexualidade em família), LOTE Limites72(imposição de limites com bons-tratos em família) e Ser e Conhecer 8 (material de apoio para a educação da sexualidade), Vamos aprender bons-tratos formam o Kit “Bons tratos em família”, que são materiais didáticos do Programa CLAVES dedicados ao trabalho com famílias com uma variedade de propostas lúdicas. Cada proposta aborda diferentes aspectos da temática, buscando sempre a complementariedade. Confiamos que, em mãos e corações dispostos, todas essas ferramentas, recriadas a partir das experiências e contextos próprios de cada família ou comunidade, serão facilitadoras da construção de vínculos e relacionamentos mais plenos para todas as pessoas. Um abraço afetuoso, Alicia Casas Gorgal e María Eugenia Goyret
6 Alicia Casas e María Eugenia Goyret, S.O.S. Pais e Mães, Programa CLAVES-JPC, Montevideo, Uruguay. 7 Alicia Casas, Magdalena García Trovero e María E. Goyret, LOTE Limites, Programa CLAVES-JPC, Montevideo, Uruguay. 8 Alicia Casas, Magdalena García Trovero e María E. Goyret, Ser e Conhecer, Programa CLAVES-JPC, Montevideo, Uruguay
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2. O que é Vamos aprender bons-tratos? Vamos aprender bons-tratos é um conjunto de ferramentas que buscam ajudar as famílias a se encontrarem de uma maneira especial e, na forma de jogo, descobrirem e pensarem juntos as histórias familiares, conhecerem-se melhor, desenvolverem habilidades de comunicação, descobrirem novas formas de expressar afeto e aprenderem a valorizar a contribuição única de cada um dos seus integrantes, construindo, dia a dia, a cultura dos bons-tratos. Vamos aprender bons-tratos foi pensado para enriquecer a tarefa educativa das famílias, das instituições e das comunidades, e pode ser utilizado em diferentes contextos. Uma instituição (ONG, igreja, hospital, escola) pode coordenar a aplicação desta proposta trabalhando com pais e responsáveis, ou com grupos de crianças ou adolescentes, favorecendo a reflexão sobre as modalidades de relacionamento em família. Pode ser aplicado de diferentes maneiras, seja utilizando as ferramentas em sua totalidade ou somente algumas delas. Em alguns casos, será um processo prolongado, enquanto, em outros, serão trabalhados alguns temas pontuais. Uma família, de forma independente e autorregulada, pode utilizar o material em seu lar, com os diferentes integrantes.
Neste caso, é importante ter em conta o seguinte: DD
Escolher o momento mais apropriado, que inclua a participação de toda a família. É difícil pensar quando temos fome, sono, ou estamos com muita pressa.
DD
Tratar de criar um clima tranquilo e afetuoso, para que todos se sintam confortáveis. (Se faz frio, envoltos em uma manta ou perto do aquecedor; se faz calor, perto de uma janela ou em ambiente externo).
DD
Evitar interrupções (desligar TV, rádio, celulares, etc.).
DD
Lembrar-se de que, quando buscamos promover os bons-tratos entre os membros da família, isso também deve ser de forma “visível” na maneira de nos tratarmos quando trabalhamos juntos.
Um profissional pode integrá-lo ao trabalho terapêutico com famílias. A experiência tem demonstrado a utilidade de contar com ferramentas concretas que permitam a abordagem de situações complexas facilitando o papel psicoeducativo de cada terapeuta. Gostaríamos que Vamos aprender bons-tratos promovesse o aprofundamento do compromisso com as famílias, permitisse visualizar e confiar em seu potencial, contribuísse com o desenvolvimento de fortalezas familiares e desafiasse outras pessoas a intervirem nesta temática de maneiras novas e criativas.
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3. Histórias de ontem, hoje e amanhã. O percurso de Vamos aprender bons-tratos
No âmbito das diferentes experiências e áreas de trabalho implementadas a partir do Programa CLAVES, seguindo uma mesma metodologia na elaboração dos materiais didáticos e com a colaboração em conjunto da equipe técnica e de várias partes interessadas, surgiu a primeira edição de Vamos aprender bons-tratos. Livro para a promoção de bons-tratos em família. 91 Essa proposta, elaborada por um grupo de mães e pais adolescentes e suas educadoras, em Montevidéu, Uruguai, produziu uma série de jogos e um breve manual para trabalhar e promover os bons-tratos em família. Os pressupostos do início deste projeto foram, por um lado, o reconhecimento da existência dos maus-tratos para com crianças e adolescentes como sendo uma forma de relacionamento que utiliza a violência e altera o desenvolvimento natural de suas vidas e, por outro, a convicção de que é na família – grupo natural de pertencimento dos indivíduos –, no trabalho doméstico e cotidiano, que se assentam as bases para os maus-tratos e os bons-tratos. É no cotidiano que temos que trabalhar; não a partir do discurso, mas das práticas. 9 Trabalho coordenado por María E. Goyret, dra. Magdalena García Trovero e Melva González, educadora social. O grupo de mães e pais com seus filhos foi formado por: Vanessa Correa e Nicolás; Alejandra Correa, Christian e Jorge; Karina Carballo e Santiago; Ana Germán e Lucas; Fernanda Peña e Shandira; Janet Santos e Brian; María Cardozo, César Silveira e Nicole; Betina Avanti e Luana; Viviana Ramos e Nahuel.
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Hierarquizou-se, então, a partir dessa perspectiva, o valor de se trabalhar em torno do papel de mães e pais ou responsáveis, e de sua potencialidade como mediadores nos processos educacionais de seus filhos e filhas. Por outro lado, o trabalho de campo realizado com instituições educativas e educadores com esta temática, por volta dos anos 1995 a 2002, colocou em evidência a escassez de programas e materiais para trabalhar a prevenção desse problema em família. A partir dessa comprovação, decidimos fazer uma contribuição para resolver essa carência. Para isso trabalhamos de uma perspectiva particular: o protagonismo das mães e pais adolescentes e jovens, a fim de que eles mesmos pudessem construir ferramentas educativas a partir de suas experiências de apego com seus filhos e do saber construído como fruto dessas vivências. Para alcançar o objetivo geral de elaborar uma proposta acompanhada de seus materiais didáticos correspondentes foram planejadas diferentes etapas que se desenvolveram ao longo dos anos 2002 e 2003.
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A primeira fase de capacitação e modelo começou com a convocação de um grupo de mães e pais adolescentes e jovens – todos com um vínculo prévio com JPC do Uruguai por sua participação em outros programas – para integrarem-se a um processo participativo de construção de uma proposta de promoção de bons-tratos em família. Uma vez definido o referido processo, teve início a tarefa. Os trabalhos foram realizados em grupo, procurando atender os processos coletivos e pessoais, tanto nas primeiras instâncias de sensibilização e capacitação quanto posteriormente, na fase de elaboração de propostas e materiais. Através de oficinas semanais e de um retiro de famílias, do qual participaram mães e pais com seus filhos e filhas, foram trabalhados aspectos teóricos e vivenciais com relação aos maus-tratos e aos bons-tratos, suas diversas manifestações e a magnitude do problema. O ponto de partida foi compreender os sujeitos, pais e mães adolescentes, como seres ativos, capazes de construir e reelaborar conhecimento. A tarefa foi estruturada sobre a base de suas ideias e experiências prévias, enriquecendo-as com novos conceitos a fim de apreender e reelaborar diversos aspectos do tema, para, em seguida, integrá-los no modelo da proposta.
suas estratégias de vida, facilitar sua identificação de ações favorecedoras do vínculo com suas mães e pais e também com seus filhos e filhas, foram algumas das propostas utilizadas para favorecer sua incidência no projeto. O trabalho sempre teve como enfoque uma perspectiva lúdica, o que quer dizer que a experiência se desenvolveu em torno do jogo, de maneira que fosse enriquecedora, prazerosa, organizadora da temática, facilitadora quanto à apropriação conceitual e à elaboração, e que permitisse trabalhar sobre as emoções e sentimentos que esse assunto desperta. Dança, canto, histórias, técnicas em grupo e propostas plásticas foram dando conteúdo e forma ao processo criador que incluiu não somente as mães e os pais adolescentes, mas também seus filhos e filhas. Nesse processo de trabalho conjunto foi definida uma proposta que abordasse a promoção dos bons-tratos em família, jogando, cantando, contando histórias, fazendo quebra-cabeças, procurando os bons-tratos e o cuidado de cada integrante da família (de seu corpo, mente e espírito), assim como os bons-tratos relacionais (vínculo entre pais e filhos, irmãos e primos, e bons-tratos para com os mais velhos).
Foram indicados para suas participações ativas no processo e que fossem efetivas não somente nas fases de formação, mas, também, na proposta do programa e na posterior elaboração dos materiais didáticos. Criar espaços para a narração de suas próprias histórias, estimulá-los a compartilharem
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Foram identificados os seguintes valores e condutas para aprender em família (formulados de maneira simples): DD
Nosso corpo nos pertence e todos devem respeitá-lo.
DD
Todas as partes do nosso corpo são boas e valiosas. Conhecer nosso corpo nos ajuda a cuidar melhor dele.
DD
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Todos somos diferentes e capazes de fazer coisas úteis e valiosas para nós e para os demais. Quando nossa família nos acompanha e apoia, podemos desenvolver novas capacidades. Nossa família é parte de uma “família maior” que estava antes e seguirá depois da nossa: a humanidade e o universo em que vivemos.
DD
Para que nossos filhos e filhas cresçam saudáveis, eles precisam tanto de uma boa alimentação quanto da segurança do nosso amor incondicional.
DD
Nossos irmãos e primos são “nossos companheiros” na viagem da vida.
DD
Com nossos irmãos e primos aprendemos o valor de compartilhar.
DD
Os mais velhos têm uma longa vida que querem compartilhar conosco.
DD
Se ouvimos nossos avôs e avós, poderemos compreender melhor quem somos e de onde viemos.
Uma vez definida e projetada a proposta didática, juntou-se à tarefa uma desenhista e ilustradora e foi editada uma série de materiais para uma aplicação piloto.
Vamos aprender bons-tratos
No segundo semestre de 2002 e princípio de 2003 foi realizada a segunda fase de aplicação piloto e avaliação primária. Durante esta etapa cada família participante do processo criativo levou os materiais para sua casa e trabalhou com seu grupo familiar. Além dos materiais, haviam recebido uma folha de avaliação muito simples e fácil de responder, a fim de facilitar a análise posterior da experiência. No começo do ano seguinte foi possível reunir todos os participantes, com sua proposta de monitoramento aplicado e avaliar a experiência: os acertos, as dificuldades, as alegrias, as descobertas e os aspectos a remodelar. Alguns de seus comentários foram: “Em casa juntaram-se todos os primos”, “Não consegui fazer minha mãe participar”, “Era difícil encontrar um lugar para fazê-lo”, “O que mais gostaram foram as músicas”, “Compartilhei com meu vizinho que tem uma filha deficiente auditiva e ele aplicou com ela”.
Em seguida foi implementada uma terceira fase de modelo final e edição, que culminou com a “apresentação para a sociedade” desta proposta de divulgação. A partir daquele momento foi realizada uma infinidade de oficinas e jornadas de capacitação com educadores e técnicos, no Uruguai e em outros países da América Latina. As oficinas tiveram como eixo a proposta de Vamos aprender bons-tratos e apontaram para o favorecimento do trabalho com as famílias, reconhecendo o papel protetor dos pais e responsáveis e a importância do fortalecimento dos diferentes integrantes da família. Por outro lado, com o apoio de uma avaliadora externa, técnicos e educadores do Programa CLAVES puderam implementar, a partir do ano de 2004 até 2008, um processo de sistematização e avaliação da aplicação de Vamos aprender bons-tratos. Durante este processo foram recolhidas opiniões e experiências surgidas da aplicação da proposta no âmbito local e também em outros países da região.
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Da avaliação surgiu o seguinte: O reconhecimento da proposta como valiosa por sua aplicabilidade em contextos distintos e por parte de diferentes participantes, com diferentes graus de formação, tanto em família quanto em centros educativos ou igrejas, e também pela pertinência do tema abordado. A necessidade de educadores e técnicos de receber maior formação na área de trabalho com famílias, tanto no âmbito nacional quanto regional. A necessidade de agregar às dimensões abordadas por Vamos aprender bons-tratos outros aspectos que também apontem para o fortalecimento familiar. A necessidade de pensar a proposta e seus materiais mais como uma sequência de oficinas para desenvolver em família, como uma grande caixa de ferramentas que estimule as famílias a refletirem e atuarem e as enriqueça na desafiante tarefa de educar seus filhos e filhas a partir da cultura dos bons-tratos. As dificuldades de poder “medir” efetivamente o impacto da prevenção, embora reconhecendo que ante a complexidade e multicausalidade dos maus-tratos, a prevenção é apenas mais uma ferramenta para o trabalho do dia a dia.
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Hoje nos encontramos, depois de todo este caminho percorrido, perante uma terceira edição de Vamos aprender bons-tratos. Esta edição busca enriquecer e articular o trabalho, as experiências e ideias dos autores originais com uma enorme quantidade de novos participantes que, ao aplicá-lo, jogá-lo, pensá-lo, vivê-lo, reescreveram suas páginas e recriaram sua essência. Assim como nas primeiras edições, buscamos trazer chaves (claves) para acompanhar as famílias na maravilhosa tarefa de criar e educar seus filhos e filhas. Criar e educar é também alimentar, nutrir, cuidar, instruir, formar, amar. Ser mãe, pai, avô ou avó requer muita paciência, criatividade, sabedoria, perseverança e profundo amor. Muitas das habilidades necessárias para essa tarefa se aprendem de maneira natural, mas muitas outras devem ser aprendidas a partir da busca de experiências e saberes construídos por outras gerações e, também, por especialistas. Para isso, as famílias contam hoje com livros, revistas, diálogos e oficinas com outros pais, conferências com experts, programas de rádio e TV, além de sites e foros especializados on-line. No entanto, muitas vezes pais e mães expressam que esses recursos oferecem valiosa ajuda teórica, mas contribuem muito pouco para passar da reflexão para a prática cotidiana, o dia a dia em casa.
Vamos aprender bons-tratos
Longe de ser um livro de receitas ou uma caixa com propostas mágicas, Vamos aprender bons-tratos quer contribuir neste outro sentido, o das práticas e vivências cotidianas. Esperamos com este Vamos aprender bons-tratos abordá-los, uma vez mais, através de velhas e novas canções, danças, jogos de mesa, técnicas de animação e recreação, propostas concretas para aprender e ensinar brincando. Que o jogo seja novamente: DD
Um meio para favorecer o encontro da família e o conhecimento mútuo;
DD
Uma ferramenta para possibilitar a expressão de sentimentos e emoções em família;
DD
Uma oportunidade de conhecer as potencialidades e limitações de cada um de nós e de quem nos rodeia;
DD
Uma estratégia para adquirir novas habilidades;
DD
Um recurso para explicitar normas e impor limites de uma maneira não violenta;
DD
Um caminho para aprender a resolver conflitos corretamente;
DD
Um instrumento para desenvolver o autocontrole;
DD
Uma forma de promover o compromisso e a responsabilidade;
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Um caminho para o desenvolvimento da criatividade;
DD
Um canal para pedir e oferecer ajuda;
DD
Uma maneira de construir os bons-tratos em família.
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Vamos aprender bons-tratos
A aventura de ser pai e mãe é um caminho sem saída, com seus picos e seus vales. É um processo de aprendizagem constante, e nem mesmo os especialistas têm todas as respostas sobre como atravessá-lo. Sabemos que as crianças, para crescerem saudáveis, precisam se sentir amadas e desenvolver-se em um ambiente de segurança, coerência e estabilidade que lhes permita enfrentar as muitas adversidades e mudanças que a vida apresenta. Isso representa uma enorme responsabilidade. A partir dessa perspectiva, é saudável reconhecer nossos pontos fortes e nossas
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limitações, entender que também precisamos de pessoas para nos apoiar, cuidar e guiar nessa aventura. Esta edição de Vamos aprender bons-tratos chega da parte de educadores e técnicos, mas também de pais e mães que, passando pela paternidade e maternidade como você, compartilham suas leituras, aprendizagens, experiências, sucessos e fracassos como um grande abraço para aqueles que têm o grande privilégio de ensinar o mundo a seus filhos e filhas, a partir da lente da cultura de bons-tratos.
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4. Chaves conceituais sobre famílias e bons-tratos Crescer em uma família, além de inevitável, parece continuar sendo uma ideia muito boa, seja uma família biológica ou social. Todos temos nos formado nesse organismo vivo, nesse sistema de relações primárias que funciona como um caldeirão de significados, em que elementos da cultura e família de origem de cada membro são fundidos com a capacidade para criar uma identidade nova e única, em constante mudança. A dinâmica desse organismo vivo, as regras, as crenças, os valores, as expectativas, a distribuição do poder entre seus membros, ao longo do tempo, pode frustrar ou facilitar o desenvolvimento de cada integrante. 101 Qualquer coisa que afeta uma parte dessa rede de interconexões, que é a família, afetará de uma forma ou de outra todas as partes.
Mudando formas [...] A família é a mais desconcertante de todas as nossas organizações sociais, [...] a família nuclear não é normativa, nem histórica, nem transcultural [...]. A família é uma configuração relativa, determinada a partir de um ponto de vista cultural e histórico, que apresenta muitas variantes [...]. Foi se transformando para poder se adaptar às várias mudanças da realidade social [...]. Hoje somos testemunhas de uma contínua transformação da família. Essas mudanças não são, em si, nem boas, nem más, mas como em qualquer outra realidade social, são ocasiões tanto para o bem quanto para o mal [...].112 A composição da família não determina a qualidade dos vínculos nem uma maior ou menor capacidade para cumprir suas funções.
Com este conceito de fundo, pensamos Vamos aprender bons-tratos, sabendo que a incidência com poucos ou muitos membros da família pode causar alterações na família toda.
10 Nathan Ackerman, Diagnóstico y tratamiento de las relaciones familiares, Hormé, Bs. As., 1986.
11 John Westerhoff, Fundamentos bíblico-teológicos del matrimonio y la familia, Jorge Maldonado editor, Nueva Creación, Bs. As., 1995.
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As famílias estão mudando de uma maneira nova ao longo do tempo. Isso é particularmente evidente na América Latina, onde as famílias são afetadas por realidades muito mutáveis e desafiadoras. A título de exemplo, podemos citar algumas mudanças e desafios que atingem as realidades familiares de hoje: o fosso entre ricos e pobres, a formação de megacidades, o êxodo do interior para a cidade, emigração de jovens pais para a Europa e os Estados Unidos, o aumento da expectativa de vida de mulheres na classe média e alta, o adiamento para formalizar casais e a instabilidade conjugal, a escolha do celibato, feminilização, indigenização e infantilização da pobreza, e taxa de natalidade extrema ou muito baixa. As mudanças também afetam a presença significativa de mulheres na força de trabalho assalariada, a crise do modelo patriarcal, a redefinição dos papéis de homens e mulheres, a desigualdade no acesso às necessidades básicas, a infância e a adolescência nas ruas, a presença de grupos sociais muito violentos atrativos para alguns jovens e a visibilidade de todo o mundo “privado” das famílias (que colocou em evidência, entre outras coisas, a extensão da violência doméstica).
rurais tendem a ser nucleares à medida que seus membros migram para a cidade e famílias conjugais urbanas, por exemplo, recebem parentes e conhecidos que procuram se inserir na cidade, de modo que começam a funcionar mais como famílias ampliadas.12 Os filhos e filhas que formam casais e, por razões econômicas, vivem com um dos seus pais ou irmãos mais velhos, as adolescentes solteiras que criam seus filhos com sua família de origem, as muito frequentes famílias monoparentais, famílias recompostas (produtos da união de duas pessoas com filhos ou filhas de relacionamentos anteriores), as famílias comunitárias que se reúnem em um lugar comum para a sobrevivência, avós que criam seus netos enquanto os pais estão trabalhando em outros países, irmãos solteiros vivendo juntos, as famílias sem filhos, os alunos que compartilham uma casa na cidade há anos, os lares adotivos, famílias de acolhimento e de várias formas de vida comunitária são algumas das muitas maneiras de organizar famílias biológicas ou sociais.
Nessa complexa realidade, a capacidade das famílias para mudar de forma pode ser vista como a riqueza e a criatividade que lhes permite continuar a desempenhar suas funções. Assim, o estereótipo da família nuclear urbana e família estendida do interior já não reflete a realidade. As famílias 12 Carlos Pinto, Ser familia en América Latina, Monografía 20, EIRENE Internacional, Quito, 1997.
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Funções familiares A vida familiar proporciona aos seus membros a possibilidade de individuação, a diferenciação, a necessária segurança e autoestima, o sentimento de pertencimento, o desenvolvimento de capacidades de adaptação e a possibilidade de trabalhar e amar, com um sentido maduro de responsabilidade. Por individuação ou diferenciação queremos dizer o processo pelo qual uma pessoa, uma parte do todo, torna-se cada vez mais distinta e independente, com peculiaridades de sua essência única. Parece que dificilmente uma pessoa pode satisfazer suas necessidades básicas fora de uma estrutura familiar. É na família que se permite e incentiva o desenvolvimento integral de todos os membros, não apenas das filhas e filhos. É nela que se cumprem as funções básicas de nutrição, reprodução, educação e socialização que cobrem as dimensões emocional, sexual, intelectual, espiritual e material.
Não existem famílias perfeitas ou idealmente saudáveis, nem nunca existiram. Na melhor das hipóteses, elas são predominantemente “saudáveis” ou predominantemente “doentes”.13 Todas vão sendo construídas através de sucessos e fracassos. No entanto, o potencial de desenvolvimento da família, como um corpo, e de seus membros, está relacionado com certas habilidades, características ou capacidades. Famílias funcionam melhor quando são capazes de responder positivamente aos desafios e crises, quando têm uma visão positiva e claramente articulada do mundo, conseguem se comunicar de forma eficaz, decidir e agir em conjunto em algumas atividades, realizar e cumprir os compromissos assumidos um frente aos outros, e quando expressam amor e reconhecimento mútuo.14
Embora possa parecer redundante, essas funções só podem ser alcançadas se estiverem mediadas por laços de amor e afeição profunda entre os membros, assim como pela disposição de celebrar-se afetivamente para o outro, respondendo às necessidades emocionais de aceitação e reconhecimento.
13 N. Ackerman, ob. cit. 14 A. Friesen, C. Grzybowsky e R. Kuhnrich, De bençoes e traiçoes, citando Jones e Butman, Ed. Ultimato/Esperança, Viçosa/Curitiba, Brasil, 2006.
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VAMOS APRENDER BONS-TRATOS é um conjunto de ferramentas que busca ajudar as famílias e encontrar-se de uma maneira especial e, em forma de jogo, descobrir e pensar juntos as histórias familiares, conhecer-se melhor, desenvolver habilidades de comunicação, encontrar novas formas de expressar afeto, aprender a valorizar a singularidade de cada integrante, construindo dia a dia, a cultura dos bons-tratos. VAMOS APRENDER BONS-TRATOS foi pensado para enriquecer a tarefa educativa de famílias, instituições e comunidades, e pode ser utilizado em diferentes contextos: •
Uma instituição coordena a aplicação desta proposta, trabalhando com os pais ou responsáveis, ou com um grupo de crianças ou adolescentes, favorecendo a reflexão sobre as várias modalidades de relacionamento na família.
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Uma família, de maneira independente e conforme suas próprias regras, utiliza o material no próprio lar, com seus integrantes.
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Um profissional integra este material ao seu trabalho terapêutico com famílias.
Desejamos que VAMOS APRENDER BONS-TRATOS convoque a todos para aprofundar o compromisso com as famílias, permita visualizar e confiar em seu potencial, ajude no desenvolvimento dos pontos fortes das famílias e desafie aos demais a intervir nesta temática, de maneiras novas e criativas. María Eugenia Goyret e Alicia Casas Gorgal
A associação civil Juventud para Cristo en el Uruguay (JPC) é uma organização cristã de trabalho autônomo no Uruguai desde 1972. Sua ação é voltada para meninos, meninas, adolescentes, jovens e suas famílias, em três níveis de intervenção: pessoal (procurando um desenvolvimento integral), familiar e comunitário (favorecendo o fortalecimento familiar, o desenvolvimento de redes locais e a participação) e político estrutural (participando na construção de políticas sociais e metodologias de intervenção adequadas). No contexto do trabalho comunitário da JPC, no ano de 1995 surgiu o Programa CLAVES: Brincando nos fortalecemos para enfrentar situações difíceis, que visava unir esforços na prevenção do abuso e na promoção da cultura dos bons-tratos. O Programa CLAVES trabalha na sensibilização e na capacitação da temática, com e para meninos, meninas, adolescentes, famílias, educadores e técnicos. Por sua vez, procura gerar conhecimento, construir ferramentas de ensino e possibilitar espaços de participação e liderança. Apoio:
vida melhor
para uma