Estafeta de leitura 2017
Mia Couto – O menino que escrevia versos — Ele escreve versos! Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha. — Há antecedentes na família? — Desculpe doutor? O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias: — Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol. Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confecionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor. Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito. — São meus versos, sim. O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto? Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado. — O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte elétrica. Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar. Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino: — Dói-te alguma coisa? —Dói-me a vida, doutor. O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: — Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo: — E o que fazes quando te assaltam essas dores? — O que melhor sei fazer, excelência. — E o que é? — É sonhar. Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! (…) Mia Couto – O menino que escrevia versos
António Mega Ferreira – Na biblioteca Tudo começou no dia em que apanhei o Capitão Fracasse a dançar uma valsa com Alice, no meio da biblioteca do avô. É verdade que não era a primeira vez que eu me dava conta de movimentos estranhos naquela divisão da casa. Às vezes, ao cair da noite, ouvia ruídos de vozes vindos lá de dentro. Pé ante pé, subia as escadas que dão para o primeiro andar e ia encostar o ouvido à porta, a ver se percebia o que é que estava a passar-se . Uma vez, devia ser no verão em que fiz seis anos, ouvi claramente uma voz rouca gritar: “ Assisti-me, senhora minha, na primeira afronta que este vosso avassalado peito se apresenta! Não me falte neste primeiro transe o vosso amparo!” Depois, ouviu-se um grande estrondo e um coro de gargalhadas femininas. Vozes de homens diziam coisas numa língua estranha que me pareceu espanhol, porque soava mais ao menos como a do senhor Martinez, que era o merceeiro da aldeia onde o0s meus avós tinham a sua residência de verão: “ Hombre! Qué crescido estás, Manuelito !”, dizia-me ele todos os anos, mal eu entrava na loja pela primeira vez, acabado de chegar para três meses de férias . Bom, foi depois disso que passei a aventurar-me mais vezes até à porta da biblioteca do avô. E um dia, a meio de uma tarde de muito calor, pus a mão na maçaneta da porta, rodeia lentamente, o coração batiame apressado e eu nem sequer sabia porque é que estava a fazer aquilo. Lá dentro, estava escuro, e, nesse tempo, eu ainda tinha medo do escuro. Mas no meio, mesmo no meio da biblioteca, havia uma zona iluminada, e um homem alto, de botas de cano, chapéu de plumas e capa de veludo vermelha, rodopiava, levando nos braços uma menina loura, muito loura, com os cabelos atados por uma fita lilás e um vestido da mesma cor. Tudo se passava em silêncio, o homem sorria, sorria sempre, e a menina, em bicos de pés, procurava seguir-lhe os passos largos, enquanto a capa de esvoaçava levemente, refletindo a luz que caía sobre o meio da sala. A primeira coisa que percebi é que o homem era Capitão Fracasse. Eu conhecia-o de uma história em quadradinhos que o meu pai me tinha dado no Natal. E a menina? Eu acho que só podia ser a Alice, porque lhe reconheci os cabelos e a figura frágil, e, além disso ele trazia na mão esquerda uma carta de jogar, acho que era o ás de copas. Mas, se tudo se passava em silêncio, como é que eu podia saber que estavam a dançar uma valsa? Foi esse mistério que me levou a falar com a minha mãe. E foi então que os acontecimentos se precipitaram.
António Mega Ferreira, As palavras difíceis
Fernando Pinto do Amaral – A minha primeira Sofia A mãe de Sophia passava muito tempo a ler e a filha adorava ouvir os poemas e as histórias que ela e as criadas lhe contavam. Ao princípio, quando ainda mal sabia ler, Sophia julgava que os poemas «não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos» e já nessa altura queria escrever, mesmo sem conhecer as letras: «Quando comecei a escrever eu não sabia escrever. Eu tinha uma pena enorme. Eu pedi à minha mãe papel e caneta. Escrevia (…) uns desenhos de uma s letras inventadas por mim.» Era uma criança muito curiosa e atenta a tudo o que a rodeava, mas parecia sempre sonhadora, deixando a sua imaginação voar ao sabor de mil personagens e aventuras: «Na minha infância gostava de ler histórias diferentes, desde a Nau Catrineta até ao Gato das Botas. Também me maravilhavam os contos tirados das Mil e Uma Noites, Aladino e a Lâmpada Maravilhosa ou Ali – Babá e os 40 Ladrões.» Durante as férias de Verão – antigamente duravam mais de três meses! – Sophia ia com toda a família para a Granja, uma praia que fica perto do Porto e onde há casas muito bonitas, construídas há mais de cem anos. Mais tarde, numa carta a Miguel Torga, ela escreveu: «A Granja é o sítio do mundo de que mais gosto.» Foi nesse tempo que a mãe lhe contou a história de uma menina muito pequenina, que vivia nos rochedos da praia – uma história à qual Sophia chamou A Menina do Mar. Nesse livro ela fala-nos da amizade entre um rapaz e a «menina do mar», que dançava no seu palácio submarino. Ele deixa-se fascinar pela beleza do mar: «Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores.» Enquanto ela o escuta com atenção e assim aprende a admirar a variedade das coisas terrestes: «Agora já sei o que é a terra. Agora já sei o que é o sabor da Primavera, do Verão e do Outono. Já sei o que é o sabor dos frutos. Já sei o que é a frescura das árvores. Já sei como é o calor de uma montanha ao sol. Leva-me a ver a terra. Eu quero ir ver a terra. Há tantas coisas que eu não sei. Essa viagem, todavia, não chega a realizar-se, porque a Grande Raia castiga a menina, ao aperceber-se dos seus planos, e ordena que os polvos a levem para muito longe, vencendo a resistência do rapaz.
Fernando Pinto do Amaral, A Minha Primeira Sophia
Gonçalo M. Tavares - A biblioteca O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos. O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, porém, foi descoberto. O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro. Foi mais difícil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei! A seguir o senhor Juarroz reordenou a biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro. Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: já sei! No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel. Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática que desvendasse a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a 2|9|30|93 Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia. Um reputado matemático, completamente vermelho e eufórico, segurando, na mão direita, num bloco gigante coberto de números, disse: já sei!, e apresentou depois a fórmula de progressão da série que baseava a organização da biblioteca. O senhor Juarroz ficou desanimado e decidiu desistir do jogo. Basta! No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto. Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.
Gonçalo M. Tavares, in O Senhor Juarroz
José Jorge Letria – O livro que só queria ser lido Era uma vez um livro triste. E não era triste pelo que contava nas suas páginas e ilustrações, mas sim porque tinha um desejo imenso de ser lido e muito poucas pessoas pareciam ter vontade de o ler. Por isso, era um livro triste, e não se envergonhava de o ser, perguntando mesmo com frequência: — Se um livro existe para ser lido e a mim não me leem, como posso eu andar contente da vida? Embora tivesse sido publicado há já alguns anos, não podia dizer-se que fosse um livro velho. Os livros mais antigos e raros, agasalhados nas suas belas encadernações de cabedal que os protegiam da humidade e das rugas da idade, estavam bem guardados na biblioteca do dono da casa, herdada de um avô que sempre gostara muito de ler e de viajar e que os comprara nas mais importantes cidades do mundo. O livro de que este livro fala tivera a sua época, fora lido por várias pessoas da casa e depois esquecido, como acontece, infelizmente, com a maior parte dos livros. Mas há livros que aceitam o esquecimento e outros que não se resignam com ele. Era o caso deste livro, que encontrara o seu pouso certo numa prateleira alta de uma estante colocada ao lado da secretária, onde agora era rei e senhor o computador. Na prateleira de baixo, o livro tinha como companhia vários dicionários de que gostava muito, pois, enquanto a casa caía num sono profundo, eles ensinavam-lhe palavras em línguas que nunca imaginara poder vir a falar. Foi assim que aprendeu a dizer «obrigado», «até amanhã», «desculpe» e «posso entrar» em francês, inglês, espanhol e alemão. Não se pode dizer que estas palavras fossem de grande utilidade no seu dia-adia, mas, como o saber nunca ocupa lugar, tinha-as armazenadas na memória, para o caso de um dia vir a precisar delas. Sim, porque nunca sabe que destino está Reservado a um livro.
José Jorge Letria, O livro que só queria ser lido
José Jorge Letria – O livro que falava com o vento Era um livro parecido com muitos outros livros, até na encadernação de carneira verde escura que lhe dava um toque de solenidade e um ar muito respeitável. Encontrei-o há muitos anos no fundo de uma arca, no sótão da casa dos meus avós, e gostei do que ele tinha para me contar. Era uma história de amor e aventuras que fez as minhas delícias quando tinha tempo para ler sem parar livros que me chegavam às mãos. Passei a gostar dele por aquilo que tinha para contar, mas também como objeto, porque o seu aspeto era agradável e sedutor e porque tinha um prazer especial em passear os meus dedos pela sua capa encadernada. Um dia, encontrei esse livro numa grande livraria, mas numa edição mais recente, e não senti o desejo de o comprar porque lhe faltava o encanto da velha edição que eu tinha em casa e que tratava com se fosse um verdadeiro tesouro. Guardei-o em lugar destaque na prateleira mais alta de uma estante do meu escritório e prometi a mim mesmo que havia de o reler logo que tivesse tempo, pondo-o e pondo-me á prova em relação á importância que teimava em atribuir-lhe. O que eu quero dizer com isto é que me dispus a fazer um teste para ver se ainda gostava dele da mesma forma gostei quando o li pela primeira vez. Peguei nele com cuidado, para ver se tinha páginas arrancadas ou algum rasgão na pele da encadernação, mas verifiquei que estava intacto, o que significava que era sólido e resistente e que não seria uma fugaz tempestade de Outono a pôr a sua integridade em causa. Quando me preparava para o recolocar no lugar que para ele reservava na estante das obras que mais me tinham influenciado e feito de mim o grande leitor que hoje sou, ouvi uma vozinha que me disse: — O vento desta madrugada vinha à minha procura e queria levar-me com ele. Pensando que estava a sofrer de uma alucinação momentânea, pois nunca antes ouvira um livro a falar, peguei nele com todo o cuidado e tentei perceber se era eu que não estava bom da cabeça ou se era mesmo o livro de capa encadernada que tinha o raro dom de usar a voz para comunicar comigo. E acerca disso ele deixou-me sem dúvidas, dizendo-me com aquela voz fininha e doce: — Eu sei que não acreditas em mim, mas olha que podes acreditar, porque sou um livro que fala com o vento. … José Jorge Letria, O livro que falava com o vento e outros contos
José Jorge Letria – O rato de Alexandria O rato de Alexandria era um rato como qualquer outro. Tinha o pelo cinzento e pequenos olhos castanhos. Gostava de comer queijo e de dormir longas sestas em recantos resguardados da investida dos gatos famintos que povoavam a cidade. Alexandria era, nesse tempo, uma cidade imensa onde se juntavam gentes vindas de todo o mundo. Tinha avenidas largas e casas de vários andares, templos grandiosos e belos jardins onde se encontravam os poetas e os poetas e os filósofos para discutirem os mais variados assuntos. Ratos também os havia de todas as partes, mais gordos uns, mais magros outros, mas todos igualmente atarefados nas andanças que faziam em busca de alimento e de local seguro para dormirem. O rato de que fala esta história morava num sítio muito especial: a Biblioteca de Alexandria, onde havia milhares de pergaminhos e papiros, contendo todos os conhecimentos que os homens tinham até então conseguido acumular e passar por escrito. Um dia, não tendo anda para fazer, começou a passar por cima de folhas cobertas de estranhos caracteres e, em vez de as roer como faziam os outros ratos, procurou descobrir se juntos faziam sentido. Foi assim que se transformou no primeiro rato a saber ler. Muito quieto, nos recantos das amplas salas da biblioteca, assistia às animadas discussões que ocupavam, durante dias inteiros, os cientistas e os filósofos de Alexandria. Às vezes, apetecia-lhe dar a sua opinião, mas faltava-lhe coragem e atrevimento. «Que irão eles pensar de mim se me puser para aqui a dar sentenças com a minha fraquinha voz de rato?» - interrogava-se ele, sem nunca encontrar resposta que lhe desse alento para falar. De leitura em leitura, foi ficando cada vez mais sábio e, ao mesmo tempo, envelhecendo sem quase dar por isso. Mas envelheceu com gosto, repleto de conhecimentos fantásticos sobre a vida, a natureza e o mundo.
José Jorge Letria, O livro que falava com o vento e outros contos
António Torrado – Livro fechado Era uma vez um livro. Um livro fechado. Tristemente fechado. Irremediavelmente fechado. Nunca ninguém o abrira, nem sequer para ler as primeiras linhas da primeira página das muitas que o livro tinha para oferecer. Quem o comprara trouxera-o para casa e, provavelmente insensível ao que o livro valia, ao que o livro continha, enfiara-o numa prateleira, ao lado de muitos outros. Ali estava. Ali ficou. Um dia, mais não podendo, queixou-se: – Ninguém me leu. Ninguém me liga. Ao lado, um colega disse: – Desconfio que, nesta estante, haverá muitos outros como tu. – É o teu caso? – perguntou, ansiosamente, o livro que nunca tinha sido aberto. – Por sinal, não – esclareceu o colega, um respeitável calhamaço. – Estou todo sublinhado. Fui lido e relido. Sou um livro de estudo. – Quem me dera essa sorte – disse outro livro ao lado, a entrar na conversa. – Por mim só me passaram os olhos, página sim, página não... Mas, enfim, já prestei para alguma coisa. – Eu também – falou, perto deles, um livrinho estreito. – Durante muito tempo, servi de calço a uma mesa que tinha um pé mais curto. – Isso não é trabalho para livro – estranhou o calhamaço. – À falta de outro... – conformou-se o livro estreitinho. Escutando os seus companheiros de estante, o livro que nunca fora aberto sentiu uma secreta inveja. Ao menos, tinham para contar, ao passo que ele... Suspirou. Não chegou ao fim do suspiro, porque duas mãos o foram buscar ao aperto da prateleira. As mãos pegaram nele e poisaram-no sobre os joelhos. – Tem bonecos esse livro? – perguntou a voz de uma menina, debruçada sobre o livro, ainda por abrir. – Se tem! Muitos bonecos, muitas histórias que eu vou ler-te – disse uma voz mais grave, a quem pertenciam as mãos que escolheram o livro da estante. Começou a folheá-lo e, enquanto lhe alisava as primeiras páginas, foi dizendo: – Este livro tem uma história. Comprei-o no dia em que tu nasceste. Guardei-o para ti, até hoje. É um livro muito especial. – Lê – exigiu a voz da menina. E o pai da menina leu. E o livro aberto deixou que o lessem, de ponta a ponta. Às vezes, vale a pena esperar. António Torrado, História do dia
António Torrado – Vantagens da leitura — Mãos no ar — gritou o caçador para a lebre. — Qual quê! Toca mas é a correr... — Para ou eu disparo - voltou a avisar o caçador. Pois sim! Pernas para que vos quero... Vai daí, o caçador disparou. Disparou, mas não acertou. Foi a sorte da lebre. De moita em moita, rasteirinha, a lebre chegou, quase sem fôlego, à toca da família. Pânico geral entre os parentes. — Não posso acreditar — dizia a bisavó. — Aqui nunca houve caçadores. — Nem o velho Hipólito os consentia, nos arredores da herdade — acrescentava a avó. Assim em paz tinham vivido há gerações, mas o que não sabiam era que o dono da herdade já morrera. Também não sabiam que os filhos do senhor Hipólito, pouco dados à vida do campo, tinham vendido toda aquela imensidão de terra a um clube de caçadores. — Ninguém nos avisou — protestaram as lebres. Por sinal que tinham sido avisadas. Se as lebres soubessem ler, teriam lido no jornal da terra o anúncio da venda. Também um edital, pregado no tronco de um sobreiro, à entrada da herdade, noticiava a mudança de proprietário. Finalmente, vários letreiros, onde estava escrito TERRENO DE CAÇA, espalhados um pouco por toda a parte, informavam que aquele território deixara de ser seguro para lebres e coelhos. Foi a partir deste incidente que as lebres decidiram todas aprender a ler. E, já agora, mudar para um sítio mais sossegado. António Torrado, História do dia
Luísa Ducla Soares – A fada palavrinha e o gigante das bibliotecas Era uma vez um rei Que tinha um enorme tesouro: Esmeraldas, diamantes E muitas moedas de ouro.
O rei não quis dar ouvidos A gente tão ignorante, Tinha gosto de aprender Como se fosse um estudante.
Uma fortuna guardada Merecia aplicação. Ali fechada num cofre, ainda chamava ladrão.
Na nova biblioteca Ganhou tal sabedoria Que melhor rei neste mundo Aposto que não havia.
— Que hei de eu fazer, digam lá? — Perguntou ele ao serão. — Antes de me decidir Quero a vossa opinião. (…) O rei franziu o nariz, Não ficou nada contente Ele tinha outra ideia Há tempos na sua mente.
Cheio de curiosidade, O povo desse país Quis todo aprender a ler Para lá meter o nariz.
Ergueu um grande edifício, Forrou-o todo com estantes Mandou vir imensos livros No dorso dos elefantes.
Na biblioteca estudou, Nela se fartou de rir, Porque os livros também servem, Afinal, para divertir.
Vieram livros de barco, De cavalo, de camelo, Das terras quentes com sol, Das terras frias com gelo.
Mas o pior foi que as traças, Ao verem tal corrupio, Entraram na biblioteca Num dia cinzento e frio.
— Que lembrança tão maluca, Que não lembra a um careca, Ir gastar tanto dinheiro Assim, numa biblioteca!
— Aqui é que se está bem!— Disseram todas em coro. — Vamos comer os livrinhos Encadernados a couro. (…)
Isto dizia a família E diziam os vassalos. — Ficar sentadinho a ler No rabo até faz calos.
Leu os livros de aventuras, De ciências naturais, Os de banda desenhada, E ainda leu muitos mais.
Luísa Ducla Soares, A fada palavrinha e o gigante das bibliotecas
Agnès de Lestrade, A grande fábrica das palavras Existe um país onde as pessoas quase não falam. É o país da grande fábrica de palavras. Neste estranho país, é preciso comprar e engolir as palavras para pronunciá-las. A grande fábrica de palavras trabalha de dia e de noite. As palavras que saem das suas máquinas são tão variadas quanto as linguagens. Há palavras que são mais caras do que outras e que raramente são ditas, a não ser que sejamos muito ricos! No país da grande fábrica, falar sai caro! Quem não tem dinheiro, remexe os caixotes de lixo à procura de palavras, mas as que encontram não são muito interessantes: há muitos “ excrementos de cabra” e “rabos de coelho”. Na primavera, as palavras entram em saldos. Um conjunto de palavras fica muito mais barato mas, regra geral, a maioria não serve para grande coisa: O que fazer com “ventríloquo” ou filodendro”? Por vezes, as palavras são levadas pelo vento. Nesses dias, as crianças apressam–se a pegar suas redes e a apanhá-las como se fossem borboletas. E à noite, durante o jantar, sentem-se orgulhosas por poderem dizê-las aos seus pais. Hoje, o Felipe apanhou três palavras, mas prefere não proferi-las à noite. Quer guardá-las para alguém muito especial. Amanhã é aniversário da Sara e o Felipe está apaixonado por ela. A sua vontade era dizer-lhe – Amo-te – mas não tem dinheiro no seu mealheiro. A única coisa que pode fazer é oferecer-lhe as palavras que apanhou: “ cereja, poeira, cadeira”. A Sara e o Felipe são vizinhos. Depois de tocar à campainha, ele não diz: - Bom dia! Como vais!? – pois não tem essas palavras consigo. Em vez disso, sorri. A Sara traz um vestido cor de cereja e retribui o sorriso. (…) - As minhas palavras são tão insignificantes... – pensa o Felipe. Então ele inspira fundo, pensa em todo amor que lhe agasalha o coração e, de uma assentada, pronuncia as palavras que havia apanhado com sua rede. As palavras voam em direção a Sara e atingem-na como pedras preciosas: … cereja, …poeira, … cadeira… A Sara deixa de sorrir. Fica a observá-lo. Ao que parece, está sem palavras. Decide aproximar-se dele e beijarlhe o nariz com ternura. Mas o Filipe tem uma última palavra a dizer. Em tempos, encontrou-a num caixote de lixo cheio de “excrementos de cabra” e de “rabos de coelho” e é uma palavra que ele adora. Guardou-a para um dia especial e, agora, esse dia chegou! Por isso olhando diretamente nos olhos de Sara, o Filipe diz-lhe: …
José Jorge Letria, A ilha das palavras Era uma ilha diferente de todas as outras ilhas. Quem a visitasse não encontrava nela rochas, árvores, rios, pássaros, grutas ou animais rastejantes. Encontrava somente o vazio de tudo isso, mas sob a forma de uma massa sonora que encantava quem se aventurasse naquelas estranhas paragens. Mas, afinal, de que ilha estamos a falar? Estamos a falar de uma ilha toda feita de palavras, de palavras simples e vulgares e de outras complicadas e com significados que só se descobrem nos mais seletos dicionários. As palavras eram a única riqueza e a verdadeira razão de existir daquela ilha perdida no mar imenso das coisas que ainda estão por descobrir. Ao longo dos séculos aportaram a essa ilha gentes de todas as origens geográficas. Por lá passaram os fenícios e os vikings, os portugueses e os espanhóis, os holandeses e os ingleses, e conta-se mesmo que o famoso Ulisses, nas suas longas errâncias marítimas, por lá terá andado, embora dessa visita não exista qualquer registo escrito, pelo menos que se saiba. Quando me falaram da existência da Ilha das Palavras, fui à procura dos atlas e dos livros de geografia que tenho em casa, incluindo os que guardei do tempo em que andava na escola, mas devo desde já confessar que não encontrei qualquer referência a essa misteriosa ilha. Era como se ela nunca tivesse existido, ou tivesse somente existido na imaginação de pessoas que são das que gostam de inventar coisas estranhas e raras sempre muito difíceis de explicar. Depois falei com pessoas sábias em matéria de literatura e houve quem hesitasse antes de responder que não conhecia essa ilha. Um especialista nunca costuma reconhecer à primeira que desconhece uma coisa, mesmo que ela, aparentemente, não tenha qualquer razão de existir. Normalmente faz uma pausa, pede uns dias para refletir e para consultar os seus livros e as suas fichas e depois, mesmo que a resposta não seja conclusiva nem definitiva, é muito capaz de criar uma teoria que nos deixa sem resposta, ou mesmo sem fôlego, mas com muita esperança de ainda podermos vir a obter uma resposta satisfatória. Um velho poeta sem abrigo, daqueles que passeiam os versos entre canteiros de jardins tristes enquanto dão migalhas de pão aos pardais, ao ser perguntado sobre a existência da Ilha das Palavras, disse-me: —Todos os poetas já a visitaram, pelo menos em sonhos. — Mas — insisti eu —, se essa ilha realmente existe, onde é que fica? — Mesmo que eu tivesse um mapa aqui à mão, teria muita dificuldade em responder-te, porque essa ilha, sendo feita só de palavras, existe no Mar da Imaginação, no centro do Arquipélago das Coisas Sem Nome. Achei a resposta interessante e bela, mas fiquei exatamente na mesma, ou seja, à deriva, no mar encapelado das minhas dúvidas, em busca de uma pista que, nas férias de Verão, pudesse levar-me a visitar a Ilha das Palavras. Nos meses que se seguiram, dei por mim a imaginar que poetas como Luís de Camões, Bocage ou Camilo Pessanha, nas viagens que fizeram para oriente, terão, pela certa, feito escala nessa ilha misteriosa e distante. Mas, sendo-me impossível falar com eles por já terem desaparecido há muitos anos, continuei com a minha dúvida por esclarecer. Onde ficaria, afinal, a Ilha das Palavras?
José Jorge letria, O caçador de palavras Quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, Afonso costumava responder: - Caçador de palavras. Apenas isso, caçador de palavras. E quando alguém lhe dizia que ser caçador não é profissão e nem sequer é uma coisa muito recomendável porque representa o sofrimento e a morte de seres vivos, Afonso respondia sem hesitar: - Mas eu caço palavras e não perdizes, coelhos ou javalis. Não lhes fico com a pele, nem as mando embalsamar para decorar as paredes da minha casa. Eu caço as palavras de que gosto para as colecionar e enriquecer o meu vocabulário. Em regra, as pessoas ficavam bastante satisfeitas com a resposta, ou, pelo menos, o seu silêncio dava a entender que aceitavam os argumentos de Afonso, por todos classificado, sem exceção, como "um miúdo muito inteligente". Afonso gostava muito de conversar com a avó Maria, porque tinha lido muitos livros e sabia muitas palavras raras e pomposas, daquelas que Afonso gostava de caçar. Como a avó gostava de fazer palavras cruzadas, estava sempre a encontrar novos verbos e adjetivos que, gostosamente, partilhava com o neto. (…) Foi por essa altura que Afonso descobriu a poesia e a capacidade mágica que ela tem de dar nome ao que mais nada nem ninguém é capaz de nomear, sejam afetos, situações ou sentimentos. Nos versos dos poetas começou a encontrar palavras que nunca antes lera, ou que lera com significados bem diferentes. E quando chegou aos poetas surrealistas descobriu mesmo que as palavras, quando são combinadas com a máxima liberdade e imaginação, podem abrir as portas para emoções e descobertas que ele nunca pensou que fossem possíveis no fantástico país da linguagem. Ao ler os poetas, desde os antigos aos atuais, Afonso descobriu os verdadeiros colecionadores e caçadores de palavras, aqueles que são capazes de sacrificar uma noite de sono ou um fim de semana de merecido descanso para trabalhar um verso até que ele atinja a perfeição. (…) Desse dia em diante começou a ler obras de poetas portugueses e estrangeiros, estes quase sempre traduzidos por bons poetas, que são sempre os melhores tradutores de poesia, e descobriu que cada um deles era um mundo e que não havia melhor forma de encontrar palavras fantásticas e raras. Foi graças a eles que incluiu na sua coleção palavras como "inquietação", "mágoa", "olhar", "âmbar", "ternura" ou "nómada", aprendendo o significado de todas elas e também os inesperados sentidos que adquiriam quando eram colocadas no meio de um verso. Leitor incansável, Afonso percebeu que o poeta tem de começar por ser alguém que nunca deixa de ler os outros poetas, os antigos e os modernos, e que é da coleção de palavras novas que resulta dessa leitura que depois acaba por nascer o prazer de escrever poesia.
José Jorge Letria - O sábio, o califa e o saber Um califa de uma das mais importantes dinastias árabes chamou, certo dia, à sua presença o homem mais sábio da corte, aquele a quem toda a gente recorria quando tinha dúvidas, problemas para resolver ou doenças para curar, e ordenou-lhe: — Quero que organizes e resumas todas as formas de saber que, durante séculos, foram armazenadas pelos sábios, pelos cientistas e pelos poetas deste reino. Tivemos e continuamos a ter grandes poetas, grandes astrónomos, grandes médicos e grandes matemáticos, mas muito do que eles descobriram anda só de boca em boca, o que quer dizer que poderá perder-se quando as pessoas morrerem. Portanto, a partir de hoje, terás apenas esta tarefa. — Tentarei estar à altura dela, senhor, mas desde já vos aviso que será coisa para durar alguns anos. — Leva o tempo que for preciso, mas apresenta-me um trabalho satisfatório — respondeu o califa. — A única coisa que quero é estar ao corrente de tudo o que se sabe no meu tempo. Ao fim de treze anos, o sábio da corte apresentou-se nos aposentos reais com uma pilha de vinte volumes transportados por vários criados. O califa olhou, estupefacto, para aqueles livros e disse: — Mas não é possível que se tenha acumulado tanto saber! Bem, mas como eu tenho uma vida muito ocupada e me falta tempo para ler todos estes livros, peço-te que voltes aos teus aposentos e me resumas tudo isto em menos volumes. Um pouco contrariado, o sábio cumpriu as ordens do califa e conseguiu, em apenas sete anos, resumir todo o saber até então acumulado em oito volumes. Voltou à presença do califa, que lhe disse: — Ainda são demasiadas páginas, e tu sabes que o meu tempo é escasso. Por outro lado, estou a envelhecer e não terei tempo para ler tudo o que aí escreveste. Como és um homem sábio, certamente poderás resumir tudo isso num só livro. — Não sei se serei capaz — respondeu o sábio, desanimado —, mas vou tentar, senhor. Ao fim de quatro anos, já muito envelhecido, voltou a comparecer nos aposentos reais, com os olhos míopes e as costas arqueadas de tanto ler e escrever, e entregou ao califa um grosso volume, obtendo a seguinte resposta: — Aprecio o teu esforço, que deve ter sido imenso, mas, como vês, estou já muito velho e não terei tempo, nem paciência, nem saúde, para ler esse livro todo, até porque estamos em guerra e tenho tarefas mais urgentes. Portanto, ordeno-te que resumas tudo aquilo que escreveste numa só página. Quase tão velho e doente como o califa, o sábio voltou à sua presença um ano e meio mais tarde e entregou-lhe, com o maior dos cuidados, dentro de uma capa de cabedal artisticamente trabalhado, uma página com o resumo possível de todo o saber até aí acumulado. O califa, muito enfraquecido pela doença e pela idade rodeado por secretários e conselheiros que não paravam de lhe dar decretos e ordens para assinar, olhou para ele e disse: — Como vês, o meu tempo e a minha vida são isto. Ou seja: nem tempo tenho para ler uma página inteira em paz do princípio ao fim. Ordeno-te, pois, que resumas tudo isso numa só palavra, e vê se a encontras depressa, pois não sei quanto tempo tenho ainda de vida. Seis meses levou o pobre sábio a procurar a palavra mágica que fosse capaz de sintetizar tudo aquilo que os sábios da corte tinham descoberto, inventado e escrito ao longo dos séculos. Quando, por fim, a descobriu, dirigiu-se apressadamente aos aposentos reais, encontrando o califa reclinado sobre uma pilha de almofadas, muito pálido e com a respiração arquejante. — Aproxima-te e diz-me qual é a palavra que resume todo o saber do meu tempo e dos tempos que estão para trás — ordenou o soberano. O sábio, com muita dificuldade por causa da fraqueza dos ossos, debruçou-se sobre o califa e segredou-lhe a palavra-chave de todo o saber daquele reino. Ao ouvi-la, o califa endireitou-se ligeiramente e respondeu com espanto: — Mas isso eu sei-o desde sempre!
José Jorge Letria – Ler doce ler (...) Os livros temem o fogo E o mal que lhes faz, Porque aquilo que ele queima Por certo não se refaz E porque o fogo é o rosto Que às vezes o medo tem Quando, ao queimar um livro, Mata os seus sonhos também, Não deixando nem uma linha Para ser lida por ninguém. Os livros vêm do tempo em que não havia livros Por não haver papel impresso. Mas havia o papiro E também o pergaminho E as mil e uma histórias Das mil e uma noites Que se contavam no caminho, E quase tudo o que então se sabia Estava guardado Na Biblioteca de Alexandria, Que acabou por morrer um dia. (…) Os livros são esconderijos Onde as palavras engalanadas Se preparam para a festa Das coisas enamoradas Pelo mistério de quem conta Mesmo sabendo que ao contar, A história nunca está pronta Porque em cada recanto do texto Há sempre algo que desponta, Só para nos encantar. Os livros são tão livres Como os mais livres de nós E por isso há quem receie Que os livros ganhem voz E venham para o meio da rua
Com a verdade nua e crua Do que têm para dizer. E o que têm para dizer É , no fundo, a liberdade Que o escritor tem ao escrever. Os livros gostam de ser Dados como presentes Aos amigos mais chegados, Às pessoas mais diferentes, Mesmo não indo embrulhados Em papéis bem reluzentes. Os livros gostam de dar Alegria a quem os lês, E só eles e quem os escreve Lá no fundo sabe porquê. Os livros gostam de ser amados, De ser lidos e lembrados E de crescer com os meninos Com que foram embalados. Os livros têm um sonho: O de ver outros livros nascer Para que a paixão da leitura Não possa nunca morrer. (…) Os livros fazem perguntas Porque sabem que as respostas São bem menos interessantes E que algumas se mantêm constantes Tão atuais como dantes. Os livros têm saudades Daquilo que está para vir, Que o passado já conhecem E o não querem repetir. São saudades soletradas Com a ternura das fadas Que gostam de pôr livros Na árvore das madrugadas.
Ricardo Azevedo – Aula de leitura A leitura é muito mais do que decifrar palavras. Quem quiser parar pra ver pode até se surpreender: vai ler nas folhas do chão, se é outono ou se é verão; nas ondas soltas do mar, se é hora de navegar; e no jeito da pessoa, se trabalha ou se é à-toa; na cara do lutador, quando está sentindo dor; vai ler na casa de alguém o gosto que o dono tem; e no pêlo do cachorro, se é melhor gritar socorro; e na cinza da fumaça, o tamanho da desgraça; e no tom que sopra o vento, se corre o barco ou vai lento; também na cor da fruta, e no cheiro da comida, e no ronco do motor, e nos dentes do cavalo, e na pele da pessoa, e no brilho do sorriso, vai ler nas nuvens do céu, vai ler na palma da mão, vai ler até nas estrelas e no som do coração. Uma arte que dá medo é a de ler um olhar, pois os olhos têm segredos difíceis de decifrar. AZEVEDO, Ricardo. Dezenove poemas desengonçados. São Paulo: Ática,1999.
Valter Hugo Mãe – O rapaz que habitava os livros Barafustaram comigo, nem escutaram o que eu queria que entendessem. Diziam que os livros queimavam os olhos, eram diurnos, não serviam para as noites. As regras do nosso colégio interno, para meninos casmurros como eu, mandavam assim. Queriam os livros no corredor. As luzes apagadas às nove. Eu ainda deitei mão a alguns volumes, toquei-lhes brevemente igual a quem cai num precipício e procura agarrar-se, mas não me deixaram nada. Apenas o candeeiro já apagado, como se a luz tivesse morrido de tristeza. Adormeci muito mais tarde, de todo o modo. O coração rasgado em papelinhos pequenos. E uma gula esquisita embrulhada no estômago parecia dizer que eu não havia jantado. Fui ver a minha nova estante logo pela manhã. Era um bocado de espaço arranjado entre tralhas meio esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não esquecem nada. Eles são para sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam importar, porque podem esperar eternamente. Alguém colocara uma pequena placa dizendo: não alimente os animais. Fiquei sem saber se queriam dizer que os livros eram bichos comendo as nossas ideias ou se seria eu um devorador de páginas, alimentado de palavras corno as histórias. As histórias podem comer muitas palavras. Pensei: os meus queridos livros. Era o que pensava e sentia: os meus queridos livros. Olhava-os como se estivessem vivos e pudessem sofrer. Como se pudessem também entristecer. Gostei de colocar a hipótese de os livros serem como bichos. Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são objetos cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência. Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós. Os meus colegas ficaram todos a rir-se de mim. Eu era conhecido como o rapaz que perdia a hora de dormir. Tinha a cabeça na lua, diziam. Não me importei nada. Rirem-se de nós pode ser só um erro no ponto de vista. E eles, todos eles. estavam errados. A primeira vez que vi um livro, que me lembre, era um que estava aberto, pousado sobre a mesa, com as folhas em leque como se fossem uma colorida flor contente. Podia ser uma caixa esquisita para arquivar pétalas secas. podia ser para guardar documentos ou cartas de amor. De perto, era afinal um livro muito branco, cheio de palavras impressas. julguei que podia ser um bordado miudinho. Um enfeite para que as páginas ficassem bonitas. Pensei que fosse uma prenda de enxoval. Depois, compreendi, era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos. A morte não importa muito para os livros. Mais tarde, aprendi que os livros acontecem dentro de nós. Claro que eles podem ser bonitos de ver, mas são sobretudo incríveis de pensar. Eu disse que ler é como caminhar dentro de mim mesmo. E é verdade. Quando lemos estamos a percorrer o nosso próprio interior. (…) Era comum, subitamente, que eu me esquecesse de tudo durante os intervalos. Corria para os bancos no lado da frente do colégio, à vista dos janelões principais, e aí deitava os olhos às letras e a alma inteira à imaginação. Quando era hora de entrar, tantas vezes algum colega vinha cutucar-me. Diziam: anda, seu distraído. Anda embora. Um dia, ninguém me cutucou. Fiquei apenas caminhando dentro de mim mesmo, o que era diferente da solidão. A professora mandou dois rapazes aos janelões da frente a chamar por mim. Assim chamaram. Mas eu, juro muito, não os ouvi. Voltaram para dizer à professora: parece que se mudou para dentro do livro porque não ouve a nossa voz. Usámos os binóculos da sala de ciências e vimos bem, senhora professora. Ele sorri. Está feliz. Isso levantara o problema de saber como trocar a felicidade pelo regresso à aula.
José Luís Peixoto – Uma casa cheia de livros
Os livros, esses animais sem pernas, mas com olhar, observam-nos mansos desde as prateleiras. Nós esquecemo-nos deles, habituamo-nos ao seu silêncio, mas eles não se esquecem de nós, não fazem uma pausa mínima na sua vigia, sentinelas até daquilo que não se vê. Desde as estantes ou pousados sem ordem sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o que somos sem qualquer expressão porque eles sabem, eles existem sobretudo nesse nível transparente, nessa dimensão sussurrada. Os livros sabem mais do que nós mas, sem defesa, estão à nossa mercê. Podemos atirá-los à parede, podemos atirálos ao ar, folhas a restolhar, ar, ar, e vê-los cair, duros e sérios, no chão. (...) Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas retas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas formas.
José Luís Peixoto, in Abraço
Miguel Esteves Cardoso – Ler sem sacrifício Os Portugueses justificam as horas à frente do televisor dizendo que quando chegam a casa estão cansados e querem é distrair-se. Não havendo coisa mais fácil, preguiçosa e confortável do que ler a grande maioria dos livros que há, é muito estranha esta atitude. A relação conforto/recompensa de quase todos os livros — e não só os que fazem rir, os absolutamente levianos, os mais ou menos envolventes - é sempre mais bon marché do que as alternativas audiovisuais. Os livros podem ler-se distraidamente, saltando, sem prestar atenção, pousando-se quando se quer. Por exemplo, enquanto se vê vagamente televisão. Por estas e por outras — o plural simpático da ignorância - é que os Portugueses veem os livros como um «trabalho». Os da mesa-de-cabeceira e os das férias são iguais àqueles que os intelectuais dizem ler «por razões profissionais». Não gostam de lê-los? Não percebo porquê. É uma delícia ler livros escritos por quem se interessa pelas mesmas coisas que nós. Não é bom conhecer, com um mínimo de trabalho, o que deu tanto trabalho a escrever? O prazer do parasita é dos maiores que o mundo oferece. Por cada livro que escrevemos há cem mil melhores que podemos ler. No fundo, os Portugueses sacralizam os livros - como dever, trabalho, sabedoria - para não lhes tocar. Quando vêm a minha casa ficam chocados. Perguntam-me se já li os livros todos — sem reparar que a maioria deles são livros de consulta e sem lhes passar pela cabeça que os livros que se podem ler da primeira página são uma minoria. Horrorizam-se com as pilhas de livros e prontificam-se a arranjar estantes. Quando veem que os livros estão cheios de apontamentos meus, olham para mim como se fosse um vândalo. «Ao menos escrevias com lápis... assim podias apagar...»
Miguel Esteves Cardoso, in Explicações de Português
Valter Hugo Mãe – Bibliotecas As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar. Os livros são parentes diretos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio ar, a ver o que existe para depois do que não se vê. O leitor entra com o livro para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas. (…) Os livros têm olhos para todos os lados e bisbilhotam o cima e o baixo, a esquerda e a direita de cada coisa ou coisa nenhuma. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Podemos pensar que abrir e fechar um livro é obrigá-lo a pestanejar, mas dentro de um livro nunca se faz escuro. Os livros querem sempre ver e estão sempre a contar. As bibliotecas só aparentemente são casas sossegadas. O sossego das bibliotecas é a ingenuidade dos ignorantes e dos incautos. Porque elas são como festas ou batalhas contínuas e soam canções ou trombetas a cada instante. E há variavelmente quem discuta com fervor o futuro, quem exija o futuro e seja destemido, merecedor da nossa confiança e da nossa fé. Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem se esgotarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se com isso. Os livros divertem-se muito. As pessoas que se tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais altas, que é efeito de um orgulho saudável de estarem a fazer a coisa certa. Ler livros é uma coisa muito certa. As pessoas percebem isso imediatamente. E os livros não têm vertigens. Eles gostam de baixas e gostam de pessoas que ficam mais altas. Depois da leitura de muitos livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a cabeça acende como se tivesse uma lâmpada dentro. É muito engraçado. Às vezes, os leitores são tão obstinados com a leitura que nem se lembram de usar candeeiros de verdade. Tentam ler só com a luz própria dos olhos, colocam o livro perto do nariz como se o estivessem a cheirar. Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras. (…) Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. Mesmo os contos, de pequenos não têm nada. Se os soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor. Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor.
Valter Hugo Mãe, in Contos de cães e maus lobos
Valter Hugo Mãe – O rapaz que habitava os livros Barafustaram comigo, nem escutaram o que eu queria que entendessem. Diziam que os livros queimavam os olhos, eram diurnos, não serviam para as noites. As regras do nosso colégio interno, para meninos casmurros como eu, mandavam assim. Queriam os livros no corredor. As luzes apagadas às nove. Eu ainda deitei mão a alguns volumes, toquei-lhes brevemente igual a quem cai num precipício e procura agarrar-se, mas não me deixaram nada. Apenas o candeeiro já apagado, como se a luz tivesse morrido de tristeza. Adormeci muito mais tarde, de todo o modo. O coração rasgado em papelinhos pequenos. E uma gula esquisita embrulhada no estômago parecia dizer que eu não havia jantado. Fui ver a minha nova estante logo pela manhã. Era um bocado de espaço arranjado entre tralhas meio esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não esquecem nada. Eles são para sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam importar, porque podem esperar eternamente. Alguém colocara uma pequena placa dizendo: não alimente os animais. Fiquei sem saber se queriam dizer que os livros eram bichos comendo as nossas ideias ou se seria eu um devorador de páginas, alimentado de palavras corno as histórias. As histórias podem comer muitas palavras. Pensei: os meus queridos livros. Era o que pensava e sentia: os meus queridos livros. Olhava-os como se estivessem vivos e pudessem sofrer. Como se pudessem também entristecer. Gostei de colocar a hipótese de os livros serem como bichos. Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são objetos cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência. Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós. Os meus colegas ficaram todos a rir-se de mim. Eu era conhecido como o rapaz que perdia a hora de dormir. Tinha a cabeça na lua, diziam. Não me importei nada. Rirem-se de nós pode ser só um erro no ponto de vista. E eles, todos eles. estavam errados. A primeira vez que vi um livro, que me lembre, era um que estava aberto, pousado sobre a mesa, com as folhas em leque como se fossem uma colorida flor contente. Podia ser uma caixa esquisita para arquivar pétalas secas. podia ser para guardar documentos ou cartas de amor. De perto, era afinal um livro muito branco, cheio de palavras impressas. julguei que podia ser um bordado miudinho. Um enfeite para que as páginas ficassem bonitas. Pensei que fosse uma prenda de enxoval. Depois, compreendi, era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos. A morte não importa muito para os livros. Valter Hugo Mãe, in O rapaz que habitava os livros