Gaspar, o Dedo Diferente

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Gaspar

,

o dedo diferente

Ana Luísa Amaral Ilustrações de Abigail Ascenso


Era

uma

vez

um

dedo

indicador chamado Gaspar, que vivia numa certa m達o

chamada

Josefina.

O

Gaspar tinha dois irm達os e

duas irm達s: a Lili , a mais gordinha; a Mariana, a do

meio; o Miguel, que se chamava assim para rimar com anel; e o Jorginho, o mais pequenino.


Por sua vez, a Josefina, Lili, Gaspar, Mariana, Miguel e Jorginho viviam todos num corpo

que se chamava Rita. Em frente, noutra mão, viviam cinco primos, e, quando a Rita pegava numa bola grande, ou cruzava as mãos, ou batia palmas de contente, havia grandes reuniões de família.


O Gaspar considerava-se um dedo feliz. Como o corpo a que pertencia era ainda pequeno, o trabalho do Gaspar era muito importante. A Rita

passava o dia a dizer: “Olha, um cão” (e usava o Gaspar para apontar o cão), “Olha, olha a Lua” (e

lá ia o Gaspar), “Olha, mamã, olha uma nuvem tão grande” (e o Gaspar lá estava, mais perto da nuvem que os outros irmãos).


Mas um dia aconteceu que a Rita, ao ir pela rua a

saltar junto da mãe, escorregou. O passeio estava cheio de pedrinhas brilhantes e

o Gaspar tinha estado muito entretido a vê-las, comentando com os irmãos como elas eram

bonitas, de maneira que, quando o corpo perdeu o equilíbrio, o Gaspar foi completamente tomado

de surpresa.


E daí a pouco foi a confusão: a Rita a chorar, a Josefina toda torcida no chão e, debaixo da Josefina, mais torcido que os irmãos e irmãs, o Gaspar. Com sangue. E cheio de dores.


Um golpe grande, a cabeça da unha levantada, e dezenas de pedras pequeninas enterradas na carne. Como o choro não passava, a mãe pegou na Rita ao colo, levou-a para casa, meteu-a no carro, e aí foram elas para o hospital mais perto.


Que triste estava o Gaspar! Por outro lado, mesmo no meio da dor, era a sua primeira

vez num hospital e tudo lhe despertava curiosidade – o branco das roupas, o cheiro, o chão todo feito de quadrados

de mármore. Depois, foi a médica a olhar a mão da Rita e a comentar: “Podias ter-te magoado mais, se não tivesses posto a mão à frente.” E o Gaspar sentiu-se assim quase como um herói. Mas as dores eram maiores do que o orgulho.


Quando ouviu a médica dizer: “Vamos lá ver a unha”, o Gaspar ficou branco. Quando ela acrescentou: “O saibro tem que ser limpo”, o Gaspar (que

não sabia o que era saibro, mas perceber

a

ideia)

sentiu-se

enjoado e tonto. Mas quando a médica disse: “Pois é, Rita, a

ferida é funda, tens de levar aqui dois pontinhos”… aí, o

Gaspar desmaiou e já não a ouviu acrescentar “mas não

vais sentir nada”.


Acordou para uma picadela fininha, que pouco lhe doeu, mas que trazia consigo um cheiro forte que o fez adormecer outra vez. (O Gaspar não sabia. Mas

tinha sido anestesiado.) Sonhou então que estava numa terra de luvas às

bolinhas e aos quadrados. O Sol era uma luva com muitos dedos, todos amarelos e brilhantes, e as

árvores, em vez de folhas, eram luvas de neve. Um sonho tão bonito que, quando acordou, teve vontade

de chorar. É que acordar para uma dor daquelas não era nada agradável. E depois sentia-se tão quente…

E pouco conseguia ver!


Ouviu o Jorginho espantado, exclamar: – Estás tão bonito! Que linda roupa!

E a Lili fez-lhe uma festa na cabeça e só disse:

– Aaah! Os outros olhavam-no com assombro. O

Gaspar não percebia. – É que estás todo vestido de branco –

disse-lhe a Mariana. – Chapéu e tudo. Pareces um daqueles senhores que vimos há pouco, agora aqui…neste sítio. (Ela queria dizer os médicos e as médicas,

as

enfermeiras

e

os

enfermeiros do hospital, mas eles eram ainda

dedos

palavras

não

vocabulário.)

pequeninos existiam

e no

essas seu


O Gaspar continuava a não entender. Foi só quando

chegou a casa e a Rita passou em frente da montra grande da loja que ficava por baixo, a montra para onde

ela costumava fazer caretas sempre que saía de manhã, que o Gaspar se viu reflectido e finalmente percebeu.


Estava todo enrolado num tecido fininho e muito branco. Em casa, a mĂŁe explicou Ă Rita que o tecido se chamava gaze. Mas para o Gaspar, gaze, mercurocromo, ou China era tudo a mesma coisa.


O que importava mais, para o Gaspar, não era a gaze, embora

estar vestido de uma coisa com um nome assim já desse um

certo respeito. Não que fosse a primeira vez que o Gaspar se vestia: ele conhecia luvas, a Josefina

usava-as

quando

estava frio. Mas uma roupa assim,

tão

bonita,

diferente… Até a dor lhe doeu menos.

tão


E nessa noite, em vez do sonho das luvas, o Gaspar sonhou com muitos dedos a brincar, todos vestidos às cores com aquela coisa a que eles chamavam… como era?... Ah… gaze. Mas, no seu sonho, o Gaspar era o único de branco.


O melhor de tudo, se é que pudesse haver ainda melhor, foi que, durante uma semana

inteirinha, a gaze era mudada, de maneira que todos os dias o Gaspar andava muito

limpinho. Claro que, quando chegava a noite, a gaze já tinha uma ou outra mancha, um

bocadinho de chocolate, um pingo de sumo… Mas logo de manhã era o luxo: uma roupa

toda nova!


No fim da semana, o Gaspar, os irmãos, as

irmãs, a Josefina, a Rita e a mãe foram outra vez ao hospital. E a roupa do Gaspar

foi tirada. As coisas boas demoram pouco tempo a criar hábitos, de forma que o

Gaspar, quando ficou assim, sem roupa nenhuma, pensou sentir um arrepio.

- Brrr, que frio! Disse ele aos outros. Mas era exagero, era para prolongar aquela

sensação de ter tido roupa nova, branca, de ter sido diferente uma semana inteira.


Depois, o Gaspar viu aproximar-se, na mão da médica, uma espécie de tesoura. E sentiu outra vez aquele desfalecimento, aquela coisa de ficar agoniado e tonto.

Quase começou a chorar, mas depois lembrou-se de quando tinha tido a roupa nova, e de ser um quase herói, e da semana inteira com a gaze, e de como os irmãos e irmãs e a Josefina ficariam orgulhosos dele… Lembrou-se, sobretudo, de como tinha sido diferente. E esperou.


As duas linhas com nós nas pontas foram tiradas, um bocadinho de um líquido vermelho caiu em cima do Gaspar, a médica disse a rir à Rita:

-Vês, não custou nada. A mãe deu-lhe um beijinho, e pronto. O Gaspar já não tinha dores. Só muita comichão.

E, quando se olhou, viu na barriga dois pontinhos pretos.


E teve uma esperança: será que eram para ficar? As suas marcas de quase herói, de quando tinha salvo a Rita de aleijar

uma parte que os outros diziam ser mais importante que ele próprio, ou os seus irmãos, ou as suas irmãs, ou a Josefina…

Essa parte era a cabeça da Rita.


E foi então que o Gaspar, de repente, percebeu, embora só tivesse seis anos, que afinal, no mundo, não era só ele e a sua mão que contavam, mas que viviam num corpo e faziam parte dele, como uma janela não serve para nada se for só janela: precisa de ter casa, de ser casa, mesmo sendo também janela. E os seus dois pontinhos pretos eram o sinal de que a Rita tinha chorado antes, de que a

cabeça da Rita tinha sentido por dentro uma coisa que se chamava dor.


E que agora, na comichão que ele sentia, a cabeça da Rita sentia alegria. Por isso a Rita ria tanto quando a médica lhe deu um rebuçado; por isso a Rita saltitava tão contente, já fora do

hospital, agarrada à mão da mãe.


Nessa noite, o Gaspar, em vez de sonhar com luvas às bolinhas e aos

quadrados, ou com dedos coloridos, sonhou com meninas e meninos, todos numa roda. E na roda estava a Rita, e ao lado da Rita outra menina. Um dos dedos da mão da menina tinha também pontinhos

pretos

(três!

notou

o

Gaspar), com certeza por ela ter caído também. E os pontinhos pretos da barriga do Gaspar tocaram nos pontos do outro dedo.


– Olá - disse o dedo. E depois, naturalmente, com ar de quem encontra um irmão ou irmã, perguntou ao Gaspar: – Como é que isso te aconteceu? – referindose, naturalmente, às duas marcas pretas. Todos os dedos das meninas e dos meninos olharam para eles. O Gaspar, apesar de saber que se devia sentir igual aos outros, não conseguiu evitar

sentir-se diferente, e teve vontade de gritar: “Olhem os meus dois pontinhos negros!”,

com muito orgulho e muita alegria.


E depois pensou que o que lhe tinha acontecido a ele podia ter acontecido também à Lili, ao Miguel, à Mariana ou ao Jorginho, ou até à cabeça da Rita ou à dos outros meninos; que os pontinhos que o faziam agora tão diferente podiam ser também dos outros ou fazer

parte deles. Ali mesmo, dentro do seu sonho, o Gaspar voltou-se para o outro dedo. E em voz alta, já sem orgulho, nem medo da troça dos

outros, afinal

diferentes mas iguais,

começou a contar a sua história.

o Gaspar


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