Malaco — Dois ensaios

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Jonas Tadeu Silva Malaco

Dois ensaios



Jonas Tadeu Silva Malaco

Dois ensaios Cidade: ensaio de aproximação conceitual Espaço, propriedade, liberdade


USP Universidade de São Paulo FAU Faculdade de Arquitetura e Urbanismo GFAU Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Edição e diagramação Estevão Sabatier Equipe editorial Alessandra Iturrieta André Malveira Banderas Arthur Moura Campos Camila Neri Tarsila Bianchi Capa Clarissa Lorencette Posfácio Estevão Sabatier Produção gráfica LPG — Laboratório de Programação Grafica FAUUSP © Jonas Tadeu Silva Malaco © Maria Alice da Gama e Silva Foz ______________________________________________________________ M 29d Malaco, Jonas Tadeu Silva. Dois ensaios. Cidade: ensaio de aproximação conceitual. Espaço, propriedade, liberdade / Jonas Tadeu Silva Malaco; posfácio: Estevão Sabatier. — São Paulo: FAUUSP, 2015. 92 p. ISBN: 978-85-8089-064-8 1. Espaço Urbano (História) — Grécia 2. Cidades Antigas (História) — Atenas 3. Espaço Público (História; Teoria) — Grécia I. Sabatier, Estevão II. Título CDD: 711.09 Ficha catalográfica elaborada pelo Serviço Técnico de Biblioteca da FAUUSP ______________________________________________________________

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Jonas Tadeu Silva Malaco

Dois ensaios Cidade: ensaio de aproximação conceitual Espaço, propriedade, liberdade

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Índice 7

Cidade: ensaio de aproximação conceitual


49 Espaço, Propriedade, Liberdade 49 I. O vazio e os corpos 49 1. O vazio 52 2. A subordinação dos corpos 57 3. Interação e unidade 61 4. Exterioridade pertinaz 67 II. Domínio 66 1. Exclusão 69 2. Conquista 73 3. A participação dos objetos 77 III. Condomínio 82 Observação final 85 Posfácio

Estevão Sabatier


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Cidade: ensaio de aproximação conceitual1 Um casario mais ou menos compacto, ruas e praças, edifícios públicos e religiosos: a cidade. Habitam nela pessoas: a sociedade. A cidade e a sociedade. Termos que dizem coisas diferentes e que, no entanto, muitas vezes se confundem2. A cidade não é a sociedade. A cidade é um modo 1 Cidade: ensaio de aproximação conceitual teve uma primeira publicação em Caramelo 7, São Paulo, 1994, p. 100-123. O texto ora publicado difere do anterior em vários aspectos. 2 É o que acontece, por exemplo, quando por cidadão, derivado de cidade, entende-se menos o habitante de uma cidade do que o membro de um Estado. Já entre os gregos falava-se, por exemplo, na Pólis de Esparta, o que em geral se traduz por Cidade de Esparta, mas tendo-se como referência um habitar disperso em aldeias, entendendo-se, portanto, por Pólis uma sociedade e não um conjunto compactado de edificações (TUCÍDIDES I,10); ao mesmo tempo que, entre eles, se falava também em Pólis como um conjunto de casas ou um habitar reunido (PLATÃO, A República, 369c). Santo Agostinho fala em duas cidades — ”a dos homens“ e ”a de Deus“ — para designar dois gêneros de sociedade humana (A Cidade de Deus e a dos Homens XV, 1). A identidade dos termos persiste. No pensamento político corrente, uma famosa postulação de Aristóteles nos é dada como sendo a de que o homem é tanto um animal político como um animal que vive em cidades. Na historiografia, a cidade e a vida urbana acabam por identificar-se com a sociedade, quando a primeira é vista como a forma mais desenvolvida da segunda e, o mais importante, a única tolerável:

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de existência da sociedade. Outros modos de existência da sociedade existem. Podemos viver sem a cidade. A sociedade pode ter um modo de existência que não seja a cidade. A sociedade é a forma necessária de nossa existência enquanto animais gregários. Vivemos em sociedade. A sociedade é a nossa existência conjunta enquanto espécie, nossa existência enquanto animais que não podem viver senão reunindo-se em sociedades. Somos, necessariamente, muitos, múltiplos. A sociedade são os homens enquanto necessariamente múltiplos. a civilização. Entende-se, em geral, que possam ter havido sociedades sem cidades, mas são consideradas como meros estágios iniciais de um desenvolvimento no sentido da civilização, da cidade. Se existiram homens que não habitaram cidades, teria sido porque não saberiam ainda construí-las. São vistos como existindo já nos tendo em vista, desde então como que procurando e acumulando conhecimentos e riquezas para que construíssemos nossas cidades. Por não serem urbanizados, sua sociabilidade seria precária: teriam algo ainda da besta selvagem. Mesmo as paixões mais recentes de alguns pelas sociedades ditas ”primitivas“ não parecem ter levado a que se considere uma vida sem a cidade como sendo, de fato, tolerável. Ao mesmo tempo, entretanto, ”cidade“ é dado como opondo-se a ”campo“, tendo a cidade limites territoriais bem definidos. Diz-se estar indo para a cidade ou saindo dela, sem que se entenda por isso que alguém esteja se retirando da sociedade. Na sociedade urbanizada haveria o que não seria a cidade. Mas mesmo assim, a cidade, entende-se, seria progressivamente abarcadora: seu modo de vida seria dominante e far-se-ia progressivamente exclusivo. Se há ainda uma vida social fora da cidade, em breve, não mais. Há quem resista, procurando mesmo ficar fora dela, ainda que próximo. Há quem se preocupe com a degradação das cidades e teme-se, com isto, o fim da própria civilização, a volta a uma espécie de barbárie — uma perda de sociabilidade. Em geral, por mais que a cidade nos incomode, irrite e mesmo ofenda, ela ainda nos encanta e nós, como sociedade, nos identificamos com ela.

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Existir como multiplicidade não é uma opção. Faz parte de nós. Como quer que sejamos, conforme a infinita variedade de nossa constituição individual, o que quer que possamos imaginar e consigamos fazer, somos sempre múltiplos: é o que somos. Não há mesmo como deixarmos de ser muitos, de ser com muitos. Não seríamos homens se fôssemos propriamente capazes de viver sozinhos. Todo isolamento é sempre limitado e provisório. Mesmo no limite máximo da solidão possível, os outros nos acompanham: lembramo-nos deles, preocupamo-nos com eles. Estão sempre presentes em nosso pensamento. Em nosso próprio corpo, sua presença afirma-se. O que somos, viemos a sê-lo por eles. Nossa constituição física e também nosso pensamento são, em si mesmos, sociais. A sociedade criou-nos e a carregamos conosco, nós a encontramos na determinação de nossa própria individualidade. Quando nos pensamos como indivíduos, fazemo-lo com uma linguagem que é social. Quando nos apreendemos como entidade física, o que vemos é um organismo que, por sua origem, modo de ser e de se manter, é um ente social. Se estamos sozinhos, temos de voltar sempre até os outros, de nos fazer mais imediatamente presentes e de tê-los também como tais. São sempre a referência iniludível quando nos voltamos a nossos próprios pensamentos, como também a condição básica, e igualmente iniludível, de nossa vida física. Precisamos do que fazem e produzem. Assim, são as nossas necessidades mais imediatas e prementes que fundam permanentemente as sociedades.

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No entanto, essas mesmas necessidades não fundam, necessariamente, as cidades. Pode existir a sociedade sem a cidade. Indivíduos com linguagem, crenças e costumes comuns, tendo suas necessidades satisfeitas por laços freqüentes, regulares e obrigatórios, podem ser entendidos como membros de uma sociedade sem que, para isso, tenham de ter construído cidades. Assim se apresentam os germânicos, os lacedemônios, outros gregos na Antigüidade, os europeus, em parte, durante a Idade Média3. Nesses casos todos, entende-se que uma sociedade exista efetivamente, quer pelas relações obrigatórias imediatas e sensíveis de seus membros, quer, na representação de todos, pela idéia de fazerem parte de uma mesma comunidade através de um conjunto de dados comuns: uma mesma lingua3 Entre as referências dadas sobre esse tipo de sociedade, cabe destacar uma de Marx, principalmente pela noção de cidade que nela se encontra: ”A comunidade germânica não se concentrava na cidade; uma concentração (...) que desse à comunidade, como tal, uma existência exterior diferenciada da de seus membros individuais. (...) Entre os germânicos, cujos chefes de família estabeleciam-se nas florestas, isolados e separados uns dos outros por distâncias consideráveis, a comunidade existia, mesmo do ponto de vista externo, somente em virtude dos atos de união de seus membros, embora sua unidade, existente por si mesma, fosse corporalizada (gesetzt) na descendência, na linguagem, no passado e história comuns, etc. (...) Portanto, a comunidade não existe, de fato, como um Estado, uma entidade política, à maneira dos antigos, porque não tem existência como cidade. Para a comunidade adquirir existência real, os livres donos de terras devem promover uma assembléia enquanto em Roma, por exemplo, ela existe independentemente de tais assembléias, pela presença da cidade em si e dos seus funcionários investidos em autoridade, etc.“ (MARX, Karl, Formações Econômicas Pré-Capitalistas, tradução de João Maia, São Paulo, Paz e Terra, 1981, p. 74-75, grifos do autor)

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gem, um mesmo passado e uma mesma história, um mesmo conjunto de crenças religiosas. Mas não vemos nessas sociedades as cidades. Vemos os indivíduos reunindo-se, mas sem que definam permanentemente o local físico de sua reunião. Desenvolvem atividades em conjunto, mas não constroem edifícios específicos para elas. Resolvem por si mesmos os seus problemas, sem que constituam funcionários encarregados dos negócios públicos. Tomam decisões, mas não elaboram registros escritos delas. Dominam um território, mas nele vivem mais ou menos dispersos. Nesses casos, a sociedade, enquanto algo permanente, existe só como um dado da representação dos indivíduos, de cada um deles. Mostra-se em cada qual como a consciência de fazer parte de uma mesma comunidade. Para além dessa representação, a sociedade, como algo efetivamente presente e sensível, só apresenta uma existência intermitente. Apresenta-se como existente somente enquanto os indivíduos estão imediatamente e sensivelmente se relacionando, deixando de existir quando não o fazem. Necessariamente, os indivíduos devem reunir-se e encontrar-se; só que não se apresentam permanentemente reunidos. O reunir-se mostra-se como uma situação reiterada de sua existência, mas intermitente, não permanente. Quando se mostram reunidos, está lá a sociedade, lá estão todos eles. Quando não o fazem, a sociedade não se mostra como dado sensivelmente presente aos indivíduos. persistindo, tão-somente, no plano de suas consciências.

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As sociedades sem cidades aparecem também como sendo sociedades sem escrita. A cidade apresenta-se surgindo com a escrita, desaparecendo com ela. Associam-se intimamente uma à outra. Difícil, no entanto, desvendar os segredos de seus vínculos. Mas como quer que seja, as sociedades que se apresentam negando a si existência objetiva nos monumentos, edifícios públicos e templos não se mostram também fazendo recurso à escrita, essa forma pela qual se objetivam também as relações sociais. O texto, uma vez escrito, adquire a mesma materialidade de um edifício. Estará sempre lá onde for depositado. Ausentando-se seu autor, nada perde em sua presença. Esta é independente daquele. A escrita é algo material: o texto sob caracteres escritos, um objeto separado de seu autor, existindo para além dele. A escrita pereniza a fala, fixando-a de uma vez por todas. Reduz o peso do suporte de memória pessoal para os pensamentos. Não é necessário guardar na memória quando, para recordar-se, basta recorrer ao texto. Uma vez escrito, o texto dispensa, em maior ou menor medida, seu autor. Essa matéria, a escrita, não a vemos nas sociedades sem cidades4. Não mostram edifícios públicos e não mos4 É sempre importante lembrar que não se pode considerar as sociedades sem escrita meramente como um momento ”pré-social“ ou ”pré-civilizacional“. Se podem ser consideradas como tais, devem também ser entendidas como ”pós-civilizacionais“. Na história de nossa própria cultura, observamos a ausência da escrita não só nos períodos cronologicamente mais recuados, mas também na seqüência de grandes surtos ”civilizatórios“. Aos períodos Cretense e Micênico da Civilização Grega sucedem-se séculos sem escrita. É também o caso da nossa Idade Média, ainda que nela a escrita não tenha propriamente

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tram o registro escrito de suas atividades. Seriam incapazes de fazê-lo? Não teriam tido uma escrita por algum tipo de insuficiência qualquer? Teriam sido pobres demais, com uma vida simples demais, ou com uma cultura simplória demais? Talvez tenhamos que procurar em outra direção, pois há quem se apresente como tendo estado bem junto dessas sociedades sem escrita e estes, o que dizem é que, se nelas os homens não escreveram, não foi porque não puderam; talvez porque não tenham querido escrever, e isto por acreditarem eles ser mesmo melhor não fazê-lo. De um texto ainda muito próximo de uma cultura não-escrita, quando a escrita foi capaz de pensar seu contrário: ”— Bem, ouvi dizer que na região de Náucratis, no Egito, houve um dos velhos deuses daquele país, um deus a que também é consagrada a ave chamada Íbis. Quanto ao deus, porém, chamava-se Thoth. Foi ele que inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas e os dados, e também a escrita. Naquele tempo governava todo o Egito Tamuz (...). Thoth foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes, dizendo que elas deviam ser ensinadas aos egípcios. Mas o outro quis saber a utilidade de cada uma, e enquanto o inventor explicava, ele censurava ou elogiava, conforme estas artes lhe pareciam boas ou más. Dizem que Tamuz fez a Thoth diversas

desaparecido. Ao decréscimo das cidades parece corresponder, em mesmo grau, uma redução do uso da escrita. Essa correspondência, à maneira de um paralelismo gradual, denuncia a existência de vínculos entre os dois fenômenos.

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exposições sobre cada arte, condenações ou louvores cuja menção seria por demais extensa. Quando chegaram à escrita, disse Thoth: ’Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria‘. Responde Tamuz: ’Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em conseqüência serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios.“5 5 Sócrates (PLATÃO, Fedro, 274-275). À narrativa mitológica, objeta Fedro: ”— Com que facilidade, Sócrates, inventas histórias egípcias assim como de outras terras, quando isso te apraz!“; ao que Sócrates acrescenta: ”— Caro amigo! Dizem alguns que as primeiras profecias foram feitas por um carvalho do templo de Zeus em Dodona. Os homens daquele tempo evidentemente não eram tão sábios como os da nossa geração, e como eram ingênuos era para eles suficiente ouvir o que lhes dizia um carvalho ou uma rocha; para eles, a única coisa importante era que se lhes dissesse a verdade. Mas a ti talvez faça diferença saber quem disse uma determinada coisa e de que terra ele é natural. Não te basta examinar se essa coisa é verdadeira ou falsa.“ (Idem, 275)

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A escrita poderia ser um auxiliar valioso para a recordação, mas levaria a um enfraquecimento da memória. Mais: poderia constituir-se em simulacro e propiciar a impostura. O discurso objetivado na escrita transforma-se em objeto perene. Perenizado em sua objetividade, não dá, no entanto, permanência automática ao conhecimento que nele se depositou. Para que esse conhecimento efetivamente continue existindo, é necessário que se leia o que foi escrito. Ler, entretanto, não é uma simples atividade do olhar. O ler pressupõe mais do que simplesmente isso. Pressupõe um leitor informado sobre o que foi escrito, um leitor que complete por vezes o texto. O leitor, antes de tudo, precisa conhecer a escrita do texto que tenha em suas mãos. Para que um texto possa ser lido, para que possa revelar os conhecimentos que contenha, é necessário que o leitor seja capaz de decifrar sua escrita. O texto permanece mudo quando se é incapaz de decifrar seus sinais. Uma cultura não se mantém pela mera preservação de seus textos. Ela só sobrevive quando continuamente, geração após geração, é capaz de ir formando os leitores para seus textos. Ela precisa manter o leitor bem formado. Quando minguam os leitores, decreta-se a degradação e o fim dos textos; estes são condenados ao desaparecimento pela ação de fungos e vermes; mais rapidamente, às vezes, pelo fogo ou pela fúria humana. Não há como preservar a escrita sem que se mantenham existentes os leitores. A escrita, no entanto, por sua materialidade ostensiva, sugere-nos o contrário. Apresenta-se como mais segura do que a memória que padece de tão constantes falhas.

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Mero engano. Sem o leitor, de nada servem os livros e condenados estão à destruição. Meramente exibindo os volumes de sua escrita, uma sociedade pode acreditar-se possuidora de uma sabedoria que, na verdade, não possui. Pode enganar-se, a si mesma e aos outros, cuidando mais de seus livros do que de seus leitores. Há pois quem tenha pensado a escrita com grande receio, pois implicaria enfraquecimento e desqualificação pessoais, além de poder vir a constituir-se em simulacro, propiciando a impostura. Razões haveria para evitá-la, e o mesmo receio pode ser observado em relação à cidade em sua objetividade. Muitas cidades ostentam suas muralhas em seus brasões. Sobre a eficácia desse meio defensivo, expoente da ostensividade material das cidades, há também, da parte de quem se reportava ainda a uma existência social sem a cidade, observações de cunho muito semelhante às que citamos a respeito da escrita. As muralhas defensivas já foram entendidas não só como resultado de um determinado estágio de desenvolvimento de técnicas militares, mas também como decorrentes de uma certa opção política e moral, quando, nem sempre, foram eleitas como a melhor escolha. Houve quem as recusasse em substituição à qualificação militar pessoal. Xenofonte deplorou o efeito deletério dos bastiões defensivos sobre o espírito combativo dos indivíduos6. Isócrates exaltou as ”defesas 6 XENOFONTE, Econômico VI, 6-7 e 10; HIÊRON 2 (Cf. GARLAN, Yvon, Fortifications et Histoire Grecque, in: VERNANT, Jean-Pierre (org.), Problèmes de la Guerre en Grèce Ancienne, Paris/La Haye, Mouton et Co., 1968, p. 245-260). As referências seguintes (notas 6 e 7) também são suas.

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morais“ em contraposição às materiais7. Platão afirmou que o muro defensivo predispunha os habitantes ”à moleza convidando-os a se refugiarem sem lutar contra os inimigos“, levando-os a ”crer que, uma vez embarricados atrás dos muros e das portas, eles nada mais teriam a fazer senão dormir para estarem seguramente protegidos“. As muralhas seriam uma fonte de imoralidade social, um meio de defesa artificial, impessoal e falacioso. Exaltando o combatente individual na figura de suas armas, afirma: ”O bronze e o ferro devem formar as defesas, mais do que a pedra.“8

A sentença era já um antigo provérbio. Há pois quem tenha negado o valor defensivo dos bastiões de pedra. E também como a escrita, a cidade poderia tornar-se mera aparência enganadora. Tucídides, em sua conhecida passagem, onde considera o engano em que poderia recair o estudioso do futuro ao observar as ruínas do que foram Esparta e Atenas, alerta: ”... penso que a posteridade, após um longo período de tempo, custaria a crer que seu poder (o dos espartanos) fosse tão grande quanto a sua fama. E eles, todavia, ocupam dois quintos do Peloponeso e exercem hegemonia sobre todo ele, bem como sobre muitos de seus aliados em outras regiões; isso não obstante, como Esparta não é 7 ISÓCRATES, Areopagítica 13. 8 PLATÃO, Leis VI, 778d.

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compactamente edificada à semelhança de uma cidade e não foi dotada de custosos templos e outras construções (ela é habitada à maneira dos povoados no antigo estilo helênico), seu poder pareceria menor que o real. Em contraste, se Atenas tivesse o mesmo destino, penso que seu poder, a julgar pela aparência das ruínas da cidade, pareceria duas vezes maior do que efetivamente é.“9

No cumprimento de suas funções — de defesa, de aproximação física, de abrigar funções coletivas —, a cidade dá à sociedade uma realidade sensível diferente daquela constituída pela simples reunião de seus membros. A sociedade, na cidade, adquire uma nova existência e aparência e, assim, permanece mesmo na ausência de seus membros. A matéria que é tem pois existência própria. A sociedade a constrói e mantém; pode destruí-la. Ela é, por sua origem, modo de ser e finalidade, da sociedade. Esta, no entanto, não tem controle total sobre ela. A cidade tem, em maior ou menor medida, uma existência que é só sua. Sociedades desapareceram, tendo permanecido suas cidades. Há, pois, essa qualidade de uma certa independência das cidades em relação a suas sociedades. A sociedade dá a si mesma uma nova existência e aparência na cidade, diferentes daquelas dadas pela imediata reunião de seus membros. Naquela sua primeira forma de existência, quando reunida, a sociedade dava-se sob uma forma de aparecer onde o que nos mostrava era seu próprio ser. O 9

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TUCÍDIDES I, 10.


que nos mostrava era a si mesma como uma multiplicidade de indivíduos. Na cidade, a sociedade adquire uma outra forma de existência e uma outra aparência. Mas sob esta outra forma, a de cidade, já não há aquela identidade imediata de ser e parecer. O aparecer que, da sociedade, se tem na cidade, não é um aparecer onde a sociedade mostre a si mesma, imediatamente. Servimo-nos da cidade para a satisfação de nossas necessidades. Em geral, as coisas de que nos servimos servem também como forma de nossa presença. Nossos objetos são também símbolos pelos quais nos fazemos presentes. A cidade é e mostra o edifício da assembléia, não a assembléia enquanto reunião efetiva dos membros de uma comunidade. A cidade é e mostra ruas e praças, não o mútuo relacionar-se dos indivíduos. Mas como o edifício foi construído para a reunião e a praça para o encontro, devendo, para o desempenho dessas funções, adequar-se às características de quem o usa, pode-se, pelo edifício, ter já uma idéia do número de pessoas que o utilizam, assim como, pelo número do traje, a estatura de seu dono. Outras características do usuário e dos responsáveis por sua construção — modo de ser e comportar-se, riqueza ou a falta dela, fins que colocam para sua existência e trabalho, etc. — podem ser vistas no edifício; também no traje e demais objetos que criamos e de que nos servimos. Por isso, os objetos em geral e a cidade em particular, podem expressar o que são seus criadores e usuários. Assim, são tomados freqüentemente como símbolos de nós mesmos.

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Fazemos uso desses símbolos para estender nossa presença. Através deles nos fazemos lembrar. Dizemos mesmo, quando presenteamos alguém, que o objeto ofertado é uma ”lembrança“. É mesmo um ”presente“, pelo qual nos fazemos presentes. Servem como símbolos de nós mesmos; servem como forma nossa de um aparecer ao outro, sem que estejamos imediatamente presentes, onde nos furtamos em nossa presença imediata. Mas com esses símbolos, ser e parecer já não são a mesma coisa. Não somos o objeto que presenteamos. Expressamo-nos por seu meio; revelamo-nos em nossos gostos, maneiras e intenções. Mas não é o objeto o que somos. O que somos não é o objeto de nosso aparecer. Ser e parecer, no caso, não são a mesma coisa. Como não somos propriamente nossos objetos, eles têm sua vida própria, escapando ao nosso controle. O traje separa-se de seu dono, o instrumento de seu artífice, etc. Podem, portanto, ser tomados por outras mãos. Pode o mesmo traje vestir o leigo ou o monge. Se não o faz, não é por qualquer preferência sua como traje, mas porque o monge não permite que o leigo o vista ou, também, porque o leigo não o quer. Quem esteja vestido de monge não precisa ser necessariamente o próprio. Mas como habitualmente é o monge que o veste, tratamo-lo como tal. Às vezes, basta-nos ostentar o traje para sermos tratados como monges, ainda que todos saibam: ”o traje não faz o monge“. Há, pois, possibilidade de engano e impostura.

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Posso, com os objetos, ostentar qualidades que não possuo. Quem se limite a só considerar as coisas de que me sirvo para ser e me fazer presente pode, facilmente, enganar-se ou ser enganado. Na cidade, a grandeza do edifício não precisa, necessariamente, corresponder à grandeza de seu proprietário. O edifício da assembléia, local de reunião e símbolo de majestade, pode existir sem que haja, na verdade, assembléia alguma. Esta pode não estar existindo, e o edifício, uma vez construído, continua lá; pode até não mais vir a existir, e o edifício continua lá. Talvez ela nunca tenha existido, e lá está o edifício. Lê-se em uma fachada: ”Assembléia“. A palavra está lá, o edifício está lá; mas assembléia mesmo não há. A cidade pode ser também engano e impostura. Os instrumentos são uma extensão do homem, uma ampliação de suas potencialidades. São também substitutos dessas qualidades. No primeiro caso, implicam enriquecimento pessoal e social; no segundo, empobrecimento. No caso particular da cidade, tal qual o geral. Com a construção de muralhas pode-se incrementar as defesas de uma sociedade ou entregá-la às mãos do inimigo. Se a sociedade cuida mais de seus meios materiais do que de si própria, se cuida mais da riqueza e força exteriores do que daquelas pessoais de seus membros, o acréscimo de meios materiais não é enriquecimento e fortalecimento, mas o contrário, empobrecimento e enfraquecimento. A cidade pode ser construída às custas do empobrecimento social.

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Quem esteve bem perto de sociedades sem cidades e sem escrita nos diz que razões desse tipo poderiam explicar o porquê de sua dupla recusa. A verdade é que todo o conjunto de dados que essas sociedades nos legaram parece corresponder a esse mesmo tipo de idéia. Nessas sociedades, os laços interpessoais não foram menos estreitos do que em outras. Uma existência permanente restrita só ao plano das representações, sem a cidade e sem a escrita, parece mesmo ter levado a que, ao menos nesse plano, as relações fossem fixadas com maior precisão e, até mesmo, com rigidez. As definições fazem-se mais precisas: a arte geometriza-se à procura de clareza conceitual, assumindo formas passíveis de fixação pela memória; os preceitos são mantidos por meio de exercícios exaustivos, cuidando-se de guardá-los inalterados, até mesmo em seus menores detalhes; a lei pronuncia-se pelo canto ritmado, segundo um formulário fixo.10 Havia que guardar na memória todos os princípios. Cada um dos indivíduos era, então, depositário da própria regra de sociabilidade e cuidava de mantê10 ”Estes antigos versos eram textos inalteráveis. Mudar-lhes alguma letra, deslocar ali qualquer palavra, alterar-lhes o ritmo, seria destruir a essência da própria lei, destruindo-lhe a forma sagrada, sob a qual se havia revelado ao homem. A lei, como a oração, só agradava à divindade enquanto era recitada com exatidão, quando nela se continha, e tornava-se ímpia se lhe mudasse uma simples palavra. No direito primitivo, a forma, a letra, é tudo; não há que procurar interpretar o sentido ou o espírito da lei. A lei não vale pelo princípio moral que encerra, mas pelas palavras incluídas na sua fórmula. Sua força está nas palavras sagradas de que se compõe.“ (COULANGES, Fustel de, A Cidade Antiga. Estudo sobre o Culto, o Direito e Instituições da Grécia e de Roma, Lisboa, Livraria Clássica, 1954, p. 292)

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-la, exercitando-se em sua capacidade de memorização indeformável. Carregava consigo a sociabilidade: era seu guardião. A sociabilidade nunca se separava dele. Para que existissem leis, os indivíduos precisavam tê-las sempre consigo em suas memórias. Aprimoravam-se em seu zelo pelo exercício constante. A situação parece também ter despertado um senso maior de responsabilidade individual, na medida mesmo em que todos, e cada um em particular, sabiam que a sociedade não existia senão por seus próprios atos e pela capacidade que tivessem de manter sempre presentes, para si e para os outros, as formas e valores que a sustentavam. Eram ciosos da posse pessoal desses valores. Pareciam temerosos de deixá-los depositados onde quer que fosse, mesmo sob a proteção de grossas paredes de pedra. A sociedade sem cidades talvez tenha sido capaz de bem formar seus ”cidadãos“.

*** No entanto, se pensamos em uma sociedade sem cidades, reconhecendo mesmo suas possíveis qualidades, não é porque estejamos defendendo-a em algum nível de comparação, nem porque a consideremos como momento necessário numa seqüência histórica dada qualquer, passada ou futura. Na representação que fazemos do passado existem sociedades sem cidades. Se no futuro viveremos sem elas, não sabemos. Mas como quer que tenhamos sido e como quer que venhamos a ser, assim

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fomos e assim seremos como indivíduos organizados em sociedades. E entendermo-nos como tais implica apreciar as múltiplas formas que esse agregado que somos pode assumir ao longo da história. Pensar uma sociedade sem cidades é pensar uma forma de nossa própria existência; é pensar a nós mesmos, tal como nos mostramos nas experiências que vivemos. Pensar o mesmo como possibilidade é, meramente, o prudente. Mas pensar uma sociedade sem cidades talvez seja, antes de tudo, importante para uma clarificação de conceitos. Parece que para pensar uma sociedade com cidades é preciso pensar seu contrário, o ser definindo-se pelo não-ser, o ser-com recortando-se pelo ser-sem. Definir é distinguir. Distinguir é comparar algo com seu contrário. E o contrário da cidade não é a não-sociedade; é, simplesmente, a não-cidade.11

*** Hoje a sociedade apresenta uma face sensível e permanente: é o que chamamos de cidade. Uma imagem concreta e duradoura: um casario mais ou menos compacto, ruas e praças, edifícios públicos. As relações entre os membros de uma sociedade, mais ou menos contínuas, mais ou 11 ”Não basta aceitar a existência de determinado objeto e considerar as conseqüências de semelhante suposição. Longe disso; precisarás, ainda, admitir a não-existência desse mesmo objeto, se te importa exercitar-te como convém.“ (Parmênides em PLATÃO, Parmênides, 135e-136a, tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém, Universidade Federal do Pará, 1974, p. 33)

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menos descontínuas, fazem-se relação material permanente por meio da cidade. A sociedade existe pelo relacionar-se de seus membros. Seu relacionamento, enquanto mútua presença imediata e sensível, no entanto, nunca é duradouro e contínuo. Os indivíduos devem, necessariamente, relacionar-se, encontrar-se. Mas não estão em relação imediata o tempo todo. Retiram-se, ausentam-se da relação social imediata. Quando o fazem, a sociedade permanece em sua representação, na representação de cada um deles. Em si mesmo, o indivíduo referencia-se o tempo todo na sociedade: ele a leva consigo onde quer que esteja. Assim, a sociedade existe independentemente da proximidade imediata e sensível de seus membros. Isto sempre, mesmo sem a cidade. Com a cidade, reforça-se a existência permanente da sociedade. Pereniza-se não só na consciência de seus membros, mas também, ainda mais, pela perenidade material da própria cidade. A sociedade passa a ter um corpo que lhe é próprio: corporaliza-se. Existe enquanto forma duradoura não só no plano das representações; existe também sob uma forma corpórea propriamente sua; existe ainda como cidade. Com ela damos objetividade e perenidade à nossa existência em comum. A cidade é um modo de existência da sociedade — objetivo e permanente. Quando os indivíduos e suas posses se relacionam de maneira mais ou menos freqüente e obrigatória, sem que se constitua, no entanto, nenhum fato material novo além de suas próprias existências físicas e daquela das coisas que possuem, existe uma sociedade, mas não há nela uma cidade. Esta só passa a existir quando fatos es-

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pecificamente novos são dados; quando, além da existência física dos indivíduos, além também das coisas que eles possuem individualmente e além, ainda, do mero contato físico deles e delas; quando, além de tudo isso, se constituem novos e duradouros fatos materiais. A objetividade permanente da cidade dá-se já com o casario. A contigüidade das casas, por oposição à sua dispersão não-urbana, constitui-se em uma relação específica da cidade. O casario é a compactação de uma pluralidade de casas. A casa é o indivíduo e a família em sua materialidade: um agregado de objetos exclusivos de um indivíduo ou de uma família; objetos pelos quais ele e ela adquirem uma feição material particular. Esse conjunto de objetos não é o próprio indivíduo ou a própria família, mas seja ele ou ela, não se pode viver desprovido de bens materiais, sendo que, em alguma medida, há mesmo identidade entre as pessoas e seus bens.12 12 O indivíduo, a família, a sociedade. Entidades que carecem ser consideradas em sua distinção. Mas na cidade, do ponto de vista em que a tomamos, indivíduo e família identificam-se na materialidade da casa. O elemento imediatamente constituinte da cidade é a casa, não o indivíduo ou a família, que da sociedade é que são os elementos diretamente constituintes. Que a casa seja de alguém e de mais ninguém, isto decorre do fato de que, ao precisarem morar em algum lugar, e ao fazê-lo com um mínimo de continuidade e permanência, as pessoas vão, progressivamente, dando uma feição toda sua às coisas que tomam para essa finalidade. As coisas, ao serem tomadas para uso e efetivamente usadas, adquirem, ao longo do tempo, traços particulares correspondentes aos específicos indivíduos que as usam. Nesse convívio, a princípio utilitário e mais superficial, depois mais profundo, elas vão amoldando-se, adquirindo feições particulares, diferentes daquelas que adquiririam se outros as estivessem usando. Elas vão identificando-se com seus usuários.

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Os bens são exteriores às pessoas: podem separar-se delas. Pode uma pessoa separar-se de cada um de seus bens, mesmo de todos eles; mas sempre com a condição de, por fim, substituí-los por outros. Nunca é necessária, absolutamente necessária, a relação que se tenha com um bem em particular. É sempre possível separar-se desta ou daquela casa. Entretanto, é sempre preciso ter onde morar. Há sempre que se ter onde morar, não sendo possível uma existência desprovida de toda a materialidade pertinente ao morar. É acidental morar nesta ou naquela casa em particular, viver com estes ou aqueles específicos objetos; mas é essencial ter onde morar e objetos com que se viver. Já no ato pelo qual toma posse de um objeto para seu uso, o indivíduo faz uma escolha que diz respeito não só a uma seleção entre o que é passível de sua apropriação. Escolhe um objeto com exclusão dos demais; mas não é só esta escolha que faz. Com ela, faz também uma escolha que diz respeito mais propriamente a si mesmo. Escolher um determinado objeto é escolher uma maneira determinada de ser. Ser com ele não é a mesma coisa que ser sem ele. Com ele podemos ser o que, sem ele, seria impossível. Não há como ser pintor sem pincéis ou violinista sem violino. Não há também como deixar de cuidar dos objetos que usamos. Há que se dedicar à sua manutenção e guarda. Há que se aprender a usá-los; para isso, adequar-se a eles. Em nossas relações com nossos objetos, mutuamente nos determinamos. Nós nos afeiçoamos a eles; eles adquirem nossas feições. Assim são propriamente nossos, são nossa propriedade — coisas que nos são

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próprias —, tal como o traje nos é próprio ou apropriado porque corresponde ao conjunto de características de nossa personalidade. A pessoa identifica-se com os objetos através dos quais dá a si existência material. Sem os objetos não há como se definir uma personalidade. Negar a propriedade individual, neste seu sentido primeiro, é negar a existência da pessoa. Negada sua existência, não estaríamos mais falando de uma sociedade como uma multiplicidade de pessoas e da cidade como uma de suas formas. Estaríamos talvez falando de uma outra humanidade, não daquela que se constitui em sociedades.13 No casario, também se incluem outros domínios pessoais que não propriamente as casas: oficinas, escritórios, etc. São também domínios privados e neles seus proprietários encontram-se na mesma condição básica que em suas casas: senhores de coisas que são suas, de objetos organizados sob os ditames de sua personalidade. 13 ”(...) originalmente, propriedade significa nada mais do que a atitude do homem ao encarar suas condições naturais de produção como lhe pertencendo, como pré-requisitos de sua própria existência; sua atitude em relação a elas como pré-requisitos naturais de si mesmo, que constituiriam, assim, prolongamentos de seu próprio corpo. De fato, ele não se mantém em qualquer relação com suas condições de produção, mas tem uma dupla existência, subjetivamente como ele próprio e, objetivamente, nestas condições inorgânicas naturais de seu ser“; originalmente é a propriedade ”a relação do indivíduo com as condições naturais de trabalho e reprodução, a natureza inorgânica que ele descobre e faz sua, o corpo objetivo de sua subjetividade“ (MARX, Karl, op. cit., p. 85 e 67). O termo ”propriedade“ é usado por nós na definida acepção, conforme estas referências, não se reportando diretamente a definições do ”direito positivo“. Para uma apreciação mais detida do nosso ponto de vista: MALACO, J.T.S., Espaço, propriedade, liberdade, a seguir [p. ...].

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A matéria que constitui os bens particulares, a propriedade, é moldada e agregada conforme as determinações de quem a tenha como sua. Os domínios particulares têm, a princípio, suas específicas formas conforme a particularidade dos bens de que se constituem, segundo as específicas determinações de seus titulares. Esse agregado apresenta um limite físico exterior, o termo dos bens de alguém, onde seu poder de ter as coisas como suas tem fim. Os domínios apresentam, assim, uma particular forma exterior. Marca-se com essa forma a exclusão dos demais; faz-se dela um invólucro. Em si mesmas, as propriedades particulares são, pois, diferentes na matéria e organização de seus conteúdos e na forma de seus limites exteriores. No casario, os domínios particulares adquirem proximidade. Relacionam-se ao modo da contigüidade. O fato novo que, no casario, caracteriza a cidade é, a princípio, meramente relacional. A matéria que constitui os diferentes domínios particulares, quando organizada ao modo de propriedades particulares dispersas por um território, não dá existência à figura de uma cidade. Isto só acontece quando as matérias das propriedades particulares aparecem sob a figura da contigüidade. A reunião dos domínios particulares dá-se pela aproximação. Nessa aproximação, são suas formas exteriores que mais imediatamente se relacionam, ajustando-se umas às outras. Esse ajuste dá ao casario uma figura composta por uma multiplicidade de formas. A figura que nos apresenta o casario é compósita: uma somatória de formas particulares, dadas como invólucros de domínios privados. Uma casa após outra, uma junto da outra.

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Nessa figura que é o casario definem-se lugares. Esses lugares, uma vez constituídos, têm existência própria e separada dos conteúdos que possam abrigar. Dada uma multiplicidade de lugares particulares, o conteúdo deles pode mudar sem que o casario, em si mesmo, transforme-se. Alguém se muda, leva consigo tudo o que é seu; seu lugar, primeiro, esvazia-se, depois torna a preencher-se por outra pessoa. Tal substituição não afeta necessariamente o casario, como a substituição de vinho por água em uma jarra também não a afeta obrigatoriamente. O conjunto de lugares que é o casario pode permanecer o mesmo, independentemente da alteração de seus conteúdos. Apresenta-se, pois, como um conjunto de lugares independentes de seus conteúdos. Estes são dados pelos bens pessoais e pelas pessoas. O casario tem existência distinta das pessoas e de seus bens. Constitui-se em figura própria, definidora de contornos formais mais ou menos fixos para lugares que podem ser ocupados por estes e também por aqueles domínios. Enquanto conjunto de lugares, mais ou menos fixos e independentes dos domínios que possam preenchê-los, o casario constitui-se em fato urbano propriamente material. A cidade, em sua realidade própria, dá-se já com o casario. Não mais um mero fato relacional: um fato material distinto da simples e imediata relação entre domínios. Uma realidade propriamente social adquire existência sob a forma de um conjunto de lugares mutuamente relacionados. O casario é materialmente dado mesmo como fôrma, sempre ali, a amoldar toda matéria pessoal que venha a preenchê-lo.

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Dado como um agregado de formas particulares definidoras de lugares, o casario, na ordem do tempo, pode constituir-se depois ou antes dos domínios particulares que dentro dele se encontrem. Depois, quando a figura que é define-se pela reunião de domínios cujas formas exteriores vão sendo desenhadas sem a fixação a priori de lugares; quando, em sua construção, os domínios não encontram outro limite senão a existência de outros domínios. O casario pode, na ordem do tempo, de outro modo, constituir-se antes dos domínios particulares, quando, de antemão, desenha-se sua figura, definindo-se os lugares para os futuros domínios. A figura que então se desenha é mais ou menos completa, mais ou menos simplificada; muitas vezes, sua mera projeção sobre o solo. Uma casa após a outra, uma junto da outra. Os domínios particulares juntam-se pelo contato de suas formas exteriores. Se a compactação, no entanto, fosse completa, estariam, mutuamente, cerceando-se em suas relações. Cada um dos domínios estaria em relação imediata somente com aqueles que lhe fizessem divisa. Os vizinhos de um, envolvendo-o, teriam o controle de uma de suas condições básicas de existência. Os domínios não são auto-suficientes. Todos precisam relacionar-se. Sem essas relações não teriam como se manter. Impedir a qualquer um deles de estabelecê-las seria negá-lo; controlá-las, ter poder sobre ele. Portanto, para que sejam admitidos enquanto entidades que tenham condição de manter-se em liberdade, é preciso que, no ajuntamento que constituam, estejam resguardadas as condições materiais para

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que suas relações se dêem sem impedimento, a cada um e a todos estando assegurada a abertura para todos os outros. Existem, assim, vazios entre os domínios: as ruas e as praças. Por seu meio a relação de todos com todos é estabelecida. É o bem comum em seu princípio.14 A materialidade dos domínios é, para os espaços públicos, elemento definidor de seus contornos exteriores; mas ao mesmo tempo, o vazio público é definidor dos limites do conjunto dos domínios privados. Quando 14 ”Chama-se princípio ao ponto de partida de uma coisa que muda ou se move, como por exemplo, fala-se do princípio de uma magnitude ou de uma viagem. Em um dos extremos se encontra um princípio, e no extremo oposto, há outro princípio. Também se dá o nome de princípio àquilo por cujo meio se pode realizar melhor uma coisa; por exemplo, o de uma ciência. Pois não há que se começar sempre pela noção primeira e o princípio da coisa que se estuda, senão por aquilo que pode facilitar a aprendizagem. Princípio é também a parte primeira e essencial de que consta um ser; por exemplo, neste sentido a quilha é princípio da nave e da casa são os alicerces; e o princípio dos animais é, segundo crêem alguns, o coração; segundo outros, o cérebro; segundo outros, enfim, qualquer outra coisa desta classe. Em outro sentido, princípio é a causa externa que produz um ser e aquilo por cuja virtude o ser resulta pela primeira vez naturalmente apto para começar o movimento e a mudança; por exemplo, o filho recebe esta capacidade do pai e da mãe, e a guerra recebe sua energia interna de uma injúria. Outra acepção de princípio é a que corresponde ao ser, por cuja vontade livre se movem as coisas que se movem e transformam-se as que se transformam: desta maneira se chamam princípios os magistrados das cidades, as oligarquias, os reinos e as tiranias. E também se chamam princípios às artes e, entre elas, especialmente, às arquitetônicas. Finalmente, também recebe o nome de princípio aquilo pelo que se chega ao conhecimento de uma coisa, que se chama igualmente princípio dessa coisa; por exemplo, as premissas ou hipóteses são princípios das demonstrações. As causas se tomam em tantas acepções como os próprios princípios, pois todas as causas são princípios. Por conseguinte, é comum a todos os princípios o ser o ponto de partida desde o qual uma coisa é, se faz, ou se conhece.“ (ARISTÓTELES, Metafísica V, 1)

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o público, na ordem temporal de realização, define-se a priori, em antecedência ao privado, a ele cabe o papel de elemento conformador: é a fôrma que amolda a existência do privado. Quando, na ordem de realização, é o privado que antecede o público, a ele cabe o papel de conformador, de fôrma. Na coexistência, um e outro se conformam. O público é sempre dado por uma forma materialmente definida. O casario é a forma ou, então, quando se define o público antes da existência do privado, é o caminho, o lugar de encontro, ou mesmo a vontade deliberada que materialmente o define por meio da compactação de um solo mais freqüentado, por meio de objetos que se acumulam em um certo lugar, por meras estacas com as quais o projeto de uma cidade vai imprimir-se sobre o solo. As pessoas circulam e relacionam-se, povoando as ruas e as praças. Ruas e praças lhes são dadas como vazios entre os domínios pessoais. Definido materialmente, o público não é, a princípio, senão um vazio. Assim como o casario é um conjunto de lugares vazios materialmente definidos, o público, a princípio, também é um vazio, da mesma maneira definido materialmente. A materialidade da cidade, tanto para o público como para o privado, é definidora de lugares vazios. Existe a cidade como materialidade, mas o que faz essa matéria, enquanto matéria propriamente social, é definir lugares vazios. Em si mesmas, ruas e praças são um vazio e devem, ao contrário dos lugares privados, permanecer assim para que sua função, como meio de relação de todos com todos, realize-se. O bem comum, a princípio, é um vazio; a

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coisa pública, um nada. O bem comum, entendido como meio para a relação de todos com todos, não precisa ser mais do que um espaço vazio, onde nada precisa existir e nem deve mesmo haver. A matéria que o constitui, definindo seus contornos, é-lhe exterior. Em seu interior, todo objeto constitui-se, em maior ou menor grau, em uma obstrução. A circulação se quer livre, o encontro podendo acontecer por toda parte. O vazio, a ausência de tudo, dá essa liberdade. Toda presença pessoal no que é público é limitação ao relacionamento de todos com todos. Passa-se ao largo de um lugar ocupado, não através dele. Nele nada mais pode estar senão aquilo que lá já esteja. Não há ali com o que ou com quem se encontrar senão com o que ou com quem lá já se encontre. O que ou quem ocupe um lugar retira a tudo o mais — e a todos os demais — a possibilidade de fazê-lo. Duas coisas não ocupam o mesmo lugar. A existência de uma é exclusão das outras. Sob a condição de permanecer como meio de relação de todos com todos, o público não poderia, pois, ser ocupado. O vazio que é, é condição para a livre ocorrência de todos os encontros. Mas as pessoas são entidades físicas, corpos materiais que ocupam sempre um lugar. Não há como ser sem que se esteja ocupando um lugar. Elas ocupam sempre um lugar; seu encontro também. A utilização do público por uma pessoa qualquer implica pois, necessariamente, a exclusão das demais no que ela, dele, tomar por seu uso. O espaço que ela ocupa é subtraído ao bem comum: lá o público deixa de existir. Entendendo-se o bem comum

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como um mero vazio, há, pois, uma contradição: o espaço público, para a realização de sua função, deve estar sempre livre de toda ocupação e, ao mesmo tempo, não pode ser utilizado senão sendo ocupado. Uma contradição que, no entanto, resolve-se na ordem do tempo. Para que se possa conhecer a natureza do bem comum, à noção de espaço deve-se, necessariamente, acrescentar a de tempo. Toda ocupação do que é público deve ser contingente, provisória. Pode-se, sim, ocupar um lugar no espaço público, mas só por um certo tempo. O fato de um lugar público, agora ocupado por uma pessoa, ter sido, antes, ocupado por uma outra, e de ainda poder vir a sê-lo, depois, por outra ainda, define toda ocupação como sendo precária. A sua utilização é provisória, limitada no tempo. Quem ocupasse um lugar público por todo o tempo o teria como seu. A ocupação deve, pois, ser sempre limitada temporalmente. Saber ocupar um lugar público é, antes de tudo, estar ciente da precariedade de sua ocupação. É saber deixá-lo em seguida; é saber ocupá-lo do modo apropriado e pelo tempo certo. O modo apropriado para sua ocupação é dado pela sua função relacional. Usa-se o público para o encontro e a reunião. Só o encontro e a reunião, como atividades que lhe são próprias, constituem motivos para o uso do espaço público. Ele é o espaço das trocas sociais pelo mútuo relacionar-se dos indivíduos; não é o espaço onde estes produzam, usem ou guardem as coisas que possuem e trocam. No público, a utilização dos bens pessoais restringe-se às necessi-

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dades inerentes à manutenção imediata do indivíduo em sua presença social: seu traje, demais objetos necessários à sua circulação e permanência temporárias pelas ruas e praças. Espaço de relação, só fatos relacionais são pertinentes: a fala que tenha ouvinte voluntário, o gesto que faça sentido e seja aceito, o objeto que se queira presente publicamente, etc. O tempo certo para uma ocupação define-se como mero intervalo contingente entre outras ocupações. Não se fixam definitivamente horários para os usos pessoais e particulares do espaço público. A ocupação é sempre contingente, podendo ocorrer só se nenhuma outra contingência estiver ocorrendo. Ocupá-lo hoje não dá nenhum direito de ocupá-lo amanhã. Se ocupado por vários dias consecutivos por uma pessoa, o direito de, em seguida, ser ocupado por uma outra é o mesmo, como se a primeira nunca tivesse estado presente. A precariedade da ocupação não se mede pela duração do tempo. Não importa quanto tempo dure, a ocupação é sempre provisória. A precariedade de toda ocupação mantém o espaço público como um vazio propício ao livre relacionamento de todos com todos.15 15 O fato de se ter o público como um simples vazio, já a princípio, constitui-se em impedimento decisivo a qualquer pretensão de posse pessoal. A contingência de toda ocupação dá-se já pelo impedimento do recurso aos objetos. A ocupação sendo feita pela presença física imediata da pessoa, obrigatoriamente, apresenta caráter de provisoriedade. Se só a própria pessoa ocupa o lugar público, ao retirar-se, sem que lá possam permanecer seus objetos, ela o deixa livre para a ocupação de outras pessoas. Se a ocupação pessoal se faz acompanhar por objetos, estes não podem permanecer nos lugares públicos independentemente de seus donos, senão por curtos períodos bem

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O vazio público em sua indefinição de lugares não prescreve nem fixa hierarquias; não dá sequer formas para os relacionamentos. Nele todos os pontos são iguais e como que intercambiáveis. É homogêneo em todos os seus pontos. A igualdade que lhe é própria não se estende, no entanto, aos indivíduos que o usam. Estes, ao usá-lo, mantêm todo o conjunto de características que os diferenciam entre si. Sendo igual em todas as suas partes, o espaço público vazio não igualiza ninguém. Não produz esse efeito. Mas não produz, também, o seu contrário. Se não igualiza, da mesma forma não diferencia por si mesmo. O espaço público vazio não é nem igualizador nem diferenciador: é neutro. E assim se comporta quando é tomado para uso político. Quem queira dirigir-se aos demais cidadãos, postar-se-á na praça pública e fará seu discurso. Poderá encontrar ouvintes e reunir a seu redor toda a cidade com a força superior de suas idéias e sua personalidade, e mesmo com o auxílio do encantamento da riqueza de seus trajes. Mas enquanto faz seu discurso, o lugar que ocupa, tornado mesmo central com sua presença e sua fala, em si mesmo, permanece tal como sempre foi: igual a todos os outros, determinados. Se algo é deixado sobre o banco da praça, é considerado perdido. Para que volte a ser posse de alguém, este deve vir resgatá-lo. Para uma ocupação permanente há sempre que se recorrer a objetos de nossa posse. Restrita a ocupação ao recurso a nosso próprio corpo (a matéria propriamente nossa e também aquilo de que não nos podemos separar), toda ocupação só pode dar-se através de nossa presença física imediata. Esta não pode ser permanente; temos sempre que nos deslocar. Toda ocupação com o recurso necessário a nossa presença física imediata é, obrigatoriamente, contingente.

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como que indiferente a seu notório ocupante. É a força pessoal do cidadão que se afirma: só ela. Sustentando-a não há um lugar que, por si mesmo, confira-lhe autoridade: a tribuna elevada sobre o plano normal, o assento dignificante, etc.16 Um casario, vazios (ruas e praças): já uma cidade.17 Tendo-se o casario e o espaço público como plena abertura, caracteriza-se já uma cidade; mas mantém-se ainda uma relação muito estreita entre a existência real da sociedade e os atos de seus membros. A sociedade adquire corpo pela matéria do casario; faz-se também sensível no espaço público que define para sua existência. Um e outro existem de maneira permanente, independentemente da presença física imediata das pessoas. A sociedade existe já como cidade. A cidade que assim existe, entretanto, só adquire vida pela presença física e pela efetividade dos atos dos seus cidadãos. Se estes não se fazem presentes no espaço público, falta-lhe vida. Para que 16 Sobre o espaço político vazio na Grécia Antiga, onde tem sido estudado em sua significação geral, ver: VERNANT, Jean-Pierre, Mito e Pensamento entre os Gregos, São Paulo, DIFEL/EDUSP, 1973, cap. III, p. 113-206; e principalmente: LÉVÊQUE, Pierre, VIDAL-NAQUET, Pierre, Clisthène l’Athénien — Essai sur la Représentation de l’Espace et du Temps dans la Pensée Politique Grecque de la Fin du VIe Siècle à la Mort de Platon, Annales Litteraires de l’Université de Besançon, vol. 65, Paris, ”Les Belles Lettres“, 1973. 17 No caso clássico para nossa cultura, o de Atenas, a realidade urbana permanece assim, como um casario mais ou menos compacto abrindo-se para um simples vazio público, até uma época relativamente tardia. Só no séc. VI a.C. surgem os primeiros edifícios públicos significativos.

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nela haja vida — a plena presença de uma sociedade — é necessário que se abandonem os domínios pessoais e que o espaço público venha a ser ocupado. A sociedade como coletividade viva e atuante continua a só adquirir existência sensível pelos atos de seus membros. Sem a presença deles, há já uma cidade, mas só como definição de uma ausência e desolação: ruas e praças vazias. Os indivíduos precisam sair de seus domínios para suprir essa ausência. O edifício público dará uma outra feição à cidade e um outro modo de existência à sociedade. Esta se fez casario pela aproximação dos domínios pessoais. Os domínios pessoais aproximam-se em seu relacionamento de troca de bens e serviços. Nesse relacionamento, têm como pressuposto a diferenciação e especialização do que cada um pode oferecer aos demais. Relacionam-se pela diversidade do que têm a ofertar. Se todos oferecessem as mesmas coisas, não haveria por que se relacionar. Com a cidade, a aproximação permanente das pessoas estimula o incremento das trocas, o aprofundamento e a extensão da especialização de suas atividades. Dada a existência de atividades especializadas em estreito e intenso relacionamento, a força do princípio pode abarcar a própria função pública. As funções públicas definem-se a partir de um certo número de bens e serviços de interesse geral. Na sua obtenção e realização, todos se empenham, ou então, constitui-se uma função especializada. Na defesa militar, todo cidadão é ou pode ser um guerreiro, ou se cria um exército de guerreiros profissionais. Na administração da justi-

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ça, todo cidadão é ou pode ser um juiz, ou se cria um corpo de juízes como função especializada. Desejando-se que todos exerçam as atividades públicas e não sendo possível que o façam ao mesmo tempo, a periodicidade aparece como o modo usual de preservar o direito comum ao seu exercício. Não só no uso, mas também no serviço do bem comum, a ordem temporal complementa as determinações da ordem espacial. A função pública pode também fazer-se atividade permanente de pessoa ou grupo: especializar-se. A produção do bem comum constitui-se em serviço permanente quando exige formação específica e prática reiterada, requerendo um longo aprendizado e o exercício constante para a aquisição e manutenção de habilidades sem as quais o serviço desejado não pode ser realizado.18 O serviço da função pública dá sua parcela de vida à cidade. Ruas e praças são tomadas não só pelas relações particulares entre os cidadãos, mas ainda pela atividade que se presta à realização do bem comum. Os cidadãos a seu serviço — eles todos ou uma parte deles, à sua vez ou permanentemente — são responsáveis por uma boa parcela da vida nos espaços públicos. Circulam em suas idas e vindas, encontram-se, reúnem-se para a realização do bem comum. Nessa presença pública — quer como atividade de todos ou serviço especializado — necessitam de meios materiais: o recinto onde se reúna um conselho ou mesmo 18 Sobre o exercício comum da atividade pública e/ou sua especialização, talvez se possa começar pelo estudo de Aristóteles na Política e Platão na República.

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a assembléia de todos os cidadãos, o altar onde se sacrifique aos deuses, os templos em seu louvor, o lugar onde esteja protegida a riqueza que se possa ter em metais, também o recinto onde se guardem as leis que regem a vida coletiva ou o arquivo dos documentos que as complementem. As construções, tendo fins utilitários, servem ainda como manifestação das glórias e poder da cidade. Todas elas, meios materiais necessários à realização do que se entenda como bem comum. Assim como o indivíduo deve munir-se necessariamente de meios materiais, também uma coletividade tem necessidade dos seus. Não há como nos imaginar sem fazermos recurso a eles, quer individualmente quer coletivamente. Mas a coisa pública é diferente da particular. Sendo de todos, por todos deve poder ser utilizada. Seja o assento no conselho maior da cidade ou o simples banco de jardim, o uso que dele se faça — sendo, a cada vez, particular e excludente — não pode impedir outros usos. Usa-se o banco do jardim, particularmente, excludentemente. Quando alguém lá se sente, ninguém mais pode fazê-lo. Mas como se trata de um bem comum, por todos podendo ser utilizado — primeiro por um, depois por outro e mais outro —, o primeiro que o use não pode usá-lo de modo tal que inviabilize a sua utilização posterior pelos demais. Não pode deixar marcas suas individuais: seu nome, ou qualquer sinal que venha a identificá-lo como objeto de sua posse exclusiva. Deve ser cuidado por cada um como se individualmente fosse dele, mas sendo preservado para que os outros possam também usá-lo.

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Assim com o banco que se vê no jardim público, assim com a cadeira do magistrado ou governante — um hoje, amanhã outro. Aquilo que se tem como bem público deve sê-lo para uso de todos, não podendo possuir características que o circunscrevam à particularidade de qualquer pessoa. As dimensões consideradas, por exemplo, não serão as de um ou as de outro, mas as de todos; do mesmo modo com os gostos, etc. A materialidade do que se tem como público dá à cidade a sua forma acabada na visão habitual. Com um casario e um espaço público despojado de bens materiais, existe já uma cidade, mas mantém-se ainda uma grande identidade entre a existência da sociedade e os atos pelos quais é constituída a partir da atividade de seus próprios membros, a sociedade só se dando como existente pela sua presença física e atuante. Na sua ausência, ainda que haja uma cidade, não se vê uma sociedade. As edificações e demais meios materiais existentes em função do bem comum suprimem em parte essa ausência, e o fazem de maneira permanente. Ficam sempre lá, independentemente de serem usadas. Ficam lá o tempo todo como coisa pública, presentes como o que, dizendo respeito a todos, é de todos; fazendo-se, assim, sempre referência à existência de uma coletividade. Pode ser enganosa essa referência; pode a coisa pública não corresponder à existência efetiva da coletividade a que diz servir. Pode o edifício da assembléia não corresponder à assembléia alguma. Mas a presença do edifício faz lembrar constantemente da assembléia que, existindo,

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pode não estar reunida. O edifício, por si mesmo, diz um pouco daqueles que o construíram — já mesmo seu número, sua força ou grandeza, suas preferências e gostos. Poderá ser capaz de revelar uma coletividade em suas qualidades ou denunciá-la em seus defeitos. O edifício pode até mesmo mostrar o que a simples reunião dos cidadãos não mostra — a disposição a um empreendimento custoso, a capacidade de esforço coordenado, também a propensão ao gasto perdulário, etc. —; ainda que não possa mostrar o que só pela própria coletividade pode ser mostrado — a assiduidade de todos no compromisso coletivo, o ânimo no enfrentamento do que lhes seja difícil assumir, a renúncia a identificar-se com o vergonhoso, etc. Menos ainda pode o edifício substituir a própria assembléia. Mas pode a função pública fazer-se posse particular. Alguém se apodera dela como algo seu, para fins só seus. Ela passa, assim, a ser atributo de um indivíduo ou de um grupo. Como seu atributo, é coisa própria dele; passando a existir uma espécie de propriedade, tendo-se algo como próprio de alguém. Nessa relação de propriedade, além do proveito que se possa ter, o progressivo afeiçoar-se de homem e função, a progressiva adequação da função a seu executante e deste a ela. Um indivíduo que tenha uma atividade como sua posse particular afeiçoa-se muito a ela. Identifica-se mesmo com ela. Tratará de fazê-la adequada só a si mesmo, imprimindo-lhe seus traços exclusivos, transformando-a em um conjunto de procedimentos e técnicas das quais o conhecimento seja ele o único a deter. Juntar-se-á a outros, associando-se

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ou colocando-os sob sua dependência, com quem poderá constituir um corpo permanente e cioso em seus cuidados na manutenção da posse particular do bem comum. Aqueles que tomam como sua posse pessoal o serviço dos negócios públicos dão uma outra feição ainda à cidade. Cuidando eles dos negócios de todos, passa a existir uma cidade que pode viver sem que seus cidadãos precisem fazer-se presentes e, acaso venham a fazê-lo, sempre junto deles haverá algo mais. Os bens e edifícios públicos feitos posse pessoal também ficam sempre lá. Estando sempre lá, fazem com que não haja, em tempo algum, possibilidade para que o espaço público possa ser ocupado sem a sua presença. A coisa pública feita posse particular é perenização de uma presença sempre excludente, ainda que em grau variado. Dá-se como única ou, ao menos, como coadjuvante do que quer que venha a acontecer. O espaço público como plena abertura ou como conjunto de bens comuns reduz-se na mesma medida em que os cidadãos perdem o direito ao exercício e controle de seus próprios negócios. Retira-se-lhes a condição de sua livre existência política; rouba-se-lhes o espaço. As construções públicas ou que simplesmente se mostrem como tais, avolumam-se à medida que passam a estar sob controle privado. Surgem, então, por toda parte. Aparecem margeando os espaços vazios e, também, mais decididamente, postando-se à cavaleira sobre eles e, ainda, mesmo ostensivamente, ocupando-os em seu interior. As cidades povoam-se com os monumentos à vaidade

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daqueles que tomaram o público como sua posse pessoal. Surge o edifício público em uma majestosidade que é antes busca de engrandecimento pessoal do que expressão de grandeza social.19 E mais: os edifícios e outros marcos materiais do poder público, ostentando as pretensões de quem deles fez posse exclusiva, passam a definir uma ordem de lugares hierarquizados. Os cidadãos, em sua presença social, passam a ser dispostos segundo uma ordem material fixada pela própria materialidade da coisa pública privatizada. Reservam-se lugares privilegiados na cidade. Os edifícios em sua majestosidade e os monumentos em sua exuberância tomam para si os centros de atenção obrigatória. Em redor deles, subordinado, tudo o mais passa a colocar-se. 19 Em Atenas as construções públicas só irão adquirir proeminência a partir do séc. VI a.C., quando alguns cidadãos notáveis passam a disputar a direção dos negócios políticos da cidade. Avolumar-se-ão desde então, mas não sem conflito com o vazio onde se implantam. Na Ágora, a princípio, as construções o preservam. Elas o vão margeando, envolvendo. A princípio, ficam tão-somente a seu redor, como que o emoldurando. Só com a presença romana tomarão seu interior. Na Acrópole, as edificações também se avolumam a partir mais ou menos da mesma data, tomando lá o espaço de uma maneira mais decidida, o conjunto acabando por ficar centrado em uma gigantesca figura de Atena, senhora da cidade. O vazio permanece, mas só como uma espécie de interstício entre as construções. Ao mesmo tempo ainda, mas contrariando os desenvolvimentos da Ágora e da Acrópole, o platô sobre a colina do Areópago, sede do conselho de mesmo nome, mantém-se tal como antes: um mero vazio. A Pnyx, local de reunião da assembléia de todos os cidadãos, também se transforma, adquirindo feição de uma construção fechada; ao que ainda se acrescentarão outras edificações anexas.

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A posse pessoal do bem público ou do serviço público pode ser evitada. Faz-se do exercício da função pública uma atividade de todos — conjuntamente ou alternadamente. Se exercício especializado, uma prática cuidadosamente regulada em seu desempenho e seus produtos: dá-se acesso às funções públicas especializadas só através do crivo de critérios universais, sem que ninguém seja excluído senão por esses critérios; define-se com precisão o caráter público, de bem comum, do produto de cada uma; não se concede a seus executantes senão os recursos materiais estritamente necessários ao seu exercício, nem mais nem menos. A especialização, por si só, constitui-se em divisão de prerrogativas; uma função limitando outra, cada uma delas restrita a sua própria esfera de competência. O serviço público pode ser disposto de modo tal a não poder transformar-se em posse pessoal. É preciso, antes de tudo, que a coisa pública seja entendida e tratada como tal. Matéria própria à satisfação do bem comum, a coisa pública enquanto tal constitui-se em algo propriamente social. Com ela, há na cidade uma outra matéria que não só aquela de posse do indivíduo — sua corporeidade mesma, sua casa, seus bens. Há, na cidade, uma matéria propriamente social. Aos bens pessoais somam-se os bens comuns, a coisa pública. Uma sociedade quando dá a si a forma de cidade apresenta pois: (1) os indivíduos e seus bens — aquilo que lhes seja próprio, suas propriedades —; (2) as relações entre os indivíduos e suas propriedades, mais ou menos freqüentes e obrigatórias, e (3) a

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corporeidade que é a própria cidade: a contigüidade permanente de bens pessoais e também o bem comum — o vazio público e a coisa pública. O bem comum em sua materialidade é a coisa pública. Como elemento e símbolo maior dessa materialidade, o edifício público. Com ele, completa-se a figura habitual: um casario, ruas e praças, edifícios públicos — uma cidade. É hoje a forma habitual de nossa existência objetiva enquanto animais gregários. Tivemos, antes, outras formas materiais pelas quais dávamos objetividade à nossa existência. Em que medida precisamos desta que é a nossa hoje? A definição dessa medida talvez reúna a maior parte de nossos problemas. Há quem nos diga: a boa medida está sempre entre um excesso e uma falta.

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Espaço, Propriedade, Liberdade I. O vazio e os corpos20 1. O vazio Temos um corpo. Distinto de todos os outros corpos é o corpo que é o nosso corpo por ter o predicado de ser nosso. Com ele constituímos unidade. Dos demais corpos é o nosso corpo separável. Separáveis são também os corpos que não o nosso. São os corpos separáveis. O nosso dos outros que não o nosso, estes entre si. Separado, o nosso corpo está aqui, estando os outros lá e acolá. Há um aqui, um lá, um acolá. Assim estão separados os corpos. Entre o lá e o aqui, o aqui e o acolá, etc., há espaço. O que separa os corpos é espaço. Podem os corpos negar a separação em que se encontrem: podem relacionar-se. Este aqui, o nosso corpo, estabelece relações com os outros corpos pelo ver, tocar, cheirar, etc. Por tais ações o espaço é atravessado. Para que toquemos algo é preciso atravessar o espaço que há entre nós e esse algo. E se 20 Parte de Espaço, propriedade, liberdade circulou restritamente em fotocópias em 1983 e, novamente, em 1989, com o título Ensaios para uma fenomenologia do espaço.

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vemos alguma coisa, é também porque é atravessado o espaço que há entre ela e nós. É assim o espaço permeável às nossas ações. Os corpos, pelo contrário, não são permeáveis. São opacos à nossa visão, impenetráveis para nosso movimento. As coisas materiais são a opacidade que vemos mergulhada no espaço. Quando vemos algo, o que vemos, na realidade, é um limite. Aquele algo que vemos não nos permite ver o que se encontra depois dele e que ele esconde com sua presença. O que vemos, aquele algo visto, limita a ação nossa de ver que nele termina. E assim como não vemos além, não vemos também o interior das coisas. O que vemos é só sua superfície exterior. São as coisas quando as vemos, quando vemos sua superfície sob a luz — e é só o que vemos — impenetráveis em sua interioridade. As coisas materiais são obstáculos. Contrapõem-se ao nosso movimento. No espaço ele se dá sem impedimentos; com a presença de alguma coisa, encontra oposição. Enquanto caminhamos e o fazemos sem oposição, sem que a ação nossa de caminhar encontre obstáculo ou impedimento, esse caminhar é caminhar no espaço. Quando o nosso caminhar depara com algum obstáculo, está lá a coisa — alguma coisa, qualquer coisa —, fazendo-se presente exatamente por esse impedimento à nossa ação. São as coisas opacidade — marco que dá termo. São exteriores e impenetráveis. Contrapõem-se; existem como contraposição, impedimento. A falta desse impedimento ou a inexistência dos obstáculos que, para nós, são as coisas — essa franquia — é espaço. E é como inexistência das coisas materiais ou

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dos corpos que o espaço é dito o incorpóreo ou o imaterial, ou ainda o vazio. É o espaço um vazio, um vazio das coisas. Nesse vazio nada há, nada se opõe à nossa ação. E simplesmente por isto, por esta ausência de oposição ou impedimentos e obstáculos, podemos dizer que o vazio — o espaço — é próprio à nossa liberdade. Há, como veremos, outras espécies de liberdade. Desta, a de agir sem impedimentos, presenteia-nos o vazio — o espaço. É a liberdade no vazio. É uma liberdade negativa. Trata-se de negação de negação, da negação da contrariedade que são as coisas. Como contrariedade, são as coisas o limite dessa liberdade. Pode esse limite se constituir em um entorno. Pode ser uma figura. O entorno envolve-nos; a figura, nós envolvemos. Assim nos determinam as coisas: determinam o término de nossa ação enquanto entorno que não atravessamos ou como figuras que envolvemos mas não penetramos. Esse termo que são as coisas é o limite de nosso espaço, que assim é finito. É finito o vazio pelo limite das coisas: é finita a nossa liberdade nesse vazio. Nessa finitude, está esta nossa liberdade — a liberdade no vazio — que, assim, também é finita. E nessa finitude estamos sós: as coisas lhe são exteriores; não as temos como companhia. É a liberdade de estar só. Cada um de nós está consigo; é só consigo mesmo que está. É só a si mesmo que tem, não tendo nada consigo. É essa uma liberdade das coisas, em relação a elas; é uma liberdade que se vive na ausência das coisas. A solidão de nós mesmos, a liberdade pela inexistência das coisas — esse vazio — é esta uma primeira vivência daquilo que nomeamos com a palavra espaço.

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2. A subordinação dos corpos São as coisas impedimento, oposição; mas não só. Podemos observar que são elas também passíveis de submissão à nossa vontade. Sobre elas podemos estender nossa liberdade, como que penetrá-las por nosso querer. Podemos possuí-las. Demo-nos o direito de assenhorarmo-nos de todas as coisas. A sua resistência à nossa vontade, existindo, é concebida como precária. Acreditamos sempre que, se não já, logo mais, poderemos submetê-las. Cada um de nós considera-se como podendo ser negado só provisoriamente pelas coisas. Sobre elas podemos afirmar nosso querer. E se o fazemos, se afirmamos nossa vontade sobre as coisas, é porque só momentaneamente podemos viver numa relação simples conosco mesmos. Temos um corpo, que é com o que mais imediatamente nos relacionamos, formando com ele unidade indissolúvel. E, enquanto corpo, não podemos conceber-nos sem estarmos com as coisas de que ele, corpo, necessita para sua conservação. Devemos, por isso, entrar em relação com elas. Precisamos fazê-lo, podemos fazê-lo e o fazemos: nós as tomamos como nossos objetos. Fazemos com que participem de nossa atividade de auto-recriação. Assim, internalizam-se na ação de nossa reprodução. Na fruta temos o alimento e também a cura de nossa doença, ainda o ornamento de nossa pele ou o tecido com que a cobrimos. O minério nos dá os metais. Nos mares e rios encontramos alimentação a ser subtraída astutamente.

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Nos animais em geral, a carne que dará força à nossa própria carne, etc. Apropriadas ao nosso uso, podem ser as coisas por si mesmas. Basta, então, tomá-las e usá-las. Se não o forem, é preciso fazer com que o sejam. No primeiro caso, nosso trabalho restringe-se à escolha e à coleta; ao abrigo também, se for questão de não consumi-las imediatamente e guardá-las. No segundo caso, trata-se do fabrico. De uma forma ou de outra, por si mesmas ou pelo fabrico, passamos a tê-las como matérias apropriadas ao nosso uso: são coisas próprias à nossa utilização o que temos. Enquanto tais, enquanto apropriadas às nossas necessidades, elas se nos fazem próprias. Fazem-se próprias em função daquilo que nos é próprio. É próprio ao homem o alimentar-se, é sua propriedade alimentar-se: apropria-se das matérias próprias à sua alimentação. É próprio ao homem vestir-se, é sua propriedade o vestir-se: apropria-se das matérias próprias para a sua vestimenta. Como próprias determinam-se as coisas, primeiro, por suas características intrínsecas: a qualidade de sua matéria e a sua forma prestam-se ao nosso uso. Segundo, pela sua posição referenciada a nós — por sua qualificação posicional. Não nos alimentará a maçã caso não possamos tomá-la com as mãos e levá-la até a boca. A maçã, aquela específica maçã que se prestará à nossa alimentação, recebe a qualificação para tanto também por sua posição. A posição define mesmo uma coisa como própria ou então imprópria ao nosso uso; podendo algo não ser apropriado ao nosso consumo só por sua localização,

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ainda que intrinsecamente possua todas as qualidades por nós requeridas. A posição é uma qualidade essencial da coisa no que diz respeito ao nosso uso. E como nos relacionamos com uma pluralidade de coisas, entrando com elas em relações complexas, importam-nos as posições relativas dos objetos com que nos envolvemos. Aparecem assim as coisas como pluralmente configuradas. Algumas dessas configurações têm formas mais ou menos fixas e recebem nomes próprios. É o que temos por ”celeiro“, ”casa“, etc. É o celeiro o lugar de armazenamento de matérias apropriadas à produção de nossa alimentação. Nós as produzimos e depois as recolhemos no celeiro: lá estão guardadas. Esse lá que é o celeiro é um lugar referido a outros lugares: aos nossos campos, à nossa casa, etc. Esse lá que é o celeiro é também um complexo de coisas arranjadas com a finalidade de celeiro: são as vigas, portas, janelas, etc. coexistindo em uma ordem que dá ao todo que constituem a qualidade de servir como celeiro. Outro tanto se poderia dizer da casa. A esses agregados de coisas dadas como apropriadas ao nosso uso, ou que estejam dispostas conforme as necessidades de nosso serviço, também nomeamos com a palavra ”espaço“. Não é mais a palavra utilizada naquele sentido simples de nossa liberdade de movimentos. Adquire outra significação. Ao que indicávamos com a palavra ”espaço“ atribuíamos a característica essencial de não oferecer nenhuma oposição à nossa ação. Entendíamos que ela estava nomeando o que considerávamos como algo próprio à nossa liberdade, tendo-a como ausência de impedimentos

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e obstáculos. Era então o espaço entendido como exclusivo em relação às coisas. Estas, contrariamente a ele, caracterizavam-se pela contraposição; eram exteriores e impenetráveis. Naquela primeira acepção, aparecia-nos o espaço como uma espécie de desdobramento imaterial de nós mesmos. Agora, observamos também uma espécie de desdobramento material nosso, abarcando as coisas. É já com a finalidade de fazê-las participar da nossa própria atividade que as conhecemos. E conhecê-las, desde logo, é como que as penetrar por nossa visão. É descobrir-lhes as qualidades — mesmo as mais íntimas. É dissecá-las e perscrutá-las em seu interior. É arrancar-lhes os segredos. Conhecê-las é penetrá-las com o olhar de nosso entendimento. Se por si são apropriadas ao nosso uso, com o conhecimento, disso nos apercebemos. Se por nós, pelo nosso fabrico, é que são apropriadas, conhecemo-las como o criador conhece sua criatura. E se penetramos ou transpassamos cada uma delas em particular pelo nosso conhecimento, ele também abarca todas elas, apreendendo-as em suas relações de proximidade e distanciamento. Apreendemos que uma coisa está aqui e outra está lá; que esta nos poderá oferecer este serviço e aquela, aquele outro. O lá, o aqui e, se se quiser, o acolá, indicam posições. São as posições mutuamente referenciadas. Definem-se nesse complexo de relações. Nele qualificam-se posicionalmente as coisas. Qualificando as coisas, o complexo de referências é uma ordem. Temos essa ordem pelo nosso conhecimento. Transpassa essa ordem o nosso conhecimento.

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Se não é tudo que conhecemos das coisas e da ordem em que se encontram, em geral sabemos o suficiente para integrá-las em nossos próprios processos. Tomamos as coisas por esses processos; internalizam-se neles. Deixam assim de ser exterioridades. Nossa atividade envolve-as, também as toma e as penetra: apreende-as. É o espaço dos corpos. É o espaço da nossa relação com os corpos, da nossa coexistência com eles; não mais um vazio, não mais a simples inexistência das coisas: a existência delas, a coexistência com elas — a ordem da nossa existência com elas. Os lugares que ocupam não são mais um simples impedimento ou obstáculo. Os lugares que ocupam são agora lugares referidos a outros lugares. Está isto aqui nos prestando ou podendo prestar-nos este serviço; está aquilo ali, prestando-nos ou podendo prestar-nos aquele serviço; e aquilo outro está acolá, prestando-nos ou podendo prestar-nos aquele outro serviço. Temos as coisas. E é livremente que as temos. É nosso comportamento, ao tê-las, livre. Nós as temos por ações onde agimos por e para nós mesmos. Precisamos delas, temos necessariamente de tomá-las. Não somos livres delas enquanto elementos necessários à nossa existência. Somos, no entanto, livres no interior da relação que estabelecemos com elas. É essa relação definida e estabelecida por nós. Somos nós que as selecionamos, transformamos e atribuímo-lhes lugares. E tudo isso o fazemos nos tempos que são os nossos tempos, submetendo assim também a sua temporalidade à nossa.

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É essa a nossa liberdade de afirmarmo-nos sobre as coisas. Somos livres para tanto. Podemos fazê-lo e fazê-lo só depende de nós. É já uma liberdade positiva: negação da independência das coisas e afirmação do nosso poder sobre elas. Não é mais a liberdade no vazio. É a liberdade na posse. É a liberdade no ter.

3. Interação e unidade Termina a coisa a nossa ação. Essa terminação é uma determinação das coisas. Determinam ao pôr termo. Põem esse termo como contrariedade. O termo que põem é nosso limite. Esse limite é constituído pelo que nos é exterior, pelo que nos é estranho — pela coisa. São as coisas essa exterioridade, essa estranheza. Exteriores à nossa ação, determinando-a pela contrariedade que é essa exterioridade, são as coisas determinações exteriores que determinam enquanto termo, que determinam como limite, que terminam contrariando, contrapondo-se como exterioridades. Negar podemos essa estranheza que é a coisa: aniquilá-la. Podemos fazê-lo simplesmente para suprimir a sua contrariedade, o limite que constituem. Podemos também fazê-lo consumindo-as. No caso da simples supressão, deixam de existir. Com o consumo nós as assimilamos, transformamos em nossa a sua substância. Com a supressão, negamos a determinação exterior que representavam. Com o consumo, quando as assimilamos, fornecem matérias determinadas. São tais ou quais matérias e não outras que esta ou aquela coisa nos fornece.

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Estão as coisas determinadas no que podem ou não nos oferecer. Dessa oferta, disso que podemos ter por essa oferta, depende a forma particular que damos à nossa existência. Se dispusermos desta particular substância seremos este ser determinado; se dispusermos daquela outra, aquele outro ser. Somos o que somos, na nossa íntima constituição — tal ou qual ser determinado —, conforme as substâncias que nos ofertam as coisas. Elas determinam, assim, a nossa interioridade. À sua determinação exterior — ao pôr termo como limite —, acresce-se, pois, esta interior — ao definir os termos de nossa constituição. Temos aqui uma relação afirmativa com elas. Ao aniquilá-las a relação era negativa. Em nosso uso, estão a nosso serviço. A nosso serviço, coexistem conosco. A coexistência é uma relação interativa. Ao cortar nos servimos de uma faca. Mas para que ela nos forneça seu serviço, por nosso lado, temos de fornecer-lhe a força motriz do movimento que realiza e aplicar essa mesma força de forma adequada às características particulares da faca específica que usamos. Um outro instrumento exigiria uma outra quantidade de energia, a ser aplicada de uma outra forma. Ao conduzi-lo em nosso uso, o instrumento determina nossa ação. Por sua própria conformação, ao fazermos uso dele, define a ação nossa particular que necessita; prescrevendo-lhe mesmo uma forma bem determinada. Instrumentos há que solicitam a ação de nossas mãos, outros também de nossos pés, etc. E não é só esta ou aquela parte de nosso corpo que atua. Todo ele deve dispor-se de maneira determinada confor-

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me lhe dita o instrumento: deve conformar-se com ele. Tal conformação, fazendo-se habitual, acaba por atribuir características peculiares ao nosso organismo. São estes e não aqueles músculos que se desenvolvem, são estas ou aquelas habilidades que se adquirem, etc. Convivemos com os objetos para que nos prestem um serviço. Este último define os instrumentos específicos que deverão realizá-lo. A definição dos instrumentos é conseqüência do serviço; a definição do serviço antecede a dos instrumentos. Entretanto, nem sempre os instrumentos existem em função exclusiva deste ou daquele serviço. Existem muitas vezes para além do uso particular para que foram feitos e, mesmo neste, vêm demonstrar potencialidades que os habilitam para outros. Têm os instrumentos uma existência própria. São um conjunto ordenado de qualidades que transcende em geral cada um dos usos particulares a que se prestam. Estando, esse feixe de potencialidades que são, disponível, a nós, apresenta-se um horizonte de possíveis realizações. Definem eles, por si mesmos, esse horizonte; têm, em si mesmos, essa definição. Podemos apreendê-la e fazê-la nossa. Os instrumentos presenteiam-nos, assim, com um universo de possíveis realizações. Tal universo de possibilidades pode despertar nosso desejo; pode indicar-nos ou prescrever-nos formas para a nossa atividade. A percepção de suas potencialidades reformula assim nossas próprias finalidades. A invenção e a utilização de um instrumento pode mesmo revolucionar todo nosso modo de vida.

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Para serem usadas as coisas exigem, pois, o nosso serviço e a nossa adequação às suas características. Conformam ainda, por sua simples existência e pelo uso que delas fazemos, o nosso querer. São múltiplas em nós as determinações dos objetos: exteriormente, como terminação de nossa ação, como limite; interiormente, ao definirem nossa constituição interna pelas características das substâncias que nos fornecem; e, ainda interiormente, ao reformularem nossas próprias finalidades. Não mais a simples oposição e negação da oposição representada pelas coisas, mas a posição simultânea nossa e delas. São os objetos o que são por nossa criação e cuidados e nós somos aquilo que as potencialidades de sua matéria e de sua forma nos permitem ser, e isto tal como — na maneira em que — eles exigem. Conformamo-nos com eles. Nós e eles nos formamos como aspectos de uma única e mesma realidade. Não são as coisas, portanto, uma simples exterioridade que observamos, desejamos e consumimos. Nós as temos como meios necessários à nossa existência e, como tais, elas nos determinam. Não as temos simplesmente; em parte, nós as somos. E se delas podemos distinguir-nos, é só porque podemos substituí-las em sua particularidade. Se somos por meio do traje que trajamos, podemos sê-lo com este traje particular ou também com aquele outro. Substituímos este por aquele. Nossa relação com uma coisa particular qualquer nunca é absolutamente necessária; mas é necessária nossa relação com os objetos em geral. Substituímos este alimento determinado por um outro ou esta habita-

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ção por aquela outra; no entanto, não podemos deixar de nos alimentar com algum alimento — este ou aquele — ou de habitar alguma habitação — esta ou então aquela. E o que somos, nós o somos pelo alimento particular que nos alimenta e pelo abrigo determinado que nos abriga. Nossa existência não é indiferente ao fato de sermos abrigados por este e não aquele abrigo, como também de sermos alimentados por este alimento em lugar daquele. Não somos simplesmente; somos sempre sob uma forma particular. A particularidade é um atributo essencial de nossa existência. E, a particularidade, a temos através das coisas. Somos, pois, necessariamente com elas. Constituímos unidade onde interagimos produzindo o que somos e o que são elas. Não mais a simples liberdade de ter: a liberdade de ser. A liberdade de definirmos o ser determinado que somos. É afirmativa essa liberdade — duplamente afirmativa: afirmamos o nosso ser e afirmamos o ser das coisas. Somos o que somos por vestir este traje e ele é o que é por ser o nosso traje.

4. Exterioridade pertinaz A coisa se faz objeto de nossa ação, subordina-se a ela. Com a relação de subordinação, define-se um sujeito e um objeto. O sujeito pratica a ação; o objeto padece a ação do sujeito. A ação é um atributo do sujeito; o objeto é seu predicado. O sujeito é ativo; o objeto, passivo. O sujeito está atuando; o objeto, na atividade do sujeito. O objeto

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está na atividade do sujeito subordinando-se a ela. Define-se a subordinação do objeto ao sujeito por participação: participa o objeto da atividade do sujeito. A atividade é do sujeito. Está em atividade para si, para a realização de seus fins. Estando o objeto na atividade do sujeito, lá está para a finalidade do sujeito. É o sujeito para si; o objeto não é para si; é para outro — para o sujeito. Existe o objeto para nossa finalidade, para a finalidade do sujeito. Existe para o sujeito estando junto dele. Só pode existir para o sujeito se com ele estiver. A existência para o outro só é possível na coexistência com ele. Não pode o objeto servir o sujeito sem que exista com ele no serviço que lhe presta. A existência para o sujeito é às vezes evanescente: aniquila o sujeito aquilo de que se serve. O alimento não mais existe depois do alimentar. A matéria consome-se. Mas há objetos que não se consomem de uma só vez, sobrevivendo portanto a uma série de atos de apropriação parcial. É, por exemplo, o caso da maioria dos instrumentos de que nos servimos. Aniquilam-se eles também, mas gradativamente, lentamente. Dizemos que se desgastam. Há objetos que nunca são totalmente aniquilados. Trata-se mesmo do caso da maioria deles. O nosso consumo deixa deles sempre um resíduo: aquilo que, ao esgotar-se a sua utilização, será descartado. Nesse resíduo revela-se algo que, na coisa consumida, não foi objeto de nossa apropriação, algo de que o sujeito não se apropriou. Esta parcela de impropriedade que contém o objeto em relação ao sujeito — isto que ao

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final do consumo resta enquanto material inapropriado e que, como tal, é descartado — é alguma coisa que o objeto tem propriamente como sua. A matéria residual ao consumo é separável do objeto pelos atos mesmos de nosso consumo. Pelo consumo separa-se do objeto a matéria descartável. Anteriormente ao consumo, isto que por ele separou-se estava em unidade com as demais partes do objeto. Aquilo que a nós se apresenta no deflagrar dos atos pelos quais nos apropriamos de um objeto qualquer é um todo. Reúne esse todo aquilo que será assimilado por nós e também aquilo que não será. A matéria assimilável na maçã envolve aquela que não é. Uma e outra se apresentam reunidas no todo que é a maçã. Assimilável é aquilo que convertemos em nossa substância própria. No processo alimentar da maçã é assimilável a polpa. No mesmo processo, não assimilamos o talo e as sementes. Não encontramos, no entanto, a polpa sem que traga consigo um talo e também as sementes: é esta unidade que é a maçã. E sendo esta unidade, este todo, só podemos tê-la enquanto tal. Se queremos a polpa, devemos ter o talo e as sementes. A polpa que desejamos traz consigo o talo e as sementes que não desejamos. Há, pois, nos objetos que consumimos uma ganga. Às vezes essa ganga está visível desde que tomamos o objeto em nossas mãos para consumi-lo. Imediatamente vemos nele aquilo que restará como resíduo. Às vezes essa ganga só se torna visível no final do processo. Tanto em um caso como outro trata-se de um tipo de resíduo que acaba-

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mos por efetivamente ver, ainda que só ao fim do consumo. É visível e palpável ao menos como resultado. Acabamos por ficar à frente de algo que descartamos e, ao descartá-lo, nós o tomamos com as mãos, nós o vemos. Aquilo que descartamos como inassimilável e por isso desprezível é algo que conhecemos. É esta ou aquela matéria, com uma específica qualificação, o que tomamos com as mãos para lançar fora, para lançar ao monturo dos resíduos. Na apreensão do que temos como ganga, entretanto, nosso conhecimento é parcial: ele não define, em geral, mais do que uma impropriedade. Todo o conjunto de informações que temos a respeito do que descartamos limita-se quase sempre ao juízo apropriado-inapropriado. E esse juízo de propriedade ou impropriedade, desde logo, é passível de alteração; quer porque venhamos a descobrir qualidades no que tínhamos como descartável que o faça a nossas vistas adequado às nossas necessidades, quer porque estas últimas alterem-se. Por uma razão ou por outra, podemos passar a valorizar o que antes desprezávamos. A variabilidade desse juízo, por si só, demonstra sua precariedade, fazendo-nos entender que passamos a ver o que não víamos, monstrando-nos a parcialidade do nosso conhecimento pela revelação do que ele não abarcava. Isto não acontece só com aquela matéria que resta não assimilada e visível ao final do consumo. Mesmo no que assimilamos há algo de residual ao nosso conhecimento. Em geral, não sabemos exatamente o que assimilamos, nem como o assimilamos. Temos a carne

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como alimento; nós assimilamos a carne. Mas o que é a carne e como a comemos? É verdade que temos condições de muito dizer a este respeito. Mas quem o faria simplesmente para alimentar-se? Normalmente, não nos detemos para conhecer mais profundamente as matérias que absorvemos e nem os processos através dos quais o fazemos. Também aqui nosso conhecimento limita-se ao juízo apropriado-inapropriado. Também aqui a variabilidade desse juízo demonstra a sua parcialidade, quando não sua falsidade. Ao ter as coisas como objetos, nós negamos sua condição de exterioridade absoluta; nós as conhecemos, nós as transformamos e assimilamos. Mas não é que sempre o façamos de modo a tê-las totalmente apropriadas ou internalizadas em nossos próprios processos. Em geral, guardam elas algo que permanece exterior, algo que persiste como uma estranheza. Revela-se essa estranheza quando acontece algo que não desejamos. A madeira apodrece, o ferro enferruja, o fruto deteriora-se; o alimento provoca distúrbios no organismo; a vegetação cresce tomando espaço que não devia. Mecanismos produzem efeitos inesperados; o instrumento machuca o corpo; coisas aquecem ou esfriam contrariando nossas expectativas. De muitas maneiras pode nos objetos aparecer um aspecto não desejado. Os objetos, por si mesmos ou por conseqüência de seu uso, revelam algo que nos havia escapado, algo que nos passara despercebido: um resíduo onde eles permanecem independentes — exteriores ao nosso conhecimento, inapropriados pelo nosso querer.

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Algo nos objetos acaba por alhear-se da relação que estabelecemos com eles; escapa às nossas determinações. É algo de exterior, exterior às nossas determinações. Mas ao mesmo tempo, é essa exterioridade interior aos objetos com os quais nos relacionamos. É algo que têm como seu. É uma parte de si, um elemento de sua constituição. Interior aos objetos e estranho para nós, o que chamamos de resíduo, é assim uma íntima estranheza — algo de estranho com que intimamente convivemos ao convivermos com os objetos. É algo estranho próprio à intimidade das coisas com que coexistimos.

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II. Domínio 1. Exclusão O que eu sou não é o que tu és; nem somos o que ele, algum outro que não nós mesmos, é. Somos seres particularizados, individuados. Assim nos definindo, excluímo-nos mutuamente. Uma pessoa é diferente da outra; exclui a outra. Outra pessoa significa uma outra vontade, uma outra vontade que também quer sua liberdade e a quer afirmando-se sobre as coisas. Quando excluímos os outros, é essa outra vontade e sua liberdade que excluímos. Negamos a existência dessa outra vontade. Negamos sua existência como coexistência conosco. Não há simplesmente um nós. Há um eu e um tu; havendo um terceiro, um ele. Não há meramente um nosso; mas um meu, um teu, um dele. São as minhas coisas, o meu; o teu são as tuas; as coisas dele, as de um terceiro. Em relação às nossas coisas, somos senhores absolutos. Nós as submetemos à monarquia de nossas vontades. Sobre elas — as minhas, as tuas, ou as coisas dele — nenhuma outra vontade se afirma, senão aquela mesma minha, aquela tua mesma ou aquela dele mesmo: a dos outros que não a de cada um de nós mesmos, é excluída. No que é meu ou no que é teu ou dele, a resistência das coisas está anulada, estando elas subordinadas às nossas particulares determinações, abrigadas e obrigadas sob nossa vontade, subjugadas como partes do que somos. São nossa propriedade — coisas que nos são próprias.

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Excluem-se as particularidades que somos ao excluírem-se as monarquias materiais de nossas vontades. Temos o nosso próprio mundo como monarquia de um único sujeito, como existência de uma única vontade — e não mais do que uma única vontade. Cada um desses mundos dizemos ser nossos espaços. Digo o meu e tu dizes o teu espaço. Excluímo-nos pela exclusão de nossos espaços. Em relação à totalidade das coisas, cada um desses espaços é tomado como a nossa parte — o nosso lote: uma parcela do mundo domesticada sob a autoridade do nosso querer particular. Assim, não é o mundo a simples totalidade indiscriminada das coisas. É a somatória das minhas coisas — aquilo que é discriminado como meu — com as tuas coisas — aquilo que é discriminado como teu —, somando-se ainda o que é discriminado como sendo de um terceiro. O mundo, o mundo de todos nós, é uma somatória de propriedades, de espaços privados. Fragmentado é o mundo. Não é uma única e simples totalização. É uma totalidade, mas só como agregado de partes autônomas ou autárquicas; cada uma delas existindo por uma e para uma única vontade particular. Cada uma é império de uma única vontade — império pessoal onde alguém, com exclusão de todos os demais, faz de si o que é por meio daquilo que é seu.

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2. Conquista Um outro sujeito rompe as barreiras defensivas de nosso espaço e nele vem postular direitos que tínhamos exclusivamente como nossos: uma invasão. Alguém vê em nossas coisas aquilo que quer como seu, ou então, tendo-nos como quem poderá lançar-se sobre seu próprio espaço, pretende debilitar-nos através da destruição de nossas condições de existência. Pensa, por exemplo, em tomar nosso alimento, quer porque dele precise quer para assim nos privar da alimentação. Deve, para isso, romper nossas defesas exteriores e as técnicas a que poderá recorrer são capítulo que não desenvolveremos. Rompidas nossas defesas exteriores, o invasor está em nosso território. Com sua presença altera-se o quadro de exclusividade. Não mais a monarquia de uma única vontade. São duas vontades que agora têm para si um mesmo espaço. Há uma que antes era sua titular exclusiva, e uma outra, a invasora. Pode o conflito resolver-se por uma simples expulsão, por uma mera exclusão. Um dos sujeitos exclui o outro do espaço disputado para estabelecer em sua plenitude o domínio de sua própria vontade. A monarquia de uma só pessoa volta a afirmar-se sem que o outro precise ser objeto de qualquer consideração mais cuidadosa ou respeitosa. A vontade, que ele — o outro — era, é sumariamente suprimida pela negação de sua presença. Uma e uma só vontade volta a reinar com absoluta exclusivida-

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de. O espaço que fora abalado, desestabilizado, reflui para a situação primitiva com a expulsão, ou das forças inimigas que nele se haviam implantado ou do antigo titular de sua posse. Conquista-se ou reconquista-se o território. Nem sempre, no entanto, o desfecho é tão simples. O agente estranho, não podendo assenhorar-se de todo o território e, ao mesmo tempo, não sendo obrigado a retirar-se, pode reivindicar para si só uma parcela do que se disputa; ou ainda, aquele que teve seu espaço invadido, face à potência das forças invasoras e alguma força sua também, pode contentar-se só com uma parte do que antes possuía. Divide-se o espaço disputado. De um, fazem-se dois territórios, ou mais, conforme quantos sejam e o que decidam os agentes beligerantes. Tanto com a expulsão como com a divisão nada se constitui que venha a ser diferente de uma autoridade exclusiva. Com a simples expulsão, ainda que haja uma mudança de senhorio, este permanece sendo único. Com a divisão, o que ocorre é simplesmente a multiplicação de uma mesma situação, cada uma das novas realidades repetindo a situação primeira. Mas pode o conflito resolver-se sem que ocorra exclusão pela expulsão ou separação, encontrando os contendores formas pelas quais possam conviver. Uma forma de convivência dá-se pela subordinação de um ao outro. Subordinar um outro a mim mesmo é colocá-lo a serviço de meus próprios fins. Mas como posso colocar uma outra vontade a serviço da minha se essa outra vontade, como a minha, não se coloca outro fim senão o seu próprio?

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Uma primeira opção é dada pela coerção, ou seja, pelo uso da força — a dos músculos ou a da inteligência. Pela força ou pela ameaça de seu uso, obrigo o outro a fazer aquilo que eu quero que ele faça. Faço com que se coloque a meu serviço, ameaçando-o de danos caso ele se recuse a fazê-lo. Tudo passa a depender do meu poder de causar-lhe males, assim como de sua capacidade de evitar que eu o faça ou, ainda, de sua condição de suportá-los. Além da coerção, posso usar da astúcia, fazendo com que acredite esteja realizando seus fins quando, na verdade, são os meus que realiza. Posso ainda de outras maneiras fazer com que lhe seja necessária a tarefa de minha utilidade. Posso levá-lo a isso por sua necessidade econômica, pelo que seus valores lhe ditem como obrigatório, pelo receio de sanções nesta vida ou mesmo em outra. Subjugado, a meu serviço, está com sua vontade negada na determinação livre de seus fins. Ao estar em atividade, passa a estar nela para mim, não para si. Mas mesmo podendo coagi-lo ou envolvê-lo nos ardis de minha inteligência colocando-o a meu serviço, preciso levar em consideração que não serei eu que, diretamente, irei controlar e aplicar suas próprias faculdades ou habilidades. Persiste no outro subjugado o poder de determinação do funcionamento de seus braços e pernas. O uso de suas habilidades é seu monopólio exclusivo. Movimenta-se o escravo, locomove-se: é atividade. E quem tem controle sobre essa atividade — quem faz com que sua perna faça um determinado movimento e que seu braço mova-se desta ou daquela maneira — é o próprio

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escravo. Ninguém poderá determinar seus movimentos senão ele mesmo. Ainda que subordinado, o outro não deixa de se fazer valer como vontade efetiva no controle daquilo que lhe é mais próprio: seus nervos e músculos, suas demais faculdades. Nisto se encontra a nossa principal dificuldade; pois, sendo assim, para poder colocar suas potencialidades a nosso serviço teremos de contar com sua participação. Ele deverá colocar aquilo que é seu a nosso favor; isto por meio de um poder que é só seu. Precisa haver uma espécie de colaboração por parte daqueles que subordinamos. Seu poder de controle direto de si mesmos é absoluto e inalienável. Utilizar as forças e habilidades de um outro não é servir-se de seus órgãos e membros diretamente. Não tomamos diretamente seus músculos e fazemos uso deles. O que fazemos, ao subordiná-lo, é fazer com que ele mesmo coloque a sua força e as suas potencialidades a nosso serviço. Agimos, portanto, diretamente sobre esse seu poder e só indiretamente sobre sua atividade. Podemos deixar ao outro alguma margem de satisfação na afirmação de seus próprios fins. Assim talvez possamos contar com sua boa-vontade. Poderá realizar seus fins; mas só na condição de que realizá-los seja também a realização dos nossos próprios fins. Os seus fins serão realizados só se, ao realizá-los, nós, por nossa parte, estivermos realizando os nossos. Alimenta-se o escravo, deseja fazê-lo, precisa fazê-lo. Assim, podemos obrigá-lo a servir-nos se tivermos controle sobre sua alimentação ou o que quer que seja ele tenha como necessário à sua so-

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brevivência, física ou intelectual, mesmo emocional. Nesse controle, só lhe ofereceremos o objeto de sua demanda em troca de seu serviço para nossa finalidade. Agimos sobre o poder de autodeterminação de uma pessoa quando lhe fazemos necessária a tarefa de nossa utilidade, quando fazemos com que fique obrigada a ela. Com a subordinação de uma vontade à outra, passa uma a ser meio para a outra. Uma e outra podem afirmar-se, mas só uma o faz incondicionalmente; a afirmação da outra passa a ser função da satisfação da primeira.

3. A participação dos objetos Ao invadir nosso território, o invasor enfrenta-nos; mas não só. Além de nossa presença, depara-se com aquilo que é nosso, os objetos de que se constitui o território que ele invade. Caso permaneçamos por lá, terá de confrontar-se com as coisas que conosco estejam contribuindo em nossa resistência. Acaso tenhamos partido, terá, mesmo assim, de enfrentar o que tendo sido nosso foi deixado para trás. Tais coisas, por serem ou por terem sido nossas — quer estejamos presentes ou não — far-lhe-ão frente. Com nossa presença ou mesmo sem ela, estarão lá tal qual foram configuradas e dispostas por nós. Por isso, no que diz respeito a seu trato, o invasor terá uma dupla dificuldade. Deverá enfrentá-las como às coisas em geral. Sua resistência natural, sua dureza, etc. — as qualidades de que se constituem —, podendo ser-lhe úteis, não o serão sem que sejam também, em menor

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ou menor medida, obstáculos a serem vencidos. E, ao que, acrescentar-se-á uma outra dificuldade. Não são coisas quaisquer que ele deverá subjugar e tomar para si, mas coisas até agora exclusivamente nossas; não quaisquer coisas — simplesmente — mas isto ou aquilo até agora nosso objeto. Estavam as coisas submetidas à nossa vontade antes de sua chegada e mesmo que ele venha a se afirmar sobre nós pessoalmente, simplesmente por isso, aquilo que era nosso antes dele, não deixará de sê-lo tão facilmente. Em relação ao que até então foi nosso, a princípio, levamos nós a vantagem; pois, no que tínhamos como nosso em anterioridade à sua presença, inscrevemos as nossas próprias determinações. Ainda que nos vença, subjugue ou expulse, por nós — junto a nós, ou mesmo em nossa ausência — agem as coisas. Nelas como que se encontra escondida a nossa pessoa. Quem quer que queira apossar-se delas terá de penetrá-las, desfigurá-las, talvez até mesmo destruí-las; tudo dependendo do quanto nelas estejamos de fato presentes, de quanto com elas formemos corpo. Se elas forem propriamente nossas, se efetivamente fizerem parte de nós, não será por nossa mera retirada que deixarão de sê-lo e quem quer que queira dominar nosso território terá, necessariamente, de destruí-las para afirmar-se. O atributo que tem o objeto de ser nosso não lhe é exterior. Tem o objeto inscrita em sua própria constituição a marca da nossa posse. A nossa mesa, por exemplo, não é uma mesa qualquer; é uma mesa de altura conforme

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nossa estatura, de comprimento e largura adequados a nossos usos, etc. Antes da presença do invasor, estavam lá os objetos para nossa satisfação e não deviam prestar quaisquer serviços, mas só aqueles de nosso interesse e, para tanto, estavam dotados de qualidades determinadas, inscritas em sua própria constituição. Quem penetre nosso território poderá ter necessidades que sejam iguais às nossas e, em relação a essas necessidades, deverá encontrar o que lhe seja necessário, já que nós, antes dele, lá as satisfazíamos. No que não for assim, se precisar atender outras necessidades que não aquelas iguais às nossas — se as tiver diferenciadamente, mesmo que só parcialmente —, terá ele que dar conta de vir a ter seus próprios objetos. Fará isso adaptando os nossos a seu uso ou fazendo deles simplesmente meios para a criação dos seus. Terá, pois, de trabalhar, submeter as coisas à sua vontade; fazê-las adequadas ao seu serviço. Face a essas dificuldades, o intruso poderá talvez usar de um recurso. No território que quer como seu, além de nós mesmos — que podemos ainda resistir — e das nossas coisas — em nossa companhia ou sem ela —, haverá ainda uma porção não ocupada: um vazio, aquela ou aquelas porções de espaço onde nem nós nem nossas coisas estaremos presentes. Para ele talvez seja mais fácil começar por aí — pelo vazio —, evitando a nós mesmos e às nossas coisas. Se vier a ocupá-lo todo, sitiar-nos-á dentro de nosso próprio território. Isto, no entanto, ainda que lhe sirva, não lhe basta. Como objetivo que justifica os riscos de sua empresa ou como simples recurso para sua

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própria sobrevivência, deverá efetivamente nos vencer e lançar mão aos nossos objetos. Acabará por ter de defrontar-se conosco e com eles. Do ponto de vista das coisas, a situação dada pela presença simultânea de nossa vontade e de uma outra também, talvez possa ser considerada dramática. Divididas ficam entre duas vontades, cada uma delas tentando configurá-las a seu modo. Ora são dispostas desta forma, ora daquela. São solicitadas a este serviço e também àquele outro que se contrapõe a este. Não têm mais um único senhor que, se lhes roubava a liberdade, por outro lado fornecia-lhes a participação na serenidade da ordem que criara. Se de um lado estavam obrigadas, de outro, estavam também abrigadas em uma certa ordem. Quando divididas pelo conflito entre senhores que reivindicam sua posse, não só se encontram sem liberdade, mas também sem a possibilidade de serenarem sob o arbítrio de qualquer deles. O espaço perde sua serenidade. Desestabiliza-se a ordem material. Na disputa pelos objetos, o invasor poderá fazer-se vitorioso; e isto até sem necessitar confrontar-se diretamente conosco. Poderá vencer-nos por meio exclusivo de sua relação com os objetos; roubar-nos a posse deles e, assim, privar-nos dos meios necessários à nossa conservação. Pode mesmo neles encontrar aliados. Se, por um lado, tem de enfrentar a resistência de nossa presença neles inscrita, por outro, poderá também lançar mão do resíduo não atingindo por nossas determinações; procurar tomar para si as coisas a partir daquilo que nelas não ha-

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víamos feito propriamente nosso. O alimento já preparado segundo nosso gosto exclusivo em nada lhe servirá. Ao contrário, aquele que se encontra em forma bruta prestar-se-á ao preparo adequado a ele que o usurpa. Vencendo-nos na tomada de posse de nossos objetos, invertem-se os termos da relação. A vontade antes titular, a nossa, perde a posse que tinha das coisas. Restam-lhe, se ainda permanecer presente, tão só os vazios onde nada há que lhe possa servir em sua necessidade de instrumentos e matérias com que se realizar. Como que se abrem as portas para que abandonemos nosso antigo território. A este apresenta-se a perspectiva de serenar sob o império de um outro querer.

III. Condomínio Convivendo com um outro, posso tê-lo também como fim. Não preciso vê-lo como necessariamente e exclusivamente subordinado a meus fins. Posso estar com ele vendo nele também um fim em si mesmo. Seus fins podem ser meus fins como fins dele mesmo e não meus, estando entre meus fins a realização dos seus. Se quero conviver com ele, viver com ele em um mesmo lugar — cuidando dele como um fim em si mesmo — devo preocupar-me com que tal convivência seja possível em termos de as coisas estarem arranjadas de modo tal que possam ser úteis a mim e a ele também. Algumas coisas serão minhas e também dele; outras, sendo minhas, não serão dele ou, sendo dele, não serão minhas.

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Tanto umas como outras deverão estar a nosso serviço, ao meu e ao dele também. Tê-las em comum integralmente é impossível. Eu e ele nunca poderemos usar uma mesma coisa ao mesmo tempo. Mesmo quando dizemos fazer uso simultâneo e solidário de algo, quando nos vemos junto com alguém mais dispondo de alguma coisa, tal coisa, sendo una, é tomada por nós como sendo um todo divisível, um e outro se apropriando de parte dela — só de parte, não do todo. Quando nos sentamos junto a uma mesma mesa, eu tomo para mim um lugar, alguém outro, um outro. Não nos sentamos em um mesmo lugar; não utilizamos uma mesma porção da mesa. Desfrutamos de um mesmo espaço, de um mesmo lugar, de um mesmo objeto; mas nesses desfrutes apropriamo-nos de frações determinadas e exclusivas do espaço ou dos objetos. Estar junto a alguém é sempre só uma vizinhança. O alimento comum posto sobre a mesa, para que se preste à sua função de efetivamente alimentar, terá de, por fim, ser tomado como objeto de um processo alimentar individual e excludente. Não há a possibilidade de uma simples comunidade de bens. Nesse sentido, algumas coisas acabam necessariamente por ser minhas; outras, acabam por ser tuas. Mas o que venha a ser meu pode não se esgotar com meu uso. Tendo eu feito uso de algo, poderá tal coisa persistir em sua existência e vir a ser objeto de teu uso. O que está sendo meu agora será teu logo mais ou vice-versa. Posso saber que assim acontecerá ou que poderá assim aconte-

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cer e, para isso — preocupado que estou com a realização de teus interesses, interessado em teu próprio bem —, posso, assim pensando, cuidar para que no meu uso das coisas não se esgotem nelas as potencialidades para o teu uso. Não consumo o alimento todo; não danifico um instrumento ou faço com que fique inadequado a teu serviço. Deixo que as coisas persistam nas qualidades que sejam próprias à afirmação da tua pessoa, não as exaurindo em meu consumo ou atribuindo-lhes características que façam delas meus objetos exclusivos. Respeito nelas a tua pessoa. Quando me envolvo com algo que, por outro lado ou em outro aspecto, esteja ao mesmo tempo sendo por um outro utilizado, cuido para que o meu movimento e o movimento da própria coisa — por mim podendo ser determinado ou influenciado — não venham a prejudicar o do outro, harmonizando-se com ele. Assim fazem mutuamente os remadores dando ritmo a seus movimentos e, em geral, todos aqueles que fazem uso ao mesmo tempo de partes ou aspectos inter-relacionados de um instrumento ou de uma máquina. Em um espaço que seja meu e também teu, as coisas, sendo nossas, existem como objetos para nosso serviço; mas lá assim estando, não deixam de, quando não imediatamente utilizadas, apresentar-se como possíveis obstáculos a nossas ações. Estão lá e não é por não estarmos fazendo uso imediato delas que deixem de existir. Persistem em sua presença mesmo quando não utilizadas. É preciso que nessa sua presença não se constituam em obstáculo. E se junto de outro que para mim seja um fim em si mesmo,

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estou, é preciso que uma disposição de coisas que seja a mim útil na realização de meus fins não lhe seja obstáculo para a realização dos seus. Não posso largar as coisas em qualquer lugar sem que me preocupe com não poderem estar prejudicando seus movimentos e seu modo de viver. Tenho de respeitá-lo nas coisas, não só cuidando para que elas possam depois de meu uso permanecer úteis ao seu ou para que o meu relacionamento com elas não impeça o seu, mas também zelando para que não se constituam em obstáculos à sua liberdade de desfrutar de seus próprios movimentos. Uma cuidadosa disposição dos objetos pode propiciar tal liberdade; uma descuidada, prejudicar. Em um espaço que seja comum, que seja meu e também de alguém mais, posso ter coisas minhas — só minhas — e o outro coisas suas — só suas — como também podemos ter o que seja meu e também dele ou dele e também meu. As minhas coisas, para serem propriamente minhas precisam estar a meu dispor — preciso tê-las à mão — e da mesma maneira com o outro. O que seja dele e também meu, igualmente, precisa estar ao nosso comum dispor. Precisamos, eu e ele, poder vir a estar junto do que seja nosso para dele fazer uso efetivo; até mesmo para simplesmente mantê-lo e preservá-lo. Não há o que possa ser propriamente nosso se o acesso a ele não nos for possível. Ter algo é necessariamente também ter acesso a ele. Se eu e outro tivermos coisas que sejam nossas, para que efetivamente as tenhamos, precisamos, eu e ele, ter por parte do outro o cuidado de não nos obstruir o acesso

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a elas. Preciso deixar os caminhos do outro desimpedidos; assim como ele os meus. Nossa liberdade de ir e vir até o que seja nosso precisa estar assegurada. Assim como o meu conviva por si mesmo poderá fazer de si este ou aquele sujeito determinado conforme aquilo de que disponha, posso eu também cuidar dele fazendo com que possa fazer uso de certas coisas e não outras, de uma determinada maneira e não outra. Tendo-o como fim em si mesmo, posso acreditar que, na disposição que eu venha a dar aos objetos, esteja fazendo-lhe o bem e que nada melhor do que isso poderia eu lhe fazer. Mas tenho de, a princípio, perguntar-me se lhe seria mesmo um bem que eu — ainda que só com a preocupação de fazer-lhe bem — pudesse, por mim mesmo e sem ele, definir para ele qual seria o bem que seria o seu. Talvez ele possa entender que o seu maior bem seja poder ele mesmo, por si mesmo, cuidar do que para si venha a ser o bem. Talvez entenda não lhe seja propriamente um bem o que quer que seja o tenha como quem haja abdicado de um bem que seria seu bem maior: o de poder por si mesmo definir o que lhe seja o bem e, assim, determinar em liberdade o que queira fazer de si; mesmo em relação a mim, com quem convive e que, possa ele mesmo entender, só lhe deseje o bem. Se o outro com quem convivo entender que lhe seja um bem poder definir como queira o que seria seu próprio bem, é preciso que, ao cuidar das coisas e da disposição espacial onde convivemos, eu zele por preservar-lhe esse específico bem — a sua liberdade. Para isso, não procurar nos

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objetos imprimir a minha pessoa, distinta da dele, e não procurar também neles imprimir mesmo aquilo que eu, por minha parte, possa entender viesse a ser-lhe um bem. A liberdade sendo-lhe um bem, não procurar determiná-lo através das coisas — como até sei que posso: deixar que ele mesmo, por si mesmo, defina para si o que lhe faça bem. Para convivermos com alguém mais — tendo-o como fim em si mesmo — é preciso, pois, respeitá-lo nas coisas em seu poder de autodeterminação de si mesmo; respeitar as coisas enquanto algo que lhe possa ser próprio — parte de si mesmo — e respeitá-lo ainda em sua liberdade de ir e vir até o que possa ser seu.

Observação final As considerações precedentes são meramente ensaísticas. Podem vir a ser verdadeiras, pois concebíveis, sem que, simplesmente por serem concebíveis, sejam verdadeiras. Talvez não seja desnecessário relembrar: ”Não basta aceitar a existência de determinado objeto e considerar as conseqüências de semelhante suposição. Longe disso; precisarás, ainda, admitir a não-existência desse mesmo objeto, se te importa exercitar-te como convém. — Aonde queres chegar? ... — Caso te declares de acordo ..., exemplifiquemos com aquela hipótese de Zenão: se existir o múltiplo, quais serão as conseqüências tanto para ele, em relação com ele mesmo e com o Uno, como para a unidade, em relação com ela mesma e

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com o múltiplo? E no caso de não haver múltiplo, voltar a considerar as conseqüências para a unidade e para o múltiplo, assim em suas relações recíprocas como nas de cada um consigo mesmo. Desenvolve idêntico esforço partindo da hipótese de que a semelhança existe ou não existe, sobre as conseqüências desses pressupostos, tanto para os termos admitidos como para as outras coisas, nelas mesmas e em suas relações recíprocas. Igual raciocínio valerá para o dissemelhante, para o movimento e o repouso, para o nascimento e a destruição, o ser e o não-ser em si mesmos. Numa palavra: em tudo o que supuseres como existente ou não existente ou como determinado de qualquer modo, será preciso examinar as conseqüências resultantes, primeiro, para o próprio objeto, e depois, relativamente aos outros: começarás por um, à tua escolha; depois vários, e por último todos. A mesma coisa farás com esses outros, tanto em suas relações recíprocas como com o objeto admitido de cada vez por ti como existente ou não existente, caso queiras exercitar-te com perfeição e, assim, discernir a verdade em sua plenitude. — É imensa a tarefa ... que me impões...“ — (Parmênides em PLATÃO, Parmênides, 135e-136c)

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Posfácio Cada qual o seu lugar Estevão Sabatier “Quando minguam os leitores, decreta-se a degradação e o fim dos textos; estes são condenados ao desaparecimento pela ação de fungos e vermes; mais rapidamente, às vezes, pelo fogo ou pela fúria humana”. Porém, quando os leitores se mantém ávidos e são os livros que desaparecem, nasce um vazio que nada preenche: remonta momentos de censura e o que se degrada lentamente são as idéias — que ainda vagueiam cambaleando por sebos, mesas de bar, alguns xerox e outros momentos soltos de reflexão. Até então esse conjunto de três livros de Jonas Malaco estava esgotado e é com grande prazer que por iniciativa do GFAU — Grêmio dos Estudantes da Faculdade de Arquitetura da USP — decidimos reeditá-lo na intenção de manter vivo o seu legado. Após ter se aposentado em 2013, na iminência da perda de um discurso tão vasto, entendemos o quanto é importante tentarmos resgatar um pouco de todo seu trabalho, onde havia um discurso continuamente dialético,

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refletindo a cidade em cada ponto, ressignificando cada conceito à luz da atualidade. Na graduação da FAU, o Professor Jonas Tadeu Silva Malaco lecionou duas disciplinas optativas. A primeira “Elementos para uma teoria do urbanismo: A Tratadística da Cidade “[AUH 0227] que parte da leitura da República de Platão como forma de reavaliar as obras denominadas “clássicas” da arquitetura e do urbanismo, dando ênfase para as concepções éticas e estéticas. Já a segunda “A Forma Plástica Urbana” [AUH 0235] estuda como os meios humanos de habitar geram forma urbana — como causa e consequência — tanto na micro escala da relação entre indivíduos até a macro escala das relações entre sociedades e estados. Além destas, também lecionou a obrigatória dada ao segundo ano da FAU: “Estudos de Urbanização I“ [AUH 0236] que busca desvelar os diferentes processos de urbanização no período da antiguidade até a idade média. Nessa ementa, apesar de compartilhar a disciplina com outros professores, sua abordagem era diferente. Sua turma era separada e ele não percorria todo esse período; se concentrava não só na antiguidade grega, mas unicamente na Atenas do século V a.C. Esse reducionismo era justificado. Na outra turma, não sem méritos, para cumprir o cronograma as aulas passavam velozmente pela história do urbanismo usando aulas expositivas, documentários, vídeos e seminários em grupo. Após o curso, restava apenas uma imagem borrada da velocidade com que milhares de anos de história da cidade passaram diante de nossos olhos em apenas um semestre.

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Enquanto isso, na aula “do Malaco” a construção era diferente. Partindo de um discurso sobre a filosofia e a política, criava dialeticamente na cabeça de cada estudante uma forma ideal de arquitetura e urbanismo, reconstruindo pelo discurso minucioso os edifícios, os templos e o desenho urbano voltados para cidadãos livres na vida ativa da polis ateniense. Nesse processo, reconstruía também um ideal universal e atemporal de arquitetura que nos faz imediatamente transpor ao nosso modo atual de viver e perceber como muitas dessas questões ainda não foram solucionadas. Afinal: como podem entrar em acordo cidadãos livres? Essa questão passa longe de ser apenas ateniense. Pensar a política como possibilidade de vida em sociedade, política como mediação para resolução de conflitos, política como assuntos da pólis, como luta de poder, como laço que nos une; e que, no seu desenrolar, gera arquitetura e urbanismo. Ao invés de se ater em estilos e momentos pontuais da história, sua aula aborda as questões universais do viver em comunidade. O recorte de Atenas se justifica por ser o berço da democracia, mas sua retórica fala de todas as épocas, fala do ser humano ativo, de sua vida pública e privada. O conteúdo mais acadêmico de suas aulas está contida nestes três livros. Porém, apesar das perguntas retóricas inseridas dentro do texto reapresentarem muitos de seus questionamentos, sua imanente capacidade em sala de aula, de revelar a atualidade das indagações gregas acerca da pólis trazendo exemplos diretos da nossa vida

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cotidiana, só restarão em nossas memórias, infelizmente sempre fragmentadas e incompletas. Uma dessas minhas memórias pessoais é de um momento em que ele versava acerca da etimologia das palavras em grego. Como a grande maioria dos termos da vida política e da vida pública é de origem grega, dizia que deveríamos aprender grego nas escolas desde pequenos para melhor compreender esses conceitos, que devem ser parte ativa de nossas vidas. E dava exemplos: Democracia = [ δῆμος (demos) ou “povo” ] + [ κράτος (kratos) ou “poder” ]; por sua vez, Aristocracia = [ άριστος (aristoi), os melhores, em sentido social, superlativo de agathoi, “os bons” ] + [ κράτος (kratos) poder, estado ]. Era bastante comum ir a fundo em cada palavra e dera ainda outros exemplos dos quais não me recordo, mas dessa aula lembro que ele, em seguida, aprofundava o sentido de κράτος (kratos) dizendo que sua origem primitiva remetia à “bengala” ou “cetro” — e vale ressaltar que a bengala sempre foi sua companheira — porém a utilidade ateniense para a bengala remetia às primeiras assembleias de Atenas em que era preciso regular a confusão de vários cidadãos falando juntos. É preciso dar ordem às falas: e assim foi criado o kratos, bastão que permitia ao seu portador ser também o portador da palavra, um instrumento de ordem. Durante essa aula, enquanto explicava, a calmaria de seus gestos se revelavam no modo como ele lentamente manuseava sua bengala. Nesse momento — quando a bengala já figurava como um símbolo e não mais um

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mero ponto de apoio — se voltava para o primeiro aluno da fileira e oferecia sua bengala dizendo: — Quer falar? Este, sem saber se tinha algo a acrescentar, mas estendendo vagarosamente o braço foi de encontro à bengala imaginando alcançá-la. O professor, num movimento brusco, rapidamente retirou a bengala impedindo o seu alcance e gritou: — Não vai falar! Todos se assustaram. Quem dormia agora estava acordado. O culposo garoto, por sua vez, nada entendia. De repente a abstração distante dos temas escolares se tornava presente, tanto na bengala como na emoção que ela sussita. O assunto da aula era o poder. As pessoas irão lutar pelo poder — sobretudo quando ele reina em um objeto. Não podemos ser ingênuos: ninguém entrega o poder por pura gentileza. Sempre repleta de teatralidade a aula mexia com a emoção, o aprendizado no seu método ia nas profundezas dos sentimentos. Hoje, os que passaram por ele podem até não lembrar fielmente de tudo o que foi dito, mas sabem exatamente como se sentiam. Percorrendo calorosos picos de retórica e mansos vales de histórias, as parábolas criteriosamente se desenham ensinando teoria política e, de repente, descobrimos o quanto isso é valioso para entender arquitetura e urbanismo. Seu comportamento espanta os tímidos, enerva os extrovertidos, questiona tudo e todos, revela jogos de poder em todas as escalas, penetra fundo nas paredes da casa e voa longe nos horizontes decisivos da cidade. Com suas mansas e duras palavras, lentamente reorganiza o espaço percorrendo cada canto, cada objeto em sua essên-

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cia e singeleza, cada ferramenta e cada integrante da vida na pólis. Cada qual merece seu espaço, cada qual merece sua importância, seja na casa, na cidade ou na política. Completava rigorosamente cada assunto até se dar por satisfeito, não se importando em estender a aula das 8h da manhã as 15h da tarde, sempre acompanhado de discípulos interessados. Sobretudo no atual momento político suas palavras fazem falta. Frente à uma vida urbana cada vez mais conflituosa, é evidente o quanto seu trabalho se mantém atual e universal e merece ser continuamente lido. Em meio à década dos condomínios onde o espaço público se limita à internet, como é reveladora a contradição que ele apresenta na idéia de espaço público que “para a realização de sua função, deve estar sempre livre de toda ocupação e, ao mesmo tempo, não pode ser utilizado senão sendo ocupado”. Ter consciência dessa contradição revela várias falsas questões, repetidamente proclamadas em meio à confusão. Reler seu trabalho hoje é um exercício urgente em busca das verdadeiras questões da vida urbana. É preciso resgatar a dialética e o tempo de reflexão. A FAU não perdeu apenas um professor, perdeu aulas de filosofia voltada à arquitetura, perdeu aulas de filosofia política, perdeu o conceito de que política gera espaço e perdeu também um verdadeiro mestre. Nos últimos anos, falar de política na FAU — e na cidade — tem sido um grande tabu. Sentimos claramente um desconforto quando esses assuntos renascem, já sabemos o que não-deve-ser-dito e — receosos — já aprendemos a não dizer.

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Os motivos desse medo se revelam tão escusos quanto os comentários que acompanham seus míseros momentos de renascimento. Infelizmente o ensinamento de que política gera arquitetura parece estar fadado a ficar soterrado até que novamente se tenha coragem de falar com iguais, de pensar para iguais e projetar para iguais. Até lá, seguimos estudando.

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Livro composto em: Palatino Linotype 11/ 16pt ITC Officina Sans Std 12/ 16pt Impresso na grรกfica do LPG FAUUSP Tiragem 500 exemplares GFAU 2015

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