TFG — As raízes da casa e o desejo de sair

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FAUUSP Trabalho final de graduação interdisciplinar Estevão Sabatier Orientação Jorge Bassani Luis Antônio Jorge


Agradecimentos

É impossível não agradecer a todos os alunos e professores da FAUUSP, que criaram um ambiente tão potente e rico para minha formação, mas evidentemente gostaria de agradecer à alguns em especial. Alexandre Delijaicov, por manter nossa expectativa sempre tão alta e trazer parâmetros não usuais para a arquitetura, como a psicologia do espaço, que de certa maneira foi a busca desse trabalho. Anália Amorim, por desde o primeiro ano me ensinar a defender minhas ideias e não desistir delas tão facilmente. Fábio Mariz, pelos conselhos e pelo vasto repertório que está sempre pronto a compartilhar. Ângela Rocha, por sua incrível capacidade de revelar pontos fracos e elevar nossos pontos de vista. Jonas Malaco, por revelar o quanto o espaço é reflexo das relações sociais, um discurso que é tão importante e passa tão despercebido. Christian Dunker e Maria Rita Kehl, pelo apoio teórico no ramo da psicologia. Guilherme Wisnik pelo apoio, pelas conversas e pela bibliografia certeira. Luis Antônio Jorge, por me abrir os olhos para o sentido poético da linguagem. Jorge Bassani, por sua leitura sempre atenta e por sua empolgação com um tema no qual eu mesmo tinha minhas dúvidas. Alex Sartori, Bianca Lucchesi, Clarissa Lorencette, Danilo Zamboni, Melina Kuroiva, Rafael Craice e Vitor Coelho Nisida, pelas suas artes que fazem parte desse trabalho. Ao Google e ao Flickr, por permitir buscas tão certeiras. Em especial para Artur Kim, Caio Pereira, Rafael Cruz e Tamires Lima, que leram, revisaram, criticaram e apoiaram, e sem os quais esse trabalho não existiria. Pedro Luis e Vania, meus pais, que sempre trouxeram base forte e carinho para minha formação e desenvolvimento. Esse trabalho é dedicado à Camila, por todo amor e apoio.


Índice 7 Introdução 15 A Unidade 21 Topologia 27 Escalas diversas 35 As primeiras sensações espaciais 37 Casa como metáfora do útero 40 Antes do nascimento 46 Onipotência e existência 56 Condições para a onipotência 69 Topologia do desejo 75 Brincadeiras e jogos 86 Privação e defesa 93 Quebrando muros mentais 99 Invólucros e externalidades 101 Abrigo 106 Lar 110 Armazém 115 Relógio habitado 122 Processamento 126 Porto seguro 135 Observatório 149 Linguagem cultural 151 Casa do Samurai 156 O teatro do comportamento 169 Um modelo único 178 A aventura modernista 188 O Mito de Narciso 196 Esferas de poder 203

Apêndice — Estudo de caso FAUUSP

216 Bibliografia 223 Crédito das Imagens 226 Filmografia


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Introdução

“A cidade é feita de casas”1

Num trabalho de conclusão de curso da FAU são levantados questionamentos que permeiam toda a formação, na cabeça de cada estudante parece sempre haver uma pergunta mal respondida que aflora no momento da conclusão e que traz saborosos frutos. Também sempre existe a opção de deixar essa pergunta guardada, optar por um projeto mais banal e apostar num caminho mais certeiro, acredito que não seja o meu caso. Resolvi encarar minha inquietação mesmo desamparado pela metodologia focada em projeto da FAU. Hoje vejo que meus questionamentos sempre se voltaram pra a forma como o arquiteto lida com o mundo, e acredito que esse trabalho é uma resposta parcial e nesse sentido. Parcial pois acredito que mesmo depois de muito estudo ainda existem questões mal resolvidas e que ficarão para outro momento. Discutir a questão urbana nesse momento é um grande desafio, vivemos num momento de transição e conflito em diversos aspectos e o espaço público transpira essa indefinição. Pelo menos na FAU, somos continuamente ensinados a valorizar o que é público, discurso que não tem muitos ecos fora da caixa de concreto, quando nos deparamos com o mundo lá fora vem um sentimento de que foram enganados, que não é assim que o mundo dá corda. Alguns nunca duvidaram que a verborragia não passava de uma poesia datada, mas outros passam a vida lutando por uma cidade mais viva, aberta e livre, mas para todos que enfrentam o vigor da metrópole parece que somos continuamente iludidos por um sonho fora de contexto. 1 Esta frase é dita atribuída a diversos arquitetos, Vilanova Artigas constumava dizê-la, Paulo Mendes da Rocha em diversas entrevistas a menciona e também Christian Norberg-Schulz a enuncia em seu artigo: O fenômeno do lugar.

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Não é de hoje que há um sentimento de que o discurso do arquiteto e urbanista não surte efeito para a grande maioria das pessoas. É incrível perceber como há uma reação negativa aos conselhos de ocupar o espaço público ou trocar seu meio de transporte. A veemência como as pessoas negam esses apontamentos faz a resposta parecer uma verdade absoluta: — “Quem seria louco de sair para caminhar de madrugada nesse bairro”? Há algo muito óbvio na forma como as pessoas tem se fechado, e simplesmente dizer “saia” não parece surtir efeito. Essa inadequação do discurso da arquitetura às demandas contemporâneas explica claramente apenas um dos motivos porque o arquiteto tem sido tão alijado das discussões sociais. Sua opinião é descartada e seus ideais vendidos como utopias baratas. Na metrópole capitalista o valor do arquiteto se resume à agregar valor ao espaço construído, quando este começa a questionar os geradores de mal-estar, sobretudo no espaço público, rapidamente a cortina se fecha e voltamos aos comerciais. Analisando essas questões, percebemos como o discurso arquitetônico e urbanístico atual tem se fundado em bases fracas frente à complexidade fértil e confusa do mundo atual, conseguimos imaginar uma sociedade ideal mas há um hiato entre o momento em que estamos e essa realidade projetada. Dentro da arquitetura, o debate sobre o espaço público parece insistir sempre numa mesma receita: apresenta primeiro críticas ao modo como uma determinada cidade e seus habitantes se fecham e negam o espaço público, se enclausurando e se isolando; logo em seguida aponta exemplos dos movimentos políticos e ativistas que tentam confrontar e reverter essa lógica. “Quermesse, carnaval, Virada Cultural, mesmo o Minhocão. Obviamente, a asfixia e o empobrecimento de uma vida condominial são percebidos pelas gerações mais jovens. Eles olham pra isso e falam “é isso que eu tenho que sonhar? Ter um carrinho parado numa graminha e o vizinho enchendo a paciência? É muito pouco”. Onde é a saída? É o mundo, a rua2.”

2 DUNKER, Christian. “A Indústria do Sofrimento É uma Poderosa Força Econômica”

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Me parece que essas temáticas são apenas polos opostos de uma mesma questão, há uma enorme gama de nuances intermediárias que ficam desamparadas por não serem nem tão conservadoras nem tão revolucionárias, formando um rol de formas intermediárias de lidar com o espaço que separam esses habitantes ativos e expansivos dos enclausurados na defensiva. Meu trabalho procura fugir dessa dicotomia: analisar ambos os motivos que qualquer pessoa pode ter para se encasular ou para se aventurar, não definindo as pessoas pela sua dualidade de comportamento: reclusão versus abertura; mas sim tentar entender porque as pessoas se fecham e revelar as sutilezas de como abri-las. “Não podemos nos iludir: as metrópoles não são caóticas em nada. Tudo ainda está por se fazer. Essa é a lógica do capital: causar o desequilíbrio do tecido urbano. E as metrópoles precisam ter esse caráter físico-espacial para perpetuar a opressão sobre os outros. O caos é muito bem planejado”.3

Ao começar trabalho, minha busca central focava em entender o motivo dos fechamentos, cercamentos e fronteiras que se erguem para proteção, sobretudo no cenário arquitetônico do Brasil atual, marcado por condomínios, shoppings, camarotes, favelas, prisões e outros espaços de exclusão. No decorrer deste caminho me deparei com a forma com a qual a psicanálise trata do surgimento das defesas mentais. Nesse ponto há uma grande contribuição à teoria urbana, os mecanismos de defesas psicológicas e os mecanismos de defesa material se erguem sobre os mesmos motivos, principalmente a ameaça de perda de qualquer instância, seja social, material ou mental. Poderíamos dizer que a vida mental cria defesas do mesmo modo como a vida urbana ergue muros, porém é a inversão que é correta, erguemos muros formalizando nossas defesas mentais, porém para o arquiteto a forma psicológica como esses muros se erguem têm sido um mistério. Para isso é preciso fazer uma reconstrução da experiência subjetiva de como o cidadão da metrópole se relaciona com seu espaço íntimo, e como ele encara o mundo, tirando desse entendimento uma forma mais madura de entender a vida urbana, em suas expansões e retrai3

DELIJAICOV, Alexandre in Revista Móbile nº 1, 2014, pag 8.

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mentos, que não podem ser limitadas apenas por uma intenção projetual. Curiosamente, a metodologia que encontrei para essa pretensa maturidade se apresenta na psicologia do desenvolvimento, acompanhando os passos de uma criança que cresce e conhece expansivamente um mundo ora cruel ora receptivo. Não poderia ser diferente, nessa viagem é preciso manter um olhar estrangeiro, quando tudo já é “conhecido” há muito pouco o que mudar. Dessa maneira o viajante ideal é uma criança, ainda com brilho nos olhos e interessada no mundo, mas também cheia das angústias e inseguranças que esse pode proporcionar. É preciso buscar essas formas mais primitivas de conhecimento do mundo e nesse ponto as ferramentas da psicanálise se juntam com várias teorias de espaço urbano. Analisando os fenômenos espaciais da infância, podemos ter um melhor entendimento dos sentimentos envolvidos na expansão dos nossos domínios, que começam antes do nascimento, onde as experiências individuais de um ser fisiologicamente saudável são muito mais homogêneas e previsíveis. Nosso foco portanto de estudo é na infância, fase que não é simplesmente esquecida, pois seus ecos orientam inconscientemente o indivíduo por toda a vida. “Defrontar a uma batalha em que nós próprios estivemos uma vez, ainda que em geral já a tenhamos esquecido, ou da qual jamais estivemos consciente.”4

Adentrando essas questões, grande parte do arcabouço necessário provém dos trabalhos de Sigmund Freud, principalmente no que se diz respeito ao conceito de inconsciente e ao seu clássico texto “O Mal-estar na Civilização” que aponta a contradição direta que a sociedade cria com os desejos inconscientes, resultando no paradoxo de que a repressão é inerente à civilização e por isso os civilizados sempre terão um “mal-estar” por precisarem pesar seus desejos com a aceitação no grupo. Já na questão de expandir nossos domínios e conhecer o mundo a obra que se aprofunda nos sucessivos eventos do desenvolvimento da criança e traz os elementos chave na compreensão da experiência potencial de amadurecer é o trabalho do pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott. Sua análise trata das sucessivas experiências do desenvolvimento caminhando da total dependência de um recém-nascido “normal” 4

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WINNICOTT, D, W, Natureza Humana, pag 28.


até a experiência de independência da vida adulta, revelando conflitos que surgem na própria forma como conhecemos o mundo e os outros, sua obra se volta para o desenvolvimento natural de indivíduos presumindo-se a ausência de doenças físicas, mas mesmo esse desenvolvimento “normal” é naturalmente doloroso e pontilhado de conflitos. “Provavelmente, o maior sofrimento no universo humano é o sofrimento das pessoas normais ou saudáveis ou maduras. Isto não é geralmente reconhecido. A dor, a agonia e a perplexidade manifesta observadas num hospital para doentes mentais nos daria sem dúvida um falso indicador. No entanto é muito frequente os graus de sofrimento serem avaliados desse modo superficial5”.

Para adentrar essas questões no primeiro capitulo introduzimos um estudo breve sobre topologia, um ramo da matemática que estuda estruturas não geométricas, mas que é o modelo essencial de onde podemos entender os conflitos inerentes à nossa existência, além de ser a chave para transpor essas questões para o espaço urbano e arquitetônico. Não são novos os estudos de fenomenologia que revelam como nossa forma de pensar é fortemente definida pelo espaço e mesmo a transposição da casa para o corpo já aparecem nos primeiros estudos de Freud acerca dos sonhos, trazendo evidências que nossa subjetividade e nossa morada possuem relações implícitas. “Não é grande a extensão de coisas que podem encontrar no sonho representação simbólica. O corpo humano como um todo, os pais, os filhos, os irmãos, o nascimento e a morte, a nudez e ainda algumas outras. A única representação humana como um todo que é típica, ou seja, que se encontra com regularidade, é sua representação como uma casa, como percebeu Scherner, que desejou mesmo atribuir a esse símbolo um significado extraordinário indevido. Acontece nos sonhos de, às vezes com prazer, às vezes com receio descermos pela fachada de uma casa. Aquelas fachadas que possuem paredes lisas são homens; as que apresentam saliências e sacadas, nas quais podemos nos segurar são mulheres6” 5

WINNICOTT, D. W. Natureza Humana, p100.

6 FREUD, Sigmund. O simbolismo dos sonhos in Conferências introdutórias à psicanálise, p205.

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No segundo capítulo há uma introdução mais sucinta desses processos psicológicos, apresentando principalmente a teoria de Winnicott sobre o desenvolvimento humano, as ilusões e conflitos que esse processo apresenta além das possibilidades que estes geram. Buscamos as primeiras sensações espaciais, os primeiros sentimentos criados pelo espaço tentando deixar claro o quanto essas relações ganham em complexidade, mas pouco mudam por toda a vida. O mundo externo é uma constante descoberta, porém, a busca fundamental é descobrir a si próprio e percorrer esse caminho pode nos trazer grandes revelações. “A influência ambiental pode iniciar-se numa etapa muitíssimo precoce, determinando se a pessoa, ao buscar uma confirmação de que a vida vale a pena, irá partir à procura de experiências, ou se retrairá, fugindo do mundo7”.

Regredir a esse ponto pode ser interessante para analisar as primeiras formas do sair do domínio do familiar, do ir em busca de algo no mundo, simplificadamente as primeiras relações com o espaço não individual, ou seja, o espaço do outro, o público. E nesse ponto onde o domínio das escalas está em expansão latente torna-se importante analisar um pouco o motor básico que nos faz sair de casa: o desejo.8 As questões relativas ao sair do familiar em busca de algo novo se apresentam no terceiro capítulo. Se o segundo capítulo é voltado pra esfera íntima esse terceiro apresenta questões sobre como o mundo se torna necessário e deve ser encarado ou não dependendo das situações. Após estudarmos as questões internas que se desenvolvem no espaço, no quarto capítulo adentramos espaços mais definidos, onde formas de habitação — ainda genéricas — são agora alimentadas pelo exterior, ou seja não mais pelo que queremos que o espaço seja, mas com o que o espaço pode nos dar. Partindo da ideia de que estudar o espaço é 7

WINNICOTT, Op. Cit. p149.

8 Existe aqui uma certa indefinição à cerca do desejo. Utilizando a teoria freudiana o mais correto seria falar de pulsões, classicamente de vida e de morte, porém acredito que não há necessidade de adentrar essa discussão. Nesse sentido quando utilizada a palavra “desejo” a intenção é delimitar genericamente esse algo que não se possui, que gera uma inquietação, e dessa maneira é buscado, desejado.

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entender melhor as relações humanas e o meio na qual elas se dão, podemos perceber como são os pequenos hábitos que criam novos programas e novos espaços. Arquitetura não é nada sem gente para habitá-la. No quinto e último capitulo a intenção é chegar de forma menos abstrata na arquitetura, revelando como esses invólucros desenvolvem e demonstram nossas formas de lidar com o mundo. Nessa parte passamos pela obra de Sennett, que revela as formas sociais do século XVIII ao XX, onde o ferramental topológico pode novamente evidenciar como a arquitetura repete a língua que é falada nas ruas. A tese final do trabalho consiste em que a personalidade, o comportamento e as formas de lidar com o mundo podem ser entendidas e simplificadas por sua forma e função topológica e dessa maneira também podemos entender edifícios e outras formas urbanas. Assumindo que as formas de lidar com o mundo não são aleatórias ou sem sentido, podemos perceber como estão em total acordo com os invólucros que criamos para habitar. A partir dessa categorização e do melhor entendimento dessas formas de subjetividade colocamos a arquitetura numa perspectiva da qual a psicanálise e o cinema já participam há um certo tempo: a concepção de que nada é por acaso. Cada elemento tem um sentido e um significado e esses coexistem até com a ignorância se seu enunciador, seja ele cineasta, arquiteto, usuário ou qualquer outro indivíduo. Ciente de tantas relações psicológicas e espaciais é preciso situar a arquitetura num novo posicionamento, tornar-se uma profissão interessada no discurso do outro, de forma a agir de forma mais acertada e ciente da complexidade das relações humanas, Permitindo projetar a um usuário pensante, que reflete e se relaciona com o espaço. “Heidegger não pensa, por exemplo, que um arquiteto se depara com um espaço vazio onde construirá uma casa, um lugar de se habitar. É o contrário. Por já trazer consigo, antes, o sentido do habitar, o arquiteto projeta a casa, e ela, uma vez construída, gera espaços9”.

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SARAMAGO, Lígia, A Construção de um lugar em Heidegger.

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A Unidade

Para começar esse trabalho precisamos evocar os primeiros fenômenos de como o ser humano lida com o espaço ao seu redor, porém creio que anteriormente é preciso introduzir alguns significados um pouco mais simbólicos e utilitários de modo a definir melhor o que definem esses espaços mentais. Este primeiro capítulo pretende falar apenas sobre a definição de uma unidade, mais precisamente uma figura geométrica e seus significados: o círculo. O que nos separa do mundo? Definir esses limites é certamente o primeiro exercício existencial. Nesse momento posso imaginar que você esteja sentado e proponho uma questão: o que te separa da cadeira, das paredes ou das próprias roupas? É facil definir que um é um e o outro é outro, mas essa certeza não é tão clara. Como é possível termos absoluta clareza que o copo sobre a mesa e a própria mesa não são o mesmo objeto ou não fazem parte um do outro? Como podemos separar e contar os próprios dedos se estão todos presos à mesma mão? Se buscarmos saciar essa certeza com conceitos físicos essa questão se tornará ainda mais confusa. Não haveria explicação possível, não existe nenhum limite real entre a matéria que justifique uma fronteira física para essa diferenciação. Poderíamos analisar que existe “ar” entre as coisas e é o ar que separa os objetos uns dos outros, porém o ar também não é igualmente feito de matéria? O espaço vazio dentro de cada átomo garante que quase nada nunca se tocará. Porém a certeza dos limite persistem em nosso entendimento e chegamos à conclusão de que essa separação não é um dado da física, mas sim algo criado pela nossa mente.

"Bolhas" de Melina Kuroiva

Tentar racionalizar essa questão só tende a aumentar a confusão, não existem limites claros entre onde termina você e começa o mundo. A todo momento conseguimos mentalmente entender fronteiras claras entre objetos, pessoas e outros elementos e isso não é uma conceitua-

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ção física. Isto se deve à primeira maneira como, psicologicamente, nos comunicamos com o mundo: através de nossa individualidade, de nossa unidade, nossa indivisibilidade. Quando começamos a entender em nós mesmos essa unidade, passamos a ver no mundo o que possuimos em nós. Ao nos tornarmos uno conseguimos ver unidades no mundo. Temos clareza que somos 1, hum, uno, pois dentro de nós há um mundo próprio que ninguém pode penetrar. O corpo costuma ser os limites que estabelecemos para nossa alma, porém a existência de membros fantasmas demonstram como isso também não é tão simples. Existe uma polaridade: uma imagem mental de nossa existência junto com os impenetráveis pensamentos e existe toda a exterioridade, um mundo lá fora que nos é estranho e familiar ao mesmo tempo. Salientar essa separação é a base para pensar como o indivíduo lida com o espaço, e essa constatação não se desenvolve num estalo, é um processo lento que acontece desde momentos antes ao nascimento e do qual normalmente não conseguimos nos lembrar. A forma geométrica que melhor pode simbolizar essa condição de divisão interna-externa é o círculo. Existem na natureza círculos em diversas aplicações: o sol, a lua, o formato da Terra e dos demais planetas e mesmo formas menores como uma gota d'água, nossos olhos, o caule de uma árvore e até mesmo frutos como uma laranja ou uma uva. O círculo é uma forma básica da matéria. No universo, o tempo infinito molda vagarosamente perfeitas esferas geradas pela atração mútua entre uma porção de matéria sob a ação da gravidade. Adicionando velocidade e inércia surgem então os discos, que são criados quando a matéria orbita um centro de massa, como os anéis de Saturno e a Via Láctea. Movimentos como rotações, translações, estrelas, planetas: quase tudo no universo remete ao circular e ao esférico e isso não ocorre por acaso.

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Eclipse do Sol em Saturno capturado pela sonda Cassini em 15 setembro de 2006. O pequeno ponto branco é o planeta Terra.

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Ruínas do assentamento neolítico de Khirokitia na ilha do Chipre.

“Figura é um espaço fechado por um ou mais têrmos. Círculo é uma figura plana fechada por uma só linha, a qual se chama circunferência: de maneira que tôdas as linhas retas, que de um certo ponto existente no meio da, figura, se conduzem para a circunferência, são iguais entre si1”

Estudando outras propriedades do círculo descobrimos também a facilidade com que esta figura pode ser fisicamente construída: com apenas um cordão e um graveto é possivel desenhar no solo um círculo praticamente perfeito, de dimensões tão grandes quanto esse cordão possa alcançar. É até mais fácil construir um círculo regular do que executar um ângulo reto com precisão. Essa figura também traz muitas vantagens econômicas em construir. Por exemplo, comparando uma esfera e um cubo, ambos com mesmo volume, a esfera terá uma superfície total aproximadamente 20% menor que a superfície do cubo, isso significa uma economia de 20% em material e este é uma dos motivos pelos quais tantas formas da natureza buscam à esfera. Ainda podemos analisar as características mecânicas da esfera e esta vantagem se torna ainda maior. Formas esféricas são mais homogêneas e por isso mais resistentes do que os ângulos de um cubo, acrescentando essa condição fica claro porque grandes obras de engenharia seguem essa forma: túneis, estádios, poços, etc. O círculo é uma dádiva da natureza. Muitos exemplos de arquitetura vernacular também seguem formas circulares e desde a antiguidade os exemplos de habitações em forma redondas são muito comuns. Um dos primeiros assentamentos

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EUCLIDES, Elementos de Geometria, Definições XIV e XV.

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humanos de que se tem notícia é Khirokitia2, localizada no sul da ilha de Chipre e construída entre 7000 e 6000 anos a.C. Nessa cidade neolítica todos os edifícios possuem forma circular garantindo economia e estabilidade. Mas se construir de forma circular é tão mais vantajoso por que então passamos a construir paredes ortogonais e formas retangulares? Essa não é uma resposta fácil, porém observando algumas bolhas de sabão podemos ter uma boa suposição sobre o que pode ter acontecido. Quando aproximamos muito as bolhas elas passam a se intersecionar e a parede gerada nessa intersecção não é mais curva, passa a ser uma face plana. Conjugando essa característica com a necessidade de agrupamento humano crescer ao longo do tempo, podemos fazer uma hipótese sobre sua gênese: as paredes planas nasceram na justaposição de construções, que, assim como membros da sociedade, se apoiam umas às outras. Construir paredes planas faceando um terreno vazio, de algum modo, testemunha que estamos sempre à espera de vizinhos. Analizando Çatal Hüyük3, um outro assentamento neolítico que se encontra na Anatólia, atual Turquia e é datado de 6500 a 5700 a.C, podemos perceber que diferentemente de Khirokitia, onde as habitações são separadas, no assentamento na turquia as edificações são justapostas. Há uma peculiaridade nessa vila: a entrada das habitações era feita pelo teto com a ajuda de escadas, não haviam portas para deslocamentos horizontais. Andar pela “cidade” era caminhar sobre o teto dos demais habitantes. Nessa configuração podemos perceber que as paredes resultantes dessa união são todas planas. Mesmo as paredes da periferia são planas, isso garante que seja sempre possível acoplar uma nova habitação nos limites das antigas e ampliar a cidade.

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2

ALARSA, Victor. O imaginário simbólico das cidades da antiguidade pag 84-93.

3

Ibid. pag 56-69.

A intersecção entre bolhas de sabão forma planos perfeitos.


Assentamento neolítico de Çatal Hüyük na região da Anatólia na atual Turquia

Apesar de figurar como um mantra de arquitetos, a máxima de que — a forma segue a função — não pode ser a explicação de todas as escolhas geométricas. Analisando a história da humanidade percebemos que “algumas formas geométricas estão intrinsecamente ligadas a certos significados, como podemos observar através da força da forma de um círculo, que desde tempos imemoriáveis eram usados como a forma básica de habitações”.4 Mas esse círculo não é somente um símbolo do habitar, a forma circular é também uma forma mística de simbolismos variados. “Com efeito, as imagens que mais fortemente sugerem ordenação — as formas circulares — estão presentes nas manifestações expressivas do homem desde os tempos mais remotos. Na arte pré-histórica as formas circulares aparecem sobre mútiplos aspectos: bolas de calcário, cuidadosamente trabalhadas; escavações circulares sobre pedra, em tamanhos variados; perfurações circulares sobre bastões e instrumentos rituais; pontuações vermelhas ou negras de dimensões diferentes, sobre rocha ou sobre o corpo de animais configurados nas paredes de cavernas. O círculo, designado por Platão a mais perfeita das formas, exerceu seu domínio mágico desde os tempos primordiais5”.

4

ALARSA, Victor. O imaginário simbólico das cidades da antiguidade pag. 183.

5

SILVEIRA, Nise da. Imagens do Inconsciente. pag 54.

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Nesta ilustração da Biblie Moralisee, um dos exemplares mais importantes das bíblias ilustradas da idade média, Deus molda o universo com um compasso. Após criar o círculo perfeito, o universo é criado seguindo a harmonia desse princípio formal da geometria. Para os estudiosos medievais, o sagrado estava diretamente ligado à geometria e à astronomia-astrologia. Nesse manuscrito do século XII o compasso é um símbolo do ato de criação de Deus e nessa época muitos acreditavam que havia algo instrinsecamente ligado à perfeição ou à divindade que poderia ser encontrado nos círculos. Na história, há inúmeras aparições circulares e apesar de serem tradicionalmente relacionadas ao sol não possuem somente um significado definido. É difícil sintetizar um signo que possui tantas aparições na natureza além de suas importância físicas e construtivas. Meu objetivo não é debulhar o simbolismo contido no círculo, mas utilizá-lo como forma de análise: a característica que será mais importante ressaltar são seus limites claros: a noção de dentro e fora. Topologia Todos esses significados traduzidos nos círculos: sejam simbólicos, físicos ou construtivos — que estão presentes desde tempos imemoriais e em diversos contextos — evidenciam a característica mais importante que pretendemos abordar: os limites claros do círculo e de outras figuras fechadas definem uma noção de dentro e fora, e dessa simples dualidade emanam diversos significados. Talvez seja até este o motivo pelo qual toda essa sacralidade se originou, mas essas propriedades se desenvolveram em uma área recente na ciência matemática que traz muitas semelhanças com a teoria dos conjuntos: a topologia.

dentro

God the Geometer The Frontispiece of Bible Moralisee

fora

A topologia é um ramo da matemática que estuda as conexões e formas espaciais, excluindo a métrica e as proporções que elas possuem. “Ela estuda a deformação como fundamento para a igualdade de duas figuras. Se através de uma deformação contínua pudermos

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passar de uma figura para outra, dizemos que estas são idênticas. Por isso, a topologia é chamada de geometria de borracha6.” Podemos explicar essa condição com um exemplo simples: ao amassar um mapa de uma cidade, as relações de escala podem acabar se perdendo, as distâncias entre os pontos podem perder seu rigor geométrico e sua proporção em relação à realidade, porém, a topologia ficará intacta, os cruzamentos entre ruas continuarão interligados do mesmo modo, ainda que em distâncias variáveis. Esse tipo de conceituação está muito presente em mapas do sistema de metrô e nos transportes em geral, mas acaba ai o estudo de topologia na arquitetura. Apesar desses conceitos serem aplicáveis à arquitetura, arquitetos e urbanistas continuam projetando e construindo cidades e mesmo dialogando cada vez mais com outras ciências e teorias “continuam a fazê-lo sobre suas representações e modelos geométricos cartesianos”7. A noção topológica de dentro e fora também é central em certas teorias da filosofia e a base mental da psicologia, pois essa relação é um resultado direto da consciência humana e uma característica básica de nossa vida mental. Podemos claramente saber que nossos pensamentos são inacessíveis ao mundo, que são um limite intransponível do ser. Estamos conscientes de estarmos vivos e dentro dessa esfera de existência temos consciência do tempo. Temos um horizonte de tempo finito — até a morte — no qual estamos constantemente presentes. Essa delicada conceituação não pode ser resumida como consciência, mas deve ser tratada de uma forma mais ampla, incluindo o tempo, o espaço existencial e outras variáveis. É o que Heidegger desenvolve sob o termo Dasein, “estar-aí”, sabermos que existimos e estamos em algum lugar, com uma presença constante que temos da existência em termos de possibilidades do ser colocadas no tempo. São os limites dessa condição impenetrável de presença que pela primeira vez, em 1947, serão denominados por ele de ‘topologia do ser’: “se evitarmos atribuir um sentido por demais alegórico à afirmação de Heidegger de que ‘a linguagem é a casa do ser’, não restará dúvida de que lugar, espaço e linguagem configuram, para ele, uma única e mesma questão8.

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6

MELO. Maria Isabel. Lacan e a Topologia. Pag 78.

7

BASSANI, Jorge. PDP - Mapografia. in PDP Mapografias. pag 117.

8

SARAMAGO,Lígia A Topologia do Ser. pag 16.


eu

mundo

Partindo de uma noção de interioridade — como a existência — e de exterioridade, como o mundo afora, poderíamos desenhar essa questão usando um simples diagrama circular com um ‘eu’ interno e o ‘mundo’ externo circundante, porém, um invólucro estanque é inútil. É preciso adicionar ainda uma comunicação entre o dentro e o fora e essa conexão é a linguagem. Há coisas internas, processadas dentro de cada ser que são levadas para fora. Traduzir pensamentos em linguagem e levá-los ao mundo é a forma como transpomos essa barreira na escala do ser. Do mesmo modo o mundo também toca o individuo e modifica sua forma de pensar. Esses espaços in-between, definidos no próprio limite entre os dois polos contém não apenas a linguagem, mas também se define no espaço e uma das bases da arquitetura. Esse sentimento de existência, de consciência expandida, não configuram os limites do ser, mas criam a capacidade de percebê-los. “O Dasein jamais poderia estabelecer com aquilo que o cerca qualquer relação — espacial, no caso — do tipo continente-contido, ou seja, o Dasein jamais se encontra ‘dentro’ ou ‘fora’ de algum lugar, mas ele mesmo contribui para a configuração de lugares, ele espacializa9”. A noção da própria existência é também a gênese do sentimento de espaço, aqui fica claro como o indivíduo e o mundo estão intrinsecamente interligados. “De todo indivíduo que chegou ao estádio de ser uma unidade, com uma membrana limitadora e um exterior e um interior, pode-se dizer que existe uma realidade interna para este indivíduo, um mundo interno que pode ser rico ou pobre, estar em paz ou em guerra. (...porém) se existe necessidade desse enunciado duplo, há também a de um triplo: a terceira parte da vida de um ser humano — parte que não podemos ignorar — constitui uma área intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas10”. 9

Ibid. pag 26.

10 WINNICOTT, O brincar e a realidade, pag 15.

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As coisas que encontramos no mundo, que agora entendemos como elementos externos, muitas vezes são ou já podem ter sido objeto de criação de outrem. Já fizeram parte to imaginário de alguém, nasceram dentro e foram transpostas para fora pela ação direta no mundo. Essa habilidade, da qual a arquitetura, a poesia e a artes fazem parte, mesmo sendo frutos de antigos processamentos anteriores de pensamentos e situações criadas por coisas externas ao indivíduo, no momento de sua criação se encontram nesse espaço in-between. No momento de criação estão fazendo a ponte entre o interno e o externo de nossa mente. A arquitetura acaba, dentro dessa concepção, abrigando um duplo sentido topológico. Há duas funções separadas que podem ser lidas de forma topológica: uma enquanto linguagem projetual ou como ideia, e outra enquanto espaço físico no qual se habita. Ambas estão nesse limite entre o eu e o mundo, ambas não são parte indissociável de nós, tampouco já configuram o mundo. A primeira, como linguagem, é o código como aquele que sonha e projeta aprende a comunicar suas intenções, a segunda é a forma como o próprio edifício se comunica com o mundo. Projetar é comunicar como se dará uma comunicação espacial futura. Esses objetos mentais, quando organizados e compartilhados em ação sobre o mundo passam a fazer parte do mundo, a arquitetura ou qualquer outra obra toma forma, mas o mais interessante são os limites com os quais essa unidade se forma. Nos limites reside a linguagem não apenas da comunicação entre seres, mas também a forma como um edifício se comunica, atravéz de suas paredes, portas e janelas. Desse modo podemos dar uma dupla significação ao pensamento de Heidegger, onde: “o limite não é onde uma coisa termina, mas, como os gregos reconheceram, de onde uma coisa dá início à sua essência”. "Admiro os poetas. O que eles dizem com duas palavras a gente tem que exprimir com milhares de tijolos11"

Como o interesse é entender melhor o ser humano em sua relação com o espaço e com a arquitetura; encontramos na topologia a metodologia básica para abarcar essas questões, pois “vai muito além do uso de esquemas com valor explicativo ou didático. A topologia 11 Vilanova Artigas

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eu

mundo

linguagem brincadeira objetos transicionais

intercede no discurso como fundamento epistemológico dos conhecimentos trazidos pelos esquemas12”, e assim traz um divisor comum entre o ser humano e a arquitetura na qual ele vive e projeta. A arquitetura, o urbanismo, os edifícios e a cidade são facilmente definidos por relações de dentro-fora; por privado-público, por natural-estrangeiro; e essa característica é compartilhada com a forma como o indivíduo se comporta no mundo. Quando essa topologia toca a ontologia é na filosofia de Heidegger — analisando as caracteríticas desse interior — e na psicanálise de Winnicott — buscando a origem dessa condição — que estas construções serão mais familiares. As forma de lidar com o mundo e transpor essas fronteiras são os objetos de estudo na obra de ambos os autores. Apesar de Winnicott também utilizar diagramas para falar do self, o uso dos diagramas topológicos na psicanálise foram consagrados nos estudos de Lacan. É perceptível que a busca de Lacan por formas complexas — como a fita de Moebius, o toro, a garrafa de Klein, entre outros — visa conseguir conjugar poeticamente essa noção de dentro e fora simbolizando os fluxos e demandas de comunicação que vem de dentro para fora e vice-versa. Na teoria lacaniana esses objetos se tornam formas análogas inclusive à sua prática na clínica, que nesse transporte de pensamentos, desejos e angústias de dentro para fora — e de fora para dentro — revela conflitos e aponta os modos de seu tratamento. Não pretendo aprofundar nessas formas topológicas complexas, acredito que é possível entender a sutileza dessas transposições utilizando analogias de elementos arquitetônicos usuais, como a ponte, a porta ou a janela; que se abrem, e criam a comunicação, conforme momentos propícios do ambiente interno e externo; o que vale para indivíduos e edifícios. Portanto, não pretendo questionar a lógica lacaniana, mas somente propor uma outra notação mais simples e de transposição mais fácil para a arquitetura. Um outra notação13 não é necessariamente um conflito, mas pode ser uma forma mais didática. 12 LAFONT, J.G. A Topologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1990 Apud. MELO Maria Isabel, Lacan e a Topologia. Pag 77. 13 A notação matemática de derivada, por exemplo, pode ser expressa pela notação de Newton [y’ = f(x)] ou Leibniz [dy/dx = f(x)] sendo que na última se permite uma análise dimensional sem que se perca o entendimento ou o sentido.

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Escalas diversas Precisamos agora ponderar que não existe apenas um dentro e um fora, existe sempre algo mais profundo e algo mais amplo. Há uma infinidade de escalas de interioridade e exterioridade e podemos perceber numa simples correspondência como a escala é um fator importante no modo como entendemos o espaço, onde há sucessivas delimitações de espaço. No endereço de uma correspondência há uma série de organizações que separam pessoas e lugares em diferentes escalas, tanto no tempo como no espaço. Isso não acontece somente no correio; a todo momento separamos as unidades em porções de espaço circunscritos por uma fronteira definida — seja esta imaginária ou não. Com ela podemos endereçar de uma estrela à um átomo e assim conseguir localizar e comunicar a localização no mundo de um ente. Essas fronteiras das unidades que estabelecemos podem variar conforme a necessidade de precisão, podemos criar as mais diferentes fronteiras pois esses limites não são reais, são fruto da nossa maneira de dominar e definir o mundo que nos rodeia. Endereço no tempo:

14 de abril de 1955

Endereço no espaço: Indivíduo Miss Baby Wharton Rua Rua 24 de Maio Número na rua nº104 Andar no edifício 5º Andar Bairro República Cidade São Paulo Estado São Paulo País Brasil Este endereço, porém, ainda está incompleto, seria possível continuar: Planeta Terra Sistema Solar Galáxia Via Láctea Superaglomerado de galáxias Laniakea14 Universo Universo visível 14 Em pequisa do National Science Foundation de 2014 foi dado o nome Laniakea — que significa em havaiano: imenso céu — e substituiu o Superaglomerado de Virgem, antigo sistema de galáxias.

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Divide et impera — “dividir para dominar” tradicionalmente atribuida à Julio César, o imperador romano, é normalmente traduzida como uma estratégia de guerra, onde dividir o inimigo e lutar com cada parte separadamente permite travar uma batalha mais certeira. Porém, a forma romana de fundar grandes cidades também remete à este aforismo. Como demonstra Norberg-Schulz, ao estabelecer uma nova cidade, os romanos, inicialmente delimitavam dois eixos: um horizontal leste-oeste e um vertical norte-sul que se cruzam no centro da cidade, para delimitar os limites externos era usado o horizonte visível, denominado finalis circus, delimitando assim uma divisão em quatro áreas ou quarteirões. Essas subdividsões que permitem conquistar o espaço e configuram o território sob domínio de um estado romano.

The rituals performed during the foundation of any larger Roman layout, demonstrate that the purpose was to define a comprehensive spatial order related to a central point. (...) an ordered cosmos within an unordered caos15”. “Structuring the world into domains defined by ‘natural’ directions, ancient man gained an existential foothold16”. 15 “Os rituais executados durante a fundação de qualquer grande traçado romano demonstram que o propósito era definir uma ordem espacial compreensível relacionada a um ponto central de apoio, estabelecer um cosmos organizado dentro de um caos desorganizado. Traduzido de: MÜLLER, W. Die heilige Stadt, 1961, p38./p227. abud NORBERG-SCHULZ, Existence, Space, Architecture, p23. 16 “Estruturando o mundo em domínios definidos por direções naturais, o homem ancestral ganhou um ponto de apoio existencial”. Traduzido de: NORBERG-SCHULZ, Existence, Space, Architecture, p23.

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Representação da fundação do microcosmo do mundo romano ou seu imago mundi, modelo de entender o mundo. É interessante como essa representação se assemelha ao hieróglifo egípcio Niwt que representa a cidade:


A necessidade de criar ordem subdividindo o espaço é um exercício ainda atual, inconsciente e cotidiano: fazemos essas divisões a todo momento de forma tão automática que muitas vezes não nos damos conta de como essas definições são uma forma básica de ver o mundo e são válidas para qualquer escala. Estamos a todo tempo ampliando e subdividindo limites de modo a melhor entender e trabalhar o espaço dentro de diferentes escalas. As escalas mais inexoráveis como o território do país, de estados ou municípios são resultado de convenções sociais, amplamente acordadas e muitas vezes resultantes de dados fixos do território como rios e montanhas; as escalas mais efêmeras são menos coletivas, ou seja: há menos ou poucas pessoas compartilhando da mesma escala e por isso elas podem sumir sem deixar rastros. Assim como o espaço-tempo da física, existem inúmeras escalas espaciais e apenas uma escala temporal. Toda vez que precisamos informar nossa procedência como indivíduos tendemos a ocultar as escalas que nos unem e a enfatizar nossa identidade na primeira escala que nos diferencia; quando vou a França, digo que sou brasileiro; quando vou à Minas Gerais digo que sou paulista e quando vou a Mooca, digo que sou do Horto Florestal. Novamente, essa compreensão é tão automática que passa despercebida na maior parte do tempo, mas define uma identidade espacial. A identidade e a forma como os romanos definem seu território trazem, ainda, outras conexões. Nesse ritual, a noção de centralidade ressalta o que entendemos como lar, como local de origem, o centro para o qual "todos os caminhos seguem". A centralidade espacial e a identidade possuem relações diretas e uma desorganização nessas posições levam ao "delírio". Na linguagem médica, delirio é uma condição de alucinações, usualmente ligadas à trantornos psicóticos ou à esquizofrenia; nos delírios o indivíduo perde suas referências mentais de identidade e consiciência e passa a acreditar que seus pensamentos e fantasias são parte da realidade externa. Mas, analisando o termo em latim fica ainda mais claro como a centralidade e a identidade estão relacionadas. Delirium se refere ao verbo em latim deliro = de (não)+ liro (arado), que pode ser traduzido como "sair do curso do arado", ou até "sair dos limites da cidade". É como dizer que fora da centralidade da cidade o homem perde a noção da realidade, sai do eixo. Analisando essa convergência podemos dizer que o ser humano

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Boneca tradicional russa Матрёшка (Matrioshka)

se define também pelo espaço que o cerca, e a perda desse espaço é também a perda da própria identidade. A arquitetura e o objetos que nos cercam e nos pertencem fazem parte de nossa vida ajudando a definir quem somos. Esse exercício de definição de espaço de influência e centralidade de onde se parte uma jornada não é apenas um exercício espacial ou psicológico, é também a forma como abordadmos o mundo das idéias. Tendemos a pensar e criar conhecimento do mesmo modo como abordamos o mundo. Todo trabalho acadêmico, por exemplo, se inicia do mesmo modo: definindo um recorte endereçável no espaço e no tempo de onde começa o estudo e a tentativa de melhor entender o mundo. É preciso limitar claramente o que será estudado para conseguir conquistar e desenvolver o conhecimento relacionado à essas dimensões e fica claro que partindo de diferentes pontos surgem diferentes estudos. Um passeio pelo mediterrâneo pode revelar azeitonas, o mesmo não será encontrado num passeio nas montanhas da ásia. A própria palavra ‘configuração’ remete à um exercício de desenhar um polígono ou figura — que defina um espaço fechado, este recorte, chamado de skéma por Euclides, se opõe diretamente ao vazio e no exercício de sua limitação nos faz ver o espaço, pois confere ao recorte uma capacidade de reconhecimento. Daí vem o esquematismo kantiano: configurar o mundo é tornar o mundo figura e assim passível de estudo, trocas e comunicação. Não importa a disciplina em questão; estudos sobre o Bóson de Higgs; sobre os macaco-prego da mata atlântica ou sobre a política no continente americano estão circunscritos em diferentes escalas, mas sob a mesma lógica. No segundo momento de qualquer trabalho acadêmico é que se traça uma metodologia de análise, ou seja: um ca-

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minho para chegar a um fim, um objetivo. Pensando nessas configurações dentro de uma cidade seria possível estabelecer infinitas escalas topológicas, desde a própria cidade até cada possível subdivisão, cada vez menor e mais específica. É entendendo essas peculiaridades que percebemos como esse tipo de relação é cara à forma como entendemos e nos relacionamos com o espaço. Em qualquer aventura sempre há um ponto de partida mais familiar e conhecido e também um caminho para chegar à um determinado fim. Não importa se uma aventura procura comprar pão ou desvendar os segredos do universo, nossa forma de pensar se confunde diretamente como a forma como entendemos nossa existência e nos comunicamos com o espaço e por essa maneira a forma topológica permite um entendimento mais aprofundado, trazendo esquemas de entendimento do mundo e de nós mesmos. Apesar das escalas variarem conforme a necessidade de análise, podemos delimitar as escalas desse estudo justamente nas escalas clássicas do estudo da arquitetura e urbanismo: o indivíduo, o edifício e a cidade; outras subdivisões como municípios, distritos, bairros, lotes, unidades habitacionais e até os quartos seriam interessantes, e podem aparecer conforme a necessidade.

indivíduo =

casa =

cidade =

eu

privado

urbano

mundo

público

rural

linguagem brincadeira objetos transicionais

arquitetura paredes portas janelas

fronteiras muralhas morfologia costumes

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Definidos os domínios do estudo podemos agora abordar a metodologia, que nesse caso se confunde um pouco com a própria delimitação de domínios. Essa topologia maleável do círculo como relação interior-exterior é a forma como resumimos nossa existência, mas também são encontradas na essência da nossa forma de habitar e dominar e subdividir o espaço, por isso, é na transposição entre o interno e o externo dessas escalas que pretendemos trabalhar como matriz comum. É nessa transição onde podemos aprofundar os estudos e onde psicanálise, arquitetura e urbanismo se confundem e podem compartilhar conceitos e ideias. A enorme complexidade dessas três escalas apresentadas certamente torna esse exercício mais complexo, realmente não é possivel ir a fundo em todas essas escalas de modo satisfatório considerando todas as suas especificidades. Mas exatamente por esse motivo que a topologia se traduz como uma simplificação intencional. Essa metodologia, por trazer essa simplificação intencional, pode ajudar a simplificar essas relações e por isso ser definida como uma heurística17. A heurística é um método de inventar métodos e permite abordar situações muito complexas apelando para uma simplificação sistemática, mas não simplista e essa simplificação de indivíduo, edifício e cidade sob a ótica de sua relação topológica de dentro e fora permite se distanciar um pouco dessas complicações referentes aos detalhes de cada escala. É importante salientar que, nesse trabalho, o termo heurística se configura como na sua raiz matemática, de que, em face de questões difíceis envolve a substituição destas por outras de resolução mais fácil a fim de encontrar respostas viáveis, ainda que imperfeitas e não na sua configuração comportamental definida na psicologia. Esta simplificação heurística surge da hipótese de que as três escalas apresentadas: o ser humano, o edifício e a cidade podem ser simplificados à suas relações topológicas de interior-exterior, o que é muito 17 Na psicologia cognitiva o termo heurística é usado para analisar a forma inconsciente como simplificamos o mundo. Esses estudos introduzidos por Herbert Simon costumam tratar dos esteriótipos com as formas simplificadas de entender um dado ente que podem levar à afirmações incorretas gerando decisões errôneas. Nesse trabalho o termo heurítica se define pela sua formulação matemática.

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simples de se comprovar. Sendo que a partir disso podem ser geradas algumas analogias interessantes. Partindo de um olhar fenomenológico, onde tudo o que conhecemos do mundo parte de como o indivíduo percebe essa envoltória, podemos melhor entender que todas as estruturas espaciais são frutos dessa percepção. Com isso é possivel justificar a tese de que o entendimento do espaço pelo indívíduo se faça "à sua imagem e semelhança" ou seja, sua casa e seu mundo são continuações de sí próprio. É preciso dizer também o seu contrário: que a percepção do espaço externo não se faça — a todo momento — da mesma forma como do próprio corpo; e de fato em alguns momentos essa suposição se mostra definitivamente inexata, portanto é preciso entender essa análise como uma simplificação, mas nem por isso menos interessante. Com essa conceituação de limites bem estabelecidas podemos partir para o próximo capitulo, onde procuramos a forma como essa dualidade se cria e se desenvolve no ser humano ao longo de sua vida e qual o sentimento primordial que buscamos no abrigo. Nessa jornada, percebemos — pelo trabalho de Winnicott — como essa definição dos limites da própria alma traz alguns sentimentos e ilusões e estas, mesmo sepultadas nas profundezas da memória da infância estão fortemente relacionadas à forma como lidamos com o espaço, com os outros indivíduos e com o que esperamos do mundo. Esses sentimentos extrapolados ao grande número de indivíduos na metrópole se traduzem em diversos problemas sociais e urbanos, já muito conhecidos da arquitetura e dos arquitetos. No próximo capítulo procuramos definir quais são esses sentimentos e que formas eles assumem no espaço da cidade

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As primeiras sensações espaciais

Há dentro de cada um algo muito íntimo, um tesouro impenetrável que nos separa do mundo afora. Nesse segundo capítulo procuramos entender melhor essa escala mais interna, este espaço privado de cada um que se expande para os nossos domínios. Considerações sobre os limites e o espaço externo, ou público, ficarão ainda mais pra frente. Primeiro é preciso nos aprofundarmos sobre a esfera mais privada: nossa subjetividade. É a partir desse limite que é possível expandirmos para outros espaços privados da arquitetura e da cidade. Afinal como definimos o que é o interior de um edifício? Ou de uma cidade? O que é importante nessa interioridade a ser defendida? É preciso iniciar a jornada pela primeira e mais íntima de todas as escalas: a escala existencial. A noção da própria existência é o primeiro limite de nossa alma e entendendo sua gênese é possível entender também a importância dos outros espaços limítrofes. A definição do que é fechado ou aberto é principalmente uma sensação humana, muito mais do que uma condição física e objetiva do ambiente. O espaço privado figura como o local de segurança primordial, local onde teoricamente estamos protegidos das intrusões do exterior e onde é possível relaxar frente aos perigos. Esse espaço não se define apenas pelo sentido arquitetônico, urbano ou corporal, mas também em analogia ao sentido psicológico do impenetrável espaço privado de nossos pensamentos. Porém, essa condição não é absoluta e existe por trás dela um processo de construção desses limites, de continentes e contidos mentais que dão sentido à existência. “Neste sentido, alguns exemplos mais imediatos poderiam ser citados: em primeiro lugar, por ser o Dasein mergulhado em sua vida fática, o ponto referencial para o estabelecimento de todo e qualquer sentido de espacialidade, o registro e a compreensão desta

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espacialidade se dará, conseqüentemente, a partir do que lhe é “mais próximo” em sua lida cotidiana, tornando as coisas que o cercam referências iniciais e fundamentais para uma configuração não apenas de seu próprio lugar — seu espaço de ação —, como também para a compreensão de regiões que se estendem para além delas. É neste sentido que conceitos como os de proximidade e familiaridade ganham um sentido tão vital neste contexto1.”

Antes de nos aventurarmos pelo mundo precisamos de um abrigo de onde sair. Toda viagem parte de um porto seguro, de um local de acolhimento onde é possível erguer forças e recursos para a viagem. Assim, neste e nos próximos capítulos pretendo me ater nos significados e no surgimento desses espaços, buscando uma ontologia das funções da casa: o privado por excelência, espaço que carrega semelhanças com os limites do próprio indivíduo. Essa definição de um espaço íntimo é marcadamente individual e antes de mais nada é preciso entender como o espaço se configura a partir de si próprio. Nesse sentido, será interessante adentrar aos processos mais primitivos do desenvolvimento humano, partindo das primeiras experiências espaciais desde o nascimento. É somente nesses estados mais primitivos que podemos simplificar essa relação. Tratando de um sentido mais “maduro” da casa cairíamos em definições objetuais muito mais complexas — há uma infinidade de pormenores técnicos, detalhes construtivos, poéticos e também teorias que podem e deveriam ser levantados ao analisar uma edificação — porém dessa maneira acabaríamos desviando dessa essência topológica e simbólica da morada, e assim fugindo dessa sua importância primitiva. A casa é o símbolo máximo desse objeto íntimo de origem, e apesar de todas as edificações guardarem sua funcionalidade e poderem trazer abrigo e familiaridade, fica claro que a casa tem um sentido mais significativo e complexo que os outros edifícios. Ao falar para arquitetos, Heidegger reintera que o ponto de partida é essencialmente nossa morada, mas desenvolve uma escala crescente de espaço existencial, uma aventura que se expande em círculos 1

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SARAMAGO, Lígia. A topologia do ser. p27-28.


concêntricos e em nuances cada vez menos definidas conforme expandimos nossos horizontes à outras construções e novos domínios do espaço: “Uma ponte, um hangar, um estádio, uma usina elétrica são construções e não habitações; a estação ferroviária, a auto-estrada, a represa, o mercado são construções e não habitações. Essas várias construções estão, porém, no âmbito de nosso habitar, um âmbito que ultrapassa essas construções sem limitar-se a uma habitação2”.

Essa forma de viver conquistando novas escalas não é um dado inexorável, mas um lento aprendizado que se faz ao longo da vida de cada indivíduo. Avançar pelas diferentes escalas e formas de entendimento de si mesmo e do mundo é um longo e doloroso processo e pelo qual todos os indivíduos passam desde o nascimento. É preciso um ninho nutritivo e protegido para garantir a sobrevivência nessa fase marcada por fragilidade e aprendizado e sabemos como a casa supre essa necessidade. Casa como metáfora do útero Não é raro imaginarmos que procuramos na casa as características primeiramente encontradas no útero: uma morada perfeita, nutritiva e abrigada de todos os perigos, mas, como veremos, essa definição não é tão precisa. Em sua função simbólica, é inegável que essa relação exist, e podemos, realmente, buscar nas habitações elementos presentes originalmente no útero. Porém, para que haja abrigo é preciso que algo externo a mim me proteja, assim para confirmarmos essa hipótese temos que definir melhor os limites dentro-fora. Onde termina a mãe e começa o bebê? O bebê não pode ser separado da mãe devido à sua relação simbiótica de “nutrição e proteção”; contribuindo para uma unidade. Por outro lado a mãe produz interações externas ao bebê e por isso também poderia ser definida como um outro ser externo. Apesar dessas condições testemunharem contra a divisão dos entes, se buscarmos este distanciamento ou esse espaço de transição unicamente nos tecidos da gestação — excluindo seu funcionamento e a nutrição envolvida— percebemos que existe sim um meio termo fisiológico ou funcional entre o eu (bebê) e o mundo (mãe e o resto). 2

HEIDEGGER, Construir, Habitar, Pensar. p2.

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Analisando formalmente as estruturas dos tecido existentes na gestação, podemos apontar que tudo isso que se encontra dentro do córion3: placenta, âmnio, cordão, líquido e outros que "não são parte" nem da mãe nem do bebê são de extrema importância na manutenção da gestação, mas fisicamente se perdem por inteiro no momento do nascimento. A “placenta” é esse espaço in between de relacionamento; não faz parte de mim, mas ao mesmo tempo não faz parte do mundo, porém conecta esses dois polos. A placenta é o primeiro meio pelo qual se faz trocas, é o muro e é a porta, é por excelência a primeira morada. Voltar ao útero pode significar a máxima do aconchego, mas é difícil imaginar que esse abrigo nutritivo seja a única experiência que buscamos ao voltar para casa. Nessa situação uterina a relação eu-mundo é demasiado imprecisa, primeiramente pois dentro da barriga da mãe o bebê ainda se encontra num estado fisiológico e mental muito primitivo e nesse estado é difícil precisar se suas sensações são realmente marcantes como memória. Há tanta poesia nesse momento inicial que muitas memórias e obras de arte são inspiradas nesses primeiros “momentos oceânicos”, porém, devido à percepção limitada do bebê na barriga da mãe fica difícil afirmar que seja exclusivamente essa a experiência primordial buscada no espaço privado, afinal a escassez de memórias dessa época e o mar de sensações ainda sem a formação de um indivíduo pensante sugere que esses fenômenos são mais imaginados e idealizados — por adultos — do que guardados como grau zero do conforto simbólico.

Bebê próximo ao nascimento, documentário "In the Womb" do National Geographic

Mesmo que apenas como símbolo, fica claro porque essa relação de volta ao útero se torne um objetivo perseguido. É certo que essa fase deixa pegadas na existência, sabemos que a última memória é o sentimento que uma determinada situação nos trouxe, mas é preciso considerar essas sensações num crescente desenvolvimento, o descobrimento do próprio corpo e da própria existência, por isso há ainda outras potentes sensações que se traduzem no espaço do aconchego. Essas sensações e ilusões primordiais de se descobrir humano são interessantes no entendimento das funções do espaço na arquitetura, e até na prática e motivação do arquiteto ou de outros profissionais. 3 O correto seria se referir ao Córion, tanto o ‘córion frondoso’, que forma a placenta como o ‘córion liso’ que forma o saco aminiótico. Porém, nesse caso o importante é salientar sua função separadora na criação de um dentro-fora.

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Para adentrar nessas funções essenciais do habitar, procuramos a raiz dessa centralidade na transposição da escala do indivíduo. Como esse desenvolvimento é crucial, será preciso apresentar brevemente uma teoria da nascenciabilidade humana4, que não existe na psicanálise freudiana, mas está presente nas teorias do desenvolvimento humano de Winnicoott, das quais são possíveis inúmeras hipóteses. As outras escalas, o edifício e a cidade, poderão ser entendidas como formas expandidas dessa relação primordial, afinal, ainda é impossível sair do próprio corpo para abordar objetivamente o espaço, assim partindo da observação de algumas características primitivas em sua essência subjetiva podemos melhor entender o espaço existencial. Antes do nascimento A busca de uma “natureza humana” começa remontando tempos realmente imemoriais do desenvolvimento, tratando das primeiras percepções e relações espaciais como existentes antes mesmo do nascimento. Mesmo dentro da barriga da mãe já é possível perceber as primeiras relações espaciais do bebê. Organizando continuamente esses processos é possível estabelecer um diagrama5 do início de cada fase e dos sentimentos a elas atrelados. Apresento diretamente o diagrama como se fosse um mapa conceitual a ser seguido, mas adianto que não serão todas essas fases que serão abordadas, somente aquelas que se mostram importantes para entender a semelhança da casa com a forma como aprendemos a entender o espaço, a dualidade entre dentro e fora, assim como a transposição dessas fronteiras. Para um bebê tudo é novidade, e a maior delas é si próprio. O bebê não separa sua própria existência do mundo à sua volta, ele ainda não existe e cada experiência é completamente nova e inesperada, porém num certo estágio da gravidez já é possível perceber que o bebê já se ajeita devido a certos desconfortos e sente quando algo o toca. Mesmo dentro da barriga da mãe os primeiros movimentos já são fenômenos espaciais, marcados principalmente pelos “chutes” e reações do bebê ainda dentro da barriga da mãe. 4

LOPARIC, Zeljko. Origem em Heidegger e Winnicott.

5 Diagrama construído a partir das divisões de capítulos do livro "Natureza Humana" de Winnicott.

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nascimento onipotência

não estar vivo

estágios iniciais

fixação da psique no corpo

assumpção da dependência

preocupação

integração do self estágio sentimento crueza / crueldade ruthless

solidão

preocupação concern

Tentar buscar algum sentido nessa fase seria uma procura muito nebulosa. Antes disso tudo há apenas um grande silêncio e seria muito difícil entender essa fase sob o ponto de vista do próprio bebê. Winnicott afirma que a fase anterior aos estágios iniciais é uma fase “não verbal”, afinal na ausência do sujeito não há conjugação, não há verbo nem ações intencionais; não há unidade, não há separação, nem matemática nem qualquer cálculo; afinal, ainda não existe a primeira unidade: o próprio indivíduo integrado. Sob o ponto de vista do bebê, não existe significante, sujeito, objeto. Falar dos estágios iniciais é falar de um estado ainda muito primitivo, onde as percepções e suas consequências na vida psíquicas ainda são muito frágeis e é muito difícil quantificar como elas afetam a mente de cada um. É por esse esse motivo que ele afirma que nos estágios iniciais a relação com o ambiente adquire sua importância máxima6, pois nessa fragilidade mental a relação com o espaço é preponderante e praticamente “pura” buscando muitos pontos em intersecção com a psicologia ambiental. Para adentrar o conceito, Winnicott utiliza um diagrama onde separa três tipos de relações básicas entre o indivíduo e o ambiente e podemos extrapolar essas relações facilmente. Na primeira situação encontramos o indivíduo numa relação de isolamento absoluto e essa constitui a unidade original ambiente-indivíduo, onde há um equilíbrio estático e também nenhuma troca entre as partes.

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WINNICOTT, Natureza Humana, p147.

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Para iniciar algum contato entre as partes surge a questão: esse contato se dará como parte do processo vital do indivíduo ou como intranquilidade do ambiente? Caso esse contato se dê por uma adaptação ativa, o indivíduo descobre e penetra o ambiente. Como nos movimentos do bebê dentro do útero.

Adaptação ativa

No outro caso, menos feliz, é o ambiente que se movimenta contra o indivíduo e é denominado intrusão. A intrusão é imprevisível e o indivíduo reage por não ter relação alguma com o seu próprio processo vital.

Intrusão

Esses padrões de inter-relação são uma forte síntese de uma sucessão de relacionamentos que criamos com o mundo, porém em suas consequências psicológicas os os sentimentos relacionados com os dois formatos tem consequências diferentes. Enquanto no primeiro, o acúmulo de experiências parece fazer parte da vida e ser portanto real, de modo ativo; no segundo a reação à intrusão subtrai algo da sensação de um viver verdadeiro, que é recuperada apenas através do retorno ao isolamento, na quietude, e de forma passiva. É interessante notar como um estado tão primitivo já remonta com tanta riqueza nossa vida em relação com o mundo e principalmente torna-se uma analogia direta do sair e voltar para casa. Isso está longe de ser algo somente interessante à psicologia, Norberg-Schulz ao construir a ideia de espaço existencial utiliza exatamente o mesmo diagrama para configurar os orifícios de um edifício nessa relação dentro-fora como forma de entender o que é de fato habitar:

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“When places interact with their surroundings, a problem of inside and outside is created. This topological relation therefore is a fundamental aspect of existencial space. To be inside is, obviously, the primary intention behind the place concept, that is to be somewhere away from what is outside. Only when man has defined what is inside and what is outside, can we really say that he ‘dwells’. Through this attachment, man’s experiences and memories are located, and inside of space becomes an expression of the ‘inside‘ of personality7”.

Conjugando essas duas ações podemos construir a gênese psicológica de alguns dispositivos arquitetônicos que conjugam o espaço interno com o externo. É interessante notar como essa comunicação é semelhante nos edifícios ao funcionamento de portas e janelas, pois ao estabelecer um espaço interno é preciso que esse espaço seja atravessado de alguma forma, e a questão de como atravessá-lo na escala arquitetônica funda um espaço de transição, um espaço de comunicação.

Na definição de uma porta ou janela o espaço interno se expande para o externo. Concomitantemente o exterior se expande para dentro, nessa interação nasce um espaço intermediário e indefinido onde a comunicação e a troca se permite. Esse espaço teórico faz parte de dentro e de fora ao mesmo tempo. Nesse espaço residem as possibilidades sempre existentes de se abrir ou se fechar, unir ou separar. Não é de se surpreender que, desde tempos tão remotos, a porta, os portais e as janelas carre7 “Quando o lugar interage com o seu entorno, um problema de dentro-e-fora é criado. Por conseguinte, esta relação topológica é um aspecto fundamental do espaço existencial. Estar dentro é, obviamente, a principal intenção por trás do conceito lugar, que é estar em algum lugar, longe do que está lá fora. Somente quando o homem tem definido o que está dentro e o que está fora, podemos realmente dizer que ele ‘habita’. Através desta ligação, as experiências e memórias dos homens e mulheres estão localizadas, e o espaço interior torna-se uma expressão do “interior” da personalidade”. NORBERG-SCHULZ. Existence, Space, Architecture, p25.

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guem tanto simbolismo em sua arquitetura, afinal elas marcam transições fazendo parte de ambos os domínios. São ao mesmo tempo símbolos de união e separação. São os portais que marcam o fim de um domínio e o começo de outro. Nesse espaço in between ambos os espaços coexistem como ideia, o que permite dizer que psicologicamente as portas estão, ao mesmo tempo, sempre abertas e fechadas. O espaço externo está sempre presente como possibilidade de acontecimento e vice-versa. Entendendo que transpor o limites entre dois ou mais domínios é a relação fundamental da comunicação. Percebemos como as portas e janelas se podem ser lidas, também, como a própria linguagem de um edifício, a forma como um edifício se relaciona com seu entorno é análoga à forma como nos relacionamos com o mundo. Permitindo ou não esse intercâmbio de pessoas, objetos, sons, luz, calor e outros elementos. Os orifícios na envoltória de um edifício são sua forma de comunicação com o entorno. Já os muros cegos, estes também são surdos e mudos. Fazer trocas entre dentro e fora é a essência da comunicação e do comércio. “The opening is the element that makes the place become alive, because the basis of any life is interaction with an environment8”.

A característica mais básica de todo organismo vivo é manter trocas com o ambiente. Todo ser vivo está, a todo momento, transpondo gases, alimentos, dejetos, ferramentas e ideias. Todas as estruturas vivas se desenvolvem em torno dessa conjugação e tendo isso em mente percebemos como é nas portas, janelas e outros dispositivos que um edifício se torna “vivo”. Garantindo essa função é que podemos entender mais precisamente a beleza de conceitos como o de uma “arquitetura viva”, de uma “cidade viva” e até qual a beleza que economistas podem ver no “livre mercado”. As trocas são expressões de estruturas vivas. Uma arquitetura maciça e de empenas “cegas” pode ser considerada mais reservada e tímida, quase morta. Por outro lado um bloco aberto e prenhe de portas e janelas se comporta de maneira mais extrovertida e se abre ao diálogo com a cidade. A questão da comunicação entre um interior e um exterior é central tanto para o indivíduo como para a arquitetura e nessa perspectiva é possível entender como uma arquitetura fala, se coloca, se expõe diante do mundo. 8 “A abertura é a elemento que faz o espaço se tornar vivo, porque a relação básica de qualquer estrutura viva é justamente se relacionar com o ambiente”. Ibid. p25.

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Ballykeel Dolmen é um túmulo portal neolítico em forma de tripé, em Slieve Gullion, na Irlanda do Norte


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Apesar dos estágios iniciais serem uma teoria muito frutífera para entender — de maneira fenomenológica — o espaço psicológico do habitar, existe outro conceito que creio ser importante nesse aspecto. Nesse estágio no qual o bebê se encontra, ele ainda não reconhece a existência de uma exterioridade, há apenas acomodações e intrusões imprevisíveis e desconhecidas e nenhum limite para a própria existência. Este diagrama topológico é uma ferramenta tão singela que podemos criar um modelo de qualquer relação espacial-mental e todas as interações humanas e biológicas com sua exterioridade. Porém essa relação ambiente-indivíduo, até agora ainda é muito pura. Até bactérias já possuem relações de adaptação ativa e intrusão, e sem uma subjetividade formada o desdobramento dessas relações espaciais ainda é muito pobre, Por isso precisamos avançar ainda mais no desenvolvimento do ser humano, onde essas relações deixam marcas mais fortes e evidentes. “É preciso lembrar que os estágios iniciais jamais serão verdadeiramente abandonados, de modo que ao estudarmos um indivíduo de qualquer idade, poderemos encontrar todos os tipos de necessidades ambientais, das mais primitivas à mais tardias9”.

Onipotência e existência Um bebê nos primeiros dias de sua vida ainda não se entende enquanto um “eu” (self) dentro da barriga da sua mãe e a presença desse fator é importante para caracterizar qual o ideal psicológico que buscamos ao nos abrigar e nos defender em casa. Que sentimento buscamos no abrigo? Esse entendimento só é possível a partir de uma consciência formada. Continuando essa breve e genérica história de desenvolvimento humano chegamos agora a um bebê recém nascido que ainda não se alimentou. Esses primeiros momentos de autonomia dos pulmões e outros órgãos antecedem a uma outra sensação nova e estranha: a fome. O bebê acaba de perder sua morada, seu lugar protegido e nutritivo que supria todas as suas necessidades imediatas de maneira automática. Agora, que nasceu, sua nutrição não mais se resolverá sozinha. Agora ele 9

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WINNICOTT, D. W. Natureza Humana, p179.


dependerá do cuidado externo e mais cedo ou mais tarde essa novidade sensacional irá se apresentar. É nessa “fome primitiva” que Winnicott traz um entendimento sobre a gênese da criatividade. O processo criativo é algo tido como uma caixa preta de artistas, escritores, cientistas e arquitetos e dentro dessa forma topológica de entender o mundo podemos perguntar: Como algo do interior de nossos pensamento pode se construir objetivamente no mundo afora? Como é possível imaginar algo que nunca foi visto chegar ao ponto de ser construído e se tornar realidade? Existe uma criatividade primária? Ou o ser humano é capaz de apenas projetar aquilo que foi anteriormente introjetado, ou em outras palavras, de excretar o que foi ingerido? Ainda não existe uma resposta clara, mas Winnicott10 ao levantar essas questões traz considerações acerca da primeira — deliciosa — sensação de criação e essa se configura logo após o nascimento: na amamentação. Adentrando este novo mundo o alimento não mais lhe será fornecido pelo cordão umbilical e sabendo que o bebê não precisa imediatamente de leite a necessidade de nutrição virá lentamente, sentida como um desconforto que depois pode ser traduzido como fome. Hoje sabemos que a fome será saciada por uma observadora privilegiada, porém o bebê que acaba de nascer ainda não sabe disso. O sentimento de fome ou desejo da nutrição surge como uma novidade, uma excitação descontrolada que será completada pela amamentação. O bebê desconhece o mundo a sua volta e apalpando descobre vagarosamente que — como mágica — foi colocado a sua frente um mamilo. Após uma certa investigação, o bebê instintivamente passa a sugá-lo e se nutrir, mas mesmo guiado pelo instinto ele ainda desconhece a existência de sua mãe. Essa primeira mamada teórica11 é importante devido ao valor ilusório que ela representa, na perspectiva do lactante é como se a própria excitação da fome tivesse criado o seio que lhe nutre. A própria fome inventou o alimento. A vontade inventou a saciedade: este um sentimento extremamente potente. Ele próprio se sacia. 10 Ibid. p130. 11 Winnicott pondera que não é apenas a primeira mamada real que traz esse configuração de mundo, mas a soma padronizada das primeiras mamadas, a essa soma dá o nome de “primeira mamada teórica”.

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Lied Vom Kindsein Canção

Als das Kind Kind war, ging es mit hängenden Armen, wollte der Bach sei ein Fluß, der Fluß sei ein Strom, und diese Pfütze das Meer. Als das Kind Kind war, wußte es nicht, daß es Kind war, alles war ihm beseelt, und alle Seelen waren eins.

Als das Kind Kind war, hatte es von nichts eine Meinung, hatte keine Gewohnheit, saß oft im Schneidersitz, lief aus dem Stand, hatte einen Wirbel im Haar und machte kein Gesicht beim fotografieren.

Quando a criança era criança, andava balançando os braços, queria que o riacho fosse um rio, que o rio fosse uma torrente e que essa poça fosse o mar. Quando a criança era criança, não sabia que era criança, tudo lhe parecia ter alma, e todas as almas eram uma. Quando a criança era criança, não tinha opinião a respeito de nada, não tinha nenhum costume, sentava-se sempre de pernas cruzadas, saía correndo, tinha um redemoinho no cabelo e não fazia poses na hora da fotografia.

Als das Kind Kind war, war es die Zeit der folgenden Fragen: Warum bin ich ich und warum nicht du? Warum bin ich hier und warum nicht dort? Wann begann die Zeit und wo endet der Raum? Ist das Leben unter der Sonne nicht bloß ein Traum? Ist was ich sehe und höre und rieche nicht bloß der Schein einer Welt vor der Welt? Gibt es tatsächlich das Böse und Leute, die wirklich die Bösen sind? Wie kann es sein, daß ich, der ich bin, bevor ich wurde, nicht war, und daß einmal ich, der ich bin, nicht mehr der ich bin, sein werde?

Quando a criança era uma criança era a época destas perguntas: Por que eu sou eu e não você? Por que estou aqui, e por que não lá? Quando foi que o tempo começou, e onde é que o espaço termina? Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho? Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro não é só a aparência de um mundo diante de um mundo? Existe de fato o Mal e as pessoas que são realmente más? Como pode ser que eu, que sou eu, antes de ser eu mesmo não era eu, e que algum dia, eu, que sou eu, não serei mais quem eu sou?

Als das Kind Kind war, würgte es am Spinat, an den Erbsen, am Milchreis, und am gedünsteten Blumenkohl. und ißt jetzt das alles und nicht nur zur Not.

Quando uma criança era uma criança, Mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz, e couve-flor cozida, e comia tudo isto não somente porque precisava comer.

12 Poema de Peter Handke, in WENDERS, Win. Asas do Desejo

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de ser criança 12


Als das Kind Kind war, erwachte es einmal in einem fremden Bett und jetzt immer wieder, erschienen ihm viele Menschen schön und jetzt nur noch im Glücksfall, stellte es sich klar ein Paradies vor und kann es jetzt höchstens ahnen, konnte es sich Nichts nicht denken und schaudert heute davor. Als das Kind Kind war, spielte es mit Begeisterung und jetzt, so ganz bei der Sache wie damals, nur noch, wenn diese Sache seine Arbeit ist. Als das Kind Kind war, genügten ihm als Nahrung Apfel, Brot, und so ist es immer noch. Als das Kind Kind war, fielen ihm die Beeren wie nur Beeren in die Hand und jetzt immer noch, machten ihm die frischen Walnüsse eine rauhe Zunge und jetzt immer noch, hatte es auf jedem Berg die Sehnsucht nach dem immer höheren Berg, und in jeden Stadt die Sehnsucht nach der noch größeren Stadt, und das ist immer noch so, griff im Wipfel eines Baums nach dem Kirschen in einem Hochgefühl wie auch heute noch, eine Scheu vor jedem Fremden und hat sie immer noch, wartete es auf den ersten Schnee, und wartet so immer noch. Als das Kind Kind war, warf es einen Stock als Lanze gegen den Baum, und sie zittert da heute noch.

Quando uma criança era uma criança, Uma vez acordou numa cama estranha, e agora faz isso de novo e de novo. Muitas pessoas, então, pareciam lindas e agora só algumas parecem, com alguma sorte. Visualizava uma clara imagem do Paraíso, e agora no máximo consegue só imaginá-lo, não podia conceber o vazio absoluto, que hoje estremece no seu pensamento. Quando uma criança era uma criança, brincava com entusiasmo, e agora tem tanta excitação como tinha, porém só quando pensa em trabalho. Quando uma criança era uma criança, Era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão, E agora é a mesma coisa. Quando uma criança era criança, amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem, e também fazem agora, Avelãs frescas machucavam sua língua, parecido com o que fazem agora, tinha, em cada cume de montanha, a busca por uma montanha ainda mais alta, e em cada cidade, a busca por uma cidade ainda maior, e ainda é assim, alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores, como, com algum orgulho, ainda consegue fazer hoje, tinha uma timidez na frente de estranhos, como ainda tem. Esperava a primeira neve, Como ainda espera até agora. Quando uma criança era uma criança, Arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore, E ela ainda está lá, chacoalhando, até hoje.

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“Através da magia do desejo, podemos dizer que o bebê tem a ilusão de possuir uma força criativa mágica, e a onipotência existe como um fato, através da sensível adaptação da mãe13”.

Esse primeiro estado ilusório chamado por Winnicott de “onipotência14” se caracteriza pela ausência do outro. Nesse estado excitado só existe o bebê que, usando apenas sua vontade “cria” todo o mundo a sua volta. A manutenção deste estado é possível conforme sua mãe consiga se adaptar as necessidades imediatas de seu filho ou filha. O bebê não percebe, por enquanto o fato de que o mundo existia antes dele ser concebido ou de conceber o mundo, mas a realidade é que — e nós sabemos — o mundo existe tendo o bebê o criado ou não. Esse sentimento excitado de onipotência ilusória é para Winnicott o grande criador de relacionamentos um sentimento fundamental que se torna uma busca prazerosa na vida de cada indivíduo. Esse estado cria no próprio ser humano o sentimento do que talvez poderíamos entender como a essência da divindade, um Deus que pode fazer tudo o que bem entender, sem preocupação com a morte nem com nenhum outro problema. Sloterdijk, para iniciar sua jornada pelas esferas, utiliza exatamente a figura de uma criança soprando uma bolha, questionando nesse soprar da bolha da existência, quem afinal soprou nossa bolha15? Deus cria uma casca de argila para Adão e em seguida a preenche com o sopro da existência. É a partir deste "sopro" desconhecido que nos tornamos humanos com uma vida interna e um exterior. 13 Ibid. p126. 14 Na teoria de Freud essa fase está inscrita num estado mais amplo do bebê chamado Narcisismo primário. FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo (1914). in. Obras Completas Volume 12. 2010. p13-50. 15 SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. Capítulo 1.

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No teto da Capela Sistina vemos que, para Michelangelo, a criação é um ato não apenas divino como também cerebral.


Mãe

seio "bom" oculto

Bebê "bom"

"mau" excretado

"mau" retido para expressar raiva

Tempo A mãe sustenta a situação

objetos "bons" objetos "maus"

A maior parte dos mitos de criação partem de um Deus que inventa o mundo; não podemos negar que na perspectiva do bebê é exatamente isso o que se sucede, porém esse estado infantil de divindade ilusória ainda precede a consciência ciente do mundo externo. O universo acessível da criança ainda se limita à sua relação nutritiva com o seio e as sensações provenientes da digestão, que também carregam sentimentos que acabam sendo entendidos pelo bebê com um certo maniqueísmo. As coisas boas devem ser incorporadas para exprimir o amor (alimento) e as coisas más devem ser expelidas (fezes) ou então mantidas para exprimir seu sentimento de ódio. É interessante notar como esse diagrama do cosmos infatil, pode ser um modelo análogo à habitação, um local confortável e nutritivo onde todas as vontades são saciadas, onde guardamos o que é bom e expelimos o que é ruim. Voltaremos. Winnicott diz que não importa que num momento posterior o bebê descubra a verdade do quão dependente ele é e que na realidade sua mãe estava acompanhando e guiando todo o processo, esse sentimento de onipotência é tão potente que ficará como um ideal de relação com o mundo e é a raiz da criatividade. Esse sentimento potente também é a justificativa por trás da aparente tirania das crianças, nesse estado "Sua Majestade, O bebê"16 tendo todas as suas vontades atendidas, guarda uma aura ainda soberana sobre a vida. Denominada de crueldade ou crueza (ruthless) ou por esse comportamento implacá16 FREUD, Introdução ao Narcisismo. p34.

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vel, essa fase é comandada pela pura vontade egoística que ainda ignora a existência ou a negociação com o outro. Ainda não existe um mundo externo ou outro indivíduo para haver diálogo, tudo o que existe é o indivíduo, seus próprios desejos e alguns infortúnios desconhecidos. Nem sempre o desenvolvimento segue a fórmula dessa situação, há outro cenário possível: onde o bebê é forçado a mamar antes que sinta naturalmente sua própria vontade. No momento que sua mãe, enfermeira ou outra figura força a alimentação — na melhor das intenções, por ansiedade ou precaução — acaba criando no recém-nascido um sentimento inverso: o sentimento de que o mundo trará todas as suas necessidades sem o esforço e a necessidade de desejar. Se o sentuimento de onipotência é uma adaptação ativa, a mamada forçada é uma intrusão do mundo, por mais benéfica e bem intencionada que seja. Na visão de Winnicott esta criança forçada perderá a capacidade de ‘criar’ o seio e pode criar uma personalidade de ter que "ser empurrada” pela vida. Desenvolvendo uma dificuldade de conjugar esse limite 'dentro-fora' a criança pode criar uma cisão no próprio self onde o mundo se divide em uma forma privada e outra passiva, um self verdadeiro recluso e submerso e um outro falso self, que em casos mais extremos eventualmente se fará notar como o caso clinico da esquizofrenia. “No grau extremo de cisão a criança não tem qualquer razão para viver. Nos níveis menos elevados existe um certo sentimento de futilidade relativo à vida falsa, e uma busca incessante daquela outra vida que seria sentida como real, mesmo que levasse à morte, por exemplo através da inanição17“

Aqui nasce uma das primeiras bifurcações de personalidade rumo à complexidade infinita de pessoas e seus diferentes modos de agir com o mundo. A questão da criatividade interessa muito às profissões ditas “criativas” e mesmo que seja difícil precisar que tipo de pessoa escolhe cada profissão não é difícil imaginar que o arquiteto, urbanista, designer, publicitário, cineasta, entre outros profissionais ditos “criativos” sejam alimentados por essa motivação de sentir novamente esse estado de poder concretizar sua própria vontade, de imprimir ao espaço externo as formas de sua fantasia interna. 17 WINNICOTT. Op. Cit. p128.

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Ainda que na vida adulta existam inúmeros passos intermediários entre o querer e o poder concretizar suas vontades, o sentimento de ver algo que figurava subjetivamente em nossa mente passar a existir concretamente no mundo é um sentimento de extrema potência e deleite. Esse meio tempo entre o desejar e o tempo e trabalho gastos para concretizar um projeto engloba praticamente todas as questões profissionais, requisitos técnicos, econômicos, políticos e as metodologias que usamos para concretizar uma ideia. Esse prazeroso estado de criação é um sentimento que pertence ao universo lúdico de grande parte das pessoas e é continuamente usado na nossa criatividade individual em relação ao mundo. Dentro do universo da arquitetura esse fator está presente não apenas na intenção do arquiteto, mas também no que cada morador espera de seu projeto. Todos possuem uma vontade de infligir seu desejo no espaço, mas para isso o arquiteto precisa deixar espaço para que o usuário possa criar o seu mundo. O usuário deve poder experimentar sua criatividade e criar pelo menos um pouco do mundo à sua volta, sobretudo o de sua própria casa. O excesso de desenho — que existe como forma de garantir a execução de um desenho com precisão — às vezes extrapola a necessidade real, o que demonstra um objetivo ensimesmado de criar o mundo para si próprio sem o consentimento e a participação de outros. É clara a facilidade do arquiteto, ou usuário, cair nesses descaminhos e inventar para si uma realidade paralela que não permite a existência do outro. “Quando o realismo e o virtuosismo gráfico numa representação arquitetônica se tornam grandes demais, quando já não contém ‘pontos em aberto’ onde podemos penetrar com nossa imaginação e que fazem surgir a curiosidade pela realidade do objeto representado, então é a própria representação que se torna o objeto da cobiça. O desejo pelo real desvanece-se. Já pouco ou nada aponta para a realidade de que se fala, para o que se encontra fora da representação18”

Não há dúvida que ver a concretização de nossos sonhos é uma experiência deliciosa para qualquer um, mas a partir da constatação da alteridade, do outro com suas próprias vontades e desejos igualmente importantes e relevantes; essa concretização se torna mais complexa. 18 ZUMTHOR, Peter. Pensar a arquitetura. p12.

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Considerando as implicações econômicas, políticas e sociais não é possivel atender a vontade de todos e nesse âmbito a questão fundamental é: Como chegar ao ponto de realizar nossos desejos? Concretizar nossos sonhos é uma questão que versa fortemente sobre o poder de realizá-los. O poder é uma questão muito importante para a prática da arquitetura, afinal, como prática econômica de grandes esforços e enormes impactos, a construção precisa mobilizar um grande número de atores para resultar na concretização de um projeto. Até a menor construção é dependente de uma situação política, econômica e social favorável; além de um montante de trabalho social acumulado em função daquele bem. Construir é orquestrar uma quantidade enorme de fatores que precisam necessariamente trabalhar juntos. Mas como esses fatores se alinham é uma questão ainda mais complexa. A concretização de qualquer projeto versa em oferecer para cada um dos envolvidos algo que seja do seu interesse. Passamos a utilizar o dinheiro como moeda de troca, mas esse não é o único motor, o interesse comum pode também empreender pessoas em um trabalho, assim como ameaças e outras chantagens. Se seus realizadores não podem compartilhar, trabalhar conjuntamente, nem pagar pelos próprios desejos, menores são as chances desse projeto individual ou coletivo ser realmente construído. Voltar ao estado infantil onde a simples vontade magicamente realiza sua obra pode se tornar um objetivo para alguém que deseja fervorosamente uma realidade moldada para si. Quando o que faz bem a um, causa mal ao outro; a realização de um desejo inocente pode se tornar um problema coletivo. É inevitável pensar como é simples realizar algo quando possuimos todo o poder necessário para a empreitada e assim construir plenamente nossa vontade, mas conforme qualquer projeto fica mais complexo consequentemente menor é a liberdade de criação. É muito mais fácil pintar um quadro do começo ao fim do que construir uma casa levantando sozinho cada tijolo. Analisando isso historicamente, não é de se estranhar por quais motivos a figura do arquiteto, para realizar seus interesses, sempre teve de estar muito próxima às esferas de poder. Tendo como aliado um rei ou ditador, há muito menos pessoas com as quais dialogar, convencer ou manipular.

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Arquitetura e poder estão tão relacionados que o primeiro arquiteto citado na história da arquitetura — Brunelleschi — foi justamente aquele que conseguiu separar a construção do projeto. Escondendo seu desenho de todos, fazia os operários, que antes projetavam conjuntamente durante a contrução, agora trabalharem apenas cumprindo ordens e ainda com salários menores, quebrando a corporação de ofício dos pedreiros de Florença. A separação entre o canteiro e o desenho19, ou seja: entre aquele que pensa e o que constrói é o sentimento que estabelece esse poder criativo executado sem esforço, apenas pela "mágica" do desejo. Esse poder criativo, que consegue desenhar o mundo a sua vontade não é apenas um objetivo dos arquitetos na renascença, hoje o avanço tecnológico tem permitido uma centralização equivalente. "Não é improvável que estejamos vivendo uma inflexão de proporções similares à revolução promovida por Brunelleschi, decorrente da conjunção entre dominância financeira e novas tecnologias digitais. A ideologia do topo-poderoso master-builder é revivida, mas agora sob o arbítrio da era digital e amparada pelos novos modelos multidimensionais de gestão de informações de projeto, como "ideação" arquitetônica tornanda uma programação total20".

O “criativo” que luta fervorosamente por ideias de cunho pessoal pode estar, no fundo, apenas querendo garantir a satisfação de concretizar seu desejo egoísta inicial, porém numa sociedade ideal, onde a vontade de cada um é equivalente, a situação é mais complexa. A democracia e a igualdade não são fáceis de implantar e seu espaço de vigor costuma ser limitado a um território limitado, onde a lei vigora sob acordo mútuo. É preciso uma quantidade tal de pessoas para que um regime político se estabeleça, e o diálogo e a negociação se tornam atividades constantes. A melhor estratégia costuma ser compartilhar sonhos, trabalhar conjuntamente e dividir tarefas. A partir da necessidade coletiva podem surgir empresas diversas e estas tem uma potencialidade de realização muito maior quando divididas e alimentadas coletivamente. É uma ilusão tentar dominar o espaço apenas para si. Numa perspectiva histórica o espaço nunca é exclusividade de ninguém, ninguém é imortal para dominar para sempre o espaço para si. 19 FERRO, Sérgio. 20 ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na Era digital-financeira. p.3.

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Condições para a onipotência Ao longo desta trajetória de conhecimento de si mesmo e do mundo, a criança entende de que o mundo externo não se adequa perfeitamente à sua imperatividade. Mesmo que o conforto venha em seguida, há um crescente sentimento de que o mundo — e sua mãe — não se adequam perfeitamente às suas vontades e assim ele começa a perceber uma exterioridade entendida como não-eu, como lugar onde acontecem coisas fora do meu controle. Dentro desse sentimento de alteridade, entendento que existem coisas fora do próprio controle, lentamente vai ocorrendo a integração do self, ou seja o bebê passa a entender que ele próprio existe diferente do mundo, a existência do não-eu cria o entendimento da existência de si próprio. A cada dia, ao acordar e ao relaxar, os limites da bolha da existência se reconstroem e novamente se desfazem até que num determinado momento a experiência de existir concretamente se torna constante. Quando o bebê entende a pré existência do mundo começam a cair suas fantasias de onipotência, suas façanhas tiveram sustento baseadas no cuidado de sua mãe e a forma de encarar o mundo que o rodeia começa a mudar. Esse sentimentos, de assumir a própria dependência frente ao mundo introduzem os próximos capítulos, onde o indivíduo já possui noção da existência de si próprio e do mundo. Winnicott afirma que essa condição de se acreditar potente frente ao mundo é um sentimento poderoso, que por mais que seja desmascarado no futuro, abriga, na sua lembrança e busca, uma força impulsionadora para a vida. Podemos analisar melhor essa condição, e o diagrama contendo o seio e o bebê dentro de um mesmo cosmos é um modelo bastante completo. Analisando a topologia dessa relação, percebemos como existem basicamente duas características topológicas que permitem que a ilusão de onipotência possa se instaurar. A primeira característica é a ignorância, ou negação, da existência do outro, tanto a mãe que cuida e nutre como qualquer outra instância externa, e a segunda é o próprio cuidado e atenção. Essa ilusão de onipotência só pode vigorar caso a mãe seja suficientemente boa. Há muitas semelhanças topológicas entre a situação no útero e a ilusão de onipotência, em ambas há abrigo e nutrição, mas somente na onipotência há um sentimento ativo de estar controlando a própria vida, sem depender de ninguém.

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Voltando ao sentimento primordial que reside no espaço fechado percebemos como o espaço privado possui, de certa maneira, uma capacidade de restabelecer ao ser humano um pouco desse sentimento de potência primitiva. Deixando de fora todas as leis e imposições da natureza, é possível recriar esse estado de negação do mundo externo e novamente se sentir potente, mesmo que num espaço limitado e sob uma ilusão temporária. E aqui revelamos uma das funções que buscamos no espaço fechado, que é justamente restabelecer momentaneamente um mundo pré-dependência onde nossa existência é absoluta e potente, onde estamos abrigados do conflito com a vontade do outro e das imprevisibilidades da natureza. Somente ignorando a existência externa, ou seja: a existência do outro, do antagonista com seus planos e projetos diversos; é que podemos reinar no ambiente soberano de nossa vontade. Ao levantar muros, criar e enrijecer os limites que nos separam dos outros e das intrusões do mundo podemos negar todas essa intromissões e filtrar apenas aquilo que nos interessa, reestabelecendo essa ilusão de independência e poder. Porém, esse espaço fechado só se tornará um espaço de potência se responder prontamente às vontades de seu dominador. Além de limitar a possibilidade de contingências, também é preciso reinstaurar esse cuidado mágico que dá a ilusão de onipotência. É preciso que haja nutrição e cuidado com mínimo esforço, realizados pela simples vontade que eles se realizem. No bebê, o sentimento de onipotência se concretiza quando sua nutrição ou outro desconforto é saciado ou resolvido. Já no espaço fechado esse cuidado precisa acontecer pela existência de agentes diferentes e são as "ordens" que permitem ao “espaço“ responder à vontade de potência. Poder dar ordens e estas serem obedecidas sempre foi uma habilidade para poucos e é somente assim que a potência se reinaugura. Qualquer ordem também só pode ser executada dentro dos limites de sua abrangência, pois frente à natureza a própria vontade é inócua, tentar dar ordens à natureza é um exercício de ignorância ou insanidade. Assim, dentro de um limite estabelecido, retirando a contingência da equação, é infligindo nossas vontades ao espaço — e mais precisamente às outras pessoas — que esse sentimento de onipotência pode se saciar. É interessante notar o quanto esse modelo topológico se assemelha com algumas configurações arquitetônicas e urbanísticas.

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Garantir essa ilusão de poder é uma das mais frutíferas e patéticas funções da sociedade e as formas como esse sentimento de poder podem se reafirmar percorrem todas as escalas. Como é impossível controlar imperiosamente a natureza o ser humano passou a criar espaços limitados e controlados onde seu poder é consequentemente maior. Na história das construções há diversos exemplos desses limites que abrigam e delimitam um poder superior. A muralha da cidade não serve apenas para proteção, ela limita também o espaço de potência do ser humano, fora da muralha há apenas a "lei da nautureza". Já dentro dos muros da cidade a vontade do rei é a lei. Na cidade onde quem governa é um rei, toda uma classe de subalternos: escravos e soldados são mantidos para garantir o sentimento de onipotência ao governante supremo. Na escala da cidade há sempre uma figura que impera, seja o rei, o monarca, o presidente, o prefeito, entre outros. Analisando a democracia ateniense podemos perceber como a igualdade entre cidadãos se extendia em um espaço limitado que começava nos muros da cidade e espraiava até a porta de cada habitação. Fora dos muros vigora a crueldade e a dependência total da natureza. Dentro das residências, a hierarquia estabelecia o poder máximo ao patriarca. Entre a escala da dependência total e a escala da potência total pôde existir a democracia.

Essa propaganda antiga, veiculada em revistas da década de 60 ,deixa claro: os outros existem para garantir ao homem sua satisfação e conforto. O segundo lugar na hierarquia é do carro.

As diferentes escalas e as pessoas que os dominam também criam para cada grupo, família ou indivíduo, um espaço para ser dominado e controlado. E esses limites se subdividem como num organograma das escalas de poder. Cada escala tem seu soberano e seus seviçais. O simples fato de se fechar em casa significa limitar as intrusões do mundo e pode significar novamente ter potência frente à própria existência. Na residência, escravos, empregados ou serviçais domésticos sempre existiram e foram mantidos para garantir ao patriarca — ou outra figura de dominação — o sentimento imperativo da potência. Há também diversos dogmas ou regras que sempre serviram como base para a manutenção dessa hierarquia e poder frente ao espaço, como o racismo, sexismo, divisões de idade ou as mais diversas diferenciações, existentes para controlar o outro. "A máquina brasileira de morar, ao tempo da colônia e do império, dependia dessa mistura de coisas, de bicho e de gente, que

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era o escravo. Se os casarões remanescentes do tempo antigo parecem inabitáveis devido ao desconforto, é porque o negro está ausente. Era ele que fazia a casa funcionar: havia negro para tudo – desde negrinhos sempre à mão para recados, até negra velha, babá. O negro era esgoto; era água corrente no quarto, quente e fria; era interruptor de luz e botão de campainha; o negro tapava goteira e subia vidraça pesada; era lavador automático, abanava que nem ventilador. Mesmo depois de abolida a escravidão, os vínculos de dependência e os hábitos cômodos da vida patriarcal de tão vil fundamento, perduraram, e, durante a primeira fase republicana, o custo baixo da mão de obra doméstica ainda permitiu à burguesia manter, mesmo sem escravos oficiais, o trem fácil da vida do período anterior21".

Historicamente, nessa pirâmide de poderes, mulheres, crianças, negros, escravos, servos e empregados; quando não são obrigados a servir, ficam com as sobras, garantindo, na ausência de seus patriarcas, maridos, etc; sua figura de autoridade. Isto se sua posição social lhe permitia esse luxo. Essa hierarquia se mantém por um acordo social e a lógica beira o sadomasoquismo: respeitando as leis de meu superior, este me permite reinar e ser senhor em meus próprios domínios infligindo aos meus inferiores minha própria vontade. Colocar-se nessa balança entre obedecer e dar ordens sempre foi uma situação reconfortante para o sentimento de culpa. E também uma configuração bastante encontrada nos agrupamentos humanos em seu comportamento de dominação frente à natureza e subordinação à entidades como Deus ou o Estado22. A questão de portar o poder é sempre muito frágil, pois diferente do dinheiro e de outras posses, o poder não é mensurável. A única forma de descobrir-se poderoso é infligindo ordens ao outro, caso suas ordens sejam executadas, junto com elas vêm o sentimento e a confirmação de sua potência. O poder — para existir — precisa constantemente inflar medo e novas regras aos seus executores para provar a si próprio que continua existindo. Ter poder e não usá-lo coloca em xeque se esse poder realmente existe. O poder é uma ilusão, afinal a execução de ordens é 21 COSTA, Lúcio. “Depoimento de um arquiteto carioca”. p.174-175. 22 Um aprofundamento sobre essa condição e sua ligação com a religião pode ser encontrada no livro: FEUERBACH, Ludwig, SERRÃO Adriana V. (trad.). Filosofia da Sensibilidade. Escritos (1839-1846).

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sempre relativa. Todo rei suspeita que está nu, mas invariavelmente seu medo é que sua nudez e impotência sejam descobertas e ele se torne igual aos outros. “Ser rei é um efeito da rede de relações sociais entre um “rei” e seus “súditos”; mas — aí é que está o desconhecimento fetichista —, para os participantes desse vínculo social, a relação aparece necessariamente de forma inversa: eles acham que são súditos, dando ao rei um tratamento real, porque o rei já é rei em si mesmo, fora da relação com seus súditos, como se a determinação “ser rei” fosse uma propriedade “natural” da pessoa de um rei23".

Para muitas pessoas esse é o sentido primeiro da própria casa. O espaço fechado, desde um quarto até um país, existe como forma de estabelecer os limites dessa potência e garantir "um lugar no mundo". "Posso ser rei de um reino muito pequeno, mas ainda rei". "Como não recordar aqui a famosa afirmação lacaniana de que um louco que acredita ser rei não é mais louco do que um rei que se acredita rei (...)? 24”.

Na relação do bebê com sua onipotência é sua mãe que garante a “execução de suas ordens”, mas no momento em que a mãe falta com sua responsabilidade essa ilusão de onipotência se destrói. Nesse momento a dependência surge como única e inexorável realidade, o mesmo se dá com a sociedade na manutenção de uma figura no poder. O poder só vigora enquanto alguém o mantém. Todo o poder emana do povo25. Tanto na vida mental do ser humano como na sociedade a sociabilidade só pode existir numa forma de repressão desse instinto narcisista de ser o todo-poderoso. O comportamento infantil costuma ser dado a essas crueldade, mas não por muito tempo. Tanto o amor como forças de opressão e sociabilidade logo entram em jogo no universo infantil. De maneira mais resumida, podemos dizer que, na vida mental os medos e castigos fundam a existência de uma entidade interna de 23 MARX, Karl. O Capital, apud ŽIŽEK, Slavoj. “Como Marx inventou o sintoma?” p.309. 24 Ibid. p.309. 25 Art. 1, § 1 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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repressão dos instintos destrutivos em prol de uma sociabilidade26: o superego. Já nas civitas, essa entidade mental ganha poder institucional e é na lei que — teoricamente — a balança entre o poder e o direito individual podem ser limitados e controlados em seu poder destrutivo. “Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme. Uma, envolve a região moral do pensamento. A outra, a região fisiológica do organismo. Dessas duas regiões se forma o domínio impenetrável da nossa personalidade”27

Como questão fundadora e central do direito, a justiça social desde tempos pré-institucionais, busca desenvolver formas de limitar o poder individual e trazer garantias de direitos coletivos à sociedade. Se em algum momento a lei pública vigorava somente até a soleira da residência de cada um, onde para dentro vigorava uma regra interna, hoje, na metrópole e no estado modernos, o espaço doméstico foi invadido pela lei. Trazendo garantias contra a exploração daqueles que, dentro de casa, instrumentalizam e sustentam o poder: mulheres, crianças, idosos e empregados, quando não escravos. Vivemos um momento 26 FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. 27 BARBOSA, Rui (1904) apud CARNEIRO, Henrique. A fabricação do vício. 2002.

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"It's lucky she's a robot, otherwise she would've lost patience long ago". ("É uma sorte que ela seja um robô, caso contrário, ela teria perdido a paciência há muito tempo".) Rosie dos seriado The Jetsons, exibido a partir de 1962. Criação de Bill Hanna e Joseph Barbera.


Robô doméstico ASIMO, desenvolvido pela Honda.

histórico onde as regras e leis da escala pública invadem o espaço privado limitando a exploração dos mais fracos. Esta é uma condição notavelmente moderna, antes desse avanço jurídico, o que acontecia dentro dos muros da casa ou fora dos muros da cidade lá restava. Essa intrusão das leis pode até trazer para o antigo monarca do lar a nostalgia da perda de sua identidade, porém essa forma de lidar com o mundo só era possível mantendo uma desigualdade racial, de classe e gênero, que para vivemos em uma sociedade igualitária deve se desconstruir. Nessa nostalgia de poder perdido, restou à monarquia contemporânea investir em formas não humanas de explorar o outro, Talvez esteja nos robôs a possibilidade de manutenção dos escravos do terceiro milênio. Na tecnologia avançada das novas “casas inteligentes” é possível reinar na própria casa evitando a exploração de outras pessoas. Já existem sistemas inteligentes que permitem controlar remotamente as janelas, ar condicionado, o forno microondas e outros aparelhos para preparar o conforto do lar acionados pelo soberana vontade do consumidor. O ser humano, portando seu smartphone — o toque de Midas moderno — terá o poder de controlar remotamente cada função da casa. Assistimos novamente à uma situação onde só libertam os escravos porque há quem os substituam. A ilusão de soberania busca manter esse sentimento de domínio sobre o espaço, porém, existência do outro e de uma realidade incontrolável, sempre colocam em jogo o poder individual. Essa necessidade de poder

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culmina num mundo onde sua própria residência impede seu morador de viver com outras pessoas. Buscar essa experiência de soberania isolado no castelo de um rei sem súditos é tão patético quanto triste. “¿Cuándo seremos una ciudad inalámbrica? Quiénes habían sido los genios que tamparan el río con edificios y el cielo con cables? Tantos kilómetros de cable sirven para unirnos o para mantenernos alejados, cada uno en su lugar? La teléfonia celular invadio el mundo con su promessa de estar conectado siempre. Mensajes de texto: un nuevo lenguaje adaptado para 10 teclas que reduce una de las más hermosas lenguas a un primitivo, limitado y gutural vocabulario. “El futuro está en la fibra óptica”, dicen los visionarios. Prometen que vas a poder subir la temperatura de tu casa desde tu trabajo. Esta claro, esta previsto que no haja nadie que te espere con la casa calientita. Bienvenidos a la era de las relaciones virtuales28”.

Esse estado de controle total do ambiente pode até ser procurado, mas nunca será completamente possível. Para garantir a soberania de um rei, estado, classe, raça, religião, crença ou qualquer outro parâmetro “ideal” é preciso levantar muralhas e controlar as saídas e entradas. A manutenção de um estado de ilusão necessita de um espaço fechado que limite as investidas de realidade exterior e ignore tudo o que existe lá fora. Sabemos o quanto isso fica claro nas peças de teatros e outros espaços cênicos. O espaço fechado, livre da realidade externa também permite que a fantasia de outra realidade renasça e exista suspensa num universo mágico temporário. Essa lógica se extende por inúmeros espaços fechados, que precisam ter suas formas de comunicação limitadas para atingir algum 28 “Quando vamos ser uma cidade sem fios? Que gênios esconderam o rio com prédios, e o céu com cabos? Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar? A telefonia celular invadiu o mundo prometendo conexão sempre. Mensagens de texto: uma nova linguagem adaptada para 10 teclas que reduz uma das línguas mais lindas a um vocabulário primitivo, limitado e gutural. “O futuro está na fibra óptica”, dizem os visionários. Do trabalho, você vai poder aumentar a temperatura da sua casa. Claro, ninguém vai esperar você com a casa quentinha. Bem-vindos à era das relações virtuais”. TARETTO, Gustavo. Medianeras — Buenos Aires: Rizoma, Pandora Film Prouktion GmbH, Eddie Saeta com Zarlek. 2011. Trecho 1:15:00

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Ao abrir o espaço cênico para o mundo o teatro pode revolucionar suas próprias fórmulas, questionando as convenções e regras de dentro e de fora.


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objetivo. Seja em laboratórios super limpos, teatros, cinemas, prisões, cofres ou qualquer espaço que demande poder e controle de uma situação é necessário vigiar os portões e engrossar os muros externos. A partir dos limites criados é possível estabelecer novas regras ou até revogá-las. Enquanto nas prisões e escolas os limites murados criam uma ambiente hermético, onde as regras são ainda maiores e absolutas, no teatro, no cinema ou outro espaço de atuação, brincadeira e experimentação; o limite do espaço costuma permitir que as regras vigentes sejam suspensas e ainda que outras e novas regras surjam questionando, levantando debates e extrapolando os muros que criamos para nos sentir confortáveis. De qualquer maneira, para garantir a manutenção dessa regras, seja para o poder do soberano ou para o exercício lúdico do jogo teatral é necessário manter a contigência e a realidade incontrolável para fora do espaço de controle. Quando as vontades são atendidas, o espaço fechado pode oferecer uma ilusão de onipotência, porém, pelo outro lado, o mesmo espaço fechado, quando não atende a nenhuma ou apenas os mais desejos mais básicos, trás a experiência da mais completa impotência. É essa a experiência central de uma prisão. A cadeia elimina qualquer possibilidade de interferir no mundo e moldá-lo à própria vontade. "Desse modo, o lar passou a ser considerado um repositório das virtudes perdidas ou negadas no mundo exterior. Para as classes médias do século XIX, lar significava sentimento, sinceridade, honestidade, verdade e amor. Essa representação do lar compreendia uma dissiciação completa de todas as coisas boas do mundo público e de todas as coisas ruins do mundo doméstico. Era transformar o lar em um lugar de ficção, um lugar onde florescia a ilusão29".

Essa forma de lidar com o espaço passa longe de ser novidade, em diversas momentos históricos onde o mundo passa a ser evitado, por tornar-se um elemento de maldade ou violência, as paredes se erguem cada vez mais robustas, guardando um cosmos próprio cada vez mais recluso, ilusório e mágico. É legítimo tentar buscar abrigo temporário em espaços de segurança. O espaço fechado em si não possui 29 FORTY, Adrian. Objetos de desejo. p139-140.

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maldade ou beleza, é apenas um forma, que pode aprisionar ou libertar conforme a sua utilização e necessidade. As funções do fechamento podem ser inúmeras, mas sempre buscam filtrar e limitar as intrusões do ambiente criando um espaço teórico onde o ser humano tem mais poder frente à vida e a natureza. O fechamento é uma forma de lidar com a vida, e a reclusão pode ser uma fase, parte de um processo de entendimento de si próprio e do mundo, como no consultório do terapeuta, que pode ser um desses espaços de proteção e cuidado. “Frequentemente uma criança pede que o consultório seja escurecido. Fica então bastante óbvio que o analista se encontra no interior da criança. O mundo é governado pela magia, e o controle mágico é representado pelas intruções verbais da criança que controla o analista, e que transfigura objetos do consultório e altera as regras do jogo de acordo com os seus caprichos. Quando o consultório é transformado de modo que as paredes passam a representar os limites do ego da criança, em certa medida o mundo externo também é alterado pelo fato de estar sendo excluído30”.

Simbolizando os limites do próprio ego, espaço arquitetônico, pode reestabelecer e significar os processos internos que tentam ser apresentados ao analista. A possibilidade de fechar todas as portas e janelas suspendendo a comunicação externa com sons e luzes pode permitir uma introspecção ilusória e satisfatória. Porém, em nenhum caso é possivel fechar completamente a intrusão do exterior. O problema da reclusão é nunca querer sair dela. Não é possível viver eternamente recluso. No momento em que o medo dessa dura realidade externa busca blindar completamente a relação com o exterior, surge outra questão em jogo, que agora ficará clara — também para o bebê — em seu fechamento: sua dependência. O descobrimento da própria existênca e unidade — a integração do self — e a descoberta do próprio desejo revela que qualquer ilusão de poder enclausurado guarda uma dependência absoluta e primordial do mundo externo, de início da própria mãe que cuida e aliementa, mas depois da sociedade e da natureza, onde esses alimentos e objetos de onipotência interna precisam ser produzidos e trabalhados. 30 WINNICOTT, Natureza Humana, p112.

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Topologia do desejo

Se até esse momento tratamos de definir as qualidades buscadas na interioridade, agora passamos a entender como esses fechamentos nascem e também como as portas se abrem para novas experiências. A integração do self inicia um patamar de entender sua alteridade em relação ao mundo. A casa não está mais em todos os lugares, e a partir daqui a distinção dentro-fora bem definida e ciente da existência do outro cria a gênese das relações ambientais e sociais. Saber que existe algo além de si próprio revela que o desejo não se realiza num passe de mágica. Os objetos de desejo estão no mundo e é preciso buscá-los. Portanto, passamos agora a analisar as primeiras formas do sair do domínio do familiar, intimo, e ir em busca de algo no mundo, as primeiras relações com o espaço não individual, ou seja, o espaço do outro, público. E nesse ponto onde o domínio das escalas está em expansão latente torna-se importante analisar um pouco o motor básico que nos faz sair de casa: o desejo.1 “Uma corrente … que arranca [o aparato psíquico] do desprazer e aponta ao prazer, chamamos desejo2”.

Definir o desejo é algo complexo e ao mesmo tempo banal, desejar é querer, aspirar, é ter uma aspiração em busca de satisfação. O desejo participa de nossa vida a todo momento, podemos entender o desejo como aquela pequena fome que nos move até a geladeira, o restaurante ou a selva; mas também desejamos outras coisas: descan1 Definir o desejo não é tarefa fácil. Utilizando a teoria freudiana o mais correto seria falar de pulsões, classicamente de vida e de morte, evitarei essa discussão. Quando utilizada a palavra “desejo” a intenção é delimitar genericamente esse algo que não se possui, que gera uma inquietação, e por isso é buscado, desejado. Assim se aproximando do conceito de desejo de Hegel, desejo como busca de ser-outro. 2

FREUD, Sigmund. A interpretação de sonhos. p.588.

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so, sexo, amor, motivação, atividades intelectuais e inúmeras outras sensações de satisfação. Sob a primeira definição de desejo que Freud estabeleceu, em “A interpretação de sonhos“, antes de desenvolver a teoria das pulsões, ele define o desejo como uma volta a uma memória positiva, de forma a restabelecer um grau de satisfação anteriormente experimentado e guardado como memória. “Um componente essencial desta vivência é a aparição de certa percepção (a nutrição, no caso de nosso exemplo) cuja imagem mnêmica permanece, daí em diante, associada ao traço que deixou na memória a excitação produzida pela necessidade. Na próxima vez que esta última sobrevenha, devido ao enlace assim estabelecido, suscitará uma moção psíquica que quererá investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção e produzir outra vez a percepção mesma, vale dizer, na verdade, restabelecer a situação da satisfação primeira. Uma moção dessa índole é o que chamamos desejo, a reaparição da percepção é o cumprimento do desejo, e o caminho mais curto para este é o que leva desde a excitação produzida pela necessidade até o investimento pleno na percepção3.”

O desejo nasce da insatisfação, de uma inquietação de onde nasce uma representação mental do objetivo a ser alcançado. Essa imagem estereotipada da satisfação é o motor de nossas buscas à satisfação. O desejo só existe enquanto falta, quando alcança seu objetivo o desejo se completa e se desfaz. Não há como desejar o que já possuímos. Apesar de muitos serem claros, há também desejos escondidos, inconscientes, que não emergem à superfície da consciência por não serem completamente aceitos, pelo próprio indivíduo ou pelas regras e tabus da sociedade. Porém, mesmo não sendo de nosso conhecimento direto, movem secretamente nossas vidas. O desejo não faz parte do mundo concreto, é apenas um sentimento, uma imagem pré-concebida da satisfação, mas se torna parte do mundo na medida em que, como representação, o objeto se torna o objetivo a ser alcançado. Há toda uma sorte de desejos, felizes e infelizes, quando estamos num estado de indefinição constante, o surgimento 3 FREUD, Sigmund. A interpretação de sonhos. Apud SANCHES, Pedro. A alteridade na conceituação freudiana de desejo e pulsão.

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do desejo pode ser delicioso, mas a persistência incontrolável do desejo também pode se tornar vício e obsessão. Topologicamente, podemos representar o desejo como um vazio interno, consciente ou não, possível ou não de ser alcançado, mas que cria uma inquietação, apontando para uma satisfação. Seja numa esfera ou num círculo cortado desta, o desejo se configura como algo interno, mas que não faz parte de dentro e não se encontra dentro, é algo distinto. Desejar algo é perceber que há um vazio interno à subjetividade, o objeto de sua satisfação é então representado

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pelo desejo, criando ao mesmo tempo a imagem de como preenchê-lo. Essa configuração se torna muito importante quando discutimos o espaço público, o espaço da natureza. Quando a intimidade não consegue mais responder a todos os desejos, quando na própria casa não há satisfação adequada é no mundo que podemos buscar alguma forma de completude. Ao procurarmos a razão de sair de casa o motivo sempre poderá ser traduzido como um desejo, seja ele imediato ou de longo prazo, instintivo ou planejado. A criança pouco conhece do ambiente que a rodeia, a partir da constatação da alteridade do ambiente externo — a integração do self — não é mais tão fácil reinar soberanamente sobre os fenômenos que a rodeiam, porém existe algum resquício dessa vontade criativa. Winnicott trata essa transposição com a definição dos fenômenos e objetos transicionais. A criança que já reconhece o outro no mundo agora cria ilusões de criar ativamente objetos fora de si. É inegável que realmente podemos criar objetos fora de nós mesmos, mas a criança ainda tem um poder limitado e se contenta em acreditar que objetos preexistentes foram criados por ela própria. Esses objetos, um brinquedo, a ponta do cobertor ou outro objeto, apesar da preexistência são entendidos como criação própria e guardam ainda uma raiz naquele sentimento de criatividade onipotente. A transposição de um desejo interior — inédito no mundo — to-

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mando forma física externa traz um sentimento delicioso que perdura por toda a vida. Não precisamos ir muito longe para perceber como a arquitetura faz parte desses fenômenos. Sendo transição entre a escala individual, familiar e a coletiva ou pública, a arquitetura é tanto abrigo como obra ativamente construída a partir de um desejo de seu projetista e morador. O projeto é sempre desejo e a sensação de objetivamente concretizar seus próprios desejos move não apenas os arquitetos, mas grande parte das pessoas, variando apenas as imagens e as artimanhas que usamos para concretizar nossas vontades. Pela forma como o desejo se comporta podemos dizer que o arquiteto lentamente cria uma imagem construída do espaço que quer criar. No imaginário de seu projetista um edifício, ou obra de arte, sempre reinará como nascente de seu mundo interno. A arquitetura, a criação, a arte, possuem uma gestação que mantém laços maternais com o objeto produzido. Por outro lado, por determinadas circunstâncias de sua produção o objeto pode não atender perfeitamente à representação interna que busca satisfazer. Isso não é exceção, é regra, e pode ocorrer quando o sujeito que projeta não domina os meios de produção de sua obra mental, ou quando há um conflito interno entre os próprios desejos conscientes e inconscientes, mas mesmo eliminando o ruído a natureza do mundo também se manifesta em sua inexorável incompletude, as limitações da realidade tornam a maioria dos desejos possíveis apenas parcialmente. Há ainda um requinte de apenas desejar e deixar aos outros que o concretizem, mas já passamos por isso no capítulo anterior. Apesar do desejo nunca poder ser completamente satisfeito, essa imagem concreta, quando construída, num certo sentido cria de fato um espaço na cidade, um lugar no espaço público, onde outros desejos terão cenário. Até aqui partimos de uma concepção ainda um tanto fechada do desejo, onde o desejo surge como objetivo de autoria incontestável de seu enunciador, porém precisamos reconhecer que o desejo também pode ser produzido às avessas, de fora para dentro. Primeiramente surge uma representação externa e a partir dela o desejo surge à sua imagem e semelhança. Na época em que vivemos é inegável que essa subordinação à representação externa é muito mais presente e induzida do que a formação de desejos autênticos e de lenta gestação. A publicidade talvez seja o ápice dessa terceirização da vontade,

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a função inequívoca do objeto publicitário é atrair e seduzir o sujeito para moldar suas representações internas em função de um produto ou serviço já disponível à venda. A publicidade canaliza nossos desejos e anseios mal definidos em função dos produtos que dispõe. E não são apenas produtos que são comercializados, a publicidade de hoje, cada vez mais, comercializa padrões e ideais de vida, de estética, de identidade. “Uma imagem publicitária eficaz deve apelar ao desejo inconsciente, ao mesmo tempo em que se oferece como objeto de satisfação. Ela determina quais serão os objetos imaginários de satisfação do desejo, e assim faz o inconsciente trabalhar para o capital. Só que o sujeito do inconsciente nunca encontra toda a satisfação prometida no produto que lhe é oferecido - nesta operação, quem goza mesmo é o capitalista4”!

A questão da publicidade e das formas de imagem midiática ainda possue outras consequências desastrosas. As imagens do que queremos ser ou possuir fazem parte de nossa identidade, da imagem expandida pelo tempo do que somos e queremos ser, e possuir, no futuro. Para atender a esses anseios, nascem consciências enlatadas, maquiadas na moda e nos estilos de vida, são oferecidas como mercadoria, mas apesar da maior disponibilidade de objetos, estes não são capazes de satisfazer — para parte da população — as representações e imagens de si. Um garoto negro, por exemplo, possui raríssimas formas de representação disponíveis na mídia nas quais se espelhar. São relativamente recentes — e pouco comercializados — os personagens, bonecos e bonecas negras, onde uma criança negra pode ver a si mesma ou o próprio filho em sua própria cor — inclusive se libertando da imagem simbólica e histórica que essa situação remete: a ama de leite que abandonava o próprio filho em função da prole de seu senhor. Os exemplos são inúmero e a questão do negro na sociedade do consumo é apenas uma das vertentes onde as imagens dominantes e disponíveis são incompatíveis com a realidade de muitas pessoas. A questão do desejo e da mercadoria poderia ainda ir longe, porém vamos nos aprofundar na simbologia e nas funções de um objeto de desejo em especial: o brinquedo. 4

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KEHL, Maria Rita. O Inconsciente a serviço do lucro.


Brincadeiras e jogos Não pretendo aprofundar a definição de desejo, mas simplificar e entender melhor isso “que buscamos no mundo”. Os primeiros fenômenos no estado ainda onipotente do bebê procuram inventar algum objeto no mundo externo, e graças à habilidade de sua mãe essa ilusão pode vigorar por algum tempo. Ciente de sua existência, o bebê não inventa apenas a saciedade de mamar ou ter suas fraldas trocadas, agora criança é apresentada e passa a se relacionar com os objetos físicos do mundo — acreditando que esses objetos que já existem previamente no espaço foram criados por ele. Mesmo entendendo que há coisas no mundo que não fazem parte da criança, a preexistência ainda é desconhecida. Apesar dessa ilusão, há uma alegria real no bebê que cria. Cada objeto continuamente apresentado e ativamente criado o bebê vai conhecendo o mundo ao seu redor e em breve irá reconhecer a existência de sua própria mãe. “No dia-a-dia da vida do bebê, podemos observar como ele explora esse terceiro mundo, um mundo ilusório que nem é sua realidade interna, nem é um fato externo, e que toleramos num bebê, ainda que não o façamos com adultos ou mesmo com crianças mais velhas. Vemos o bebê chupando os dedos ou adotando alguma técnica de mexer o rosto ou murmurando um som ou agarrando algum pano, e sabemos que nesse momento o bebê está declarando seu controle mágico sobre o mundo por meio desses diversos instrumentos, prolongando (e nós permitimos que ele o faça) a onipotência originalmente satisfeita pela adaptação realizada pela mãe. (...) Entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido, existe uma terra de ninguém, que na infância é natural, e que por nós é esperada e aceita. O bebê não é desafiado no início, não é obrigado a decidir, tem o direito de proclamar que algo que se encontra na fronteira é ao mesmo tempo criado por ele e percebido ou aceito no mundo, o mundo que existia antes da concepção do bebê. Alguém que exija tamanha tolerância numa idade posterior é chamado de louco5”.

Apesar desse aprender o mundo se traduzir em diversos outros objetos, é o brinquedo que simboliza esse cajado onde se apoiam 5

WINNICOTT, D.W. Natureza Humana. p126-127.

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novas aventuras. Por estarem mais próximos da criança pequena, é nos brinquedos que se encontram essas primeiras pontes entre a subjetividade e o mundo. Estes, devido ao seu estado intermediário na relação eu-mundo se denominam objetos transicionais ou fenômenos transicionais. Ao nascer o uno nasce o outro — e vice-versa — é a partir desse estado que começamos a entender o mundo como realidade externa passível de criar relacionamentos e trocas. O brincar é a primeira forma de participar do mundo afora.

subjetivo

objetivo

“Como são importantes, então, esses primeiros objetos e técnicas transicionais! Sua importância se reflete em sua persistência, uma persistência feroz por anos a fio. A partir desses fenômenos transicionais desenvolve-se grande parte daquilo que costumamos admitir e valorizar de várias maneiras sob o título de religião e arte, e também derivam aquelas pequenas loucuras que nos parecem legítimas num dado momento, de acordo com o padrão cultural vigente6”.

A exploração dessa transição é gradual e passa por lentamente reivindicar pequenas posses de mundo externo como pertencentes ao próprio cosmos, como parte do próprio domínio. Sabemos que a transposição completa de objetos e pessoas para nossa interioridade é impossível e, mais cedo ou mais tarde, temos contato com a experiência básica de solidão, que todos os seres humanos compartilham separadamente. Apesar de intransponíveis, os objetos e lugares afora fazem parte do mundo interno como uma projeção, aos poucos passamos a localizar nossa existência e as coisas que nos são familiares no mundo afora, desenvolvendo o domínio de nossa existência. Um mapa mental do espaço de nossas vidas. Nesse ponto, gostaria de evocar uma situação não real, mas completamente verossímil, onde ficam mais claros os crescimentos 6

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WINNICOTT, Op. Cit. p127.


de escala. Imaginemos o cenário de um parquinho com brinquedos infantis, um pequeno bebê é levado por sua mãe a brincar na areia macia da praça e é deixado livre para caminhar sob os olhares atentos de sua mãe. A criança explora cada parte, tudo é novidade, tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso, a criança ensaia pequenos passos se distanciando de sua mãe. A aventura avança até que num determinado momento a criança se sente insegura e volta novamente seus olhos para a mãe que a observa. Nesse olhar a função fática restabelece o laço de união e a segurança é revigorada. Podemos levar essa situação a todas situações onde saímos do conforto e da segurança, há sempre alguns determinados pontos que por sua familiaridade refundam nossa segurança e nos permitem seguir em frente. Em nosso trajeto pelo mundo mantemos, inconscientemente, a segurança de saber que sempre é possível voltar para casa. Com essa premissa afirmada é possível rebaixar a importância desta questão e se preocupar com os problemas do trajeto. Apesar de conter seus perigos, o playground é uma situação controlada, um ambiente projetado para minimizar aflições às crianças ao mesmo tempo em que permite a exploração do mundo e do próprio corpo. Esta realidade controlada é sempre ilusória, mas é experimental o suficiente para criar um sentimento de segurança. É nessa esfera que podemos ampliar o entendimento sobre a função dos jogos e brincadeiras como preparadores de situações para o mundo. No mundo dos jogos e brincadeiras, a realidade é suspensa e somente poucas regras adentram o universo lúdico, balanceando experimentação e segurança. Os próprios brinquedos costumam ser simulações de objetos existentes no mundo: espadas, carros, animais, e outros objetos reais ou fantasiosos, porém inofensivos, permitindo à criança explorar possibilidades de ação, identidade e comunicação com o mundo, teoricamente sem se machucar. “O jogo é uma resposta às frustrações da criança no mundo, devido à sua falta, em geral, de poder para competir com o meio ambiente; ao brincar, a criança cria uma meio ambiente controlado. Mas esse ambiente só sobrevive por meio dessa renúncia em obedecer regras7.”

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SENNET, Richard. O declínio do homem público: As tiranias da intimidade. p462.

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Observando um jogo de bola de gude, a característica mais marcante que Sennett revela é justamente a relação maleável da criança com as regras. A qualquer momento, desde que aceitas por todos, as regras podem ser modificadas, aumentadas ou diminuídas, inclusive podendo valer para uns e não para outros — quando buscam a igualdade competitiva entre diferentes idades. Nesse sentido as regras são um paralelo à realidade externa ao jogo. A criança usa a brincadeira como preparação para o mundo externo, e se a brincadeira se torna fácil demais, as regras podem ser modificadas para trazer elementos cada vez mais realistas e difíceis. O jogo traz uma possibilidade de representação mágica que suspende a realidade e permite assumir livremente o papel que quisermos. “Não há dúvidas que brincar significa sempre libertação. Rodeadas por um mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio; mas o adulto que se vê acossado por uma realidade ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do real mediante a sua reprodução miniaturizada. A banalização de uma existência insuportável contribuiu consideravelmente para o crescente interesse que jogos e livros infantis passaram a despertar após o final da guerra8”. 8

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BENJAMIN, Walter. Velhos brinquedos in Reflexões sobre a criança, o brin-

O jogo de "bola de gude" tem regras maleáveis que continuamente inventadas e se adaptam à habilidade de seus jogadores.


Criança brincando com areia num parquinho no México

Apesar dos brinquedos e brincadeiras serem voltados à infância é inegável percebermos como diversas profissões hoje usam uma realidade controlada para testar produtos, serviços e teorias. A engenharia, por exemplo, é dominada por modelos de representação controlada da realidade, onde as opções de ruína podem ser testadas e eliminadas. A medicina utiliza animais para testes. A física instrumentaliza cada vez mais a matemática. Poucas são as profissões hoje que tomam decisões puras e desamparadas, sem a utilização de modelos lúdicos e testes de comportamento. A brincadeira continua sobre outros nomes. “A brincadeira, na verdade, não é uma questão de realidade psíquica interna, nem tampouco de realidade externa9”.

Apesar da brincadeira teoricamente funcionar dentro de uma realidade controlada é perceptível como é nesta maneira experimental que expandimos nossos horizontes e nos aventuramos no espaço. Entre o eu e o mundo, a brincadeira se coloca num espaço de transição e por isso mesmo se define como uma forma inicial de abordar o mundo, é brincando que abrimos fronteiras para o conhecimento, e ganhamos domínio sob mundo externo. Norberg-Schulz define o espaço existenquedo e a educação. p85. 9

WINNICOTT, O brincar e a realidade. p134.

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cial conjugando dois esquemas de orientação básicos: domínio e caminho; e podemos perceber como estas formas são dinâmicas. O domínio vigora no reino do conhecido, das escalas já ganhas, remonta o que é familiar e previamente conhecido. Enquanto isso o caminho cria novos espaços e consequentemente inaugura novos domínios. Nos caminhos, a existência de pequenos pontos de referência nos guiam, nos domínios a segurança e o conhecimento do espaço é mais concentrado, mais próximo, íntimo e redundante.

Somos fundados sobre relações espaciais e não é de se estranhar como até a linguagem se mistura como essa forma de abordar o espaço. Narrativas constroem caminhos, de onde se tiram pontos de vista, sequências de acontecimentos e pontos de referência. Ao escrever um texto usamos a descrição para definir domínios e a narrativa para criar caminhos. Não é de se estranhar que palavras como método ou metodologia são marcadamente espaciais. Método vem do grego antigo methodos = μετά (além, depois, final) + hodós (caminho) ou seja “Caminho que leva à um fim”. Podemos entender a metodologia como o estudo dos melhores caminhos para uma finalidade, metodologia é a ciência do atalho. Há inúmeras outras expressões de origem espacial como: “uma nova perspectiva de futuro”, “preciso de uma orientação”, etc. Nesse ponto linguagem e espaço se misturam completamente e usando desse ferramental podemos entender como um projeto arquitetônico também é narrativa, também é descrição. Ao desenvolver um percurso, ao localizar uma sucessão de salas com diferentes funções o arquiteto organiza uma narrativa espacial que pode ser a narrativa do desenvolver de um trabalho, do procedimento hospitalar com um paciente, do voltar pra casa ou até mesmo de encontrar um amor na cidade. O desenho de cada ambiente é descrição, é domínio. O desenho da relação entre diferentes os ambientes é narrativa, é caminho. Quando ouvimos afirmar que um projeto arquitetônico não pode ser considerado uma tese a ser defendida num doutorado, por exemplo, é porque tanto ainda há uma grande

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dificuldade de leitura do espaço, mas também pela baixa qualidade geral dos projetos, que muitas vezes não conjugam seus elementos desenhando uma história interessante de narrar e descrever. A arquitetura também é um espaço transicional, e por excelência também é linguagem. “The first points of reference are tied to the home and house, and the child only becomes able to cross its borders very slowly10”.

Os objetos transicionais além de estarem no limite, ganham importância justamente criando pontos de apoio sobre os quais é possível ir mais longe. Estão na fronteira do conhecido e por isso são familiares e trazem segurança ao mesmo tempo em que já fazem parte do mundo externo. Podemos localizar na psicanálise o que Kevin Lynch já demonstrava em seus estudos. Essa ancoragem que os marcos da paisagem permitem, eles são pontos referenciais que restabelecem a segurança do caminho e servem de confirmadores da direção correta. Aqui juntamos o que a psicanálise e a arquitetura entendem pelo espaço e é possível ver como elas falam a mesma língua. “Os mais familiarizados com a cidade pareciam tender a confiar cada vez mais, como guias, nos sistemas de marcos, a preferir a singularidade e a especialização às continuidades anteriormente usadas (Vias, limites, bairros, pontos nodais).11”

Para a cidade, esses pontos, sejam marcos na paisagem ou arquitetura, adquirem maior importância para o contexto e a navegação urbana. Desde tempos imemoriais, antes mesmo dos edifícios criados pelo homem, as montanhas tem feito essa função. Por seu grande porte, as montanhas podem ser vistas a longas distâncias, marcando pontos de interesse desde a mais simples navegação humana. Ao ver uma montanha conhecida há um sentimento de orientação e segurança que anuncia: Estamos chegando! Já na cidade, são os grandes edifícios que passam a se comportar da mesma maneira. Essa função orientadora, como símbolo de segurança presente nas montanhas, estrelas, na lua 10 Os primeiros pontos de referência estão ligados ao lar e casa, e a criança só se torna capaz de cruzar suas fronteiras de forma muito lenta. NORBERG-SCHULZ, Christian, Existence, Space, Architecture. p19. 11 LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. p88.

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e no sol; no fundo, remonta a segurança que o bebê experimenta no olhar atento de sua mãe no parquinho. “A criação de uma geografia pública, em outras palavras, tem muito a ver com a imaginação enquanto fenômeno social. Quando um bebê é capaz de distinguir o eu do não eu, deu um primeiro e definitivo passo para o enriquecimento dos seus poderes de fabricação de símbolos; nem todo símbolo precisa ser necessariamente projeção das necessidades do bebê sobre o mundo. A criação de um senso de espaço público é o paralelo social adulto dessa distinção psicológica que ocorre na infância, com resultados paralelos: a capacidade de uma sociedade produzir símbolos torna-se tanto mais rica uma vez que a imaginação do que seja real, portanto verossímil, não se prenda a uma verificação daquilo que é rotineiramente sentido pelo eu. Visto que uma sociedade urbana dotada de uma geografia pública tem também certos poderes de imaginação, a degeneração do público e a ascensão do íntimo têm um profundo efeito sobre as modalidades de imaginação que predominam nessa sociedade12”.

12 SENNET, Richard. O declínio do homem público: As tiranias da intimidade. p69.

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Mother as a Mountain, Escultura de Anish Kapoor , 1985. Madeira Gesso e Pigmento Walker Art Center, Minneapolis


As referências espaciais se firmam em diversos pontos de apoio, sejam eles edifícios marcantes, lugares de memória ou outras pessoas que tragam segurança e familiaridade.

Esse ferramental primitivo, usado continuamente, inventa os mapas. Como Lynch observa, os primeiros mapas são mais simples e contêm principalmente marcos e pontos nodais, e nos guiamos por eles na cidade. Cada pessoa, individualmente, não se relaciona com todos os marcos da cidade, apenas com alguns mais relevantes ou importantes para si, que se forem removidos alteram completamente nossa orientação no espaço. De certa maneira quando traçamos individualmente os domínios e caminhos de cada pessoa, acabamos criando um mapa análogo ao mapa da Naked City de Debord, que mostra Paris somente em função de seus pontos de referência e seus caminhos. A cidade, ​vista na individualidade de cada cidadão, não é relevante ​em todas ​as suas arestas, para o indivíduo que ali vive são pequenos espaços conquistados vagarosamente formando uma teia subjetiva que não remonta a totalidade do mapa da cidade, mas sim um mapa mental e individual. Quando potencializamos a schematta de Norberg-Schulz sobrepondo os diferentes mapas psicogeográficos de cada pessoa, chegamos aos mapas banais e completos que conhecemos bem. Apesar

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disso, talvez haja lugares que não sejam referências para ninguém, são pontos cegos no espaço. Não são referência para ninguém e passam despercebidos de qualquer mapa construído. Um mundo em constante destruição para a construção do novo pode estar de acordo como a teoria capitalista, produzindo lucro e “novos espaços”, porem é inegável observar que essa perda constante de referências é um dos motivos de não sair de casa, a perda dos pequenos lugares e edifícios da memória cria um sentimento constante de desamparo, do apagamento da própria existência no espaço e aquele sentimento de estar perdido. Nesse sentido, discutir o patrimônio histórico e a preservação dos marcos referenciais na cidade, muito mais do que preservar elementos importantes do passado, é uma atitude diretamente ligada à saúde dos espaços públicos e a vontade de sair de casa, de viver no mundo. “An ever-changing world would not allow for the establishment of schemata, and would therefore make human development impossible13”.

Por outro lado o mercado e a publicidade também exploram fortemente essas referências que passamos a entender como íntimas, o maior desejo de uma franquia é que seu cliente se sinta familiarizado com seus produtos. Um McDonald’s é familiar em qualquer lugar do mundo e garante uma experiência controlada que atende quase completamente à expectativa — mnêmica — mesmo sendo a primeira vez do cliente nesse restaurante. Muitas vezes o desejo por construir o novo nos faz esquecer que certas coisas precisam ser repetidas. Voltando àquele bebê que acaba de se entender diferente do mundo, percebemos como ele ainda tem muito poucas referências espaciais e sabemos que a principal delas é a própria mãe. É preciso tempo e repetição para o bebê começar a reconhecer o próprio quarto, a casa, que dirá da própria rua ou da casa de seus avós. O mesmo vale para qualquer escala de reconhecimento, confiança e memória do 13 Um mundo em constante mudança não permitiria o estabelecimento de schemata [mapas mentais] e tornaria portanto o desenvolvimento humano impossível. NORBERG-SCHULZ, Christian, Existence, Space, Architecture. p19.

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Mapa produzido por Guy Debord em 1957 onde Paris é dividida em 19 seções ligadas entre si .

espaço, afinal as referências não estão presentes a todo momento. As referências mais importantes precisam estar constantemente presentes, mas com o tempo sua ausência passa a ser tolerada. “No decorrer do tempo surge um estado no qual o bebê sente confiança em que o objeto do desejo pode ser encontrado, e isto significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do objeto14”.

Aprender a lidar com essa ausência do objeto do desejo, acreditando que ele não se perdeu, apenas está ausente, é também o que faz a brincadeira de esconde-esconde tão interessante. No momento em que aqueles sujeitos ou pontos de referência somem misteriosamente 14 WINNICOTT, Op Cit p126.

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não há garantia alguma que estes irão reaparecer. A própria mãe ao “desaparecer” cria um estado de ansiedade que só cessa quando essa referência retorna ao campo de visão do bebê, trazendo consigo uma sensação reconfortante de segurança restabelecida. Tudo não passava de uma brincadeira. “É uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado15".

É interessante notar como esse retorno das referências perdidas se mantém presente em diversos prazeres. Na parada dentro do compasso da música há um estado de tensão que ganha em potência conforme consegue prolongar por mais tempo fluindo em nossa mente o ritmo constante da música. A paradinha no futebol, o filme de suspense, a “pegadinha” e outros medos que felizmente se desfazem em seguida, possuem um certo prazer justamente na confirmação de que tudo não passa de uma brincadeira. Que as referências não se perderam. Conseguir manter a confiança do espectador numa música silenciosa por 4 minutos e 33 segundos é explorar diretamente essa tensão e medo. Privação e defesa Porém, bem sabemos que nem todos os medos são infundados e muitos elementos podem realmente nunca mais voltar. A principal dessas perdas irreparáveis é sem dúvida a morte, mas há inúmeras outras pequenas perdas que modificam totalmente nossa forma de ver o mundo. Se por um lado ganhamos escalas reconhecendo marcos e referências no espaço, perder essas referências é uma experiência de perder nosso lugar no mundo. Essa tensão angustiante é explorada por Winnicott e inaugura o soerguimento das defesas do ser. Manifesta-se principalmente pela ausência de referência — principalmente a mãe — por um tempo além de um limite, excedido esse limite a mãe deixa de existir, não há mais existência, cuidado e segurança à sua volta. “O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade do bebê utilizar o símbolo 15 WINNICOTT. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. p169.

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da união. O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos, o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o bebê ficou traumatizado. [...] “O trauma implica que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida, de modo que defesas primitivas agora se organizam contra a repetição da “ansiedade impensável” ou contra o retorno do agudo estado confusional próprio da desintegração da estrutura nascente do ego [...] Dizemos que há saúde quando essas defesas não são rígidas, etc16”.

Uma carta que demora a ser respondida, uma “brincadeira” que vai longe demais. Esse sentimento de perda irreparável chamamos privação e representa o inverso de ganhar escalas, na privação perdemos os pontos de apoio que fundamos no mundo. É importante salientar que não é qualquer perda que inicia esse processo, porém também é difícil ponderar se não existem diferentes intensidades de privação, de qualquer maneira, a privação se observa numa situação onde há a perda de uma referência fundante, da qual havia uma grande dependência para se orientar e se definir (narrativa e descrição). É como perder um pilar do edifício, que não caiu, mas abalou-se.

*

*

Representando a privação em seu diagrama topológico, observamos exatamente o mesmo desenho do desejo, porém a diferença é o tempo no qual cada um se desenvolve. Enquanto o desejo abre uma porta para o novo, a privação surge como algo previamente pertencente aos domínios do indivíduo, mas que lhe é retirado ou perdido. Algo no qual suas organizações externas se sustentavam deixa de existir, restando apenas uma memória triste e sofrida, uma desorientação, e o medo de que essas perdas não se repitam. A perda da mãe num momento muito precoce, um assalto, experiências como enchentes, terremotos, furacões e 16 WINNICOTT, Op. Cit. p135-137.

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outros desastres que arrebatam quarteirões e mesmo a perda de referências no espaço de maneira sistêmica, ou outra privação, podem colocar o aparato psíquico em modo de defesa, e a defesa é este estado onde é preciso organizar formas de evitar mais perda, ansiedade e frustração. “Um outro incentivo para o desengajamento do ego com relação à massa geral de sensações — isto é, para o reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo — é proporcionado pelas freqüentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de seu irrestrito domínio. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e ameaçador17”.

Esse é o ponto em que nos fechamos para o mundo, organizamos defesas e tentamos lidar internamente com a privação, com a perda de referências. A primeira vez que esse tipo de organização de defesas se mostra como um fator urbano é na obra de Simmel: A metrópole e a vida mental. No ensaio percebemos como o interesse central é descrever esse sintoma metropolitano de se fechar para o mundo, limitar as intrusões do mundo afora adotando uma postura filtrante, que na visão de Simmel é cinza e translúcida, uma nuvem de chuva, prestes a relampejar. “A essência da atitude blasé consiste no embotamento da discriminação. Não significa que os objetos não sejam percebidos, como no caso dos retardados, mas antes, que o significado e diferentes valores das coisas não sejam considerados importantes. Para a pessoa blasé as coisas aparecem num constante tom lânguido e cinza; nenhum objeto merece preferência sobre qualquer outro. Este estado de ânimo é o reflexo subjetivo exato da economia monetária completamente interiorizada18”.

17 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. p2. 18 SIMMEL, Georg. Ibid, p5.

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Essa forma sintomática, descrita como consequência da cidade, é apenas uma forma de se proteger de um ambiente perigoso, não apenas os perigos da natureza, mas agora também os perigos resultantes da existência do outro. A própria forma estética, escurecendo e enrijecendo o espaço transitório é uma caracterização complexa desse fechamento, na perda da capacidade de comunicação, desse espaço transitório entre o eu e o mundo, as intrusões se anestesiam, mas também cessa a criatividade, a brincadeira perde a graça, não é mais possível testar e usar elementos do mundo de forma criativa. Esse “sintoma” se assemelha completamente à definição de Winnicott para a “criança privada”. “Parece que tudo o que provenha de outrem, nesse espaço, constitui material persecutório, sem que o bebê disponha de meios para rejeitá-lo19”.

Para o blasé de Simmel, quando não há mais onde se proteger nas construções é preciso levantar muros na mente, a mente é o único lugar onde o habitante metropolitano pode ser livre — uma liberdade de seres à deriva e que não se chocam. Se, por um lado, o espaço privado tem o poder de criar uma ilusão de onipotência, aqui também verificamos que também tem o poder inverso, de limitar nossa impotência. Organizando defesas do ego é possível evitar o desconforto e a ansiedade resultantes da constatação de nossa dependência e de nossa fragilidade. Engrossando as paredes tornamos o incômodo mais distante. Na vida metropolitana, onde é impossível ter momentos de solitude, é o próprio sujeito que se torna um meio filtrante.

19 WINNICOTT, Ibid. p141.

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“A proximidade física e a escassez de espaço tornam a distância mental a única possível. E obviamente, a observação desta liberdade só é possível se alguém, em algum lugar, sente-se tão sozinho e perdido como na multidão metropolitana. Pois aqui, como em qualquer outro lugar, não é absolutamente necessário que a liberdade do homem se reflita na sua vida emocional como conforto20”.

Nesse ponto adentramos uma questão ainda mais delicada na relação eu-mundo: a liberdade que possuímos frente às imposições do mundo. Esse enrijecimento mental tem um desenvolvimento mais profundo no texto “O mal-estar na civilização” — ou na cultura — onde Freud já aponta como o mundo é naturalmente a origem dos desprazeres que assolam a vida mental. As formas como o mundo se intromete em nossa vida existem desde tempos imemoriais e não apenas na metrópole, mas é principalmente no espaço amplamente dominado pelo homem, ou seja o espaço da cultura que novos sofrimentos se desenvolvem. “O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens21”.

Dessa forma, Freud acaba revelando uma certa fórmula básica da satisfação, que de certa maneira é de senso comum: tentar potencializar o prazer e diminuir as formas de sofrimento, apenas tentar, pois em essência não há forma estabelecida de atingir esse equilíbrio. Se nas duas primeiras fontes de sofrimento, em essência, incontroláveis, o ser humano — principalmente na história mais recente — tem trabalhado ativamente por meio do avanços da ciência, que trazem maior conhecimento do mundo para uma saúde mais longeva e um maior controle dos fenômenos da natureza. Por outro lado a terceira fonte de sofrimento é diretamente resultado da própria cultura humana e por isso se constitui como um paradoxo latente da própria civilização. 20 SIMMEL, Georg. Ibid, p08. 21 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização (Cultura) p6.

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Se por um lado a sociedade se funda no benefício mútuo, por outro ela é a causadora de diversos outros desprazeres e até a própria tentativa de diminuir o sofrimento proveniente de interações sociais, por meio de leis e regras, acaba limitando também as formas de prazer oriundos da livre fruição da liberdade. “O inferno são os outros”. Nessa equação torna-se impossível manter mutuamente segurança e liberdade, ou seja não é possível conseguir mais segurança sem abrir mão de um pouco de liberdade e vice-versa. Isso constitui um paradoxo do qual não temos como fugir. Porém, mesmo dentro dessa matemática perversa, Freud revela algumas formas clássicas de lidar com essa condição que estão condensadas na terceira parte do ensaio. 1. Evitar as situações de desprazer [ * ]. 2. Conquistar a natureza, de forma a reforçar os laços de comunidade [ * ]. 3. A intoxicação de meios químicos, criando uma barreira corporal de forma a barrar os desprazeres e potencializar o prazer [ * ]. 4. Sublimação, ou seja: a substituição das metas pulsionais por tarefas socialmente reconhecidas e aceitáveis. 5. As ilusões, sobretudo às religiões, práticas ou discursos que rebaixam o valor da vida [ * ]. 6. O retraimento ou introversão da libido, seja por meio da ascese do eu, seja por meio do delírio [ * ]. 7. A experiência do amor, onde o objeto amado torna-se o centro do mundo, mas também uma grande fragilidade, por sua possibilidade de perda. 8. O encontro do prazer na arte, ou no encontro do belo. 9. Refúgio na neurose [ * ]. Essa formas consistem na valorização ou desvalorização sistêmicas dos pontos de inflexão do sofrimento, exacerbando seus lados prazerosos e evitando seus laços com o sofrimento. É interessante notar como essas formas de “lidar com o mundo” se configuram também em sua forma espacial. Assim, como observa Dunker: “Das nove táticas freudianas para fugir ao desprazer ou procurar a satisfação, [...] cinco [ * ] podem ser imediatamente remetidas à imagem alegórica do Hag [mal-estar] como abertura-

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-fechamento no espaço: a construção de uma vida protegida, ou seja, sob forma de clausura, o abrigamento pelo qual a conquista da natureza se efetiva, o encerramento em si mesmo da intoxicação anestésica, o fechamento proporcionado pelas ilusões, o retraimento ou a introversão da libido. E, quando se considera a neurose, sua estratégia é também definida em termos espaciais, seja como fuga para a fantasia, seja como fuga para a realidade22”.

As formas com que o ego organiza defesas para se prevenir de ansiedade e novas privações não se desenvolve apenas no corpo, na linguagem e na forma de se comunicar com o mundo. O mal-estar e o sofrimento psíquico estão diretamente relacionados com as formas fisicamente construídas do mundo, e as defesas do ego se organizam de uma maneira muito semelhante às estruturas arquitetônicas de defesa, na casa, no muro e numa série de dispositivos de vigilância e de ansiedade. Podemos até dizer que ambas sejam originárias do mesmo sentimento. Fica claro como desejo e privação guardam, em si, motivação para construir cidades, mesmo que de formas opostas. E não é de se estranhar como nas metáforas espaciais, a forma como Winnicott organiza as defesas frente à realidade coloca a busca de abrigo e pontos referenciais como prioridade em momentos de crise. 22 DUNKER, Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma. p199-209 De onde simplifiquei o resumo das “técnicas para a felicidade”.

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Brisbane, Australia


Valparaíso, Chile

“Posso estar num emaranhado, e, logo, libertar-me dele, ou então, tentar colocar as coisas em ordem, de modo a poder, durante algum tempo pelo menos, saber onde estou. Ou, encontrando-me no mar, oriento-me de modo a poder chegar a um porto (numa tempestade, a qualquer porto) e, depois, em terra firme, procuro uma casa construída sobre a rocha, de preferência a areia, e em minha própria casa que (como inglês) é meu castelo, fico no sétimo céu23”.

Quebrando muros mentais Já discutimos o desejo e a abertura de escalas, a privação e as formas espaciais de defesa, e , dessa forma, podemos caracterizar melhor esses sentimentos fundantes da relação espacial, o que desejamos do espaço fechado e o que buscamos no mundo afora, mas há agora uma terceira questão, como abrir novamente as defesas instituídas? Essa questão foge um pouco dessa topologia expandida e adentra fortemente nas esferas do tratamento psicoterapêutico. Modificar a forma como alguém frui o espaço e lida com o mundo configura um tratamento, e assim precisa ser abordada com cuidado, fazer analogias com estruturas espaciais pode ser interessante, mas configura ainda uma hipótese, mesmo que a linguagem utilizada e nossa forma espacial de entender o mundo testemunhem para afirmá-la. 23 WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. p145.

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É notável como muitas crianças e adultos se encontram nesse estado onde as privações se tornaram tão fortes que suas vidas focam em manter uma posição defensiva frente aquilo que já possuem, ao invés de enveredar por novos caminhos. Porém não podemos resumir todos os sofrimentos à essa caracterização. Winnicott diferencia três tipos de psicoterapia24, para três tipos de sintomas: a primeira traz a mente o termo “psiconeurose” voltada àqueles que foram bem cuidados durante os primeiros estágios, uma vida na qual o indivíduo comanda os instintos e não é comandado por eles. A segunda, utilizando o termo “psicose” é focada naqueles onde aconteceu algo errado na formação da estrutura do ego, esses pacientes jamais se tornaram saudáveis o suficiente para se tornarem psiconeuróticos e possuem uma formação muito delicada dos limites da própria personalidade. A terceira categoria é para aqueles que sofreram uma privação e está diretamente relacionada à tendência antissocial e à delinquência, resultado de que um “fracasso específico é mais importante que um fracasso social geral”. “Uma criança que tenha sido submetida a tal privação sofreu inicialmente uma ansiedade impensável, e então reorganizou-se gradualmente até atingir um estado razoavelmente neutro: fica concordando com tudo, pelo fato de que uma criança não pode fazer nada mais além de concordar25”.

A privação cria um estado passivo de defesas, o impulso e a espontaneidade dão lugar ao recolhimento e a insegurança, agora é preciso ponderar sobre quais referências podem ser confiáveis ou não, e esse estado permanece até que haja uma esperança de sentir-se seguro novamente. Criar novos pontos de referência e portos seguros pode novamente restabelecer um modo de vida menos defensivo. Porém quando há algum indício de que é novamente possível confiar e sentir segurança num objeto, pessoa ou situação, surge uma forte agressividade que pode ser observada em comportamentos destrutivos e agressivos, muitas vezes sem explicação para o próprio indivíduo.

24 WINNICOTT. D. W. Tipos de psicoterapia in Tudo começa em casa. p93-103. 25 Ibid. in Delinquência como sinal de esperança. p83.

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"Então por uma razão ou por outra, começa a surgir a esperança; isso significa que a criança, sem ter a menor consciência do que está ocorrendo, começa a sentir um impulso de voltar para antes do momento da privação, e assim desfazer o medo da ansiedade impensável ou da confusão que existiam antes que se organizasse o estado neutro.[..] Toda vez que as condições fornecem um certo grau de novas esperanças, então a tendência anti-social transforma-se numa característica clínica: a criança se torna difícil26”.

A esperança de experimentar novamente a segurança da relação materna perdida traz consigo o retorno do sentimento agressivo reprimido na privação original, e um sentimento de que “o ambiente lhe deve algo” de forma que é legítimo tomar novamente o que antes “era seu”. Winnicott trata esses episódios como pedidos de socorro, onde o objeto da agressão em si nada significa. A criança que rouba, não está procurando usar o objeto de que se apodera, está procurando uma pessoa, está procurando sua própria mãe, e ignora-os. “Nesse tipo de caso, a tendência antissocial faz com que o menino [ou menina] se redescubra sempre que sinta alguma esperança de retorno à segurança, o que significa uma redescoberta da própria agressividade27”.

Winnicott reconhece que esses estados somente são reversíveis em estados iniciais do comportamento antissocial, e indica que a única forma de reverter esse processo é suportando esse ódio contido no pedido de ajuda, garantido à criança um “segurar” (holding) como o proporcionado pela mãe. É inegável o quanto é difícil imaginar um tipo de tratamento análogo em escala social. A sociedade não tem meios, tampouco intenção, de suportar estados agressivos como forma de tratamento e apenas indivíduos são capazes de suportar esses estados antissociais reconhecendo que a agressão não é endereçada a ele, mas à situação inicial da privação, criando assim a forma de dissolver esse ódio.

26 Ibid. p.83-4. 27 WINNICOTT. D.W. Delinquência como sinal de esperança in Op. Cit. p.81-91.

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Voltando a nossa forma topológica remetida a essa situação podemos analisar como o holding, como esse estado onde há segurança garante ou restabelece não apenas a segurança, mas também aquele estado de realidade controlada característica dos jogos e brincadeiras. “Que está fazendo uma criança, quando sentada no chão e brinca sob a guarda de sua mãe28”? Não podemos negar como esse estado controlado e protegido é uma característica infantil e o princípio da realidade contido nas implicações da vida adulta dissolvem novamente esse estado. Entendendo essa situação e levando-as para a esfera social da arquitetura e do urbanismo podemos levantar algumas questões interessantes, como: Seria essa a violência enfrentada por arquitetos ao propor abrir espaços, baixar muros e viver o espaço público? Esse sentimento pode se desdobrar em ações sociais e motivar atos de violência urbana coletiva, leis e políticas públicas? Flexionando esses limites topológicos, existe, assim, alguma forma de psicoterapia urbana ou arquitetônica? Se sim, quais os elementos que podem restabelecer essa vida criativa? Até que ponto é possível terapeuticamente suportar esses S.O.S.? Poderiam existir estruturas arquitetônicas e urbanas para extravasar essa frustração? Tentar responder todas essas perguntas não me parece possível. Mas, podemos fazer uma análise, se é necessário garantir segurança para viver ativamente e criativamente novamente, e supondo que estruturas físicas possam criar pelo menos um pouco dessa ilusão de segurança, então será muito difícil que essa segurança se estabeleça no espaço público. Isso se deve por uma incompatibilidade de funções, enquanto essa segurança terapêutica necessita de um ambiente que seja indestrutível em sua confiança, o espaço público não pode ser completamente ocupado sem deixar de ser público. “O espaço público, para a realização de sua função, deve estar sempre livre de toda ocupação e, ao mesmo tempo, não pode ser utilizado senão sendo ocupado. Uma contradição que, no entanto, resolve-se na ordem do tempo. Para que se possa conhecer a natureza do bem comum, à noção de espaço deve-se, necessariamente, 28 WINNICOTT. D.W. O Brincar & a Realidade. p147.

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acrescentar a de tempo. Toda ocupação do que é público deve ser contingente, provisória. Pode-se, sim, ocupar um lugar no espaço público, mas só por um certo tempo. O fato de um lugar público, agora ocupado por uma pessoa, ter sido, antes, ocupado por uma outra, e de ainda poder vir a sê-lo, depois, por outra ainda, define toda ocupação como sendo precária. A sua utilização é provisória, limitada no tempo. Quem ocupasse um lugar público por todo o tempo o teria como seu. A ocupação deve, pois, ser sempre limitada temporalmente29”.

Conjugando esses elementos, chegamos a uma conclusão surpreendente, seria possível dizer que é apenas no espaço privado que podem haver estruturas terapêuticas, o espaço público é apenas compatível no sentido de abrir escalas, do fruir do desejo e do conhecimento, mas nunca pode se tornar o ponto inicial, o porto seguro de onde começa qualquer aventura. Local de imprescindível abrigo e de condições controladas. Essa segurança não é compatível com a necessidade de uso geral que o espaço público necessita para continuar sendo público. Porém essa constatação não é uma lei, esse espaço privado pode ser verdadeiramente pervertido em suas formas e funções, abrigando ambas as condições, conforme veremos nos estudos de caso adiante, sobretudo analisando o edifício da FAUUSP.

29 MALACO, Jonas. Dois ensaios. p35.

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Invólucros e externalidades

Até este momento do trabalho, buscamos uma ontologia do espaço conjugando a transposição eu-mundo de dentro para fora. Utilizamos os primeiros sentimentos humanos de descobrir a si próprio, as ilusões e prazeres desses momentos, relacionados de forma a servir de modelo para relações com o espaço direto e com o mundo. Agora partimos para o exercício inverso. A partir do momento que nos entendemos existindo no mundo e dele dependendo passamos a ter de lidar com suas implicações, com as dificuldades e características que o mundo nos inflige, assim entendemos como não apenas moldamos o mundo, mas como este também nos molda. As interações externas, intrusões e recursos disponíveis são sempre fatos relevantes, somos dependentes dos recursos disponíveis no mundo e por mais que nosso poder de construir, prever e modificar o funcionamento da natureza tenha crescido exponencialmente nos últimos séculos, ainda somos infinitamente dependentes do que está disponível no mundo para nossa utilização. Devido a essa característica e as especificidades que cada recurso necessita em meios de produção, exploração e disponibilidade surgem também modos de vida circunstanciais. Várias formas de lidar com o mundo surgem das especificidades de cada ocupação. Afinal, cada ocupação traz em si uma filosofia que se adapta e se aprende conforme acompanhamos suas implicações. Isso nos permite dizer que aprendemos com o “mundo”, não apenas com a observação e com a experimentação, mas também com a busca e produção, no adaptamos e aprendemos a viver nas mais diversas situações e esse aprendizado também possuem formas espaciais.

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Abrigo As primeiras formas do ser humano lidar ativamente com a natureza não podem ser resgatáveis em totalidade, mas podemos partir das suposições do que a pré-história possui de já comprovado. Há milhares de anos atrás imaginamos que ser humano vivia uma condição nômade onde ainda não haviam casas, porém preexistem na natureza algumas estruturas de fechamento que naturalmente podem funcionar como abrigo. As cavernas, grutas, tocas e abrigos trouxeram abrigo das intempéries não apenas aos humanos, mas também à toda sorte de animais, protegendo do frio, da chuva, de potenciais predadores e até mesmo de outros indivíduos da mesma espécie. É tentador criar um cenário numa natureza intocada e ali jogar um homem nu, acompanhar seus passos em busca de abrigo, partindo do nada até a constituição de uma civilização. Não temos condição de reescrever a história antes da própria história ser escrita, mas podemos analisar alguns vestígios, imaginando e fazendo suposições. Para fim alegórico de ilustrar essa situação hipotética vamos utilizar um trecho da teoria da cabana primitiva de Laugier, que sustenta a teoria de que toda arquitetura emana desse abrigo primordial.

Frontispício de Essai sur l'Architecture

“Let us look at man in his primitive state without any aid or guidance other than his natural instincts. He is in need of a place to rest. On the banks of a quíetly flowing brook he notices a stretch of grass; its fresh greenness is pleasíng to his eyes, its tender down invites him; he is drawn there and, stretched out at leisure on this sparkling carpet, he thinks of nothing else but enjoying the gift of nature; he lacks nothing, he does not wish for anything. But soon the scorching heat of the sun forces him to look for shelter. A nearby forest draws him to its cooling shade; he runs to find a refuge in its depth, and there he is contento But suddenly mists are rising, swirling round and growing denser, until thick clouds cover the skies; soon, torrential rain pours down on this delightful forest. The savage, in his Ieafy shelter, does not know how to protect himself from the uncomfortable damp that penetrates everywhere; he creeps into a nearby cave and, finding it dry, he praises himself for his discovery. But soon the darkness and foul air surrounding him make his stay unbearable again. He leaves and is resolved to make good by his ingenuity the careless neglect of nature. He

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wants to make himself a dwelling that protects but does not bury him. Some fallen branches in the forest are the right material for his purpose; he chooses four of the strongest, raises them upright and arranges them in a square; across their top he lays four other branches; on these he hoists from two sides yet another row of branches which, inclining towards each other, meet at their highest point. He then covers this kind of roof with leaves so closely packed that neither sun nor rain can penetrate. Thus, man is housed. Admittedly, the cold and heat will make him feel uncomfortable in this house which is open on all sides but soon he will fill in the space between two posts and feel secure1”.

Apesar dessa verossímil narrativa se mostrar improvável e não ter provas de ter realmente acontecido, dos vários significados que essa fantasia remete, podemos analisar ao menos uma necessidade que reconhe1 Vejamos o homem em seu estado primitivo, sem qualquer ajuda ou orientação diferente de seus instintos naturais. Ele está na necessidade de um lugar para descansar. Nas margens de um riacho fluindo tranquilamente ele percebe um trecho de grama; seu frescor verde é agradável a seus olhos, a proposta de se deitar o convida; ele é atraído para lá e, estirado no lazer sobre este tapete espumante, ele pensa não em mais nada, mas desfrutando o dom da natureza; ele não tem nada, ele não deseja qualquer coisa. Mas logo o calor escaldante do sol obriga-o a procurar abrigo. A floresta próxima chama-o a sua sombra refrigerada; ele corre para encontrar um refúgio em sua profundidade, e lá está ele contente. Mas de repente névoas sobem, rodopiando e se adensando, até que as nuvens cobrem o céu; em breve, a chuva torrencial derrama cai deliciosa nesta floresta. O selvagem, em seu abrigo de folhas, não sabe como se proteger do incômodo úmido que penetra por todos os lugares; ele arrasta-se para uma caverna nas proximidades e, encontrando-o seco, elogia a si mesmo por sua descoberta. Mas logo a escuridão e ar viciado em torno dele fazer a sua estadia insuportável novamente. Ele sai e está decidido empregar bem sua engenhosidade frente à negligência descuidada da natureza. Ele quer fazer uma habitação que o proteja mas que não desabe e o enterre. Alguns galhos caídos na floresta são o material certo para a sua finalidade; ele escolhe quatro dos mais fortes, levanta-os na posição vertical e os organiza em um quadrado; através de cada ponta, ele estabelece quatro outros ramos; sobre estes ele ergue a partir de dois lados ainda outra linha de galhos que, inclinando-se uns aos outros, se encontram no ponto mais alto. Ele então cobre este tipo de telhado com folhas tão intimamente embaladas que nem sol nem chuva pode penetrar. Assim, o homem está alojado. É certo que o calor e o frio irão fazê-lo se sentir desconfortável nesta casa aberta em todos os lados, mas logo ele vai preencher o espaço entre cada dois postes e se sentir seguro. LAUGIER, Marc-Antoine. An Essay on Architecture. p11-12.

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cemos e sabemos necessária: prover abrigo. Essa necessidade é tão óbvia que talvez não haja necessidade de estender mais, todos sabemos como o ambiente pode ser ameaçador e perigoso. Todas as construções hoje — excluindo casos especiais — possuem a função de abrigar, seja do frio, do calor, da chuva, da neve, do vento, dos animais e mesmo do outros indivíduos. Não há muito o que aprofundar aqui, a função do abrigo é inevitável e existe em contraposição à algo externo entendido como não benéfico, do qual se deve fugir. Não seria fácil definir personalidades ou formas de lidar com o mundo apenas analisando a necessidade de abrigo, o abrigo é tão universal que é muito difícil pensar o ser humano sem qualquer forma de abrigo que lhe proteja. Por outro lado, analisando o momento logo após uma catástrofe, onde uma certa população perde suas residências, percebemos como restabelecer o abrigo é sempre a primeira medida a ser buscada, seja ocupando ginásios de esporte, escolas, acampamentos coletivos ou outros espaços, garantir esse abrigo talvez seja a mais importante função da arquitetura e demonstra o quão patético pode ser uma casa com goteiras, ela não cumpre nem sua primeira missão. A noção de abrigo está diretamente relacionada com a dependência que temos da natureza e a forma com que lidamos com isso. Essa dependência é um fato para todos nós, desde o bebê que acaba de se descobrir até o ser maduro e consciente da sua impotência relativa frente ao mundo até aquele que está prestes à morrer. É interessante notar o quanto desse entendimento da nossa relação primordial de dependência com a natureza já existia na mitologia grega. Na criação do mundo os três primeiros personagens são justamente Caos, Gaia e Eros: o vazio, a mãe-nutritiva e o amor puro e primordial. “Depois apareceu Terra. Os gregos dizem Gaia, Gaia. Foi no próprio seio do Caos que surgiu a Terra. Portanto, nasceu depois de Caos e representa, em certos aspectos, seu contrário. A Terra não é mais esse espaço de queda, escuro, ilimitado, indefinido. A Terra possui urna forma distinta, separada, precisa. À confusão e à tenebrosa indistinção de Caos opõe-se a nitidez, a firmeza e a estabilidade de Gaia. Na Terra tudo é desenhado, tudo é visível e sólido. É possível definir Gaia como o lugar onde os deuses, os homens e os bichos podem andar com segurança. Ela é o chão do mundo2”. 2 VERNANT, Jean Pierre. O universo. Os Deuses. Os homens. p17-18.

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Voltando a integração do self, a não existência é o sentimento de vazio que precede a integração e está presente no significado do Caos. A terra ou gaia, por sua vez é marcadamente um elemento feminino, afinal a dependência da natureza e da própria mãe se fundem no descobrimento do mundo e da própria existência. Essas entidades e sentimentos estão presentes na forma como aprendemos a entender o mundo e dessa forma constroem na dependência também a relação fundamental que possuimos com o mundo. “A Terra (Gaia) constitui a base dessa morada que é o cosmo, mas não tem só essa função. Ela engendra e alimenta todas as coisas,(...) Gaia é a mãe universal. Floresta. montanhas, grutas subterrâneas, ondas do mar, vasto céu, é sempre de Gaia a Mãe-Terra que eles nascem3".

Se a experiência da onipotência, por ser ativa, é cheia de vida em sua potência; por outro lado a descoberta da dependência, não apenas da mãe, mas de toda a natureza traz um sentimento de impotência, de submissão total à vontade natural. Mas se na relação materna há na responsabilidade uma proteção intencional, por outro lado na relação selvagem com a natureza não existe esse 3 Ibid.

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Erupção do vulcão Etna na Itália em julho de 2008


Casa de joõa-de-barro

amor primordial, a natureza não tem vontade própria, ela apenas é, em sua beleza e crueldade. A questão da natureza em sua dependência é muito importante de ser levantada, pois partindo desse dado podemos buscar a primeira função da morada, buscar abrigo tenta justamente cessar esse sofrimento primordial, no conforto das primeiras cavernas é possível se proteger das chuvas, do frio, da neve, de animais selvagens, de outras tribos etc. A natureza apesar de selvagem também provém espaços de nutrição, abrigo. O natural traz sempre em si essa dualidade de dependência e crueldade e por mais que o ser humano em sua história tenha buscado controlar essa força titânica, sabemos que ela sempre será ameaçadora e imprevisível. A natureza pode ser vista como o local nutritivo de onde tiramos sustento, mas também é o local onde habitamos a realidade selvagem, a lei da natureza não respeita leis e convenções sociais. Em sua fria violência a natureza pode matar aliados, amigos e familiares, dar e suprimir alimentos e gerar sofrimentos diversos em suas formas mais cruéis e não precisa atribuir sentido algum à essa experiência. Apesar dessa constatação ser mais fácil de entender hoje, nem sempre a natureza foi assim pensada, depois de anos de domínio do pensamento religioso, é somente a partir do trabalho de Darwin que a natureza passa a ser pensada sem intenção, longe da intenção, fúria e benevolência de um protetor divino.

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Lar A partir do momento onde o abrigo é adquirido e há um certo grau de segurança nessa situação passamos a adicionar elementos dentro desse ambiente. É claro que esse abrigo não pode ser separado dos recursos dispostos no seu entorno. Mesmo que os antigos nômades tenham repousado em cavernas, no momento em que o alimento e outros recursos essenciais cessam é preciso abandonar aquele espaço em busca de outro com melhores condições, por mais seguro que aquele abrigo tenha sido, a relação de dependência está sempre presente e pode mudar as regras do jogo. Essa condição sofre uma grande mudança quando o ser humano passou a ter um certo domínio sob o fogo, esse espaço de abrigo, por mais primitivo que seja, passa à um patamar elevado. Dominar o fogo permite um avanço incomparável em desenvolvimento e em poder frente aos caprichos da natureza. Ter o poder de aquecer o próprio corpo e cozinhar os próprios alimentos deixando-os mais tenros, saudáveis e fáceis de mastigar estala a faísca primordial da civilização, criando uma cisão completa entre o mundo externo, onde a natureza se revela sempre nua e crua; e o microcosmos em oposição, local onde a natureza pode ser manuseada e transformada. Vários animais utilizam abrigo, mas apenas o ser humano domina o fogo e

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É estimado que o domínio do fogo tenha ocorrido entre 400 e 1 milhão de anos atrás e modificou completamente a relação que temos com a natureza


A adição do fogo ao abrigo permite um espaço muito mais confortável e seguro

cozinha. Levi-Strauss ao viajar por tribos de índios americanos observa que eles criam uma separaçnao entre o espaço de la nature et de la culture principalmente pela relação com o fogo. Os alimentos cozidos no fogo são, para os índios, produtos da engenhosidade humana, ao contrário dos alimentos crus, que ainda estão regidos pela natureza. Independente de ser ou não o primeiro advento humano, a característica simbólica desse poder de modificar a natureza é notável e mudou completamente a forma como vivemos. Adicionando apenas um elemento ao abrigo ele já se transforma completamente, o fogo é certamente o primeiro instrumento doméstico, mudando até mesmo sua nomenclatura. A casa que possui fogo no seu interior deixa de ser abrigo e já possui um nome próprio, se tornando um lar. “Lar” remete à lareira, uma palavra diretamente ligada à existência desse local aquecido e acolhedor, trazendo em seu significado a capacidade de cozinhar e também o calor ameno de proteção e aconchego, que tem um significado ainda mais potente nos climas temperados e polares, onde o frio é uma força brutal e é elemento inseparável da habitação até hoje. Nesses momentos primitivos, os limites entre o espaço dominado pela natureza e o domínio do ser humano se divide nas próprias paredes das cavernas, porém avançando bastante na história e pro-

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curando esses limites podemos perceber como as residências e outros fechamentos não são as únicas estruturas que criam esse simulacro de poder ao homem. Essa característica também pode ser encontrada nas muralhas de cidades e vilarejos antigos. Fica claro como a função mais imediata do muro é limitar as intrusões do meio externo, porém não apenas. A muralha, cerca e protege um punhado de corpos, mas também cria os limites onde vigoram as leis e regras locais. Definindo um território a civilização é montada do lado de dentro, simulando e limitando o espaço e o poder do ser humano. O espaço da cultura é onde as pessoas podem viver relativamente protegidas das intrusões da natureza, regidas agora por regras menos aleatórias. A muralha em si tem uma proteção limitada contra intempéries e outros fenômenos, portanto ganha espessura e importância não tanto em oposição à natureza, mas devido à um alto grau de interação entre os agrupamentos humanos. É principalmente uma defesa frente ao outro, o estranho, o diferente, o estrangeiro. Protege os internos de quem tente invadir e modificar esse reino de regras e leis. Se do lado de dentro os homens, criando formas de convívio mútuo, inventam a civilização, do lado de fora reina a imprevisibilidade e a crueldade sem intenções da natureza. Voltemos ao lar, abrigo atualizado pelo fogo. Poderíamos partir de uma casca pura, desse abrigo primordial e ir lentamente acrescen-

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Het aardse paradijs met de zondeval van Adam en Eva — O Éden com a queda de Adão e Eva de Jan Brueghel de Oude e Peter Paul Rubens


tando instrumentos e ferramentas que aumentam o poder e a facilidade de lidar com os recurso naturais de que precisamos, analisando cada adição e suas consequências. Seria fácil entender que as funções da casa são incrementais, uma vez que o abrigo se torna garantido e seguro o suficiente pra ser mantido, passamos a procurar e adicionais outras funções nesse fechamento, potencializando nossa experiência e nosso poder de controlar a própria vida. Porém fazer essa análise chegaria apenas a conclusões utilitaristas, tornando-se um exercício tecnocrático, decorativo, ignorando sentimentos e formas de lidar com o mundo, aprendendo, aceitando e se opondo à ele. Um edifício não é feito apenas de quatro paredes, um chão e um teto. Todo edifício está inserido numa rede de necessidades e recursos que precisam ser continuamente buscados e trazidos para dentro, sem dúvida o alimento é o principal e primeiro recurso, mas existem muitos outros. Mesmo após a fixação do abrigo e a perda do nomadismo, a dependência do mundo exterior continua sendo uma grande questão e motivo de angústia em qualquer fechamento, o que está garantido hoje pode sumir amanhã, não podemos contar com a misericórdia da natureza. Uma situação como a do Jardim do Éden não passa de uma fantasia, porém a existência de um mito dessa natureza revela um imaginário primitivo desejoso em desfrutar de uma natureza mansa, de clima ameno, onde não falta alimento nem é necessário buscar abrigo. Talvez essa seja a primeira imagem de uma natureza domesticada que temos notícia, mas ela não é fruto do trabalho do homem, mas de um Deus onipotente, benevolente e entediado, somente sobre a supervisão de um superior amoroso podemos ter a ilusão desse paraíso nutritivo, mas a infância tem seu fim. Essa fantasia de fugir da dependência surge exatamente por guardar poucos laços com a realidade. A natureza, ora abundante, ora escassa, é imprevisível. E por isso é preciso se preparar para o tempo das vacas magras, das pragas e das colheitas perdidas. Nessa preparação surge outra função básica que muda completamente a forma como lidados com o espaço fechado: armazenar.

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Armazém Seja numa vida nômade, seja nos dias de hoje a procura do que precisamos imediatamente também revela, entre as pedras do caminho, alguns objetos que não são necessários no dado momento, mas que podem ser úteis mais pra frente. Pensar no futuro e nas dificuldades que nele residem nos faz guardar objetos de toda sorte, alimentos, ferramentas, armas e mesmo simples decorativos que apesar de inúteis trazem graciosidade e guardam memórias de um tempo passado, de modo que a perda deles leva consigo um pouco de nossas histórias. O armazenamento não necessita ser feito em separado de outras funções, o modo como distribuímos nossos pertences pela casa demonstra esse fato, porém quando a função de armazenar configura o cerne do edifício essa especialização se confirma no armazém. O armazém é essencialmente uma estrutura fechada, diferentemente de outras estruturas que podem existir sempre abertas, o armazém precisa restringir o acesso e será tão protegido quanto mais imprescindível ou valioso seja o que nele é guardado. Não estranhamos que a quase totalidade das residências e outros fechamentos atuais possuem também a função de guardar objetos coletados ao longo da vida e também protegê-los de intrusões do ambiente, porém existem

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Após satisfazer as necessidade imediatas o excedente pode ser armazenado


construções que se especializam nessa função, como os silos, caixas d’água, reservatórios, armazéns, também os cofres, museus, prisões e as vezes até mesmo hospitais e laboratórios. Armazenar é uma função do espaço relativamente óbvia, porém que só se concretiza e se inicia quando o abrigo já está segurado, é um segundo passo no desenvolvimento do espaço fechado, acontecendo naturalmente em praticamente todos os fechamentos. Após garantir integridade aos corpos passamos a garantir integridade às posses. Tendo em mente o que sabemos da origem pré-histórica do ser humano, podemos imaginar que a função de armazenagem já está presente antes da fixação sedentária do homem na terra, porém é inevitável pensar que a partir do descobrimento da agricultura essa função tenha se intensificado. Armazenar alimentos para estações mais rigorosas traz uma capacidade de lidar com o imprevisto de grandes proporções e conforme o armazenamento ganha em qualidade, mais confortável e menos angustiante será o amanhã. A existência do excedente é também o início do comércio e da economia. Fazendo uma análise topológica desse tipo de construção fica claro que o armazenamento necessita de um fechamento completo, de forma a garantir a integridade de seu conteúdo, porém uma construção completamente fechada é também completamente inútil. É preciso garantir a entrada e a saída desse conteúdo produzido e coletado no mundo e mantê-lo a salvo de intrusos e ladrões. No exato ponto dessa abertura surge uma ocupação humana que perdura por séculos: a função do guarda. Quando existe algo a ser guardado surge também alguém em vigilância sobre aquilo que ali é guardado. Pode-se guardar qualquer coisa que se queira conservar, sejam alimentos no armazém, pessoas numa família, tribo, cidade; animais, armas, obras de arte, enfim, qualquer coisa. Levantar a guarda pode ser uma ocupação humana, mas também foi classicamente desempenhada pelos animais. A presença de cães e gatos no ambiente doméstico está diretamente ligada à função de guardar, o cão zela pela presença de intrusos, late a qualquer sussurro e serve de alarme. O gato por outro lado se especializa na proteção do alimento, caçando ratos e outros animais que investem contra o alimento armazenado.

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Esse modo de lidar com o mundo, é intrínseco à forma topológica e as necessidades desse espaço. A partir da divisão do trabalho, nasce essa especialização, que talvez seja uma das mais antigas. No ato de guardar temos gênese do “guarda”, do mesmo modo essa função também dá início a existência da polícia e dos vigilantes. Quem vive na incumbência de guardar, assume uma forma de vida, um jeito de transpor a esfera individual para o mundo que remete ao exercício sem fim de esperar o pior junto as portas do armazém. Podemos notar que na ocupação do vigilante há pouca ação, existe uma espera constante e tediosa de que aquilo que ali reside seja ameaçado. Porém , essa angústia da espera não se completa pelo que se deseja positivamente, mas aguardando o pior chegar, aquele que vem para roubar. Somente quando existe algum mal para acontecer e quando ele de fato se realiza é que a figura do guarda ou do vigilante ganha importância e se realiza, caso a contingência nunca apareça sua existência é inútil e desproposital. Há ainda dentro dessa ocupação uma sutileza ainda mais complexa, aquele que espera o mal precisa conseguir identificá-lo e aqui residem muitos problemas. A figura do guarda não é apenas responsável por restringir o “mal”, mas também por defini-lo. Definir o mal não é tarefa fácil, é claro que o que é bom é o que está dentro, e o mal é aquilo que vem de fora, que quer tomar aquilo de belo e útil que ali reside e é guardado. Mas guardar e proteger trazem sempre uma grande contradição, para que a guarda se realize é preciso que o mal nunca chegue a acontecer, porém se este não se realiza torna-se impossível definir com precisão se aquele que ali foi impedido realmente vinha para causar o mal. É apenas quando o “mal” se realiza que se torna inequívoco que aquele que o causou veio para roubar, matar e destruir. A função daquele que guarda é impedir, mas se o ato não se completa nunca fica claro que realmente era essa sua inteção. Desse modo, não é de se estranhar que essa definição do mal comece a se apoiar em pequenas características pessoais ou de atitude, que passam a ser usadas na sua identificação, mesmo que errônea daquele causador do “mal”. Podemos notar como essa angústia de indefinição e espera também traz alguns sintomas, talvez seja essa situação que faça com que o vigilante veja o mal onde não existe. Nessa ansiedade de que algo ruim aconteça muitos inocentes vestem

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a carapuça e servem ao propósito de justificar a existência do guarda, nessa mesma paranoia nascem muitos preconceitos e injustiças, todas marcadas por uma função de proteger aquilo “que é bom”.

bom

mau

Na análise topológica desse relacionamento bastam dois elementos: uma forma fechada e algo interno que se entenda como “bom” e que deva ser preservado, podendo ser uma cidade, um casa ou mesmo nosso próprio corpo. A espera angustiante pelo mal cria em si um estado que beira, ou deságua, na paranoia e sabemos o quanto esses sentimento de desconfiança e suspeitas generalizadas são danosos e difíceis de lidar. Uma estratégia para cessar essa angústia é mudar a forma de lidar com esse mal, em vez de aguentar a angústia paranoica podemos ir previamente buscar — no mundo — esse mal para eliminá-lo. Podemos ativamente investigar, indo buscar no ponto exato da emanação dessa fonte maligna. Desse modo cessamos a espera, mas ainda caimos na dificuldade cabal de defnir o mal, dessa vez de forma ainda mais delicada. Também é possível esperar vagando, à espera de que a representação do mal apareça num encontro aleatório, dando origem às rondas. Do mesmo modo que os glóbulos branco percorrem a corrente sanguínea em busca de ameaças, a promoção do guarda que apenas vigia para o que vai em busca da ameaça dá inicio tanto à investigação como à função de polícia em si. Não é de se estranhar porque cidade (pólis) e polícia tem um raiz em comum, é fácil perceber como a ideia de polícia está intimamente ligada à noção de politica e a cidade é o local privilegiado de ambas. O guardião vigia os portões da bondade, o herói encara o mundo para lhe extrair o seu mal. Não é preciso aprofundar mais para entender como essa forma, resultado de um fechamento inicial, se desenvolve na forma como diversas pessoas lidam com o mundo e como isso gera comportamentos espaciais e formas sociais de entender a si próprio e sua função no mundo.

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“Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela. Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais4”.

É interessante notar que depois de comerem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, Adão e Eva passaram a se sentirem nus e foram buscar abrigo, passaram a se esconder nas roupas e perderam a capacidade de viver naquela fantasia nutritiva e protegida. Talvez haja nessa passagem algo da gênese não apenas do homem, mas também do fechamento, o fechamento e a necessidade de separação surge não apenas do abrigo, mas também da noção maniqueista de bem e mal, quando surge o bem os muros se erguem em sua defesa. Conservá-lo exige vigilância e atenção. Há uma maneira clássica de fugir desse sentimento predatório. Se o surgimento da bondade é a raiz de paranoia e perseguição. Para deixar o comportamento de guardiões da bondade, podemos diminuir a importância daquilo que existe nessa interioridade, eliminando assim o próprio maniqueismo. Afirmando que aquilo que ali reside não é tão bom ou não interessa a ninguém, seja porque todos têm ou porque não possui valor. Dessa forma, passamos a assumir a posição de abnegação, de sacrifício voluntário dos próprios desejos, da própria vontade ou das tendências humanas naturais de acumular, um comportamento muito próximo aos ideais budistas. Por outro lado, perdendo a distinção do que é bom e mal também perdemos os sentimentos de valoração à eles atribuídos, e sem a distinção de bom e ruim os objetos perdem seu sabor. Não existe uma fuga perfeita e desse modo fica claro entender porque Winnicott trata esse espaço transicional como universo da cultura e da religião, essas formas de lidar com os problemas do mundo são grande parte do que somos como indivíduo e como sociedade. Passemos a outros casos. 4

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Gênesis 3: 3-7


Fardos da colheita de trigo em Little Newsham na Inglaterra

Relógio habitado Agora, voltando nosso olhar mais para o conteúdo que para o continente podemos observar que para a função de armazenagem se realizar por completo é preciso haver o que guardar, e nesse sentido, é notável como o domínio da agricultura e a pecuária trazem um aumento significativo de objetos a serem armazenados. Nesse momento, mudamos o foco da análise, não nos aprofundamos mais nos perigos que vem de fora, mas sim nas coisas boas e valiosas que podemos buscar e encontrar no mundo afora. Partindo desse outro ponto de vista frente ao mundo, temos outro tipo de espaço fechado que por suas características induz outras formas subjetivas de habitar o espaço e lidar com o mundo. A casa diretamente ligada aos processos da natureza configura um ethos próprio, a casa de fazenda, a casa do camponês, ou de um contexto rural trazem em si um modo único de viver. É fácil intuir que descoberta da agricultura e da domesticação de animais proveio de uma observação constante da natureza, a compreensão que a natureza possui seus intervalos, seu tempo para produzir e dar frutos inicia um maior entendimento sobre os tempos cósmicos. Porém, entre as maiores dádivas que a natureza pode proporcionar e os mais absurdos desastres naturais há em comum algo de difícil entendimento: não é possível atestar se existe alguma intenção na na-

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tureza. Tentar entender os motivos pelos quais as adversidades acontecem é um exercício angustiante e sem respostas, ainda mais quando o as intrusões do mundo real vêm na forma de enchentes, secas, pragas, doenças, enfim, se a natureza possui intenções, essas não são claras. É natural que no exercício de entender o mundo tendemos a usar modelos que reflitam analogias da nossa própria personalidade, desse modo, não estranhamos que inicialmente os fenômenos naturais tenham sido traduzidos no imaginário primitivo como comportamentos de graça e fúria aos moldes dos nossos sentimentos. Do mesmo modo como procuramos na casa um simulacro da própria omnipotência, podemos ver as manifestações da natureza como oriundas de um ser a nossa imagem e semelhança, de sentimentos semelhantes aos nossos, exilado longe dos olhos carnais e que a tudo controla. Se algo pode ser inegavelmente sagrado, a despeito de religiões, essa sacralidade está na natureza, não temos condições de precisar nossa origem, mas independentemente da centelha, se chegamos até aqui é devido aos mecanismos de reprodução que a natureza possui. Tentar entender — e controlar — a natureza passa por encarar algo sabidamente sagrado que está presente em todo lugar. Podemos imaginar que na breve vida de nossos antepassados, uma observação constante do mundo em algum momento gerou um entendimento de que algum fenômeno natural poderia ser previsto. Observar que nasceu uma árvore no exato lugar onde os restos dos frutos foram deixados, perceber que mesmo o mais rigoroso inverno precede uma primavera mais amena ou qualquer outra forma de entender algum padrão no mundo permitiram ao ser primitivo uma forma de previsão, a partir desse momento seria possível prever, mesmo que muito imprecisamente, os acontecimentos do amanhã. Nasce aqui não apenas um sentimento de que colhemos o que plantamos, mas também o primeiro entendimento do tempo na forma passado, presente, futuro; a forma causa e consequência. O tempo também funda nossa forma de entender o mundo, principalmente na forma do que vem antes ou depois. Desenvolvendo os primórdios dessa linha do tempo seria possível procurar significados e sentidos para a existência criando uma mapa da existência humana e desvendando a sacralidade de como surgimos. A existência de uma cultura sem noção de tempo só poderia surgir num local onde as variações da natureza não são tão evidentes, como na

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amazônia equatorial dos Amondawa, tribo recém descoberta que não possuem estruturas linguísticas que relacionam espaço e tempo. Descobrir que é possível “dominar” e domesticar as plantas e animais, também implica que é preciso esperar que os tempos de colheita e abate sejam esperados e respeitados. No momento onde finalmente podemos confiar na provisão futura a constante busca de uma vida nômade se torna desnecessária e já é possível, assim como as plantas, fincar raízes à espera do frutos. Na forma agrária, a casa se torna o local onde se espera, uma sala de espera da natureza e isso também cria uma forma de existência. Para Sloterdijk, “a casa dos primeiros camponeses se torna um relógio habitado5”. “Efectivamente, quien cultiva algo ha de saber esperar; a quien le sale mal lo previsto ha de estar dispuesto una y outra vez a comenzar de nuevo6”.

Para Heidegger7, somente quando a casa assume essa função de espaço de espera é que ela é de fato uma habitação. Buscando a origem da palavra habitar (Wohnen) encontramos permanecer, de-morar-se. “Habitar é bem mais um de-morar-se juntos às coisas”. Somente estamos numa casa em sua definição mais bela, quando se vive em função da espera, proteção, demora e cuidado para que as coisas amadureçam. O amadurecimento necessita de tempo, seja o tempo das cenouras, das vacas, dos bebês ou das ideias. A cabana do simples abrigo nunca pode conter em si uma casa, pois não possui nenhum projeto de colheita, funciona apenas provendo abrigo dia após dia. “Quién acepta esperar a la planta tiene que instalar-se en una jaula en la que domina la lentitud. Por eso la primera casa es una máquina para habitar un tiempo que se hace largo. Como centro de detención para el cuidado de los ciclos de maduración, la casa de labor crea el inconfundible apego de los habitantes a los terrenos 5 Na verdade, quem cultiva algo tem que saber esperar; a quem o previsto dá errado, é preciso estar pronto para novamente e outra vez a começar de novo. SLOTERDIJK, Peter. Esferas III. p391. 6

Ibid. p389.

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HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar.

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edificados. De ahí surge, como su primera plusvalia metafísica, la confianza mundana en la natureza como repetición8”.

Analisando o caráter daquilo que se espera, esse fechamento se realiza de forma diferente, a espera não mais aguarda a visita do mal, agora a promessa é daquilo que nutre e nos mantém vivos, do que em essência é bom e faz bem, mas para que essa promessa se cumpra precisamos adotar o exercício da paciência e do cuidado. Confiar no futuro não é uma tarefa simples. A imprevisibilidade da natureza comete atrocidades sem aviso e pode nunca cumprir a promessa que nunca fez. Por outro lado, a natureza também pode realizar coisas belas, trazer abundância e calmaria em determinados momentos. A partir do momento em que passamos a desconfiar, observar e entender alguns dos ciclos da natureza, principalmente aqueles relativos aos vegetais, passamos a conseguir ter uma confiança relativa que podemos neles esperar. Demorar-se nas coisas inclui momentos de ócio, contemplação 8 Quem aceita esperar as plantas deve instalar-se em uma gaiola na qual domina a lentidão. Por isso, a primeira casa é uma máquina para habitar um tempo que é longo. Como um centro de detenção para o cuidado dos ciclos de maturação, o trabalho de casa cria a conexão inconfundível do povo ao solo edificado. Por isso, surge, como primeira apreciação metafísica, a confiança mundana na própria natureza como repetição. Op. Cit. p390.

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Dirani mostra sua colheita de arroz no Quilombo do Vão de Almas, Cavalcante GO


Dominar a agricultura significar ter de esperar o tempo das plantas

e lenta observação e somente nessa demora é que nasce a sabedoria, seja a sabedoria da fé religiosa ou o mais avançado pensamento científico, aprender é um exercício de paciência. “El año de los campesinos es un adviento agrario. Su resultado psíquico es la vivencia religiosa del tiempo: por el pensar en conceptos de siembra y cosecha adquiere carta de naturaleza la unión de venida y complacencia por ello, com la que enlaza todo pensar tipológico con su dual de promessa y cumplimiento. Sea lo que sea lo que crezca en los campos del devenir: siempre se preguntará, con razón, de qué siembras proceden las cosechas. Por sus frutos conoceréis la siembra. En el antiguo mundo sedentario, pensar o ser sabio en contextos amplios no significa otra cosa, en principio, que prestar atención al conjunto de los hechos concernientes a la maduracíon cuidada9”. 9 O ano é um camponeses é um advento agrário. Seu resultado psicológico é a experiência religiosa de tempo: por pensar em conceitos de plantio a união do retorno e da complacência adquire uma naturalidade, com a qual enlaça todo o pensamento tipológico com sua dualidade de promessa e cumprimento. Seja o que for o que cresce nos campos do devenir: sempre me perguntará, com razão,de que plantios vieram as colheitas. Pelos seus frutos os conhecereis a semeadura. No velho mundo sedentário, pensar ou ser sábio em contextos mais amplos não significa nada mais, a princípio, do

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Partindo da ideia de haver algum sentido por trás desses fenômenos, de haver uma intenção nessas ações aparentemente aleatórias não é difícil imaginar que o homem primitivo tenha passado a ver uma enunciação nesses atos, um ente que conscientemente faz essa promessa de prosperidade. Tão logo esses fenômenos passam a ser entendidos e previstos surge uma ideia de se comunicar com essa entidade, pedindo providências e condições mais favoráveis, pedido fertilidade e prosperidade. Não podemos negar o quão difícil é tentar manter uma comunicação com o aleatório, procurar ordem no caos, e traduzir ações desconexas demandam tempo e imaginação. Esse exercício de conexão com o sobrenatural dá início a mais uma forma de vida, e essa forma se traduz na ideia do xamã. Xamã, ou shaman, é um termo de origem tungúsica que nessa língua siberiana quer dizer, na tradução literal, “Aquele que enxerga no escuro”. Os tungues meridionais identificam no xamã os portadores de função religiosa, que podem “entrar” para outros mundos, entrar em um estado estático e ter acesso e contato com seus aliados (animais, vegetais, minerais), seres de outras dimensões e os espíritos ancestrais. Na figura do xamã reside essa forma mais primitiva de se comunicar com a natureza, de tentar entender “suas intenções” e conseguir prever e manipular o futuro. A figura do xamã é a forma primitiva, mas ainda hoje continuamente passamos a tentar prever e manipular o futuro. O desenvolvimento da ciência está diretamente ligado a essa tentativa de controlar o mundo e podemos perceber como, apesar de ciência e religião não andarem mais de mãos dadas, a capacidade de previsão se desenvolveu a partir delas, nas mais diversas ocupações e profissões que hoje desvendam o mundo, as vezes até sem saber que o fazem. Em essência, essas profissões nunca perderam seu horizonte inicial, lidar e conseguir prever as “intenções” de uma natureza que ignora completamente nossas vontades e desejos. “Mientras se esté en casa en uma forma de mundo, en la que summa summarum no se pueda cambiar nada de todo lo que es el caso, las cosas reales y sus entrelazamientos, que constituyen las circunstancias dadas, tienen prioridad absoluta frente a los meros objetos de deseo10”. prestar atenção a todos os fatos relativos a maturação cuidadosa. Ibid. p389. 10 Enquanto se está em casa numa forma de mundo, na qual conclusão aponte

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A necessidade de buscar no mundo os objetos de nossa necessidade sempre foram motivos de angústia e sofrimento, quando não há o que se buscar podemos morrer de fome, frio ou doenças. Viver no contexto desses sofrimentos incluir ter de lidar com a violência e o egoísmo que essas situações remete. Em casa que não têm pão, todo mundo briga, ninguém tem razão. Dessa forma, a capacidade de aprender e confiar no futuro de forma a garantir o próprio sustendo é a gênese de uma forma mais pacífica de viver. É possível esperar e confiar que a colheita virá sem adotar a angústia daquele que precisa diariamente buscar seu sustento. Essa forma de lidar e tentar entender as intenções e lições da natureza em sua lenta observação permitem garantir o sustento e a nutrição frete à dependência e aos sofrimentos que a natureza pode nos impor. Somente a religião consegue prometer concomitantemente paz e prosperidade. Diversas vezes a promessa de provisão para todos foi relacionada à uma possível paz social. Porém, mesmo na possibilidade de satisfação das necessidades imediatas de alimento ainda existem motivos e casos para a desagregação social, a ascensão a um patamar onde o alimento e as necessidades básicas não são decisivas não resolve todos os problemas, como mostrou Maslow, apenas muda sua motivação. Dentro dessas novas buscas, hoje nos é claro como perdemos muito dessa capacidade de esperar. O tempo livre se tornou escasso e a necessidade de reprodução continuada do capital enterrou de vez nossa capacidade de morar e demorar nos pensamentos e na tentativa de entender o mundo. Porém, essa liberdade de poder esperar a colheita e viver de seu sustento justamente criou na possibilidade desse tempo livre também outras formas de vida.

que não se pode mudar nada do que acontece, as coisas reais e suas complicações, que constituem as circunstâncias dadas, têm prioridade absoluta sobre os meros objetos de desejo. Ibid. p390.

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Processamento Na confiança do amanhã o hoje se torna calmo, a fé se torna um exercício de sabedoria e uma demonstração da capacidade de entender e prever o mundo, mas também deixa tempo livre para outras tarefas. A partir do momento onde a espera, acompanhada de uma certa garantia de suprimentos no futuro permite alguns momentos desocupados, sem necessidades imediatas, surge espaço para aprimorar alguns desses objetos que buscamos e armazenamos em nossos fechamentos. Esse espaço é muito claro para todos, muito provavelmente se iniciou no processamento de alimentos, ou na confecção de armas e outras ferramentas de caça ou outro auxilio, mas toma hoje grande parte do que fazemos com o tempo. Somente podemos aperfeiçoar os objetos que trazemos do mund quando a fome, o abrigo e o futuro estão relativamente garantidos, assim, passamos a desenvolver novos e aprimorar antigos objetos, tornar a comida mais apetitosa e tornar as tarefas cada vez mais fáceis. No horizonte do tempo, todas ferramentas, invenções e objetos com maior requinte surgem dessa situação básica onde é possível confiar na provisão futura e trabalhar gastando um tempo excedente nos objetos de necessidade secundária. Analisando a topologia dessa relação precisamos adicionar ao fechamento vários elementos, um armazenamento confiável, abrigo, objetos obtidos no mundo para matéria-prima e principalmente tempo, um horizonte

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O fechamento se torna também o lugar onde beneficiamos o que buscamos no mundo adicionando trabalho e tempo, e assim enriquecendo


Jonas e a Baleia são uma das diversas narrativas míticas que obrigam o homem à reclusão para processar e programar suas futuras ações. Apontando nesse fechamento inclusive o espaço como terapêutico. Jonas e a Baleia de Pieter Lastman

de tempo confiável e onde é possível errar e recomeçar. Testar, criticar e melhorar exige recursos excedentes de recursos e tempo. Podemos observar como essa configuração dá início às oficinas, fábricas, mas também ao espaço do pensamento. Trazemos coisas do mundo para que no fechamento sejam processadas e se tornem coisas melhores. Transformamos peles e fibras em vestimentas, alimentos em receitas e até mesmo fatos em teorias. Esse espaço do pensamento, da produção, do teste e da brincadeira somente nasce numa garantia de todos os outros recursos. Assim voltamos ao caminho iniciado nos primeiros capítulos onde procuramos nossa potencia de moldar o mundo a partir do nosso desejo e percebemos o quanto essa situação é dependente de trabalho e recursos excedentes. Por um longo período, esse tempo “livre” foi a gênese da manufatura, dos marceneiros, ferreiros, e diversas outra profissões, normalmente realizadas dentro de casa, continuamente testadas e com seus aprendizados passados sigilosamente para seus filhos e aprendizes. A forma como esse serviço se realiza ainda passaria por algumas revoluções. Não é de se surpreender como juntamente com do desenvolvimento das fábricas, da produção seriada, a linha de produção e um maior poder de controlar a própria vida surgiu um sentimento de potência superior ao ser humano. O séc. XIX e XX foram o ápice da possibilidade de ignorar a sacralidade da natureza, anunciando que o homem finalmente domou seu capataz, pelo menos até a emergência ambiental se tornar visível e danosa.

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Pela primeira vez adentramos fortemente a esfera do trabalho, que deu tanto ritmo às grandes ideias e teorias sobre o mundo recente, e não podemos esquecer o quanto qualquer esfera produtiva e criativa depende de um acúmulo de trabalho anterior, porém iremos continuar analisando a esfera do processo. Esse tempo alargado que permite de-morar-se no espaço, dando oportunidade para a maturação do pensamento se perde quando ao invés de maturar o pensamento, passamos a usar esse sobre-tempo para processar mais recursos do que necessitamos. Não precisamos nos alongar sobre a forma como o processamento se tornou um ambiente onde produzimos muito mais do que necessitamos apenas por acumulação e um horizonte de comércio continuado, a história nos mostra como essa ocupação tem sido dominante. É claro que numa análise topológica tanto o ato de pensar, desenvolvendo um modo de agir e lidar com o mundo, como o ato de produzir e trabalhar objetos para ganharem em utilidade se desenvolvem do mesmo modo. Precisamos trazer algo do mundo para dentro, onde será trabalhado e processado alimentado pelo tempo. Porém o resultado das duas acumulações são opostas, enquanto o processar do exercício do pensamento traz sabedoria, o processar dos objetos traz riqueza material. Porém, enquanto a propriedade intelectual é infinitamente compartilhável sem subtração do seu

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O mais sutil fio de realidade externa, alimentada pela longa exposição ao tempo, é capaz de criar maravilhosos modelos de entendimento do mundo Foto do TFG Rafael Craice


A proposta de Buckminster Fuller para um domo cobrindo nova york, na realidade, busca criar um espaço ainda mais controlado pelo homem, e ainda menos invadido pela aleatoriedade da natureza

potencial, a propriedade material é finita e degradável. É claro que a utilização do próprio espaço para produção é uma escolha de cada indivíduo, mas fica muito claro como a escolha social pela segunda opção tem sido preponderante. É muito fácil perceber como abandonamos fortemente a ideia de demorar-se no espaço, para investir esse tempo em lucro futuro, assumndo a forma de produção continuada, não somente por termos tempo livre, mas num segundo momento exatamente para suprir um desenraizamento completo dos tempos da natureza. Hoje produzimos o secundário e o terciário para adquirir os objetos de necessidade primária e a relação de entendimento da natureza se torna completamente desnecessária. A metrópole é ponto máximo dessa forma de perda de sacralidade e desvinculação dos tempos naturais. Hoje podemos dar a vida o ritmo que bem quisermos, e não é raro que esse ritmo seja o mais alinhado possível com a constante necessidade de reprodução do capital. O mito da cidade global, metrópole completamente dominada pelo setor terciário traz em si um completo afastamento da natureza em sua sacralidade e imprevisibilidade, aprendemos o processos naturais completamente afastados do seu desenvolvimento, de forma abstrata e muitas vezes falha, a bolha de previsão e ordenamento, esfera do poder total do homem perde suas raízes no mundo natural.

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Porto seguro Aquele que aguarda confiante na colheita que virá possui uma liberdade de ação que permite diversas ocupações, esse tempo de espera muitas vezes será ocupado pelo trabalho, mas também há quem prefira uma vida de aventuras. Buscar recursos limitados, a vontade de aumentar seus domínios, descobrir o mundo e conhecer culturas, alimentos, pessoas e vivências diferentes inspira e sempre inspirou diversas campanhas. “A quien tiene acceso privilegiado a las provisiones le resulta más fácil pensar que habitar tiene que significar más que esperar a la próxima cosecha. El almacén lleno inspira el ánimo desbordante de señores filobáticos11, eruptivos, amigos de iniciar campañas, que pueden mantener bagaje y séquito asilvestrado. Hacen expediciones para aumentar sus radios de acción y manifestar su excéntrica energia, mientras que los campesinos, los de barro, con la mirada puesta 11 "Filobatismo: [...] a tendência que a pessoa apresenta para buscar a solidão e para buscar grandes espaços abertos. Assim, os filobáticos têm uma propensão para dirigir aviões, praticar alpinismo, etc., de modo que gostam da solidão de enfrentar desafios e perigos, como uma reafirmação de que não dependem de ninguém. Na verdade é uma espécie de fuga de riscos e de ficar enclausurado no outro, tal como acontece nas ocnofilias". ZIMMERMAN, David E. Etimologia de termos psicanalíticos. p.137.

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A metrópole contemporânea é o exercício final da aventura sem sabor. "Triste" de Alex Sartori

siempre en el futuro del grano, no pueden hacer otra cosa que seguir su condición de espera y sedentarismo. Desde que existe la plusvalía agraria y su santificado reparto desigual, las “sociedades” se dividen entre los tranquilos, que están quietos e sirven, y los intranquilos, de mira más amplias, que montan historias. Los últimos son quienes elaboran primero proyectos más allá del año12”.

Do mesmo modo como desenvolve Sloterdijk, o aventureiro prescinde de alguns recursos, a aventura, assim como o processamento de recursos secundários, nasce de um momento onde os mantimentos já estão garantidos e é possível armazená-los para a viagem. A expe12 Quem tem acesso privilegiado à provisões se torna mais inclinado a pensar que habitar tem que significar mais do que esperar a próxima safra. O armazém recheado inspira o espírito transbordante de cavalheiros filobáticos, eruptivos, amigos iniciar campanhas, que podem manter bagagem e uma comitiva de novos selvagens. Eles fazem expedições para aumentar seu raio de ação e expressar a sua energia excêntrica, enquanto os camponeses, os feitos de lama, com um olho sempre sobre o futuro dos grãos, não pode fazer nada além de seguir a sua condição de espera e sedentarismo. Uma vez que há terras excedentes e também a sua santificada distribuição desigual, as "sociedades" se divididem entre os tranquilos, que estão silenciosos e servem, e os inquietos, de olhar expandido, que inventam histórias. Estes últimos são aqueles que desenvolvem projetos além do primeiro ano. SLOTERDIJK. Peter. Esferas III. p393.

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riência da aventura possui alguns requisitos, e eles definem bastante seu raio de abrangência e sua capacidade de sucesso. Cada viagem, em seu tempo de duração e distância necessitam de uma acumulação e armazenamento de mantimentos em quantidades e escalas diferentes. Um pequeno lanche para uma viagem de uma tarde, a marmita do operário, a boia-fria dos que trabalham na lavoura ou mesmo as cabras e porcos levados nos navios são carregados para serem sacrificados e consumidos conforme a aventura segue seu curso. Uma vida em aventura significa não conseguir prever o que nos aguarda, e ter de se preparar para enfrentar qualquer desafio. Existe portanto uma ética do aventureiro, sua vivência se desenvolve na fragilidade dos desejos, impossíveis de serem alcançados em totalidade. A vida em aventura não permite muitos planos, na ignorância do que vem a seguir é preciso desviar e utilizar as pedras que surgem no caminho, aceitando o que é encontrado mundo afora, que pode ser completamente diferente do esperado. Na aventura, fins e meios são relativos, os fins são pouco pouco definidos e os meios de alcançar o objetivo nascem do improviso de continuar na busca. Mesmo que pudéssemos nos preparar para cada diversidade, carregar essas ferramentas torna qualquer aventura lenta demais, sendo assim a questão maior de qualquer aventureiro é saber improvisar. Diversos foram os momentos de aventura na história do ser humano, a conquista do espaço, por exemplo, apesar de muito planejada desconhecia seus parâmetros essenciais, sendo necessárias diversas sub-aventuras levando cachorros, macacos e formigas aos espaço para testar quais condições o céu implica à viagem sideral. Do mesmo modo como essas aventuras criaram muito do imaginário do século XX, diversas outras trouxeram novos conhecimentos e jeitos de entender o mundo. Mesmo as grandes navegações, em sua forma e suas fragilidades acabaram dando um pouco da cara e do caráter não só do Brasil, mas das américas. ”Atuando com
a ética do aventureiro, que
improvisa a
cada momento diante do desafio que tem
de
enfrentar, os iberos não produziram
o que
quiseram,
mas
o
que
resultou
de sua ação, muitas
vezes desenfreada. É certo que a colonização do Brasil se fez com o
esforço
persistente,
teimoso, de
implantar
aqui
uma
 europeidade
adaptada
nesses
 trópicos
e
encarnada nessas
mestiçagens. Mas esbarrou, sempre,
com
a resistência
birrenta da
natureza e
com
os
ca-

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"Cabotagem" ilustração: daniloz


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prichos
da
 história,
que nos
fez
 a nós
mesmos,
apesar daqueles
desígnios, tal
qual somos, tão
opostos a
branquitudes
e
 civilidades,
tão
 interiorizadamente
 deseuropeus
como 
desíndios
e desafros13”.

Seria descabido não diferenciar a aventura do simples sair de casa em busca de algo, e realmente há poucas diferenças. Não podemos negar como o nomadismo e a peregrinação é uma experiência de aventura constante, porém há uma diferença essecial e está relacionada com a sede de toda jornada. A experiência da aventura pode ser objeto de uma necessidade imediata, porém as caçadas e buscas de mantimentos se diferenciam da aventura para expansão de domínios, conquista de territórios, comércio e autoconhecimento. E a diferença essencial é o ponto de partida nutritivo e acolhedor que lhes separa. O desenvolvimento de uma confiança na próxima colheita muda completamente o caráter da aventura e isso chega a tocar inclusive nosso modo de vida contemporâneo, marcado por uma aventura contínua. Saber que há um porto seguro a nossa espera muda completamente a atitude frente ao mundo, ainda há algo a perder. Há hoje um deslocamento de centralidade, se na casa existencial o foco é a espera, a maturação realizada num acompanhamento constante, cuidado e proteção. O habitáculo metropolitano inverte completamente essa relação, dentro de um apartamento não há nada a esperar, é preciso sair continuamente em busca de novos recursos no mundo, sem qualquer garantia de que eles irão estar disponíveis, aceitando qualquer serviços em busca de suprir uma necessidade nunca saciável. A ética da aventura é completamente contrária a ensinamento vegetal de que colhemos o que plantamos. Na veredas da vida, a sorte, a competição e a iniciativa são mais recompensadoras do que confiar nas sementes dos nossos atos. Chegamos ao caráter habitacional atual, completamente desvinculado dos tempos da natureza. Na metrópole nenhuma habitação vive em função de um projeto de colheita. A correria do dia-a-dia tem seu foco na produção externa, ativa e contínua. Optamos por uma vida marcada por uma aventura constante, todos os dias saímos de casa em busca do pão do amanhã, mas essa aventura não tem 13 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. p63.

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mais nada de imprevisível, a aventura do cotidiano é marcada pela repetição e proteção constantes. Protegidos dentro de latas de alumínio o aventureiro metropolitano sequer respira o ar de seu entorno e só abrirá seu invólucro quando estiver dentro de outro fechamento ainda mais protegido. A necessidade de demorar-se no espaço só pode ser ato de algum vagabundo preguiçoso, deformando completamente a ideia de habitação de Heidegger. Se o ser humano, na metrópole, perde sua relação com a natureza, sua habitação também perde a função de sala de espera da natureza, de local de maturação, acabando por se resumir apenas por sua função de abrigo primordial e de fortaleza de objetos adquiridos no mundo. Fica claro como criar filhos na metrópole é nadar contra a corrente da aventura cotidiana, não há nem espaço nem tempo para a maturação. Nascem, dessa maneira um amontoado de cidades-dormitórios, desvinculadas da terra e da natureza, necessárias apenas para a realização da única função vital ainda não completamente dominada pelo capitalismo, o sono14. Porém, também já está sendo estudada a colonização dessa última fronteira natural, empecilho para a realização completa do trabalho 24 horas por dia, criando finalmente um mundo cuja lógica não se prende mais a limites de tempo e espaço, permitindo inclusive a abolição completa da residência, com os fins do sono seria possível voltar ao nomadismo completo. O espaço da habitação — no conceito de Heidegger — se perde completamente num horizonte onde o tempo é dinheiro e dinheiro é produção material. O exercício da espera e maturação dão lugar à inquietação tediosa e do sentimento de estar sendo improdutivo. Se nada podemos esperar em casa, fica claro como é buscando no mundo que conseguiremos nosso sustento diário. Não podemos negar que a aventura metropolitana do cotidiano é completamente diferente da ética que continuamente se reinventa, a aventura da cidade perde seu sabor de improviso na repetição constante de uma rotina protegida e sem novidades. Aventura e processos repetitivos e nada criativos.

14 CRARY, Jonathan. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono.

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Dessa forma, chegamos a um ponto onde a vida se desprende completamente da natureza, os recursos “nascem” longe dos olhos dos consumidores e suas sementes são desconhecidas. A dependência da sociedade se sobrepõe à dependência da natureza, e qualquer tentativa de voltar à uma vida pautada pelos tempos naturais se torna truncada e desestimulada. Por mais que o conhecimento dos tempos e processos naturais capazes de nos trazer sustento seja possível e muitas vezes presente num cidadão metropolitano educado, a dificuldade de encontrar espaços de produção agrícola, seja pela escassez de espaço não construído, seja por esses espaços serem de domínio privado, com diretos à eles vinculados, torna qualquer tentativa de se revincular aos tempos da natureza um esforço hercúleo. Dessa foram, a (não) habitação metropolitana, na sua infecundidade e desenraizamento, se torna o oposto da segurança e confiança na espera, o habitáculo urbano se torna uma experiência de constante desespero. A incapacidade de poder contar e confiar na próxima colheita cria uma vivência do espaço desesperada e submissa às formas e serviços que podem lhe trazer sustento, onde a aventura é relativamente despreparada, é preciso lutar diariamente e sem descanso, tal como nossos antepassados das cavernas. Saímos da fase marcadamente agrária onde habitar era principalmente esperar os tempos da natureza trazerem a próxima colheita. Na metrópole, o armazém foi tomado e já não se sente o perigo de fome que assombrava nossos antepassados gregários, a vida na metrópole restabelece um estado constante de aventura pelo mundo. Aventura que pode trazer descobertas, pilhagens e novos brinquedos, mas também podem — na sua imprevisibilidade — tomar esforço e tempo sem nenhum tesouro para trazer de volta ao lar. Na metrópole, a sabedoria natural não é suficiente para dar independência ao homem, é preciso garantir propriedades para explorar, nesse sentido é inegável como a questão da propriedade da terra é sempre presente na define quem somos. Além das questões fundiárias de reforma agrária e direito à cidade, não é estranho pensar o quanto discussões atuais de mobilidade se pautam nessa possibilidade de manter a aventura possível. Esse espírito da metrópole de manter bairros dormitórios e centralidades de comércio e competição precisa ter as caravelas modernas circulando em trilhos de metrô ou pneus de carros e ônibus.

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Brooklyn Grange é uma fazenda urbana no bairro do Queens, Nova york

Do outro lado percebemos fortemente um movimento contrário por parte dos ativismos urbanos em restabelecer, na cidade, os tempos da natureza. Por meio de hortas comunitárias, programas de compostagem e um projeto de fazendas urbanas pode-se restabelecer não somente um meio de subsistência, mas também um ideal de habitação perdido na metrópole da aventura: a casa como um local de espera das colheitas, que traz consigo toda uma vivência lenta, gregária e marcada pela sabedoria da observação do tempo. Enquanto um pensa a cidade como ápice da aventura ou outro espera na cidade o exercício da paciência. Apesar de marcadamente opostas em suas convicções em relação ao conceito de habitar, é interessante notar como as pautas de mobilidade e agricultura urbana andam particularmente juntas sobre o contexto dos ativismos urbanos. Isso talvez aponte para um horizonte onde ambas as vivências do espaço se permitam existir concomitantemente e dentro da metrópole, e aparentemente se a balança não pesar para nenhum dos lados isso é perfeitamente possível.

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Observatório Qualquer fechamento se coloca frente à uma exterioridade, assim, a adaptação e o projeto de mundo se desenvolvem absorvendo os recursos e contornando as contingências que essa exterioridade pode conter. Hoje chegamos num ponto onde o domínio do ser humano frente ao mundo é tão vasto que essa relação de dependência se torna trânslúcida, ainda que seja possível reconhecer o mundo como alteridade, ele não é mais regido unicamente pela aleatoriedade da natureza, o homem dominou quase tudo. Quando já não há mais territórios a serem conquistados, quando o mapas não possuem mais lacunas, o mundo passa a se tornar um produto do ser humano, causado e produzido por ele. “vamos haciéndonos conscientes de que el hombre, para bien o para mal, se ha salido de la naturaleza. se halla ciertamente enraizado en ella, pero es capaz de crearse un segundo mundo, el de sus propias construcciones, nuestro mundo ya no es la naturaleza encerrada en el cosmos. en un arrebato puberal hemos resuelto romper nuestro ligamen con las determinaciones universales para perseguir objetivos propios. [...] hoy, la nueva situación del hombre es menos producto de su capacidad intelectiva que de su temor a una autonomía que posiblemente se haya vuelto incontrolable y en igual medida indecisa, ciega e impressionante en sus efectos. continuamos filosofando sobre el mundo como `ser` y no advertimos que el mundo se nos ha convertido en un proyecto, en un modelo acabado en el que incluso la propia naturaleza se halla contenida15”.

15 Vamos nos tornado conscientes de que o homem, para melhor ou pior, se retirou da natureza. Está certamente enraizados nela, mas é capaz de criar um segundo mundo, o dos seus próprias cosstruções, o nosso mundo não é mais a natureza fechada no cosmos. em uma explosão puberal resolvemos quebrar nosso vínculo com a determinação universal para perseguir objetivos próprios. [...] hoje, a nova situação do homem é menos um produto da sua capacidade intelectual que de seu medo de uma autonomia que, eventualmente, tornou-se incontrolável e igualmente indecusa, cega e impressionante em seus efeitos. continuamos filosofando sobre o mundo como `ser` e não percebemos que o mundo se tornou um projeto, um modelo acabado em que até a própria natureza está contida. AICHER, Otl. El mundo como proyecto. p173-4

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O desenvolvimento de novas ocupações, processos e novos produtos passa a criar ao longo do tempo um ethos não mais marcado pela natureza, mas em oposição à ela. Se a antiga observação do mundo nos fez mais poderosos frente a própria vida, também nos permitiu hoje sermos menos observadores. Novas produções e ocupações vão tomando cada vez mais o tempo natural excedente, que agora não é mais tempo de espera, mas tempo de produção e reprodução continuada. A implicação mais evidente disso é que como os tempos de produção vão se tornando cada vez mais importantes e constantes, a relação primordial com o mundo externo pode ser suprimida, as novas ocupações, cada vez mais centradas em subprodutos de subprodutos que continuamente produzimos, permitem retirar de uma vez por todas a relação direta com o mundo em sua imprevisibilidade e crueldade. As invenções deixam de atender problemas e passam a criar facilidades. Ocorre um inversão completa do mundo, a própria cultura passa a ser preponderante ao mundo natural e se perde completamente a relação com a natureza. “el hombre ya no se halla rodeado de la naturaleza y el mundo, sino de cuanto ha hecho y proyectado. sin embargo, el hacer entra en una categoria inferior. un pensador es algo mejor que un hacedor, quien organiza es más que quien produce, el manager es más que el ingeniero, la universidad es más que la escuela técnica, el banquero es más que el fabricante. un trabajador manual es en todo caso alguien dependiente. y quien cultiva sus propios productos horticolas es ridicularizado. son cosas que se pueden comprar16”.

Podemos analisar que vivemos já há alguns séculos sobre um modelo de vida onde a produção humana ocupa muito mais tempo que a observação do mundo e sua maturação. Não mais olhamos para as estrelas, seja porque a claridade da cidade nos impede ou seja porque não temos mais tempo livre para tal. Já é possível passar dias, meses, 16 o homem já não está rodeado pela natureza e pelo mundo, mas do que ele tem feito e planejado. no entanto, o fazer entrar uma categoria inferior. um pensador é mais que um fazedor, quem organiza é melhor do que quem produz, o gerente é melhor que o engenheiro, a faculdade é melhor que a escola técnica, o banqueiro é mais que o fabricante. um trabalhador manual é em qualquer caso, dependente. e os que cultivam os seus próprios produtos hortícolas é ridicularizado. são coisas que se podem comprar. Ibid. p175.

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até anos sem nunca colocar um pé para fora de casa, não apenas sobrevivendo, mas diretamente produzindo bens e serviços pagos por quem quer que os necessite e sem a menor necessidade de esperar uma colheita ou sujar as mãos de terra. Há toda uma esfera produtiva no primeiro andar que desconhece as veredas e fazendas do térreo e são poucas as profissões que necessitam trabalhar com a crueldade natural. Nos distanciamos completamente da natureza, e nos assustamos quando presenciamos sua imprevisibilidade e poder. Vivemos num mundo voltado para dentro do próprio umbigo cultural, onde a lei17 cria uma ilusão de que tudo pode ser previsto e controlado. Mesmo as tragédias naturais agora são culpa do indivíduo que não as previu. A dependência básica que temos do mundo natural submerge nos hábitos diários de sua negação. A assombração de fantasmas dão lugar aos perigo do criminosos e as orações dão lugar aos investimentos. Dentro de um mundo auto suficiente, onde todas as necessidade básicas podem ser adquiridas de forma indireta, recebendo água na torneira e comprando frutas no mercado, a necessidade de colocar o pé no chão sujo de terra perde seu apelo. Com todo o planeta dominado pela cultura as muralhas perdem sentido, não existe mais um mundo natural agressor forte o bastante para nos assombrar. A intrusão já raramente vem de causas naturais, mas de outro ser que nos incomoda. O espaço fechado se desenvolve no contraponto não mais do mal desconhecido, da natureza, mas do mal intencional, do outro. O fechamento coletivo das muralhas se desfaz e os muros das residências se engrossam. Esse espaço em separado, no que Sloterdijk designa como espaços de imunidade18 já é um dispositivo conhecido no funcionamento do fechamento como armazém, porém essa situação cercada permite criar outra forma derivada, o observatório. Quando dentro de um espaço protegido se pode olhar de cima, sem ter de andar pelo solo esse espaço deixa de ser apenas um compartimento. Chegamos aqui a última forma de vida topológica levantada nesse trabalho, uma forma reclusa, protegida do mundo, mas que vigia e recebe suas necessidades sob encomendas. 17 No direto romano, essa situação é evidenciada na expressão “Integrum”, um estado incólume de condições naturais de vida protegidas pelo direto. 18 SLOTERDIJK, Peter. Op. Cit. 407-14

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“La vivienda se va consolidando como máquina de ignorancia o como mecanismo integral de defensa. En ella encuentra su apoyo arquitectónico el derecho fundamental a no-prestar-atención al mundo exterior19”.

Poderíamos chegar num ponto onde o habitáculo se torna completamente ou quase hermético, abusando do serviço de quarto e dos passa pratos, mas essa situação não traz conforto a ninguém. A curiosidade pelo mundo externo é constante em qualquer indivíduo sadio, mas existem meios de conhecer o mundo sem sair de casa. A infinidade de coisas entre produção e serviços que começam a acontecer no espaço fechado permitem que alguns seres possam nunca mais precisar sair desse local privilegiado, vivendo enclausurado e apartado do mundo externo. Várias são as configurações que seguem essa forma, mas talvez a que mais se desenvolve no imaginário arquitetônico é a ideia da torre. Essa situação provavelmente se iniciou sobre pontos de observação avançada, inicialmente montanhas, depois torres, faróis, campanários e outras edificações verticais nos mais variados formatos. Se por 19 a casa vai se consolidando como máquina de ignorância ou como um mecanismo de defesa integral. nela, se encontra o suporte de arquitetônico do direito fundamental à não-prestar-atenção ao mundo exterior. Ibid. p412.

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Castelo Neuschwansteinna contruído na segunda metade do século XIX na Bavária, Alemanha


Castelo da Cinderela na Disney, Orlando foi inspirado no castelo alemão

fora qualquer torre é um marco na paisagem, vista de dentro, a torre é um observatório privilegiado. Elevar o ponto de vista permite vigiar territórios mais amplos, prever a chegada de inimigos e também abrir os portões para as caravanas trazendo boas novas, especiarias, brinquedos e mantimentos. É preciso que essa observação seja possível, do contrário esse espaço não passa de um auto-cárcere. Na ética do indivíduo que vive nesse observatório tudo funciona numa forma passiva. Uma vida resumida à receber seus mantimentos de fora e ter um horizonte de observação limitada é uma constante em contos de fadas. A princesa presa na torre do castelo recebe comida de seus serviçais protegida dos perigos do mundo, mas ainda podendo observá-lo à distância. Nessa história ficam suprimidos aqueles que trabalham o solo retirando-lhe o néctar, esse baluarte sempre foi privilégio de poucos. O problema da observação distanciada não é tanto a observação em si, mas quando essa abordagem é inerte e em nada mais interfere no mundo. Subir numa árvore para se orientar e definir um caminho é diferente de nunca mais descer. Com certeza essa observação traz semelhanças e intersecções com a vigilância, porém o que separa essas duas ocupações é a necessidade de ação ou não frente aos fenômenos do mundo. Aquele que mantém distância de tudo não participa de

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nada, até porque só pode ter pontos de vista distorcidos. As semelhanças com a vigilância daquilo que se guarda são tão grandes que mesclando suas formas surge justamento o panótico, uma estrutura de armazenamento que mantém sob vigilância cada unidade ali guardada. Analisando qualquer mecanismo de fechamento podemos perceber que sua principal função é lidar com a realidade externa. Em todos os exercícios de delimitação o objetivo é configurar um espaço privilegiado de complexidade limitada, controlando rigorosamente os elementos que podem ou não adentraram de modo a estabelecer um microcosmos definido, possível de ser entendido em sua dinâmica. Há, deste modo, duas configurações diferentes desse fechamento: a primeira mais comum, onde a complexidade caótica é colocada para fora criando limites claros e suas transposições. Esses elementos são basicamente os edifícios, a casa, a muralha, entre outros. Porém há também o seu inverso. Na situação atual, onde o homem passa a dominar toda a superfície do mundo, o exílio não é mais opção; desse modo o objetivo se torna colocar a complexidade para dentro e assim controlar o caos externo. Esses espaços são as prisões, os manicômios e os hospitais, onde elementos não passíveis de entendimento, importância ou controle são sistematicamente reunidos e “armazenados”. O panótico é talvez a forma mais emblemática dessa inversão, onde a vigilância e o encarceramento tomam sua forma física mais potente.

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Cárcel de Miguelete, Prisão em forma de Panóptico em Montevidéo


“O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções - trancar, privar de luz e esconder - só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha20”.

20 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. p165-6.

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É notável como esse modelo foi proposto para o funcionamento de escolas e hospitais, uma maturação forçada e controlada sem qualquer ligação com o carinho e o cuidado. Uma maturação rígida e voltada à um ideal de ser humano pré-estabelecido. Não se espera nesses lugar que os frutos sejam resultados da confiança na semeadura, mas de uma maturação forçada aos moldes do poder humano de entalhar o mundo e os outros. Assim como os jardins franceses tentam dominar a natureza dando-lhe formas artificiais, o espírito do século XIX em diante trouxe diversos desses exemplos, porém, as formas de vigilância e ortopedia social não são exclusividade dessa época nem deixaram de existir, apenas tomaram formas mais sutis de vigiar e controlar sem ser percebido e não há como negar o quanto câmeras e televisões se empregam nesse propósito. "Conquistar, a gente conquista de cavalo, governar tem que ser a pé". Nessa frase atribuida à Gengis Kahn é dito que viver encastelado impede a ação pública, porém com o advento das telecomunicações essa função passou a um novo patamar, onde a mão que vigia e que molda é muito mais leve e sutil, e por isso, muito mais poderosa. Torna-se possível comandar o mundo sem tocar o chão, mostrar o rosto ou colocá-lo a tapa. Nesse contexto o horizonte reduzido dos observatórios deu lugar à aventura dos emissários da notícia, permitindo finalmente conhecer o mundo sem nunca mais sair da proteção nutritiva do apartamento. Se por séculos foram as cartas que trouxeram notícias de tempos distantes, com o surgimento do telégrafo, do rádio, do satélite e outros equipamentos o modo como entendemos o mundo e nós mesmos mudou completamente. Hoje, no baricentro íntimo de cada residência, abrigado numa posição avançada sobre a intimidade fragilizada se instala a televisão, cuspindo imagens repetitivas a todo instante no local de relaxamento. Signos do mundo exterior rapidamente se tornam familiares devido à alta exposição e redundância. Não é de se estranhar que um viajante possa se sentir mais á vontade a beira da Torre Eiffel do que na esquina da própria casa. Vivemos o mundo por procuração.

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Câmara de circuito fechado de televisão — CFTV


Nas formas simples do logotipo da Rede Globo se revela um mundo observa que a sí próprio à distância, vendo inclusive a realidade ainda mais colorida.

É claro que essa janela virtual para o mundo amplia o horizontes de nosso pensamento, mas também trazem retratos pontuais, dificilmente condizentes com a totalidade do que nos espera lá fora, qualquer observatório sofre das realidades distorcidas que miragens e pontos de vista diferentes podem trazer. Tanto o olho nu como as noticias padecem da imprevisão presente em qualquer observação distanciada. Os retratos do mundo passam a ser filtrados pela capacidade de abordá-los. Isso não é nenhuma novidade, a maior preocupação de qualquer déspota é a veracidade da informação que seus emissários lhe repassam. É impossível estar em todos os lugares e para aquele que detém o poder é ainda mais perigoso se ausentar de sua sede. A vida no observatório também é a forma mais comum àquele que detém o poder. Aos pés do trono do Grande Khan estendia-se um pavimento de maiólica. Marco Polo, informante mudo, espalhava o mostruário de mercadorias trazidas de suas viagens aos confins do império: um elmo, uma concha, um coco, um leque. Dispondo os objetos numa certa ordem sobre os azulejos brancos e pretos e, a partir daí, deslocando-os com movimentos estudados, o embaixador tentava representar aos olhos do monarca as vicissitudes de sua viagem, o estado do império, as prerrogativas de remoras capitais de província. Kublai era um atento jogador de xadrez; seguindo os gestos de Marco, observava que certas peças implicavam ou excluíam a proximidade de outras peças e deslocavam-se de acordo com certas Unhas. Transcurando a variedade de formas, ele definia a disposição de um objeto em relação ao outro sobre o pavimento de maiólica. Pensou: ‘Se cada cidade é como uma partida de xadrez, o dia que eu conhecer as suas regras finalmente possuirei o meu império, apesar de que jamais conseguirei conhecer todas as cidades que este contém’21”. 21 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. p111.

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Sabemos que esse ponto de vista é enviesado e essa capacidade de se teletransportar para mundos distantes tem suas falhas, mas nem por isso as viagens perdem sua motivação. Agora, a aventura do desconhecido dá lugar aos pacotes de turismo, onde todo o trajeto é preconcebido, acompanhado e resolvido. Se a observação avançada permite que a aventura seja menos imprevisível, com o tempo e o desenvolvimento das telecomunicações chegamos ao ponto onde qualquer surpresa numa viagem é algo indesejado. Já sabemos de antemão cada dia e cada visita e cada ponto turístico da viagem, não há pontos em aberto, não há surpresa, além disso só é relevante aquilo que foi conhecido previamente. Viajar já conhecendo cada esquina passa a se resumir numa busca por uma “essência” que apenas estando lá é possível sentir. As surpresas são indesejáveis tanto para o viajante, quanto para aquele que observa e controla o mundo escondido das praças públicas, o observatório serve justamente para controlar a contingência Essa sociedade que buscamos, acostumada a viver numa tutela e organização constante consegue acreditar ininterruptamente que o mundo é previsível. Assim, chegamos numa configuração espacial que guarda a última e tênue ligação entre cada ser com seu mundo externo. Mesmo fora de casa, estamos dentro de uma esfera constantemente controlada pelo ser humano. Analisando esse contexto é realmente difícil pensar em como a experiência do espaço público pode ser interessante, as formas disponíveis de vida, consumo, movimentação, trabalho e todos os momentos restantes corroboram para um sentimento de um cuidado superior constante, se por um lado isso pode trazer segurança, é sintomático que reduza a liberdade. Essa noção distorcida de um mundo seguro pode ser algo viciante, e qualquer coisa que fuja à esfera da previsão e do controle se torna um incômodo desconcertante, colocando em jogo nosso modo de vida e nossas ilusões de onipotência. Quando nos acostumamos com todos os casos serem previstos em lei, qualquer incômodo se torna um transtorno. A busca por cessar cada vez mais as intrusões, buscando um distanciamento cada vez maior com o tabuleiro do jogo e filtrando cada vez mais as notícias e contingências do mundo só pode desembocar num fechamento completo do ser na própria fantasia. Dentro de casa podemos resumir o mundo à partidas de xadrez, fazendo vista grossas para o olhar enviesado bispos ou as fissuras na estrutura da torre. Se o simulacro do fechamento e da introspecção

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é capaz de criar a mais vívida ilusão de liberdade a forma como esse espaço se desenvolve é justamente a esfera hermética completa, onde nada de diferente pode entrar. Poderíamos reduzir essa esfera hermética à própria casa, quarto ou mesmo a cama, porém as inovações tecnológicas permitem se esconder em labirintos muito mais interessantes. Surge na internet uma possibilidade de dissolução completa do espaço, de perdermos todo o sofrimento relativo a viver preso em nossas necessidades carnais. Tanto a televisão como a internet permitem que os marcos nos quais fizamos nossas referências deixem de se situar na irradiação da própria residência. Além disso, já não são novas a existência de diversas realidades paralelas nos mais diversos universos virtuais, onde modelos simplificados ou alternativos são possíveis na forma de jogos e vidas paralelas que acabam criando referências em realidades não físicas. Essa opção por modelos simplificados sempre existiu, mas em breve podem se tornar uma opção ininterrupta frente à um mundo imprevisível, complicado demais e sem gosto. É difícil para o mundo insosso do trabalho acéfalo e repetitivo, marcado por uma competição desproposital e uma impotência constante, trazer algum estímulo para aquele que não vive no desespero da próxima refeição. Viver num mundo mágico, povoado pelos mais oníricos seres mitológicos, ou qualquer outra fantasia que se tenha, onde as possibilidades de ascensão são proporcionais ao esforço, e onde é possível ser quem quiser se tornam uma grande tentação. Já existem casos de pessoas que largam trabalho, família, filhos e todo o resto da própria vida mundana para jogar jogos por dias a fio. Dentro dessa situação fica claro como podemos finalmente chegar naquele horizonte teórico onde a abandonamos finalmente qualquer relação com o mundo externo e entramos para a Matrix. A novidade tecnológica já existente da realidade aumentada, combinada com a possibilidade de plugar o próprio cérebro diretamente computador controlando um cenário de realidade paralela pode finalmente separar mente e corpo. O horizonte final da potência humana desinteressada do mundo talvez reste na possibilidade de viver plugado numa máquina capaz de manter o corpo vivo enquanto um sonho lúcido permite que a onipotência finalmente dê ao ser humano o status da própria divindade. E não é inesperado dizer que muitas pessoas iriam preferir

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se plugar infinitamente numa máquina onde suas possibilidades são maiores do que viver a vida previvida e repetitiva do cotidiano preso à própria carne e angústias. Essa fuga contém em si um paradoxo, pode parecer que isso seja uma fuga do “mundo real”. Porém esse mundo também já não se resume numa esfera controlada, num jogo de incontáveis regras — aquilo que chamamos de "sistema" — e que perde grande parte de sua imprevisibilidade? Nesse caso é apenas trocar um jogo por outro mais interessante. Talvez chegue um ponto onde até o próprio corpo se torne desnecessário, onde o download da própria memória permita viver como luz, transmitindo e sendo transmitido a qualquer e todos os lugares, chegando à onipotência, onisciência e onipresença onde qualquer filosofia existencialista, por estar limitada à um corpo humano jamais tocou. Aqui não há mais o que dizer, não há nenhum ponto de onde partir. O espaço da criatividade total nunca passa de um simulacro, local quase abrigado das investidas da realidade, mas se esse espaço, real ou virtual, por um lado traz liberdade, por outro funda o totalitarismo, a contradição também mora no fechamento. De qualquer maneira, esse cenário apocalítico é completamente incerto e como qualquer tendência, sempre há objetos na contra-corrente, porém fica claro como o sentimento de enclausuramento que

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O grande trunfo do filme matrix não é apontar que podemos fugir da realidade, mas que já vivemos numa realidade falsa, vivendo como escravos.


observamos no comportamento de diversas pessoas ainda pode ser mais profundo e tem repercussões muito mais complexas, remetendo a dificuldade de aceitarmos nossas dependências e nossa busca por nos sentirmos potentes, necessidade que vem sido alimentada cotidianamente. Como vimos até agora, somos como a água, moldados pelo invólucro, mas também ganhamos o poder escolher e projetar nosso continente. Conjugando nossas potencialidades e nossas fragilidades construímos cidades buscando a coexistência sempre desequilibrada entre segurança e liberdade. É somente no espaço de nossas fantasia que o sujeito pode se sentir verdadeiramente livre, e quanto maior a fantasia, maior a liberdade. Essa busca contraditória é o âmago da construção de qualquer estrutura social, e a arquitetura e o urbanismo não fogem desse horizonte mirático, assim, se é possível equilibrar essas necessidades por meio de recursos poéticos e milhares de tijolos veremos a diante em casos mais concretos.

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Linguagem cultural

Até esse momento tratamos do espaço de maneira mais genérica e abstrata, tentando abordar as primeiras sensações espaciais e como elas são base para nosso sentimento de potência e impotência, sentimento marcadamente espaciais. As ilusões que tentamos infligir ao espaço para concretizar nossos desejos e fugir das privações e da própria dependência se desenvolvem na forma como aprendermos e criamos referências espaciais, que nos guiam no dia a dia de viver no mundo. Chegamos então ao momento onde a abstração desses fechamentos ganha mais concretude e passamos a analisar edifícios e estilos existentes, alimentados, é claro, por um ser pensante que habita e projeta o espaço em que vive, além do próprio mundo à sua volta.

Leviathan (2011) Anish Kapoor Grand Palais, Paris

Não há como negar que a questão central de qualquer fechamento é o mundo que nos rodeia e as implicações que essa exterioridade pode causar geram diferentes formas. Apesar de nos aprofundarmos na arquitetura, ainda continuaremos o fazendo principalmente por suas formas topológicas, assim a relação de um edifício com seu entorno nessa análise é a relação primordial de qualquer edifício, e as sutilezas com que essa transposição se realiza, sua forma estética, a fragilidade ou a rigidez de suas transposições serão analisadas em comparação com as formas de vida possíveis e com o caráter que diferentes épocas tentaram infligir aos corpos e aos edifícios. Desse modo, chegamos à uma análise alimentada por homens e mulheres, onde as formas de construir nos vestem do mesmo modo que a vestimenta revela nossas intenções e deficiências, o modo de se apresentar ao mundo é a forma estética que iremos analisar. Muitas vezes esse tipo de análise pode não ir fundo no detalhe individual de um edifício, realmente não é essa a intenção, nem seria possível com um ferramental tão maleável quanto a topologia.

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Ao longo da história das construções os limites da relação do homem com o mundo se tornaram cada vez mais rígidos, muralhas cada vez maiores, torres cada vez mais altas e raios de influência cada vez mais amplos. Aqui não há nada de novo, haveria muito pouco o que dizer da topologia das pirâmides, objetos quase maciços de dimensões monumentais servindo apenas para proteger corpos mortos e embalsamados, nas pirâmides a rigidez das muralhas atingem o ponto de máximo. O mesmo já não se observa nos templos gregos, que possuem um limite muito mais tênue, há uma transição de espaço aberto-fechado muito mais sutil fazendo com que cada fileira de colunas proporcione uma imersão maior à presença do deus que ali governa. Outra maravilha do mundo antigo que teria algo a dizer nesse contexto seria os Jardins suspensos da Babilônia, obra que sequer deixou vestígios e que guarda ainda muitas dúvidas sobre sua existência, mas coloca uma questão interessante na relação com a natureza, abrigando-a e domesticando-a, ainda mais num contexto árido como o da mesopotâmia, onde podemos analisar que grande demonstração de poder humano implica colocar um jardim no deserto, se implantado onde um jardim se desenvolveria naturalmente não existiria tanto apelo. Apesar da relevância desses exemplos há poucos resquícios da forma como se deu a residência individual no período antigo, e quando há eles demonstram a rigidez das paredes e uma negação completa do

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O jardim japonês tenta aprender com a natureza


A completa abertura do ambiente revela que a fortificação não é a casa.

mundo exterior como tendência em quase todas os exemplos. Tentar fazer uma releitura completa das formas topológicas ao longo da história da arquitetura seria um trabalho hercúleo, além de necessitar de uma análise cultural correspondente a cada caso, dessa forma, não me aprofundei nessa pesquisa da moradia antiga, mas sim nas formas mais atuais de moradia, assim podemos dar um salto para uma situação que acredito icônica e singular na história da arquitetura. A casa tradicional japonesa. Casa do Samurai A forma mais tradicional da arquitetura japonesa, representada por edifícios de madeira e cuidadosamente trabalhada surge no séc VI alimentada pela interação com a china e principalmente com o budismo, é a forma dominante até a ocidentalização do japão reinando desde a era Edo, no final de século XVII, até o final da era Showa, já no século XX, com o imperador não sendo mais considerado um deus encarnado. Sua diferença mais forte com relação à arquitetura chinesa mora justamente numa grande simplicidade dos elementos com poucos ornamentos, apesar de cuidadosamente trabalhados, criando fechamentos muito leves, com divisórias feitos em papel de arroz, bambu, madeira e outros materiais. Essas formas, marcadas por limites muito sutis e entre o interior-exterior dos edifícios é uma análise interessante do ponto de vista topológico.

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Primeiramente a filosofia budista e xintoísta dominantes no território japonês têm uma grande influência nesse comportamento, marcadas por uma relação muito mais direta com a natureza, que diferente do pensamento ocidental não deve ser domada e controlada, mas entendida e observada, acaba criando um conceito de espaço numa sintonia muito forte com a ideia do habitar de Heidegger, colocando na espera, maturação e observação da natureza um modo de vida. A própria forma do jardim japonês, que procura mimetizar em tamanho reduzido as maravilhas naturais demonstra uma forte visão de como o conhecimento reside na sabedoria da natureza e devemos imitá-la. Apesar desse contexto mais amplo, a fragilidade das transições principalmente nas residências tradicionais japonesas revela uma configuração social mais complexa. Trabalhando essa fragilidade como uma relação interior-exterior de limites sutis e fragilizados só podemos chegar a duas hipóteses. Ou a sociedade japonesa possuía uma tal organização social que a intrusão, o crime e a invasão da propriedade alheia eram muito raras, ou a fortificação da residência se verificava em outra estrutura que não nas paredes. A realidade é que ambas as hipóteses são prováveis. Primeiramente pelo Japão ser um conjunto de ilhas, e as ilhas permitem uma maior capacidade de organização, já que recebem naturalmente menos intrusões externas, possuem menos contatos com o estrangeiro e consequentemente gerando menos contradições socioterritoriais pela existência do diferente. Em segundo lugar a grande estratificação da sociedade japonesa tradicional, marcada por um pensamento fortemente militar, com lugares e práticas tradicional muito difundidas, respeitadas e reproduzidas, permite que esse “mundo” externo seja muito pouco variável e com regras muito restritas, diminuindo ainda mais a existência desse outro à revelia de mim que pode me atormentar. O feudalismo japonês, que durou do século VII até o século XIX foi uma política muito auto centrada, com pouca relação comercial e política com os países lindeiros, chegando ao ponto de privar todo o comércio exterior, adotando uma política isolacionista entre os séculos XVII e XIX. Assim um feudalismo marcado por uma tradição forte na propriedade da terra e nas relações de vassalo-suserano criaram uma ambiente muito parecido com o feudalismo europeu, mas com dispositivos sociais como a possibilidade de deserdar os filhos, que impediram

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Castelo de Himeji

com eficácia as insubordinações filiais tão comuns na Europa, assim apesar de ser uma época marcadamente violenta, com diversas disputas podemos perceber como a sociedade japonesa conseguiu por tanto tempo se manter na mão das mesmas elites adotando defesas tão sutis. Além disso, a figura da honra justifica e induz práticas como o 切腹 (seppuku “cortar o ventre), de forma a poder permitir o auto-sacrifício antes de ser desonrado resultando que a casa daquele que guarda a honra nunca seja utilizada como refúgio do covarde. Não existe necessidade de engrossamento das paredes, pois a fortificação essencial mora no indivíduo que ali vive. A existência das artes marciais e até o próprio 武士道, (Bushido, caminho do Samurai), código de honra samurai, corroboram uma forma de vida onde as paredes não estruturam a sociedade, mas a hierarquia e a necessidade de servir seu superior em nome da honra. Não quero dizer que essa forma de vida seja imune ao autoritarismo e à injustiça, mas simplesmente que configura uma “lei” social tão imune às oposições internas e externas que permitiu que essa arquitetura leve sobrevivesse por mais de mil anos. Apesar de muitas dessas residências se instalarem em lotes murados, a fragilidade das paredes e mesmo a baixa estatura das muradas testemunham que a fortificação ali não mora nas pedras, mas na honra de seu guardião. Precisamos salientar que essa análise se circunscreve apenas à essa residência militar, voltando o olhar para os

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suseranos que lhes contratam podemos perceber como seus castelos são bem fortificados em seus entablamentos de pedra e labirintos internos, fator que se agravou ainda mais com o contato com os novos armamentos à base de pólvora vindos do ocidente. A casa japonesa, apesar de que de forma genérica aponta como o modo de ver a si próprio no mundo e se relacionar com ele se reflete nas formas de morar e construir, isso não é uma característica pontual da história, diversas culturas se definem e podem ser entendidas também na forma de viver e habitar o mundo. Talvez um dos primeiros trabalhos que revela essa relação cultural entre uma casa e seu morado esteja na obra de Bourdieu, abordando como a antropologia do povo berbere do norte da Argélia se demonstra no desenho da casa, que se organiza no exato oposto do mundo externo. As partes claras internas e externas da casa são reservadas às atividades culturais como cozinhar e tecer, o local do fogo, do comércio e onde o indivíduo transcende sua relação de dependência e se relaciona com o masculino; já as partes mais escuras da casa são reservadas aos animais, à morte, ao ato sexual, ao segredo, a feminilidade e tudo o mais que prende nossa existência carnal aos caprichos da natureza. “No verão a porta da casa deve permanecer aberta o dia todo para que a luz fecundante do sol possa penetrar e junto com ela a prosperidade. A porta fechada representa escassez e esterilidade: sentar na soleira, obstruindo a passagem, é impedir a felicidade e a plenitude de entrarem. A fim de desejar prosperidade para alguém dizem ‘que sua porta permaneça aberta’ ou ‘que tua casa casa esteja aberta como uma mesquita’. O homem rico e generoso é aquele do qual se diz: ‘sua casa é uma mesquita, aberta a todos, pobres e ricos, ela é o bolo e de cuscuz está cheia’ (tha’mmar); a generosidade constitui manifestação da prosperidade que garante prosperidade1”.

A parte interna contém a santidade de guardar aquilo de valioso, mas possui um contraponto sempre existente, é preciso manter a casa aberta de modo a continuar mantendo o fluxo de coisas valiosas do 1

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BOURDIEU, Pierre. A Casa Kabyle ou o mundo às avessas

Diagrama da casa kabyle Se fora é o sul que é quente e voltado para o sol, dentro é o contrário. Desse modo , toda casa é o mundo externo invertido


NORTE verão fogo, masculino, cozido, alto, nif, fecundante, cultura

jarros de grãos

banco da empena adukkan jarros de grãos

seco (interno)

banco

fogão kanun

baú / arca tear fuzil OESTE primavera sombra, noite (externo)

luz (interno)

sombra (interno)

grande jarro d'água

moinho manual porta de trás

banco da divisória tadukkan

pilar central thigejdith

porta principal tabburth thacherqith

LESTE outono luz, dia (externo)

vegetais secos e figos cocho

estábulo adaynin

madeira úmido (interno)

pequeno jarro d'água instrumentos agrícolas manjedoura viga central asallas allemas

SUL inverno água, feminino, cru, baixo, horma, fecundável, natureza

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mundo para seu interior. Também há aqui uma sabedoria da qual a metrópole passa longe, na cidade todos esses recursos simbólicos e mitológicos se perdem, a ética citadina é muito mais flexível e indefinida e suas sutilezas topológicas são muito diferentes dos povos da antiguidade. Mesmo configurando um trabalho do século XX, a leitura da casa Kabyle traz elementos de uma autoimagem que se verificam em diversos povos antigos, numa relação forte de oposição com o mundo. Onde a natureza é vista em contraposição ao poder humano de modificar a própria sina. De maneira genérica, essas questões são preponderantes na visão primitiva, mas se modificam sobremaneira a partir de um maior domínio da natureza, sobretudo após o iluminismo, de onde grande parte das nossas descobertas surgiu, pregando justamente o início do império da luz, da razão e do poder do homem, exatamente do mesmo modo como o entendimento berbere classifica a luz, como o poder do homem e da razão. Porém diferente da antiga filosofia berbere, onde luz e trevas são polos opostos de uma mesma questão, os novos iluminados buscam apagar seus opostos, as trevas, a dependência, a natureza e a mulher. A partir daqui o trabalho de Sennet em “O declínio do homem público” será muito relevante, pois sua intenção é justamente caracterizar a ética humana, que se modificou fortemente nos século XIII, XIX e XX, cada uma com uma forma de se relacionar com o mundo, com o outro e com seu diferente. Portanto nossas análises topológicas irão agora se restringir à esse período, onde poderemos verificar como esses diferentes modus vivendi se confirmam inclusive no estilo arquitetônico e nas questões de relacionamento espacial que esses levantam. O teatro do comportamento O século XVIII é considerado o final da idade moderna, que termina na Revolução Francesa, considerada o marco final dessa época pós-medieval. Na Europa dos quatro reinos, a sociedade é marcada pelo teocentrismo onde Deus dá poderes absolutos ao rei, mas essa hegemonia já está sendo questionada e mobilizada, erguendo as fundações do antropocentrismo, onde o homem passa a dominar e ser o centro do pensamento. A questão da natureza — que mesmo sutilmente ainda existe no pensamento religioso — passa a um papel figurante quando o homem finalmente anuncia ter dominado tudo. Dentro

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Corte de Maria Antonieta Cena do filme Marie Antoinette (2006)

dessa nova forma de ver o mundo, onde a cultura julga poder controlar completamente a natureza, nasce a necessidade de criar uma nova ética não mais submissa à Deus ou ao firmamento, um novo modelo de pensamento que se adeque a nova classe em ascensão, colocando o homem no centro e abolindo os antigos impedimentos. Se anuncia a chegada do “reino da liberdade”. A partir do renascimento e o humanismo no final desse período, surge o ambiente revolucionário propício para uma nova forma de pensar, onde a razão e o empirismo são as novas ferramentas de descoberta do mundo e do homem, surge as bases do pensamento científico e o fim da leitura do mundo a partir de Deus. “A natureza [na visão iluminista], diferentemente da superstição medieval, dera ao homem afinal de contas, motivos para esperança mais do que desespero diante de seus próprios poderes. Essa atitude, quando expressa em termos da oposição entre privado/ natureza e o público/cultura, significava que as relações entre os dois domínios eram mais uma questão de controle e de equilíbrio do que uma questão de absoluta hostilidade2”.

Como toda época de transição os resquícios da idade anterior — a moderna — são evidentes, e uma cultura ainda muito forte resiste no 2

SENNET, Richard. Op.Cit. p138. [grifo meu]

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comportamento e no vestuário. Durante toda a época moderna houveram códigos de vestimenta tão rigorosos que se tornava fácil distinguir qualquer pessoa e sua profissão apenas pela forma como esse se apresentava e se vestia. Estas leis destinavam-se, entre outras razões, a controlar tanto o capital econômico como o capital simbólico. Estamos no auge do mercantilismo e a balança comercial protecionista é o grande instrumento de controle econômico, e suas implicações aparecem inclusive no modo de se vestir, onde ao adotar um código fixo de vestimenta era possível reduzir os gastos com têxteis estrangeiros, mas também garantir que as pessoas não se vestissem “acima de seu nível”. É claro que toda essa preocupação com maneiras e vestimentas coloca em evidência a ameaça constante que o enriquecimento da burguesia oferecia. E como resposta a isso surgem cada vez mais leis e tratados de se portar, visando a manutenção e conservação dos estratos sociais. A necessidade de definição e separação, coloca em voga como a sociedade estava num momento de transição, em outros momento da história, quando qualquer alpinismo social era impossível uma preocupação como essa era desnecessária, sobretudo quando o poder do rei era incontestável, tanto simbólica, como economicamente. E para esse fim não é apenas a vestimenta, mas também a arquitetura que serve ao propósito de discriminar e manter fixos os estratos sociais, assim, não é de se estranhar que essa nova instabilidade do poder da nobreza tenha criado um requinte excessivo de regras artificiais. O princípio de qualquer regra é oprimir um comportamento incômodo, permitindo que a vida em sociedade perdure. Naquele momento a pedra no sapato se chamava burguesia, cada vez mais rica e poderosa, portanto era preciso controlá-la e mostrar o seu lugar. O rigor das vestimentas e também dos papéis sociais era tão fixo e estrito que mesmo as peças teatrais não eram desculpa suficiente para abandonar a lei suntuária. Desse modo, mesmo uma peça com histórias bíblicas ou que descrevesse épocas passadas acabavam sendo encenadas de gibão, corset, babados e perucas. Essa questão da atuação e da ética do ator é tão forte que é justamente nessa temática que surge o mote central do trabalho de Sennet sobre a época. “Assim como os desenhistas do Renascimento frequentemente experimentavam novas formas arquitetônicas primeiramente nos cenários de teatro, os costureiros de meados do século XVIII

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experimentavam frequentemente os novos estilos no palco, antes de lançá-los na maneira cotidiana de se vestir a passeio3”.

A influência dos domínios do teatro não se restringiam apenas à vestimenta e a arquitetura, o teatro se torna o centro do novo pensamento, e de acordo com Sennett toda a sociedade do Antigo Regime acaba se modificando nesses moldes. Além de desenvolver vestimentas e estilos para a decoração de casas e edifícios, a necessidade de definição da própria identidade também passa pelo modo de se portar e agir. Nessa fase de transição, onde os ânimos são tão efêmeros quantos os papeis sociais, a ansiedade para definição da própria atuação social torna o teatro do final do século XVIII o local privilegiado para vislumbrar novas formas de agir e reagir. Numa época onde fica cada vez mais difícil para as pessoas saberem qual o modo certo de se portar o teatro acaba se tornando a central de tendências, criando uma forma de vida social marcada pelos trejeitos da atuação. No contexto de observar modos de agir e se portar, não é apenas a atividade teatral que se intensifica criando novos padrões morais, mas surgem também os primeiros parques urbanos, como o St. James Park de Londres ou o Campo de Marte em Paris. Se os passeios nas veredas antes miravam paisagens agora o apelo do passeio se situa dentro das cidades, como lugar de observação, não mais a natureza, mas do outro. “Pela metade do século XVIII, andar nas ruas, enquanto uma atividade social, adquirira uma importância que jamais tinha existido, em Paris ou em Londres. O passeio era descrito na época como o advento de um gosto italiano, e, de certo modo, era mesmo assim. Os planejadores das cidades italianas barrocas, principalmente Sisto V em Roma, deram grande importância aos prazeres do passeio pela cidade, explorando a passagem de um monumento a outro, de uma igreja a outra, de uma praça a outra. Esse sentido da cidade monumental, traduzido para a vida de Londres ou de Paris um século mais tarde, tornara-se menos uma questão de ver panoramas e mais uma questão de se ver gente”4. 3

Ibid, p111.

4

Ibid, p129.

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Numa época tão instável, todos querem parecer pessoas espontâneas e livres, assim, esses observatórios de gente servem para saciar uma ansiedade constante de indefinição de si mesmo, é preciso estar atento às novas tendências, pois qualquer deslize de comportamento pode confundir-me permanentemente com a gentalha. Se no cotidiano do parque os acontecimentos criam situações mais pacatas e não tão críticas, no teatro isso se inverte. A ficção inflamada do teatro e sua capacidade de expor comportamentos em situações inusitadas e surpreendentes torna o palco o lugar por excelência para descobrir como queremos ser. Há um sentimento generalizado de que o sentimento que o ator passa ali é algo real, vivido em sua mais clara realidade, confirmando a ideia de que a sociedade do Antigo Regime se comporta na base da encenação. Nesse teatro uma cena de morte era sofrida pela plateia de forma tão aguda que homens e mulheres choravam aos gritos. Uma tragédia de tal proporção que um observador estrangeiro vendo uma cena de tamanha proporção ficaria no mínimo constrangido. A comoção era tamanha que a plateia pedia para os atores para reencenarem repetidas vezes os mesmos motes, as mesmas falas, igualmente ovacionadas e sofridas. Seria forçoso dizer que o teatro como experiência de observar comportamentos seja um ato circunscrito no século XVIII, essa função de ser ator e espectador remonta momentos imemoriais da história, cobrindo dos mais antigos mitos de criação até os atuais reality-shows e big-brothers, de qualquer forma é notável como a sociedade do antigo regime pode ser simplificada e entendida moldada por essa característica.

Em "Les Hasards Heureux de l'Escarpolette" (1766) (Os Acidentes Felizes do Balanço) de Jean-Honoré Fragonard surge a figura do voyuer, revelando o voyeurismo e o exibicionismo em ascensão na época.

Lentamente, essa atuação nos palcos se torna um modelo de relacionamento social, o berço do sofrimento romântico, do drama humano, dos amores trágicos. Não há melhor período para se declarar que a vida imita a arte. A vida moldada pela atuação teatral se torna vivida na base da exposição completa de discursos dramáticos, os discursos públicos são frequentes, sofridos e romantizados a tal ponto que se desprendem completamente de qualquer veracidade do sentimento, a definição surge ao criar uma aura, uma aparência, e não necessariamente sentir aquilo que se diz. A maneira de dizer se torna tão preponderante à mensagem que a intenção se perde. A definição

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do caráter passa a se confirmar nas ações, no comportamento e não há o menor questionamento sobre a enunciação de qualquer sentimento. A psicologia behaviorista de Skinner, talvez guarde sua forma de pensar nesse período histórico, onde uma interioridade individual ainda é desconhecida ou descartada e o comportamento externo é a única questão realmente relevante. Essa valoração social chega a extrapolar as esferas íntimas da família e da casa, de tal forma que as ações cometidas em casa pouco tem relação com as ações públicas. Nessa visão de mundo não há problema algum em um prefeito ou outro político ter aversão ao povo ou maltratar os próprios filhos, o cerne do comportamento está em como ele é exposto ao público na forma de atuação e no discurso, o que se faz dentro de casa, ou ainda o que se pensa não tem nenhuma implicação na imagem pública de uma pessoa. O surgimento de um contraponto entre o que se sente e o que se expõe é uma questão ainda intocada nessa época onde o invólucro é mais importante que o envolvido. Essas duas instâncias: o corpo como um manequim e o discurso como um sinal se tornam a forma máxima de rejeição do símbolo, negando que por trás de toda essa aparência resida uma realidade interior. Se um modo de vida baseado nas aparências é tão visível no vestuário, não é de se surpreender que esse forma de se colocar frente ao mundo também se revele nos diversos estilos arquitetônicos da época. Os estilos dominantes do século XVIII, o barroco, o rococó e o neoclássico, apesar de se afirmarem por formas diferentes e de se definirem em contraposição uns aos outros, demonstram um horizonte crescente, guiado por uma filosofia que dá muito valor a aparência e abusa da linguagem rebuscada, as vezes beirando o prolixo, justamente como forma de responder à instabilidade identitária do momento.

Arquitetura barroca da Capilla del Rosario, em Puebla, México

O barroco foi a arte da contra reforma, ligada a tentativa da igreja católica pós-reforma protestante de atrair novamente o pensamento excêntrico para o cerne de Deus, mas mesmo ligado à igreja, a estética do período guarda uma tensão entre a tentação da materialidade opulenta e os compromissos da vida espiritual. Nas volutas rebuscadas, num excesso constante, pesado, escuro e de difícil apreensão, moram indefinições e angústias com relação à nosso papel no mundo, frente à Deus e aos Homens. Essa forma carregada de simbologias, de elementos exagerados demonstra claramente o espirito

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do tempo na época. Talvez nenhum discurso seja mais explicativo do que a frase que diz “Na dúvida se peca pelo excesso”, Tanto a dúvida — entre o caminho dos prazeres carnais e espirituais — como o peso do pecado e a solução de que atirando para todos os lados algum tiro deve vingar estão presentes na estética barroca e sua simbologia carregada, apesar de ter sido financiada pela contrarreforma coloca em evidência como a fé religiosa do momento passa por momentos tumultuados. Poderíamos ainda falar da construção, da estrutura e de outros quesitos técnicos, mas era na decoração rebuscada que a arquitetura da época genericamente se definia, era em artes decorativas que arquitetos buscavam se especializar. O rococó por sua vez nasce como uma reação da aristocracia francesa ao barroco suntuoso, palaciano, reafirmando ideais hedonistas e sendo considerado uma variação profana do barroco, se caracteriza por uma linguagem mais simples, menos carregada, com linhas curvas, cores claras, simetria e assimetria em proporções variadas e uma maior incidência de luz, gerando uma leitura mais simples e mais alinhadas com a luz da razão que ilumina o entendimento humano do mundo. Mantém o peso decorativo, mas já aponta para um ideal mais simplista, limpando muito das amarras que “Deus” colocou no homem. No rococó existe uma alegria na decoração carregada, na teatralidade, na refinada artificialidade dos detalhes, mas sem a dramaticidade pesada nem a religiosidade do barroco. Tenta-se, pelo exagero, se comemorar a alegria de viver, um espírito que se reflete inclusive nas obras sacras, em que o amor de Deus pelo homem assume agora a forma de uma infinidade de anjinhos rechonchudos. Tudo é mais leve, como a despreocupada vida nas grandes cortes de Paris ou Viena. Se partirmos da divisão social em três estamentos, organização que está prestes a ser implodida, percebemos que o barroco tenta salvar a igreja, enquanto isso o rococó se volta a valorizar a beleza da nobreza e por sua vez, o neoclássico se torna o estilo da burguesia em ascensão.

Arquitetura rococó do interior da Abadia de Ottobeuren, Alemanha

O Neoclássico europeu se inicia por volta de 1760 em oposição aos estilos então dominantes, o Barroco e o Rococó. Enquanto a arquitetura rococó enfatiza a graça, a ornamentação e a assimetria; a arquitetura neoclássica é baseada nos princípios da simplicidade e da simetria, que eram vistas como as virtudes da arte na antiguidade greco-romana, assim como esboçados a partir dos ideias renascentistas.

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Numa crítica ao decorativismo fútil do barroco e rococó, aliado com um combate às superstições e dogmas religiosos, o neoclássico revive o pensamento greco-romano na busca de uma forma estética que corresponda aos novos anseios iluministas e o destronamento da nobreza. Baseados na democracia grega e na república romana o neoclássico é adotado como forma estética da revolução francesa, uma arma ideológica para a denúncia da afetação e “luxo imoral” das nobrezas decadentes. Na tentativa de limpar o poder absoluto é preciso limpar e propor uma forma estética que equivalha e se contraponha ao objeto de aversão. A partir das descobertas arqueológicas de Herculano e Pompéia tanto os elementos arquitetônicos como um maior entendimento sobre a vida na império romano criam o modelo para uma nova ética, uma nova política e uma nova vida. Olhando esses três estilos em continuidade fica claro como a simplificação de elementos decorativos é crescente, simplicidade essa que busca se livrar de toda a simbologia supérflua, existente apenas para restringir o poder dos homens subalternos. Munido do racionalismo e da ciência o homem pode finalmente se libertar das imposições sociais, a felicidade passa a ser um direito, inclusive previsto em lei, permitindo finalmente que o homem seja feliz na terra e não mais no céu. Abolindo a prometida e submissa felicidade religiosa, os horizontes humanos se expandem na potência de sua própria realização pessoal. É inevitável que se extrapolarmos esses pontos de limpeza moral e estética, cheguemos num ponto de máximo onde toda a decoração passa a ser descartada, e sobra apenas o necessário, chegaremos assim ao modernismo minimalista, pregando o fim de todo o decorativo, mesmo aqueles oriundos da antiguidade greco-romana. Chegamos ao ponto onde ornamento é crime, apenas os requisitos da construção são limitantes ao poder do homem. Percebemos assim como a tendência a limpeza decorativa e simbólica se inicia a muito tempo atrás, chegando ao momento atual, onde por limparmos todo o simbolismo de nossos edifícios, perdemos também a capacidade de perceber esses elementos nos edifícios antigos. Não iremos dar um salto tão grande, pois a crítica à aparência e essa forma de falsidade das relações se inicia ainda no século XVIII.

Elementos neoclássicos do Pantheon de Paris

Nessa época já existe uma leitura de que a tirania política e a procura da autenticidade individual andam de mãos dadas e essa forma de vida permite que a classe política manipule constantemente seus peões.

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A visão que essa forma de atuação é danosa e enganadora é exposta na crítica de Rousseau, justamente quando se propõe abrir um teatro em Genebra, sua cidade. Afirmando que “quando os homens posam para obter fama, para acomodar os outros ou até para ser gentis, cada qual acaba não tendo uma alma própria”, Rousseau mobiliza mais uma crítica e uma consequente nova necessidade de restruturação do caráter social. “Quando uma cultura passa da crença na apresentação da emoção para a representação desta, de modo que as experiências individuais, cuidadosamente reportadas, cheguem a ser expressivas, então o homem público perde sua função e também sua identidade. Assim como ele perde uma identidade significativa, a própria expressão irá se tornando cada vez menos social5”.

Tanto o barroco, como o rococó e o neoclássico, apesar de nascerem em oposição uns aos outros, se fundam numa vertente de valorização da aparência externa, que busca corresponder à diferentes ideais éticos e morais. A angústia de indefinição da própria atitude frente ao mundo, como o modelo da atuação teatral leva a sociedade a assumir uma forma extrovertida, buscando apenas passar a aparência do que se pretende ser. Acontece que quando a identidade se define por uma necessidade constante de exposição e publicidade, se por ventura essa aparição pública cessa, significa que atingimos um ponto de não existência. Assim como um ator só é ator quando atua, uma forma de existência que se baseie na ideia da constante atuação passa a necessitar um espetáculo igualmente constante para que continue existindo. Assim a vida num contexto público toma seu ponto de máximo, justamente porque as pessoas necessitam manter sua atuação sendo constantemente exibida, ou correm o risco de deixar de existir. Dessa forma, talvez chegamos ao momento histórico onde o âmbito público atinge a maior importância já assumida. A postura em público, a casca de atuação e aparência, como formas, anulam completamente o seu interior, assumindo um disfarce completo do âmago individual. Então, quando Sennet afirma que o modelo do século XVIII e XIX tinham um viés público muito mais forte que o atual, o declí5

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Ibid, p163.


nio do homem público, na realidade está se referindo ao declínio do homem extrovertido, que atua constantemente sem nunca redigir seus próprios roteiros, desconhecendo seus próprios cordéis. Um modelo único Adentrando o mundo pós revolução francesa há diversas mudanças, descobertas e uma nova ética em ascensão, porém a forma estética com que as pessoas se apresentam e se relacionam ainda continua muito dependente da aparência externa, dos modos se se portar e da casca que é exibida para o outro ver. Mesmo os principais estilos do século XIX apesar de trazerem questionamentos, não criam uma crítica direta ao decorativo, apenas mudam as simbologias contidas no ornamento, buscando significados antigos, como nas diversas correntes revivalistas presentes. Buscando o melhor de cada elemento surge o eclético, com a possibilidade de juntar conceitos de épocas e contextos diferentes. Há ainda o movimento Arts & Crafts, que numa crítica à industrialização crescente se contrapunha mais à meio do que ao fim, defendendo a indissociabilidade entre a mão que pensa e a que constrói. Sob nossa ótica topológica, as forma estéticas existentes no século XIX não apresentam uma cisão tão grande com relação ao contexto anterior. Ainda há um grande interesse nas artes decorativas e como o próprio termo indica, o decoro, ou seja a decência e recato no comportamento são as formas principais posicionamento social, tanto na arquitetura, na vestimenta e nos modos se se portar. A grande mudança que ocorre nesse momento não se restringe a casca, porém ao que há dentro. Com o declínio da nobreza após a Revolução Francesa e com deus — como instância de definição do mundo — perdendo terreno para o poder humano o modo de entender a si mesmo muda completamente. Se antes as divisões sociais nasciam da vontade divina não havia motivos para questioná-las. Nascendo pecadores fica claro que é no bom comportamento que se pode ascender aos céus, porém quando atingimos a busca do paraíso terreno precisamos legitimar nossa permanência, e é principalmente na dedicação às questões sociais que podemos atingir a felicidade.

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Ainda que a igreja se mantenha presente, tirar deus e a nobreza do centro do pensamento não corrige todas as injustiças do mundo, continuam havendo elites e poderosos, agora representados pela burguesia e pelo poder econômico no lugar do poder divino. Desse modo as relações sociais que antes pouco podiam modificar nossa posição social passam de ações coadjuvantes para preocupações principais da vida cotidiana, sobretudo na cidade, onde esses relacionamentos são intensificados e os próprios hábitos e crenças da burguesia em ascensão acabam colocando a questão da personalidade num patamar central. A primeira modificação na autoimagem surge aliada à própria fonte de riquezas da burguesia, o comércio. Com a sociedade ainda voltada às aparências, o capitalismo apenas muda o foco do discurso e pelo jeito teatral de se relacionar para a relação de consumo, a aparência agora se demonstra no poder econômico, nas riquezas pessoais e em estar antenado nas “novidades”. Esses trejeitos da vida burguesa passam a tomar conta do imaginário e das formas de definição pessoal, nos moldes da barganha e da definição de preços nasce um modelo de interação social baseado no fetichismo da mercadoria, onde esconder seus próprios sentimentos e interesses é essencial para adquirir suas necessidades à preços mais baratos, o segredo se torna a forma social básica. Não é de se estranhar que essa condição tenha criado um estado social muito mais silencioso, não é necessário discursar, o importante é ostentar.

O consumo como expressão da personalidade é antigo, mas presente a todo lado na metrópole.

“Em ‘público’, a pessoa observava, expressava-se, em termos daquilo que ela queria comprar, pensar, aprovar, não como resultado de uma interação contínua, mas após um período de atenção passiva, silenciosa, concentrada. Por contraste, o ‘privado’ significava um mundo onde a pessoa poderia se expressar diretamente, assim como seria tocada por outra pessoa; o privado significava um mundo onde reinava interação. No final do século XIX, Engels falava da família privada como expressão de um etos capitalista; ele deveria ter sido mais específico. A família é uma paralelo não com o mundo público do capitalismo, mas com o mundo da venda por atacado; em ambos o segredo é o preço da continuidade do contato humano6”.

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Ibid. p218-9

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A instabilidade na definição da própria identidade movimenta a cidade de tal modo que os ingredientes que culminam no surgimento dos Shoppings Centers aqui já estão presentes, tanto aqueles passeios que procuram observar o comportamento dos outros, como a crença que o consumo defina uma personalidade já estão existentes, apenas falta adicionar grandes galpões onde a luz e a temperatura nunca variam nem atrapalham o sagrado ato do consumo para chegar aos nossos atuais templos do consumo. Aliado a essa condição de indefinição de identidades surge a noção da personalidade, como uma alma ou espírito interno controlando nossas ações com uma força incontrolável que emana dos confins de cada um. Essa nova forma do ser humano entender à si mesmo, admitindo que existem comportamentos que são espontâneos e que acontecem muitas vezes sem previsão cria uma nova forma de descobrimento do outro. A sociedade se inverte, dando mais valor ao contato íntimo e evitando o contato social. Observando cuidadosamente os detalhes da roupa, do discurso e do comportamento é possível penetrar o véu das aparências e revelar a verdadeira personalidade de cada um. Todos se tornam vigilantes em observar pequenos detalhes que venham a revelar uma personalidade indesejável. A antiga facilidade de interpretar e discriminar o outro agora se transforma completamente, a nova sociedade burguesa não busca ser facilmente entendida e caracterizada nos moldes da nobreza. Mesmo a definição da própria identidade se modifica de tal maneira que o outro passa a ser visto de maneira diferente. Se até então o papel social de cada um era definido no sangue da família ou na continuações de formas profissionais como de corporações de ofício, a partir do século XIX e XX essa simplicidade não é tão possível. O novo cidadão busca a todo momento descobrir em cada experiência individual onde é o seu lugar no mundo. Essa questão se revela sobretudo na relação com o estranho, onde há dois tipos de relação: a primeira é a relação com o estrangeiro, alguém que é rapidamente identificado como de outro lugar e rapidamente diferenciado; a segunda relação é com um desconhecido, quando na fraca afirmação da própria identidade a visão do estranho torna-se difusa, não é possível entendê-lo pois não se conhece a si próprio.

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“O estranho pode dominar as percepções daqueles que estão inseguros quanto a própria identidade, ou estão perdendo imagens tradicionais de si mesmo, ou ainda que pertencem a um novo grupo social que não possui um rótulo preciso (...) um classe em ascensão ou em desenvolvimento habitualmente não tem ideia clara de si mesma”.7

O encontro desse modo torna-se mais complexo, se para o estrangeiro penetrar a barreira ele precisa mostrar que seus modos — reais — são verossímeis, já no ambiente mais amorfo e pouco identitário a relação se torna uma farsa: — “Preciso suscitar normalidade falseando e imitando comportamentos que todos concordem em tratar como ‘adequados’ e ‘verossímeis’ para o outro me aceitar”. Essa condição aliada com uma moralidade muito rígida apaga completamente a diversidade de comportamento e de aparências, na busca de se adaptar ao ideal social esperado a espontaneidade se torna uma anomalia e todos buscam se definir como cavalheiros e mulheres respeitáveis. A busca de uma ética para atender a nova condição humana percorre diversas filosofias na busca de um ideal simples e racional, a ciência como método deve nos levar a verdade absoluta. Essa limpeza de caráter promovida desde o renascimento finalmente — e repetidas vezes — culmina no anúncio da forma correta de se portar. A figura do “Gentlemen” que originalmente designava um homem pertencente à classe mais baixa da nobreza, a partir do século XIX passou a designar o ideal inglês de educação e personalidade, caracterizado pelo autodomínio, fair play, altruísmo, coragem e pela boa educação. Sua versão feminina é a mulher recatada, mestre do decoro, decorativa. As roupas se tornam uniformes, há apenas uma roupa para homens e outra para mulheres, simbolizando o fato de que a sociedade está lutando pela igualdade. Ao mesmo tempo em que é preciso passar uma imagem correta, que corresponda ao seu respeito, é preciso evitar que pequenos detalhes sejam interpretados como indícios de falhas de caráter. Ao mesmo tempo que as variações na forma de se vestir passam a ser quase inexistentes, surgem pequenos detalhes implantados para serem interpretados como uma detalhe sutil de personalidade, uma pinta no rosto, o bico do sapato, acessórios e até mesmo peças 7

Ibid. p79.

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que não podiam ser vistas, como roupas de baixo se tornam marcas de uma personalidade forte. A mistificação de cada detalhe é importante, aliada a crença de que a mercadoria pode alterar nossa imagem, a personalidade se torna o quesito principal no relacionamento social e econômico. Confundiram-se as aparências do indivíduo com o próprio indivíduo, seu caráter e sua predisposição moral. É fácil perceber como em pleno século XXI essa vida baseada no consumo ainda mantém muito de sua eloquência silenciosa. “O mundo de Fielding, onde as máscaras não exprimem a natureza dos atores, estava acabado: as máscaras haviam se tornado rostos8”.

Podemos perceber como essa condição revela um estado onde não é cada pessoa que tem o poder de se definir, mas é o olhar do outro que pode encontrar em pequenos gestos incontroláveis, revelações de um caráter que mesmo seu portador desconhece. Apesar de haver um reconhecimento de que as pessoas possam ter personalidades diferentes, todos devem se comportar do mesmo modo, condenando as pessoas a esconder seus desejos e impulsos sobre uma máscara de aparência e civilidade. Não é de se estranhar como uma figura como Sherlock Holmes surja justamente nessa época, percebendo mínimos detalhes para revelar verdades escondidas e solucionar crimes. Essa vida extremamente homogênea que se buscava, acaba por criar uma estado de paranoia constante e uma preocupação excessiva com a aparência, principalmente pela indefinição própria. É nesse estado que Sennett afirma que a vida em público se esvai, quando não existe mais um poder divino de definição de papéis, cabendo a cada pessoa esconder sua interioridade, surge um retraimento extremo, até porque a moral extrema e a monotonia de possibilidades de expressão reprimem qualquer desejo que não correspondam ao aceitável. “As quatro paredes da propriedade privada de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o mundo público comum — não só contra tudo o que nele ocorre, mas também contra a sua própria publicidade, contra o fato de ser visto e ouvido. — Uma existência vivida inteiramente em público, na presença de outros, torna-se, como se diz, superficial. Retém a sua visibilidade, mas 8

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Ibid. p216.


perde a qualidade resultante de vir a luz a partir de um terreno mais sombrio, que dever permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade em um sentido muito real, não subjetivo. O único modo eficaz de garantir a escuridão do que deve ser escondido da luz da publicidade é a propriedade privada, um lugar possuído privadamente para se esconder.”.9

É nesse caldeirão de personalidades reprimidas em função de um modelo único que surge Sigmund Freud e a psicanálise, buscando tratar e entender comportamentos extremos que acometem principalmente as mulheres da época, Freud descobre uma nova instância interna, o inconsciente. Aquelas mulheres, reprimindo seus desejos sexuais a tal magnitude acabam manifestando essa condição em sintomas físicos, como surdez, paralisia e outras manifestações da grande intensidade emocional reprimida. Se numa visão topológica a linguagem nasce na transposição do eu para o mundo, e dentro do reino da linguagem tanto a aparência como o discurso podem adotar essa forma transicional, nesse momento, na anulação de enunciador existente na vida de aparências, por não realizar a transição eu-mundo, essa casca perde o caráter de linguagem. A existência unicamente baseada na aparência não é linguagem, é silêncio. É justamente essa ideia que norteia a crítica que Rousseau faz à sociedade, e que depois Freud usa para finalmente descobrir o inconsciente. A descoberta que há uma força interna incontrolável acaba por colocar em xeque todo aquela ânsia de onipotência humana que anunciava finalmente controlar seu próprio destino. A natureza domada nos extremos do planeta ainda se manifesta no interior de cada pessoa. Apesar dessa crítica não estar tão em evidência na época, este é o primeiro indício de que moldar o mundo e a si mesmo não é tão simples como se imaginava. “Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes10.

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ARENDT, Hanna. Condição Humana. p88.

10 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização p8.

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Apesar da semente da crítica à onipotência humana já estar colocada no trabalho de Freud, a colocação do homem no centro do pensamento mantém sua tendência, nesse momento os edifícios mais altos deixam de ser catedrais e se tornam arranha-céus, evidenciando não apenas o poder do homem, mas também o poder econômico, central no entendimento da sociedade desde então. Essa corrente é tão hegemônica que até mesmo o próprio Freud anuncia que controlar a natureza configura uma das formas de controlar o mal-estar. “Há, é verdade, outro caminho, e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana11”.

As inovações tecnológicas na construção estão em ebulição, e delas surgem as primeiras estruturas de ferro fundido e aço, construindo pontes, edifícios e o marco dessa nova ética, a Torre Eiffel. Construída em 1889, é primeiro edifício à ultrapassar a altura das Pirâmides de Gizé. Tal construção construída para ser o arco de entrada da exposição não possui outra função principal e se justifica justamente no sentido de exibir o poder recém adquirido frente à construção. Nesse momento em que diversas descobertas são desenvolvidas os países competem por quem consegue concentrar mais conhecimentos, e consequentemente maior poder. Toda a sociedade gira em torno dessas recentes descobertas. Porém é uma estrutura anterior que se torna marcante no sentido de trazer elementos modificadores da concepção do espaço e na relação do ser humano com o mundo. Assim como a Torre Eiffel que foi construída para a Exposição Universal de 1889, o Palácio de Cristal foi construído para a Grande Exposição de 1851 e foi inspirada em estufas feitas para a agricultura. Sua estrutura de ferro fundido e vidro, apesar de se revelar um grande avanço para a época é relativamente simples, porém seu aspecto estético, definido praticamente por uma estrutura de vidro se torna um modelo para o modernismo que surge a partir de então. Com a industrialização crescente, a capacidade de inventar algo antes de haver uma aplicação direta ou uma proble11 FREUD, Sigmund. Ibid. p7.

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Cartão Postal anunciando a reconstrução do Crystal Palace original desenhado por Joseph Paxton

ma a ser resolvido se torna cada vez mais constante. Com o palácio de cristal não é diferente, sob sua forma topológica de ter uma barreira tão sutil com o exterior surge uma forma de relacionamento transicional que não tem correspondência com a cultura da época, mas que se torna modelo para a próxima geração. É fácil perceber como esse momento inflamado, onde a ciência dá cada vez mais poder ao homem é o terreno fértil para confirmar a onipotência primitiva do ser humano. No final do século XIX e começo do XX, já havia sido descoberto o motor a quatro tempos dando origem ao automóvel; a peste negra, que matou próximo à 75 milhões de pessoas desde o século XIV já havia sido controlada, depois de inúmeros testes o avião havia sido finalmente inventado e em 1928 surge o primeiro antibiótico, a penicilina. Praticamente todas as descobertas anunciadas desde o renascimento se tornam possíveis, o otimismo se torna o sentimento generalizado. Aquele mundo caótico que vê o homem como um ser mal e egoísta, remetendo ao leviatã de Hobbes, parece ter acabado e cada vez mais aquelas formas sociais de relacionamento baseadas no retraimento, no silêncio, no recato e no decoro, se são vistas como ultrapassadas, afinal, não correspondem ao futuro de liberdade e felicidade que a ciência está cultivando.

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A aventura modernista É nesse contexto que o modernismo se torna uma revolução estética, e a arquitetura nessa corrente traz uma forma ainda mais potente. Ao se libertar do ornamento, o modernismo não se torna apenas o ápice do racionalismo que procurava limpar todas as convenções supérfluas, mas também uma revolução estética sem precedentes. Essa crítica ao ornamento e ao decorativo se torna tão hegemônica e toma tanto espaço do ambiente acadêmico que até hoje os conteúdos simbólicos contidos na ornamentação se mantém escondidos do mundo da arquitetura. Há muito poucos tratados para entender esses símbolos e sua pertinência é constantemente rejeitada em função do purismo da forma. Voltando ao ambiente histórico berço do modernismo, percebemos que se a cidade moderna ainda era dependente de carruagens, muralhas e guardava uma forma ainda bastante gregária, mesmo o resultado das reestruturações de Hausmann são orientadas por mais uma “verdade modélica”, outra casca de aparências, alinhadas com o estilo de vida pós revolução francesa. Porém algumas inovações tomam conta do espírito do tempo, com o surgimento do automóvel, do avião e das novas possibilidades de transporte, percorrendo grandes distâncias em pequenos intervalos de tempos, nasce um novo desenho, aquela vida de aventuras restrita aos abastados agora pode se tornar o cotidiano da metrópole. O principal entusiasta dessas inovações é o conhecido arquiteto franco-suíço Le Corbusier, que se mostra intensamente vislumbrado com as possibilidades que essas inovações do maquinismo podiam trazer. “Todo esse élan do renascimento, esse entusiasmo, esse amor pela aventura que é vida e não estagnação, que é ação e não submissão, que é juventude e não cansaço e velhice, que é aurora e não crepúsculo. A ideia, dominadora, atropela todas as fronteiras. Esses homens são livres, indivíduos, cabeças fortes, fortes cabeças que partiram para assumir comandos, construir. Colonizar. Colonizar é pura e simplesmente tirar-se os chinelos e instigar à aventura. O cientista, o artista colonizam a cada dia. Descobrir, em consequência, revelar. Revelar, em consequência mudar a face das coisas. Mudar a face das coisas agregar um amanhã ao ontem12”. 12 LE CORBUSIER, L`Esrit de Sud-Amérique, apud MARTINS, Carlos A. Ferreira.

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Há um grande entusiasmo em seu discurso, e como o próprio Le Corbusier descreve, as inovações tecnológicas permitem libertar o ser humano da sujeição à tradição, vendo na técnica a possibilidade econômica de realizar uma vida ativa para todos. Muito se diz que o urbanismo corbusiano é a concretização espacial do sistema seriado fordista, não há como negar essa relação, porém o apelo principal dessa crença é que uma vida livre aos moldes dos cavaleiros filobáticos finalmente se torne possível à toda a população. É claro que nesse momento é difícil imaginar que essa crença na aventura cotidiana, inculcada em seu imaginário desde suas aulas com L`Eplatennier, consiga vislumbrar o problema enorme que o automóvel e a vida rodoviarista criariam na cidade. O estado de entusiasmo e otimismo é tão forte que é descabido culpá-lo por todos os nossos problemas atuais, a rigidez à qual essa teoria se opunha não existe mais para justificá-la. Sua perspectiva do espaço e da paisagem, alimentadas pelas possibilidades do maquinismo e por uma concepção herdada de Provensal da escala como dimensão do pensamento são o que permitem a Carlos Martins ensaiar que Le Corbusier cria “uma fenomenologia do olhar articulada às modalidades de locomoção13”. Não é de se estranhar o quanto a figura do viajante, da navegação e dos portos seguros são recorrentes em seus relatos de viagens, seu desenho se estrutura nesses termos. Se podemos ter a liberdade teórica de separar as contribuições de Le Corbusier em duas vertentes, podemos dividir uma vertente urbanística e outra arquitetônica. De um lado seu urbanismo ‘aventurista’ que permite ao ser humano expandir seus horizontes e domínios em escalas nunca antes navegáveis pelos seres comuns. Do outro lado a arquitetura purista, acreditada num espetáculo de luz e razão tão surpreendentes que transformam qualquer residência em palácio e qualquer palácio em residência. Não há como negar o quanto seu posicionamento vai de acordo com o filobatismo de Balint, onde a busca pela negação de qualquer dependência reafirma aquela onipotência perdida, nesse sentido fica claro o quanto Le Corbusier assume essa posição heroica de arquiteto da renovação, de cavaleiro da independência.

Uma leitura crítica. in Precisões. p271. 13 Ibid, pag 280.

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“O mundo do filobatismo se caracteriza pela distância e pela visão. O filobata busca segurança distanciando-se dos objetos, pois essa ligação é experimentada como imprevisível e suspeita. Desse modo, o indivíduo sente-se seguro apenas nas expansões sem objetos, longe de qualquer amparo, razão pela qual, evita-os ao máximo. A idéia é a de que o sujeito não precisa de nenhum objeto, que são, por sua vez, considerados como invasivos e incertos. Por conseguinte, há um superinvestimento nas próprias habilidades subjetivas para lidar com os riscos, cujo intuito consiste em manter-se somente com seus próprios recursos, dispensando o auxílio externo. Nessas condições, o sujeito assume uma “postura heróica” diante de si mesmo14”.

Podemos perceber como nessa afirmação parece haver muito não apenas do ideário corbusiano, mas também da busca pós-iluminista e até mesmo na forma que a metrópole contemporânea tem funcionado, numa aventura constante em busca da fuga da dependência. Curiosamente e apesar de oneroso, o urbanismo corbusiano, apesar de intensamente criticado, teve uma implantação muito mais extensa do que a continuidade da arquitetura baseada nos seus cinco pontos. Isso se explica principalmente pelo contexto cultural em que as diferentes propostas se colocam. 14 MELLO, Renata, HERZOG Regina. Subjetividade e defesa na obra de Michael Balint. (Balint, 1959, p. 28) Rev. Mal-Estar Subj. v.8 n.4. 2008.

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Dom-ino House Protótipo de Le Courbusier para a produção casas industrializadas


Enquanto o urbanismo se vê em concordância total com o capitalismo industrial em ascensão e sua forma individualista, a forma topológica resultantes de seus preceitos arquitetônicos é fortemente brecada por suas implicações sociais na contracorrente da cultura do capital. Apesar dessa forma topológica diferenciada primeiramente surgir no modelo construtivo da casa Dom-ino, que expõe como as inovações tecnológicas do concreto armado podem libertar a concepção do espaço, talvez as obras que melhor exemplifiquem a forma topológica propositiva da arquitetura moderna estejam assinadas não pelo arquiteto franco-suíço, mas por seu colega alemão Ludwig Mies van der Rohe e pelo americano Philip Johnson. A concepção dos panos de vidros, iniciada pelos cinco pontos da arquitetura de Le Courbusier São implantadas em diversos edifícios e residências, mas nunca com tal transparência e uniformidade como a Casa Farnsworth (1946) de Mies e a Glass House (1949) de Johnson. Ambas as casas se definem apenas por um pavilhão de planta livre, onde se desenvolvem sem limites claro. A cozinha, a sala de estar são contínuas e apenas uma pequena divisória sem portas limitam a área do quarto. Ambas possuem apenas uma cama de casal e apesar de espaçosas provavelmente seriam utilizadas apenas por no máximo duas ou três pessoas. A única área realmente privativa e de divisões claras são os banheiros, que no caso da casa de Mies se instala dentro de um quadrado de paredes internas, e no caso da casa de Johnson é localizado dentro de um cilindro, que também cria espaço para a lareira. Uma análise mais detalhada agora já precisaria separar essas duas residências e tratá-las caso a caso, porém para uma análise topológica elas continuam praticamente idênticas. Nesse sentido, a questão levantada por essas casas é a fragilidade e a transparência no limite da relação público-privado. As casas são tão abertas que praticamente não existem diferenças entre paredes, portas e janelas. Há uma abertura total em suas paredes de vidro e mesmo que as cortinas possam ser fechadas, a fragilidade dessa relação ainda é um elemento novo para a arquitetura, só visto em um contexto diferente naquelas casas tradicionais japonesas.

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Mesmo que o Palácio de Cristal tenha sido construído quase um século antes, trazer esse modelo para a residência traz novas questões e propostas. Aquela casca tão comum na tentativa de se esconder do mundo externo é contraposta na criação dos panos de vidro, exibindo a intimidade e todo aquele mistério que agora é exposto sem impedimentos. Se continuamos observando como o formatos das casas tem acompanhado o estado cultural vigente percebemos que as antigas convenções e ornamentos da arquitetura iam de acordo com a polidez refinada e cheia de impedimentos da vida anterior. Por sua vez, essa nova forma arquitetônica completamente transparente revela um comportamento livre de medos, sincero e ciente da própria existência, os limites de definição dessas residências trazem um formato de oposição ao entorno que nunca antes tinha sido aplicado com tanta liberdade. É como se a relação eu-mundo se tornasse — teoricamente — livre de conflitos. Tal constatação revela o fim do medo do que está lá fora, deixando implícito que o ser humano tenha finalmente domesticado toda a extensão de natureza e as intrusões que esse meio podem suscitar são mais amenas e toleráveis. Na relação de transparência, o banho de luz e a grande luminosidade dos panos de vidro revelam como a luz da razão iluminou nossas relações, que agora são belas, simples, sem excessos e harmoniosas, somente o necessário permanece. A luz banha não apenas

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Farnsworth House (1951) Casa construída por Mies Van der Rohe em Plano, Illinois


Glass House (1949) Residência própria do arquiteto Philip Johnson em New Canaan, Connecticut

ambientes, mas a razão humana, não é de se estranhar o grande valor que Le Corbusier dá à iluminação, sua doutrina e o modernismo buscam um ideal único. “Já perceberam que faço uso abundante da luz. Ela constitui, para mim, a base fundamental da arquitetura. Componho com a luz15”.

A crítica ao ornamento e ao decoro do comportamento se torna tão polida e minimalista que é difícil imaginar como se daria essa relação se fosse transposta para a sociedade. Mas se podemos imaginar esse ideal de relacionamento sem fronteiras, este poderia ser entendido de duas formas: a primeira é que essa fronteira pode se desfazer porque a convenção social é tão homogênea que não há conflito, pois todos são essencialmente iguais, exatamente o funcionamento social homogêneo descrito no filme Playtime de Jacques Tati, porém essa forma social é na realidade somente uma continuidade do comportamento de aparências modélicas e convenções presente desde a revolução francesa. Seria trocar a casca sem trocar o conteúdo. Por outro lado essa transparência na comunicação social também pode significar uma tolerância completa do comportamento do outro, é possível ser transparente e exprimir qualquer coisa, pois qualquer coisa é aceitável, o modo de viver e se portar 15 LE CORBUSIER, Precisões, p135.

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não precisa corresponder à uma convenção social e é permitido agir como bem entender. Esta organização social agora aponta para uma situação sem precedentes, tanto porque tal tolerância nunca foi observada, tanto porque seria extremamente difícil tolerar todos os comportamentos humanos, sempre haverá algum ato corrupto ou incômodo que coloca em xeque a liberdade do outro e que deverá ser reprimido. Em ambos os casos, a barreira que impede essa transparência de vingar é a própria natureza humana, porém essa é uma crítica mais atual, no imaginário modernista tudo pode ser melhorado, tudo é projetável. Com os exemplos levantados até aqui, é fácil perceber como até a idade moderna as cascas humanas, a vestimenta, o discurso e a arquitetura foram completamente condizentes com as formas de relacionamento social vigentes na época, porém quando chegamos no modernismo, podemos perceber que a forma da casa de vidro não se relaciona diretamente com nenhuma ética causadora. É justamente nessa inversão que a teoria se sustenta, sua forma topológica, por sua limpeza e sinceridade buscam ser não apenas uma resposta arquitetônica, mas o novo modelo de interação social a partir de então. A casa de vidro modernista não surge como resultado do caráter das relações vigentes, mas vislumbrando que esse é o único horizonte previsível para o modelo futuro das relações humanas, relações sinceras e transparentes. Porém, excetuando casos pontuais, esse modernismo da relação sem intermediários, na pureza e transparência, nunca correspondeu a um comportamento cultural estabelecido socialmente, não é de se estranhar, portanto, porque essas formas topológicas não vingam e se tornam fortemente combatidas, a sociedade ainda possui muitos impedimentos e máscaras que impedem que essa vida de sinceridade e transparência se concretize. Viver numa casa dessas, adotando um comportamento social diferente do modernismo esperado só pode ser uma experiência transtornante de perda dos próprios limites, de ser forçado a revelar partes indesejáveis da própria vida. Apesar de resultado visível da extrapolação daquele comportamento histórico que começa com a limpeza gradual do barroco, rococó, neoclássico, etc., essa transparência moderna, por se contrapor às formas vigentes de comportamento social acaba sendo negada e

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combatida logo que deixa de ser novidade. Essa condição permite que o modernismo, mesmo sendo teoria antiga, continue eloquente e possa ser continuamente martelado, afinal permanece uma forma social ainda inédita, nunca completamente implantada enquanto forma de relacionamento social. Voltando à forma das casas de vidro, apesar da situação justificável e esperada, é curioso como o único espaço dessas casas realmente fechado, onde a intimidade é permitida são os banheiros. Não é de se estranhar que as funções mais naturais da excreção, que reassumem diariamente nossa condição carnal estejam escondidas, já que a luz da razão permite controlar tudo ao ponto de não precisar esconder mais nada, aquilo que a razão não pode modificar acaba por restar escondido. Surge, assim, um limite na condição da casa manifesto, do mesmo modo como há um limite nas possibilidades de controle do poder humano e por mais que nos libertemos da dependência absoluta, sempre restará uma dependência relativa, pois a necessitamos da sociedade para existir. Ainda nesse contexto, também podemos analisar como o entorno específico dessas residências se resume a um contexto do campo, longe de outras pessoas e tornando esse relacionamento de exposição total muito mais fácil. Colocar essas mesmas casas num contexto urbano de alta densidade mudaria completamente a experiência e a potência dessa possibilidade de transparência. Apesar dessa forma mostrar uma inadequação completa com as formas culturais e relacionais vigentes, é curioso observar como é justamente nesse contexto metropolitano que uma derivação dessa forma transparente finca raízes. Apesar de criar uma avanço excessivo para a forma da residência, esse modelo de transparência encontra reverberação na arquitetura comercial, principalmente a partir dos mesmos arquitetos: Mies van der Rohe e Philip Johnson, que constroem em 1958 o Seagram Building de Nova York. Um edifício de 38 andares, 157m de altura, composto de um core central de elevadores e sanitários e uma fachada externa completamente envidraçada, expondo a todo momento tudo o que ali acontece. Se tornou representativo do poder crescente das corporações empresariais se destaque, e virou modelo para diversos outros edifícios. Considerado o edifício mais caro da época, devido ao detalhes em bronze, mármore e travertino; também se destaca por possuir um recuo de 31 metros na área construída, de

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modo a criar uma praça aberta e privada, um respiro na grande densidade de Nova York, uma característica nova e que permite inclusive que o edifício seja observado de outros ângulos não tão agudos. Os panos de vidro, quase inexistentes nas residenciais triviais se torna uma modelo para o edifício corporativo. É fácil perceber como no contexto residencial, as relações intimas e as necessidades carnais de seus moradores acabam trazendo uma instabilidade no discurso do racionalismo total. Porém, quando essa esfera transparente é transposta para o edifício comercial, local onde o usuário passa apenas uma certa parte do dia e onde seus relacionamentos sociais são todos pautados na racionalidade corporativista do lucro, essa forma social de comportamento consegue ser completamente aceitável e incentivada. Isso poderia apontar para uma tendência por parte das empresas em se apresentar como transparentes e honesta, porém a ética empresarial não é tão bela, e há motivações ainda mais sutis que iremos revelar na própria forma como a sociedade do século XX se desenvolve. Após a análise do theatrum mundi naturalmente habitado por artistas do discurso público e sua posterior forma de individualismo privado e silencioso, oriundo das formas fetichistas da mercadoria, Sennett se aprofunda na análise da forma cultural corporativa, onde parece haver uma nova ética em implantação.

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Praça pública em frente ao Seagram Building em Nova York


Seagram Building, construído em 1958 por Philip Johnson e Mies Var de Rohe se tornou o modelo do arranha-céu a aser replicado

O século XIX foi marcado instabilidade entre a vida pública e a vida privada que se revelava pelo sintoma da histeria, objeto inicial do trabalho de Freud que se desenvolveu na criação da psicanálise. Porém, a partir do século XX seus sintomas começam a se tornar cada vez menos frequentes, deixando de ser uma classe dominante de sintomas de sofrimento. Essa condição revela novas formas de lidar com o mundo e uma cultura em constante modificação, de modo que quando chegamos no século XX começa a surgir uma forma de sofrimento caracterizado por um sentimento de vazio, de uma incapacidade de sentir, de funcionamento alheio às noções mecânicas da repressão. Aquela predeterminação do mundo e de si mesmo que havia quando todas as profissões eram hereditárias e quando Deus legitimava o poder do rei se desfez e no seu lugar nascem diversas dúvidas. Dúvidas de que profissão seguir, de qual a maneira certa de se comportar, de como atingir a felicidade. A angústia surge justamente da liberdade de escolha que antes não existia, trazendo consigo um sentimento constante de estar no caminho errado. Se aliarmos esse sentimento com a noção de personalidade, como algo que nos define e que vem pronto dentro de cada um aparece um novo comportamento social, uma predisposição inata que nasce na interioridade e deve ser descoberta para uma vida feliz. Se antes o destino era social, agora é uma condição biológica, mas que só é acessível num

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exercício de profundo autoconhecimento. Sennett é um crítico ferrenho dessa forma social que acredita numa interioridade inicial, apontando que esse culto da intimidade é o grande causador do esvaziamento dos espaços públicos. É como se todos estivessem escondidos procurando seu manual de instruções. O Mito de Narciso Na tentativa de caracterizar qual a forma cultural relativa aos novos tempos, Sennet cai no mito de narciso. Narciso era um garoto provido de grande beleza, mas que ao nascer recebe um a profecia; que terá vida longa desde que nunca veja seu próprio rosto. Ao crescer se torna um jovem bonito e desejado, porém orgulhoso e arrogante de modo que preferia viver só. Certo dia depois de ser amaldiçoado por todos os pretendentes rejeitados, resolve se banhar em uma fonte clara. Ao se debruçar, se depara com sua própria imagem e se apaixona, se desespera por não conseguir tocar a imagem e acaba por passar dias a observando, até que, esquecendo de se alimentar definha, até a morte. O mito alegoriza o egoísmo de desprezar o mundo, e como apaixonar-se por sí próprio pode ser perigoso. É fácil reduzirmos esse mito a um diagrama topológico, assim, podemos dizer que o Eu permanece existente e consciente, o que se altera é o mundo, que não deixa de existir, mas passa a ser desprezado por haver uma superfície espelhada que reflete apenas o próprio eu, permitindo a ilusão de que apenas eu existo e nada mais. Esse estado de ignorância do mundo e centralidade na própria existência é chamado por Freud de narcisismo primário, aquele estado onde a criança ainda desconhece o mundo e acredita que os fenômenos que acontecem a ela se originam dela própria. Porém há algumas ressalvas em afirmar que essa é a forma de relacionamento básica do mundo contemporâneo. Depois da instauração do reinado do homem não é difícil ler comportamentos na base do narcisismo, mas nos aprofundando nas relações de trabalho corporativas atuais, podemos adentrar uma forma específica de narcisismo. No cotidiano do trabalho, percebemos como as funções e mesmo as profissões dos empregados são cada vez menos importantes frente à sua capacidade de adaptação e flexibilidade.

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Narciso (1590) Caravaggio Galleria Nazionale d'Arte Antica


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“As corporações tratam os seus trabalhadores técnicos de escritórios de tal modo que ambas as normas da absorção narcisista são produzidas; os limites entre o eu e o mundo são apagados porque aquela posição parece ser um espelho do poder pessoal; a natureza desse poder não reside no entanto, na ação, mas no potencial. O resultado dessa mobilização do narcisismo em suas vidas está em que a habilidade dos trabalhadores técnicos para desafiar as regras de dominação e disciplina que governam a sua classe é destruída16”.

Nas profissões corporativas, sobretudo as mais técnicas se observa que o conhecimento tem se tornado supérfluo, os atributos valorizados não são mais as habilidades pessoais e o estudo que cada funcionário possui, mas sim sua capacidade de submissão e adoção de papéis variados. Um funcionário passa a ser valorado pelo potencial de se adaptar a diferentes tarefas, que mudam completamente conforme o empregado é promovido, onde ele fará atividades completamente diferentes ou passará a supervisionar aqueles que antes faziam sua mesma tarefa. O rebaixamento também não tenta corrigir as falhas de uma tarefa mal realizada, mas dar novas tarefas, de modo que a flexibilidade é o maior atributo desejado. “Ironicamente, quanto menos o lugar de uma pessoa for identificado com um sentido de sua perícia (craft), tomando a palavra em seu sentido mais amplo, tanto mais ela será valorizada por seus traços básicos de habilidade e de companheirismo17.

A questão dessa forma de organização não consiste em valorizar a capacidade individual ou o serviço prestado, mas em demonstrar sua submissão e sua obediência ao funcionamento da empresa. Dessa forma fica em evidência como a questão da perícia e da habilidade profissional e mesmo a formação são completamente dispensáveis, o verdadeiro interesse reside na capacidade de continuamente aceitar e realizar novas tarefas, mesmo que não haja qualquer ligação entre elas. A real importância é se comportar como um espelho, refletindo os interesses e as ações que lhe são impostas, é essa a questão, o patrão quer ver a si mesmo refletido na ação dos 16 SENNET, Richard, Op. Cit. p470-1. 17 Ibid, p473.

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"Omphalos" Cloud Gate (2004-6) Anish Kapour

outros, e não entendê-los como seres únicos e capazes de ação orquestrada. Aqui mora um tipo diferente de narcisismo, que não pode ser tratado como exatamente análogo àquele narcisismo mitológico. Procurando entender essa forma social, Sennet encontra na teoria do narcisismo de Heinz Kohut a chave para o entendimento desse tipo de relação. Na transferência em espelho o outro só é aceito e vivido como alguém diferente se este corrobora as necessidade de seu “self grandioso” confirmando seu exibicionismo e sua necessidade de afirmação. Na forma topológica do mito de narciso original, negação do mundo, podemos imaginar a esfera do indivíduo como ganhando uma superfície espelhada interna gerando uma esfera espelhada por dentro, um espelho côncavo que permite à narciso esquecer do mundo externo e colocar no foco apenas a própria beleza. Apesar da ilusão, o mundo não deixa de existir, apenas é escondido por um truque fantasioso, permitindo inclusive que qualquer intrusão do mundo seja fatal.

eu

mundo

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Na topologia desse novo narcisismo o mundo não é ignorado, mas pode ser aceito apenas se as entidades que existem nesse mundo se comportarem como espelho do poder pessoal. Para que isso ocorra os outros seres devem se comportar anulando a própria intenção e se adaptando a cada nova tarefa e cada nova ordem. Nessa condição é como se a superfície espelhada se transportasse para fora, primeiramente refletindo tudo o que se espera do profissional, mas também impedindo seu interior de ser observado, na anulação pra própria vida. Enquanto aquele narcisismo clássico acaba por isolar o ser em sua própria contemplação, essa nova forma possui uma astúcia para a vida em sociedade. Se todos se comportam espelhando e refletindo o que se espera dele, é como se sua imagem fosse refletida no comportamento de todos os outros. Quando todos são espelhos fica difícil entender afinal, quem é o original.

eu

mundo

outro

Uma outra dimensão dessa mesma relação de ‘eu grandioso’ para com os objetos torna-se uma transferência do tipo ‘espelho’ na terapia e, de modo mais geral, uma visão da realidade em que o Outro é um espelho do eu. O eu formado nesses termos começa a ressoar com a história da personalidade e da cultura que tem nos ocupado; esse é um eu para qual os limites da significação se estendem somente até onde esse espelho puder refletir; à medida que o reflexo vacile e tenham início as relações impessoais, a significação deixa de existir18”.

Kohut trata essa questão sobretudo na relação terapeuta-paciente, onde o paciente só aprova a existência do terapeuta enquanto esse reflete seus anseios. Sennet, porém, expande essa análise para a esfera empresarial, de forma que os empregados passam a ser a forma terapêutica onde o chefe narcisista pode buscar a confirmação de sua grandiosidade. Para aqueles que não possuem o privilégio — e a ilusão — do poder é ne18 Ibid. p467.

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cessário adotar uma conduta de anulação da própria vontade, remetendo a uma condição que já está presente na Ética Protestante de Weber. “Qual o mito de Weber? A perda da religião ritual (o catolicismo) e o surgimento do capitalismo levam a um resultado comum: a recusa de gratificação com propósitos de validação do eu. Isso é o ‘ascetismo mundanal’. Recusando o prazer próprio em experiências concretas, a pessoa demonstra ser uma pessoa real. A habilidade para adiar a gratificação é o sinal, ao que se supõe, de uma personalidade forte19”.

É interessante notar como uma figura tão simples consegue explicar um modelo de relacionamento, se tornando símbolo de um comportamento social e presente nas mais diversas configurações. Levantar essas formas simples e significativas são uma constante no trabalho de Anish Kapour, onde em diversas obras a forma de sua obra de arte arquitetônica mimetiza o comportamento social. Nesse sentido seu trabalho vai de encontro justamente com essa topologia compartilhada onde edifício e indivíduo conseguem se comportar de maneira análoga, Nessa nova forma de narcisismo, que Sennett chama de Narcisismo Ascético e Kohut de Transferência em espelho, Kapour cria objetos com linguagem própria, quase como se pudéssemos ter empatia por eles. “Is that formalizing of the body, almost begins in itself to make mini, you hardly need to do anything else once you set that up. In that sense is an architectural problem. I’m deeply interested in architecture, in the ways space manipulates and motivates your body, Architecture in that sense is a reflection of the self20”.

19 Ibid. p478. 20 “É que a formalização do corpo, quase começa em si mesmo para fazer mini, você dificilmente precisa fazer mais alguma coisa pra configurar isso. Nesse sentido é um problema arquitetônico. Estou profundamente interessado na arquitetura, nas formas com que o espaço manipula e motiva o corpo, Arquitetura, nesse sentido, é um reflexo de si “. KAPOOR, Anish. Artist Interview: Anish Kapoor. Entrevista sobre sua obra para a Kochi-Muziris Biennale 2014, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Vo6ev9PxV1I Acesso 05/07/2015.

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A obra que talvez seja a mais emblemática dessa condição surge ao colocar uma estrutura espelhada justamente no meio da metrópole capitalista. Na obra Cloud Gate, popularmente conhecida como “o feijão”, localizada no Millenium Park em Chicago, Kapour constrói uma estrutura de 10 metros de altura em aço inoxidável completamente fechada e tão perfeita que nem as soldas são visíveis. Nessa simplicidade e esmero a obra surge não apenas como um simples objeto artístico a ser contemplado, mas expondo um modelo de relacionamento que que é própria linguagem e regra do capitalismo corporativista. No seio da metrópole, o fascínio que a própria imagem exerce aos observadores não revela apenas a maestria da obra, mas também como essa crítica social é sutil e arraigada ao comportamento metropolitano. Analisando seus detalhes surgem ainda outras questões, sua forma não cria apenas uma esfera espelhada convexa, forma topológica representativa desse narcisismo ascético, há uma peculiaridade na distorção que se forma no portal e na capacidade de criar um espaço interior. Se por fora sua superfície é convexa, modelo narcisista da transferência, por dentro há como que uma concha, um abrigo também espelhado e chamado “omphalos”, que significa umbigo em grego. Nessa interioridade surge aquela forma de narcisismo mitológico, interno e que permite ver apenas a si próprio, isolando o mundo externo à própria imagem e semelhança. Nessa dupla curvatura

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Cloud Gate (2004-6) Anish Kapour Localizada no centro da AT&T Plaza, no Millennium Park em Chicago, Illinoi


O encantamento que o espelho convexo cria é uma representação da prórpia forma com que as pessoas na metrópole se relacionam

residem a potência da obra em expor uma forma de vida que passa despercebida nos anseios do cotidiano. Sua obra não propõe uma nova ética, apenas coloca no pedestal uma forma de relacionamento social que se propaga em todas as cidades como um totem do poder corporativo, tornando aquele relacionamento trivial que passa despercebido um objeto a ser observado. Por ser espelho a obra emana um contato constante com seu observador, onde perguntas e respostas sempre rebatem procurando um novo sentido na própria linguagem. Alimentado por esse entendimento, aquela figura do arranha-céu não aponta apenas o estandarte do poder humano, e do poder empresarial, mas na sua forma espelhada aponta também a referência e a forma de se comportar nesse ambiente. Sobre aquela forma transparente do Seagram Building foi preciso apenas adicionar uma camada de espelho para que o edifício comece a se comportar como modelo de conduta esperado de todos os funcionários. Não é preciso escolher um edifício modelo para analisar a figura da construção espelhada, há tantos diversos exemplos, que se repetem de tal maneira que não é preciso eleger um representante. As formas homogêneas dos edifícios que por fora assumem um comportamento de afirmação do narcisismo do outro, e por dentro se caracterizam por pisos e mais pisos completamente iguais evidenciam não apenas um comportamento social pobre, mas também como ele está completamente impregnado no imaginário do trabalho de aparências e sem conteúdo.

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Esferas de poder Ao longo desse trabalho percebemos como as questões relativas à potência humana são centrais nos desenvolvimentos de sua relação com o espaço, assistindo ainda como esse poder de modificar o mundo tem se tornado inerte dentro de um modelo de interação social corporativista onde obedecer e mimetizar o comportamento do outro acaba por anular qualquer iniciativa autêntica, como vimos, essa não é uma questão apenas social, mas estética e arquitetônica. Para apontar numa perspectiva mais otimista, apontando novos horizontes, tendências e formas de sair dessa situação, Sennet indica que a forma de romper essas amarras se encontra na essência do jogo e da brincadeira infantil. Percebendo como a relação infantil com as regras pode ser maleável, Sennet aponta que essa é a ética capaz de corromper o sistema vigente, permitindo ao ser humano agir de uma forma mais experimental e legítima, tanto em relação à seus anseios interiores como em relação ao funcionamento da sociedade como um todo, e assim experimentar novas configurações sociais. Porém há uma questão que passa despercebida por sua análise, e a condição topológica do funcionamento dos jogos e brincadeiras é que permite perceber essa contradição. Os jogos e brincadeiras, por li-

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Quando todos se comportam como espelhos, perde-se a origem a imagem e é possível ter a ilusão que o narcisismo de cada ser está sendo satisfeito ao mesmo tempo


Um edifício comercial com arcos romanos, que se solidariazam e sinos que marcam o tempo do trabalho deve se modificar para adequar não apenas uma fachada, mas um modo de vida

mitar e simplificar a realidade, acabam por criar um limite com relação à essa própria realidade, por isso inevitavelmente acabam por constituir uma esfera fechada, um espaço privado que limita as intrusões de complexidade indesejável. Em essência o jogo nada tem de público, muito pelo contrário, só existe onde é possível impedir a entrada de questões indesejáveis. Permitindo aos seus jogadores, no conhecimento e na capacidade de mudar as regras, escapar dessa condição de impotência e submissão o jogo se torna um espaço de refúgio e dessa forma, corre o perigo de nunca ser transposto para a realidade. Se por um lado a análise de Sennet se mostra falha apontando para um horizonte que ao invés de levar ao público realiza seu inverso, por outro percebemos como socialmente sua prescrição tem sido seguida à risca, apenas em condições um pouco mais variadas. É fácil percebemos o quanto as questões políticas de representatividade e legitimação do poder são centrais na possibilidade de um novo mundo público. Nos desdobramentos políticos, na animosidade e no dualismo evidente da pauta atual, acredito que a verdadeira e escondida questão estão contidas em quais módulos de poder estão disponíveis. Nossa instituições ainda guardam centralidade do poder em sistemas piramidais baseados em chefes de estados, patrões e patriarcas, sistemas incompatíveis com o crescente individualismo que observamos. Quando cada

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pessoa pretende exercer sua potencialidade ao máximo e não necessariamente ser apenas um peão do poder alheio, as instituições no qual a intenção emana do cabeça, se tornam naturalmente obsoletas. Dessa forma, lutar por democracia direta, por divisões administrativas menores e mais próximas aos problemas diretos da população, por diversidade e por legitimação, questões que estão tão em pauta hoje, são as principais formas que podem reverter o quadro de fuga da política e do espaço público. Apenas quando as formas políticas permitirem ao ser humano se sentir capaz de modificar as regras e cavar seu lugar no espaço é que essas esferas de potência privada podem ser desfeitas e trazidas para o âmbito público. Não que essa tarefa seja simples ou que possa ser facilmente resolvida, discutir e equilibrar o poder de cada um é uma tarefa árdua e complexa, necessitando de muita discussão e diálogo, mas como observamos nas movimentações públicas atuais suas cartas já estão em jogo. Isso não é uma novidade, em seu texto sobre Heterotopias, Foucault já analisa como diferentes espaços podem conter novos caracteres, como alguns locais possuem regras próprias que suspendem ou contrapõe as leis do mundo externo, e dessa forma defende que é preciso frutificar a existência desses espaços, de modo a permitir uma maior diversidade de lugares, e consequentemente de modos de vida. Acredito que após toda a análise anterior já está claro como essas heterotopias são nossos simulacros onde conseguimos esquecer a sina que a natureza e a existência do outro nos implica. Nas heterotopias podemos ser mais do que nossa dependência básica permite e tanto as heterotopias de Foucault como as brincadeiras de Sennet são referentes às mesmas esferas de poder. “Nesse espaço de jouissance [gozo], apoderar­se de algo que é limitado, fechado [borné, fermé], constitui um locus [lieu], e falar dele é uma topologia.21”

Curiosamente, é interessante notar como na frase final de Heterotopias há uma tendência a imaginar que esse espaço de liberdade não possa existir na cidade, precisando de novas fronteiras longe das leis para existir. 21 LACAN, Jacques, Conferência 1972. Apud. MELO M. Isabel, Lacan e a Topologia. p28.

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“O navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barcos, os sonhos secam, a espionagem toma o lugar da aventura, e a polícia toma o lugar dos piratas.”22

Esse sentimento coloca em questão uma situação onde a lei e das regras sociais se tornarem tão rígidas que a natureza, antes cruel, agora se torna o espaço da liberdade. Nesse contexto é contraditório como os espaços de liberdade individual presentes hoje tem se estabelecido cada vez mais incrustados e reclusos no seio da metrópole, escondidos do vida pública, mas sugando silenciosamente seus modos de sobrevivência nessa esfera autoritária que se forma. Fica evidente o quanto é preciso haver espaços diferenciados, espaços que permitam suspender regras e descansar o espírito, é preciso prever heterotopias na cidade, legitimar sua necessidade e respeitar os espaços de resistência como forma de fruição humana da vida. Dessa forma, a tendência ao fechamento, à reclusão e a tentativa de ignorar a complexidade presente no espaço público apenas evidenciam como essa esfera de jogos e brincadeiras já é um sintoma claro da nossa relação com a impotência urbana. É natural que a reação à um mundo de regras tão estáticas e acontecimentos tão incompreensíveis se desenvolva em esferas de potência. Se escondendo em condomínios, jogos de computador e até mesmo em alucinações se torna possível controlar a própria vida, nos termos e regras que preferir. Mas essas formas de fuga também possuem seu revez, se tornam uma jaula do espírito negando continuamente o mundo lá fora. Nossa forma solitária e narcisista induz apenas uma forma topológica. “Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade passível de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude. Contra o temível mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos23”.

22 FOUCAULT, Michel. Heterotopias. 23 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. p7.

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Conjugando essas duas necessidades básicas, uma de poder fruir da própria liberdade, cessar as intrusões do mundo externo em momentos de maturação e obter uma esfera de cuidado nos momentos de fragilidade; e a outra de encarar nossa sina natural, saber que somos dependentes e também saber utilizar essa fraqueza como potencialidade; remontamos a balança entre segurança e liberdade, uma situação sempre indefinida. Ora precisamos do espaço fechado, precisamos cessar as intrusões para poder curar nossas feridas, testar novas abordagens e voltarmos desse processo revigorados, ora precisamos encarar o mundo e buscar nosso sustento, assumindo nossa fragilidade e nossa impotência, e nessa assunção poder trazer algo de novo. Assim, qualquer espaço ideal deve ser flexível, nunca se tornando hermético demais, tampouco aberto demais. Talvez seja essa a questão colocada por Lacan em seus atendimentos, nos quais muitas vezes não fechava a porta, deixando que os outros pacientes da sala de espera ouvissem sussurros do que se discutia dentro daquela esfera de cuidado e liberdade24. Fica evidente assim como nem tanto ao mar nem tanto à terra deve restar a existência humana, nossa realização mais frutífera é justamente no limite, na transposição dessa esfera íntima, ou como vimos, na linguagem, na comunicação, atividade onde ambos os espaços são alimentados e produtivos. Um espaço de qualidade portanto deve permitir estabelecer um filtro suficiente para garantir em alguns momentos o sentimento de onipotência, mas também a abertura suficiente que permita ao usuário não se esquecer que existe um mundo lá fora, do qual faz parte e é relativamente dependente. “A arquitetura conhece duas possibilidades fundamentais de formação do espaço: o corpo fechado, que isola o espaço no seu interior, e o corpo aberto que abraça uma parte do espaço ligado ao contínuo infinito.25”.

De maneira geral a questão fundadora desse trabalho, de relacionar os espaços construídos como analogia da própria linguagem individual acredito que esteja evidentemente respondida, porém se abrem tantas possibilidades de análise que seus desdobramentos se tornam impossíveis de prever ou de abarcar nesse trabalho. 24 Documentário de MILLER, Gerárd. Rendez-vous chez Lacan, 2011. 25 ZUMTHOR, Peter. p22.

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Apêndice — Estudo de caso FAUUSP

Um local que traz questões topológicas sem precedentes é o edifício da FAUUSP, onde várias das questões levantadas nessa trabalho se mostram presentes. Apesar dessa análise surgir da vida cotidiana nesse prédio fica claro como essa abordagem pode ser feita em qualquer edifício, mesmo que sua riqueza de elementos não seja tão evidente. Fica evidente pelos capítulos anteriores que um estudo desse porte prescinde de uma análise sociológica paralela. O edifício não se revela apenas por existir, mas por seu uso, os hábitos e as motivações dos seres que nele habitam. Inicialmente a intenção era, sob esse contexto topológico, executar o mesmo exercício em outros edifícios, porém a falta de informações mais precisas desses outros edifícios e a falta de vivência nesses contextos impossibilitou tais estudos tanto pelo tempo, como pela distância. Não é o caso da FAU. Passar um terço da vida num edifício como esse traz uma grande riqueza em termos de revelar suas estratégias espaciais. A poética do edifício é tão forte que é impossível não ser tocado por ela. Entre os estudantes sempre há a história da primeira vez que cada um adentrou o edifício, mostrando como essa experiência é potente e marcante. Esse estudo de caso se tornou tão mais rico que acabaria por ofuscar e desestabilizar a análise topológica dos outros exemplos e por isso acabo por colocar a FAU como um apêndice, que na realidade está no centro do trabalho, já que é de onde muitas das teorias aqui apresentadas foram cultivadas e experimentadas.

FAUUSP em construção

O edifício da FAUUSP, projetado por Vilanova Artigas em 1961, foi entregue somente em 1969. Oriundo do curso de dupla formação em arquitetura e engenharia civil da Escola Politécnica, Artigas não apenas participou da emancipação do curso de Arquitetura e Urbanismo, como também coordenou o projeto político pedagógico da escola. O clima da arquitetura dos anos 60 é um momento único, Brasília foi um marco na tentativa de pensar um novo Brasil, mais moderno

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e independente, esse clima influenciou de tal maneira o imaginário popular que foi drasticamente interrompido pela ditadura. A FAU é um marco desse período, tanto por guardar um ideal nacionalista, quanto por já ter amadurecido durante o regime, criando maiores defesas. Assim, desenvolvendo o PPP concomitantemente ao projeto arquitetônico fica claro como o projeto de ensino influenciou e foi influenciado pela arquitetura e pelas teorias em ascensão na época. Porém, restaram poucos registros dessas intenções, principalmente devido à repressão, que impediu o ensino de Artigas e o levou ao exílio no Uruguai, de 1970 a 1978. Esse silêncio criado na ditadura acabou por calar também o discurso por traz do edifício, que, se revelado, poderia até agravar a situação política de Artigas e de outras diversas pessoas ligadas à ele. O edifício, mesmo dentro do silêncio imposto pela repressão da ditadura, continua transpirando sentidos e poesias. “No momento em que as pessoas eram caladas, o edifício seguia falando”1.

Em 1961 a Universidade de São Paulo sofre uma transferência de grande parte de seus cursos para o Campus do Butantã, na época uma região erma e afastada do centro, longe do cosmopolitismo e da vida urbana, de modo que a FAU, escola que se pretende protótipo da vida na metrópole, é entregue ao provincianismo da fazenda. Essa situação, de separar a formação do arquiteto do seu meio mais fértil — a cidade — traz para o interior do prédio diversas formas de mimetizar esse contexto urbano e trazer-lhe significação. Vários elementos corroboram essa condição, como os materiais do piso do edifício, que nos andares mais inferiores adotam um revestimento de ladrilho português, remetendo simbolicamente à situação urbana tão presente nos calçamentos das grandes cidades brasileiras. O edifício, na rigidez de sua estrutura, não nega apenas a ditadura, mas também o exílio forçado para o campo criando para si um contexto urbano. É difícil entrar pelo salão caramelo e não imaginar uma praça, localizada no centro do edifício e envolvida pelos pavimentos, que se apresentam como fachadas, desenhando o contexto de uma pequena 1 BUCCI, Ângelo em palestra sobre sua obra durante aula de Arquitetos Paulistas, abril de 2015.

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praça urbana. Nesse grande espaço público surge o espaço da cidade, a noite iluminado por luminárias de porte urbano e de dia pela luz solar que emana dos domus, criando um ambiente ao mesmo tempo aberto e ao mesmo tempo protegido pelo céu quadriculado, brincando com a separação entre público e privado de forma irônica e ambígua. Distante dez quilômetros da Praça da Sé, surge um simulacro de cidade, se opondo dentro dessa fortaleza aos modos de vida do campo. Coberta por um tabuleiro suspenso e luminoso, se apresenta uma simulação do que se tentava evitar. Nessa cobertura transparente ainda parece haver outra metáfora de cidade. É difícil precisar quem começou a chamar essa estrutura de domus, mas essa palavra latina, que indica “casa”, nesse simples nome guarda um entendimento sobre a cidade. “A cidade é feita de casas”. É como se o edifício passasse a lição de que o bloco fundamental da cidade é a residência, é no coletivo de indivíduos que nasce a cidade e cada casa é indispensável à cidade. Ainda é preciso salientar que esses domus ainda emanam a luz e o abrigo, a razão e a condição para usá-la. Porém, ao mesmo tempo que legitima o local do privado, o coloca numa tensão, de modo que não se oponha frontalmente ao público. “É importante frisar aqui a ideia de urbanidade, pois a imensa liberdade que o edifício da FAU inspira, necessita de uma mediação fundamental, que é o respeito ao lugar do outro. Está aí uma das características centrais da chamada “escola paulista” de arquitetura: o combate ao predomínio do doméstico e do privado, no Brasil, sobre a instância pública. É o que, na teoria social, chamamos de patrimonialismo: a tendência, muito própria a certos países colonizados e escravocratas, a tratar os assuntos públicos com base nas relações pessoais de favor2”.

Não é nova a leitura de como a pureza brutalista da FAU remonta o materialismo dialético deixando evidentes no concreto as marcas das formas de madeira e do trabalho acumulado. Me recordo das aulas de custos com o professor Khaled Goubar, onde numa análise de centros de custos ele demonstrava como essa escolha também era uma estratégia política. Ao construir um prédio que resolvendo a estrutura de concreto e os caixilhos o edifício está praticamente pronto, revela-se, em primeiro lugar, uma forma de se preparar para o sucateamento do novo governo, 2 WISNIK, Guilherme. A construção da convivência e do conflito. Folha de S.Paulo. Ilustríssima 5 de julho de 2015.

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afinal não se pode diminuir custos nesses quesitos sem mudar o projeto. Em segundo lugar essa condição permite uma flexibilidade total, com o passar dos anos diferentes lay-outs podem ser implantados, novas divisórias, equipamentos e mobiliários podem ser colocados e retirados, mas a essência do edifício de concreto, caixilho e epóxi nunca muda. Além das análises dos materiais envolvidos na construção e de como essas escolhas revelam uma estratégia política, acredito que ainda é possível expandir a leitura de como o ambiente e fenômenos físicos modelam tanto a sociedade, a cultura e o ser humano, quanto são modelados por eles. Assistindo ao documentário Vilanova Artigas: O Arquiteto e a Luz, impressiona o interesse que o arquiteto demonstrava na vida pessoal e psicológica de alunos e usuários. Assim, adentrando numa visão um pouco mais psicológica desse espaço, é possível se aproximar talvez das primeiras intenções para o projeto. Não fujo da constatação de que essas visões contém parte do meu próprio imaginário, mas espero que os argumentos o justifiquem, afinal já nas casas de Artigas há uma ética muito definida e não é de se estranhar que essa condição se expandisse para a FAU. “Citamos uma moral de vida sugerida pelas casas de Artigas, uma moral que definimos como severa, e esta é a base de sua arquitetura. Cada casa de Artigas quebra todos os espelhos do salão burguês. Nas casas de Artigas, que se veem por dentro. tudo é aberto, por toda parte o vidro e os tetos baixos, muitas vezes a cozinha não é separada, e o burguês que se deixasse levar pela novidade e pedisse uma casa a Artigas, chocado com ‘tão pouca intimidade’, cego por tanta claridade, se apressaria em fechar com pesadas cortinas e vidraças, a fazer crescer sebes, a reforçar as portas, para continuar, bem defendido, a sua vida despreocupada entre os móveis ‘Chippendale’ e os ‘abat-jours’ pintados à mão. As casas de Artigas são espaços abrigados contra as intempéries, o vento e a chuva, mas não o são contra o homem, tornando-se o mais distante possível da casa-fortaleza, a casa fechada, a casa com interior e exterior, denúncia de uma época de ódios mortais. A casa de Artigas que um observador superficial pode definir como absurda, é a mensagem paciente e corajosa de quem vê os primeiros clarões de uma nova época: a época da solidariedade humana3”. 3

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BARDI, Lina Bo. Casas de Vilanova Artigas. in Habitat n. 2. 1951.


FAUUSP em construção

Conjugando os programas, as correntes teóricas da época e algumas frases de Artigas — que parecem buscar proteção nas metáforas — é possível tentar recriar esse memorial hipotético que se perdeu e tanto nos intriga, como alunos e como arquitetos. É impossível separar esse edifício da função que o justifica, de modo que ao analisar essa forma arquitetônica sob a ótica do ensino de arquitetura surgem significados ainda mais potentes. É fácil perceber o quanto o edifício ensina sobre o espaço, vivência e sociedade, sua forma é uma pedagogia urbana. “O prédio da FAU, acima de tudo inspira respeito e admiração pelo mundo como nos educa. Um edifício feito sem a divisão hierárquica entre salas e corredores, no qual todos os espaços tem a qualidade de lugares de estar e desfrute, como no caso de suas famosas rampas. Uma escola que carrega consigo um ideal civilizatório, relativo à importância e à responsabilidade do viver compartilhado, no qual a liberdade não é um atributo fácil, mas algo que se conquista aos poucos4.

Ao adentrar o edifício pela primeira vez é inevitável senti-lo como uma fortificação, um cubo suspenso sob pernas esbeltas. Ao contrário de suas casas abertas, a FAU cria justamente uma fortaleza, suspensa sob pilares de uma tal geometria, que permite criar a ilusão 4

WISNIK, Guilherme. Op. Cit.

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que esse cubo levite e esteja separado do mundo abaixo. Os próprios níveis do edifício não se adequam ao entorno, ora estão acima, ora estão abaixo do nível do terreno, mas nunca em pé de igualdade. Se em suas casas, na visão de Lina, a abertura é total, então o que justificaria um edifício tão fechado? O próprio Artigas em seu discurso ao formandos da FAU, evidencia como a segurança é perigosa. “Evitai o extremado desejo de segurança que contorna todos os riscos, isola o artista de qualquer plano polêmico. A procura insistente de conforto material aniquila o intelectual. São vícios de outras camadas da sociedade, interessadas na sua própria imobilidade5”.

Então porque criar um edifício tão rígido e fortalecido? Isso talvez somente possa ser explicado como num exercício de liberdade do pensamento. Sobre os ombros de qualquer arquiteto recai a responsabilidade de construir o novo, aquilo que ainda não existe, estando primeiramente num patamar abstrato no imaginário de cada um. Dessa forma, do mesmo modo que os pensamentos só podem ser livres restringindo a intrusão da realidade, a FAU cria uma forma de libertar o pensamento, restringindo todo o contexto provinciano, retrógrado e repressor da ditadura externa. No exercício de pensar o novo é preciso liberdade, e essa restrição se verifica nas pesadas empenas de um edifício sem janelas horizontais. É justamente essa questão que se torna a crítica de um de seus discípulos, Sérgio Ferro: exatamente no momento onde a ditadura se torna uma ameaça e era preciso encarar essa realidade, Artigas propõe um edifício ensimesmado e voltado para dentro. “Sérgio Ferro, seu discípulo dissidente, viria a criticar o que entendeu como um descompasso entre ideologia e realidade. Afinal, o paradigma dessa arquitetura havia sido formado, no período da construção de Brasília, com o alto objetivo de edificar um país novo e moderno. No entando, cortadas as perspectivas emancipatórias desse projeto, com o golpe de 64, ela se via restrita, em sua opinião, à tarefa quixotesca de construir um país metafórico no interior de casas de classe média. Radicalidade ou maneirismo6”? 5 ARTIGAS, Vilanova. Aos Formandos da FAUUSP. in Caminhos da Arquitetura 1964. p84-85. 6

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WISNIK, Guilherme. Op. Cit.


É claro que um espaço com tal fechamento sempre corre o perigo de se tornar um refúgio perpétuo, local de tal liberdade relativa de onde nunca mais se deseje sair, acabando completamente com a premissa de que os futuros arquitetos projetarão o novo mundo, mais justo e moderno. Dessa maneira , existem formas de tornar essa liberdade instável, além de internamente a FAU trazer muito pouco conforto, também os espaços de intimidade são muito escassos e conflituosos. Há ainda outros recursos. No memorial-manifesto de Rem Koolhaas sobre Nova York — delirante — há um trecho sobre o exercício do arquiteto que talvez revele muito sobre as intenções da FAU. “Década de 1930 bastante adentro, a Junta de Projetos para a Feira Mundial de 1939 trabalha no último andar do edifício Empire State. O objeto de suas considerações não fica em Manhattan, mas ali perto em Flushing Meadows, Queens. Não faz mal: “Um jogo de telescópios na cobertura da sala de projetos permitia a clara visão da área, e a pessoa podia conferir seus desenhos com as condições reais do terreno”.7

Esse exercício de arquitetura telescópica, onde o arquiteto nunca pisa no objeto de seu trabalho também é uma questão clara que a FAU impede. Nas grandes empenas fechadas para o exterior, é sempre impossível realizar essa astúcia dos arquitetos novaiorquinos, projetando um terreno que não se conhece e infingindo seu desenho distante à um contexto desconhecido. O arquiteto não pode se abrigar distante de seu trabalho, assumindo a mão invisível, se distanciando da realidade e permitindo adotar premissas alheias ou mal intencionadas para com o território. “Se as formas são absurdas, é porque as premissas são irracionais”8

O arquiteto deve descer de seu mundo imaginário e tocar as questões de sua prática em pé de igualdade, e nunca assumindo a posição de projeto distanciado. Dessa forma, há como que uma lição àqueles que projetam, de que a cidade deve ser tocada à pé, do mesmo modo como 7 STARRET, Paul, Changing the Skyline: An autobiography. Nova York: Whittlesey House,1938, pp284-308 Apud. KOOLHAAS, Rem. Nova York Delirante. p305. 8

ARTIGAS, João Batista Vilanova, Caminhos da arquitetura‎ - p35. 2004.

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Gengis Khan define sua prática: “Conquistar a gente conquista a cavalo, governar tem que ser a pé”. Porém, a principal questão que faz da FAU um caso tão único — sobretudo no contexto topológico — é a inexistência de um fechamento completo. Apesar de fechada, ela está sempre aberta, apesar de aberta, ela ainda configura um abrigo. Em contraposição à essa possibilidade de abstração completa que o “caixote sem janelas” permite, a FAU não tem portas, não há como impedir a intrusão do ambiente, seja pelo calor, seja pelo frio. Não há como se fechar completamente no mundo das ideias, ela está sempre aberto, impedindo que seu usuário se abrigue num universo de discurso ou esqueça de sua condição e se perca numa ilusão completa de onipotência. “O contato com um ponto! Isso lá fora. O resto de uma tremenda simplicidade capaz de ser compreensível para qualquer um. Que não tivesse nenhuma loquacidade necessária. Nenhuma veemência de discurso! Nenhuma concessão barroca! Nada! Uma espécie de quem procura a verdade pura, absolutamente pura! [...]. Morria de medo de riscar aquilo tão simples como está colocado. O que eles vão dizer disso? Não chega a ser nada. Não tem porta na entrada. Eu queria que a entrada fosse como ela é: um peristilo clássico, grego, e que não tem porta. Só entram deuses dentro da FAU! Lá não tem frio nem calor9”! 9

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Transcrição do depoimento de Vilanova Artigas gravado em outubro de

O edifício nunca pode ser fechado, há uma conexão contante com o mundo externo e suas intrusões


Dessa forma, é como se Artigas adotasse a mesma postura de Lacan ao deixar a porta do consultório aberta. Se nesse espaço é possível criar uma ilusão de liberdade e onipotência, então é preciso reiterar que essa é uma ilusão. Que a natureza e a realidade estão lá fora e não cessarão de se intrometer. No exercício de criar um edifício onde o conforto nunca é atingido, se revela uma intenção clara de enfrentamento do mundo, de frente e em pé de igualdade. Munido da criatividade, mas ciente de sua condição de dependência relativa e da necessidade de intervenção direta no mundo. Apenas nas formas e paredes do edifício parece haver uma ética própria destinada ao ideal de arquiteto que essa escola deve formar e essa análise pode ser aprofundada em cada ambiente. No último andar do edifício se instalam as salas de aula, orientadas para o ensino teórico e que se destacam por serem completamente fechadas. Se pudéssemos reduzir as salas à um cubo, cinco faces seriam fechadas e a única aberta é o teto, translúcido e iluminado. Essa condição revela uma possibilidade de reclusão completa, nesse espaço a abstração pode tomar seu ponto de máximo, levantando teorias sem compromisso com a ordem material, social, econômica, 1978, no seu escritório em São Paulo, para o filme de Eduardo de Jesus Rodrigues e Fernando Frank Cabral, Vilanova Artigas: espaço e programa para a FAU.

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cobertura

salas de aula

estĂşdios

[AI] ateliĂŞ interdepartamental departamentos biblioteca

piso do museu

entrada caramelo oficinas

auditĂłrio

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etc. Dessa forma, remetendo à um ideal platônico de pensamento, as salas de aula se instalam como o espaço de liberdade máximo do pensamento, justamente o ambiente que ideias necessitam para se desenvolver. Não é difícil perceber como ao realizar um percurso descendo as rampas, cada pavimento traz cada vez menos abstração e implicações mais objetivas. O pavimento seguinte é destinado aos cinco estúdios, um para cada turma, divididos por divisórias baixas, sem portas e onde largas mesas se colocam para desenhar e projetar. É como se a primeira fronteira daquela ideia gestionada nas salas fosse se estabelecer enquanto desenho, na geometria e na simulação, a primeira instância de constatação se apresenta questionando e modificando aquela forma completamente ideal, agora mais próxima da realidade or meio do desenho. É interessante notar como se o último piso são cinco lados fechados, agora um deles se abre e nos estúdios são quatro faces fechadas, e duas abertas, para o fosso e para o domus. A próxima etapa daquela ideia desce para o pavimento conhecido como AI, ou Ateliê Interdepartamental. Agora, se nos pavimentos superiores as disciplinas se comportam de maneira atomizada, nesse espaço onde são instalados os diferentes departamentos, história, tecnologia e projeto; é possível que essa ideia passe pelo crivo de diferentes especialidades. Nesse ponto a generalidade do arquiteto se mostra um valor a ser conservado, todas as especializações são importantes e precisam dar seu ponto de vista sobre aquela ideia recém maturada. Não há fuga possível que permita fugir de passar pelo crivo de diferentes pontos de vista. Voltando ao cubo agora são três faces abertas e três fechadas. No próximo lance dessa espiral se encontra a biblioteca, acervo de projetos e teorias estabelecidas, onde aquele ideal em formação pode se alimentar de situações históricas, contextos políticos e amadurecer sua abordagem para o mundo. Em sua forma, a biblioteca é um pavimento de panos de vidro, apenas duas faces são fechadas, o teto e o piso, desprendendo cada vez mais aquele imaginário puro de sua fragilidade encapsulada. Uma ideia deve se apresentar, e é exatamente isso a que se destina o próximo meio nível.

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O piso do museu é uma espaço praticamente aberto. Em suas faces, o recuo que o pavimento superior realiza permite que sejam cinco as faces abertas, somente o chão é um limite para aquela ideia que passou por tantas modificações e mudanças de abordagem. Como o próprio nome indica é nesse piso que as ideias podem ser expostas não apenas aos arquitetos, mas também a todos os que adentram o edifício, de forma a continuar essa trajetória de questionamento e recolocação do projeto. Mas também é nesse piso que se instalam o GFAU e a Atlética, as duas agremiações estudantis da faculdade. Se na biblioteca foi possível se contrapor a diferentes períodos históricos e políticos, agora no piso do museu aquela ideia gestionada em forma tão abstrata pode se apresentar a realidade direta e presente, onde pode ser levada para a rua como pauta no movimento estudantil e como discussão na sociedade mais ampla. Ao descer o último pavimento antes do nível do chão aquele cubo que desconstrói uma face a cada pavimento perde finalmente todas as faces, graças ao vazio que o fosso cria é possível imaginar um cubo com todas as faces abertas, onde não há proteção alguma à criatividade e a realidade deve ser encarada de frente. Não é novidade que o Salão Caramelo é considerada a praça por excelência, mas alimentada por esse entendimento da criatividade e da modificação de paradigmas, esse espaço ganha a dimensão de que é no nível da cidade, do espaço público que as ideias devem ser expostas e discutidas. Ainda há mais dois pavimentos abaixo do nível da rua. No primeiro, originalmente se instalavam as oficinas, laboratórios de produção gráfica e maquetaria. Hoje ali estão escritórios dos diferentes laboratórios da faculdade, e a manufatura e a execução manual de modelos e protótipos foi levada para o edifício anexo. Ainda assim o exercício da arquitetura e do urbanismo prescindem da ideia do protótipo, onde depois de percorrer diversas instâncias de questionamento, aquele projeto ideal agora pode sair finalmente da abstração e ganhar materialidade, ainda que apenas numa fase de testes ou na bela ideia do protótipo, que permitem mais uma fase de acabamento e questionamento. O último pavimento é destinado ao auditório, local completamente fechado onde esse cubo de abstração se reconstrói novamen-

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te, mas não apenas para ideias internas, mas também para aqueles pensamentos e teorias que vem de fora e podem ser apresentados para a comunidade. Ali é possível apresentar trabalhos, dar aulas e até mesmo instaurar a ilusão teatral, que necessita que o espectador legitime sua limitação de realidade. Dessa forma, percebemos como na organização espacial do edifício há uma espiral crescente criando uma transição lenta entre um espaço puramente fechado e um espaço puramente aberto. Uma transição entre a materialidade direta e a abstração completa, entre o objetivo e o subjetivo. É claro que não são ideias que transitam o edifício, mas pessoas, arquitetos e futuros arquitetos, pensadores do espaço e da sociedade, que no dia a dia de entrar e sair do edifício permitem que esse espaço de criatividade total seja constantemente alimentado e renovado. Que essas ideias continuem sendo criadas e permitam que a mudança seja uma constante. É interessante perceber o quanto a criatividade é uma questão importante não apenas para a arquitetura, mas para todo o objeto criativo e artístico. Assim a questão primordial não é que os espaços sejam abertos ou fechados, mas entender que eles possuem suas implicações e limitações em função de segurança e liberdade, de modo que a verdadeira preocupação é que eles se comuniquem e nunca se enrijeçam. O espaço da FAU mimetiza não apenas a formação do arquiteto, mas a vida na cidade como um constante processo de se revelar e se retrair, um infinito esconde-esconde, de descobrir-se e recobrir-se. É deste modo que os seres humanos se relacionam com o espaço, nunca com um espaço estático, mas sempre na existência inconsciente do espaço completamente inverso do que se habita num determinado instante.

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Crédito das Imagens

Bianca Lucchesi — p.1-3 "Raízes da casa" Melina Kuroiva — p.14 "Bolhas" Wikimedia Commons p.16 Saturno fotografada pela sonda Cassni em 15 de setembro de 2006. | p.17 — Khirokitia. | p.19 — God the Geometer The Frontispiece of Bible Moralisee. | p.42 | Michelangelo. A Criação de Adão e seus ignudi de suporte. p.50 |O Éden com a queda de Adão e Eva de Jan Brueghel de Oude e Peter Paul Rubens p.108 | Jean-Honoré Fragonard — Les Hasards Heureux de l'Escarpolette p161 | postal Crystal palace p.177. | Narciso Caravaggio Galleria Nazionale d'Arte Antica p.189 Estevão Sabatier — p.6 Montagem a partir de cena de Warners España — La Piel que habito | p.18 Montagem intersecção entre bolhas. | p.13 p.14 p.17 — Ilustração in-out. p.2223 | Perspectiva Explodida FAU p.212 | Diagramas p.31 p.33 p.41 p.42 p.43 p.71 p.76 p.80 p.87 p.89 p.113 p.191 p.192| Casa joão-de-barro p.105 | Cárcel de Miguelete p.140-1 | Ilustração Casa Kabyle p.155 | Edificio Santander Av. Paulista p.197 | Shoping SP p.200 James Mellart. p.20 Çatal hüyük a neolithic town in Anatolia. London, Thames and Hudson, 1967. in TFG Victor Alarsa Camila Neri — Acervo de postais antigos. p.26 Norberg-Schulz — Imago mundi romano. p.28 Victor Alarsa — Hieroglifo egípcio Niwt p28 Лавка Подарков — Loja de artesanato russo Lavka-Podarkov Boneca Матрёшка (Matrioshka) p.30 Mikhail Kryshen — " Outlook" p.34 Philip Hay — Ballykeel Dolmen Tripod p.35 National Geographic — Documentário Vida no ventre. p.38 Winnicott — diagrama p.51 Propaganda em Revista — p.58 Propaganda atlantic

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Hanna Barbera — p.62 Jetsons Honda — p.63 Divulgação. Pedro Kok — p.65 Teatro oficina. Vitor Coelho Nisida — Fotos no Minh ocão: "com Sol" | p.69 "pai e filho" p.83. | "FAUUSP" p.210-1 Messynessychic — Vintage ad of Pepsi. p.73 Jonny Cesar — Criança brincando em caixa de areia. p.78 Barack NHuy — Crianças brincando. p.79 Anish Kapour — Mother as Mountain, retirada do site institucional do artista. p.82 Cloud Reassembly RPI — Naked City. p.67 Darkday — Brisbane. p.92 David Lohr Bueso — Valparaíso. p.93 Alison Postma — silo em contrução p.98 Charles Eisen — Fronstispício Essay sur l'architeture p.100 Ivan Irac — Vesúvio em erupção p104 Stephen Dann — fogueira p.106 Carlos Ramalhete — fogão a lenha p.107 Steve Garrity — silo p.110 Ian Britton — fardo de trigo p.115 | plantação crescendo p.119 Sergio Amaral / Ministério do Desenvolvimento Social — Dirani quilombola p.118 Andreas Eriksson — Artesão p.122 Google Art Project — Pieter Lastman. Jonah and the Whale p.123 Rafael Craice — quarto p.124 Buckminster Fuller — Domo sobre nova york p.125 Alex Aartori — trânsito p.126-7 Danilo Zamboni (daniloz) — ilustração cabotagem p.129 Brooklyn Grange — Jardim urbano p.133 Julian Fong — lighthouse p.134 Moyan Brenn — castelo Neuschwansteinna 138 Brett Kiger — Castelo Cinderela Dysney p.139 Shannon Kringen — corvo e câmera p.142 Rede Globo — logotipo p.143 Warner Bros — cena do filme Matrix p.146-7 happyfamousartists — Leviathan p.148 Ralf Κλενγελ — jardim japonês p.150 John Ellis — Casa japonesa p.151 Aleksander Dragnes — Himeji Castle p.153

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Sony Pictures — Cena do filme Marie Antoinette p.157 Maurice Marcelli — Capilla Rosario Puebla p.162 Allie_Caulfield — Abadia de Ottobeuren p.164 Damian White — Panteão de paris p.166 Franck Michel — Times Square p.170 Le Corbusier — Dom-ino house p.180 geraadpleegd — farnsworth house p.182 n e o g e j o — glass house p.183 Alex Schwab — Segram Plaza p.186 Iker Alonso — Segram Building p.187 Allison Harger — Omphalos p.191 David Jones — the bean p.194 fensterbme — cloud gate p.195 Cathy — Edifício espelhado p.196 Acervo COESF — Fotos da construção FAUUSP p.202 p.207

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Filmografia

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Trabalho composto em Helvetica Bold 10/12pt Rotis Sans Serif 10/12pt impresso na grรกfica inprima nove de julho inverno de 2016

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