O naufrágio da fragata Numancia e outros...

Page 1

O naufrágio da fragata Numancia e outros episódios marítimos com cidadãos espanhóis em Sesimbra João Augusto Aldeia

E d i çõe s Ai ol a 201 6



O naufrágio da fragata Numancia e outros episódios marítimos com cidadãos espanhóis em Sesimbra

João Augusto Aldeia

Edições Aiola Dezembro de 201 6


Estudos locais 1 – Memórias da Indústria Corticeira em Alhos Vedros 2 – O naufrágio da fragata Numancia e outros episódios marítimos com cidadãos espanhóis em Sesimbra

Ficha técnica Título: O naufrágio da fragata Numancia e outros episódios marítimos com cidadãos espanhóis em Sesimbra Autor: João Augusto Aldeia Copyright: João Augusto Aldeia todos os direitos reservados Fotografias: dos autores indicados nas legendas todos os direitos reservados Editor: Edições Aiola aiola@aiola.pt Administração: José Gabriel 1.ª edição: Dezembro de 2016


Página 5

O naufrágio da fragata Numância

Índice

Sesimbra, uma terra aberta ao mundo . . . . . . . . . . . .

8

O naufrágio da fragata Numancia . . . . . . . . . . . . . .

11

Os foragidos de Vila Cisneros . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 O naufrágio do cargueiro Urola . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Um bergantim espanhol em Sesimbra . . . . . . . . . . . 43 Apresamento da nau São Valentim . . . . . . . . . . . . . . 45 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59



Praia do Ribeiro do Cavalo Angra

Molhe de 1923

Molhe de 1949

Molhe de 1987

Numância Fortaleza de Santiago

PĂĄgina 7


Página 8

João Augusto Aldeia

Sesimbra, uma terra aberta ao mundo Sesimbra é uma terra de pescadores desde, pelo menos, o século 13, como teste­ munham os documentos oficiais da sua entrega à Ordem de Santiago, onde se refe­ rem os direitos das pescarias e a necessidade de salvaguardar espaço de trabalho para pescadores vindos de fora. Assim, Sesimbra transformar­se­ia no principal porto abastecedor de peixe a Lisboa, sobretudo depois da invenção dos acedares, no século 15, redes que dariam origem às armações da sardinha e aos cercos de rede que depois se espalharam por todo o mundo, hoje transformados em traineiras. A quantidade e qualidade, tanto do peixe graúdo como do miúdo – sobretudo a sardinha – que aqui era pescado, levou a que fosse depois distribuído por todo o Portugal e até na Espanha, que aqui enviava embarcações para a carregar. Duarte Nunes de Leão, no seu livro de 1610, escreveu: “No mesmo mar de Setúbal e no de Sesimbra sua vizinha, há a mais sardinha e mais saborosa que se pode dar, a qual, além de sustentar o reino, se leva por mar a outras partes, e por terra ao reino de Castela para onde sai grande carregação atè à corte de Madrid.” Sesimbra, como porto de mar e vila aberta ao mundo, ao longo de toda a sua história, também atraíu cidadãos espanhóis, que aqui trabalharam na pesca e em ou­ tras profissões, casando por vezes com sesimbrenses e passando a viver aqui. Tal foi o caso de João Ramos, de Redondela, Galiza, casado com a sesimbrense Antónia Rodrigues (1704), Belchior Moranha, de Paradela, Galiza, casado com a sesimbren­ se Maria Eugénia (1798), Martinho da Torre, pescador, da Redondela, Galiza, (1723), Diogo José Marques, de Oureira (1799), João Maria de Covas, de San Vi­ cente de Aguas Santas, Galiza (1830), José Fernandez, de São Paio de Sabia, Galiza, padeiro, casado com a sesimbrense Ana Rita (1830), Manuel Raimundo, de Aiamonte (1857), José Felix de Faro Sendim, de Paranhos, Galiza, casado com a sesimbrense Margarida das Chagas (1884), Eugénia Romana Caldeira, de Badajoz, casada com o ferreiro sesimbrense Manuel de Jesus Gomes, e depois com Augusto Maria Castanho (1887), José Preto, pescador, de Badajoz (1888), Francisco Dias Quinteiro, soldador, da Galiza, casado com a sesimbrense Conceição Rosa Marques (1903). Mais recentemente, a Pepita (Josefa Algans Taboada), casada com o sesimbrense Mário Martelo, e que viria a emprestar o seu apelido a uma das emblemáticas traineiras de Sesimbra Destes casos, que chegaram até nós sobretudo devido aos registos de baptismo


O naufrágio da fragata Numância

Página 9

dos filhos que nasceram dos casamentos referidos, destacamos os descendentes de João Maria Covas, que em Sesimbra instalaram uma importante empresa de cordoa­ ria, que durou até meados do século 20; uma fábrica de conservas, no final do sécu­ lo 19 – a Covas & Filhos – e uma fábrica de gelo e frigorificação de peixe, em 1927. Alguns episódios com embarcações espanholas, ou transportando espanhóis, fi­ caram também gravados na história de Sesimbra, e serão apresentados nas páginas seguintes. Ficam de fora dois factos sobre os quais não existe ainda muita documen­ tação: o bombardeamento da vila pela armada espanhola, em 1384, no final do fa­ lhado cerco à cidade de Lisboa, e o embarque de tropas espanholas, em 1808, quando se rompeu a aliança do “Príncipe da Paz” (Manuel de Godoy) com os invasores franceses. Godoy conspirara com Napoleão para vir a ser o monarca de um novo reino constituído pelo território português a sul do Tejo, e que teria a sua capital em Setúbal. Para além destes conflitos, nascidos de dinâmicas com origem noutras esferas, relatamos aqui episódios que, felizmente, testemunham actos de aliança e amizade entre os dois povos. Por isso a traineira Pepita, essa sim, teve direito ao título de rainha, na conhecida canção de Mário Regalado:

Tu és a primeira, Modesta, ligeira, Na faina do alar Traineira Pepita Tu és tão bonita Princesa do Mar Traineira Pepita Princesa do Mar Tu és tão bonita Rainha a pescar



O naufrágio da fragata Numância

Página 11

O naufrágio da fragata Numancia

No dia 16 de Dezembro de 1916 – um sábado – pelas 18 horas, a fragata Nu­ mancia, que já há alguns dias se encontrava fundeada na baía de Sesimbra, ao abrigo do temporal, soltou­se das amarras e aproximou­se da praia, ficando presa no fundo de areia, batida pelas vagas. Os tripulantes pediram ajuda, por meio de sinais e foguetes. O socorro, no entanto, só foi possível no dia seguinte.

A fragata Numancia na baía de Sesimbra


Página 12

João Augusto Aldeia

Já há oito dias que a fragata, e os dois rebocadores que a acompanhavam – Alte Jumendi e Sturrimendi – se abrigavam na pequena baía virada a sul, que oferecia, por essa disposição, algum abrigo da Nortada, mas não do Sueste. O temporal apanhou a Numancia a meio daquela que seria, previsivelmente, a sua última viagem, já que navegava desde o sul de Espanha, com rumo a Bilbao, para ali ser desmantelada e reciclada, com aproveitamento do ferro. Apesar de Sesimbra ser uma importante comunidade pesqueira – foi, ao longo dos séculos, o porto abastecedor de peixe à cidade de Lisboa, mas também forneceu pescarias para outras regiões de Portugal e Espanha – não tinha quaisquer instalações portuárias. Encontrando­se desprotegida dos ventos que soprassem do sul – como acontecia no dia deste naufrágio – a comunidade piscatória tinha de varar os seus barcos nas ruas da vila, quando os temporais se aproximavam. Próximo da praia, existe um afloramento de rocha, paralelo à linha de maré, totalmente submerso, conhecido como o “Mar da Pedra”, pelo que os roteiros marítimos aconselham o fundeamento mais ao largo, o que deve ter acontecido com a Numância. Perante o agravamento do estado do tempo, os dois rebocadores afastaram­se

A lota na praia de Sesimbra, com a Numância em fundo (Arquivo Municipal).


O naufrágio da fragata Numância

Página 13

para o largo, como medida de segurança. A fragata, batida pelas vagas e pelo vento que soprava do sul, acabaria por garrar, ultrapassando o "Mar da Pedra" e encalhando na areia, perpendicularmente à linha de praia, com a proa virada para terra, praticamente em frente ao edifício do Instituto de Socorros a Náufragos – veja­se a localização na imagem da página 7. De manhã, foi decidido trazer os tripulantes para terra, o que só foi possível através dum cabo de vai­vém. Embora encalhado, o navio continuava inteiro e nem sequer metia água, conforme confirmaria o contramestre Eulápio Gonzales y Moreno: a transferência dos tripulantes far­se­ia como medida cautelar. Sesimbra dispunha nessa altura de umas boas instalações de socorros a náufragos, embora nem sempre devidamente equipadas com pessoal ou material. Tinham sido construídas em 1907, conforme atesta a data esculpida na soleira da porta, ainda hoje visível, embora o edifício original tenha sido integrado num estabelecimento turístico: o restaurante Baía. Era patrão do salva­vidas um destemido pescador sesimbrense: Justino da Silva, o “Arrais Estino”. Homem autoritário, mas igualmente corajoso, que seria distinguido por várias vezes pelos salvamentos de vidas, quer em socorro a náufragos, quer a turistas na praia de banhos. Localizado próximo da praia, o edifício de socorros a náufragos estava equipado com calhas para uma rápida entrada da embarcação salva­vidas na água. Mas, neste caso, o seu uso seria inútil: sem qualquer porto de abrigo, ficaria sujeita ao poder destruidor das vagas. Quando estas não eram muito violentas, ainda se podiam usar as “espias”, cabos estendidos entre a praia e uma certa distância no mar, que serviam de auxílio às embarcações de pesca, para uma rápida entrada ou saída no mar. Contudo, neste caso, de nada valiam. Apesar do navio se encontrar próximo da praia, a distância e a flexão do cabo fariam com que grande parte dele ficasse debaixo de água. Optou­se, por isso, por fixar o cabo em terra, no alto do talude sobranceiro às instalações da empresa Roquete, concessionária das armações de pesca Moeda e Forninho: sensivelmente onde se encontra hoje o restaurante Ribamar. Mesmo assim, os náufragos, ao serem trazidos para terra, ainda tiveram que tocar na água, mas todos foram salvos.

O naufrágio na imprensa lisboeta A primeira notícia publicada em Lisboa sobre o naufrágio, foi enviada no dia 17 pelo correspondente local do Diário de Notícias mas, tendo sido enviada por correio, apenas saiu na edição do dia 19:


Página 14

João Augusto Aldeia

Justino da Silva (1883­1952) foi um pescador sesimbrense, mestre de pesca – popularmente conhecido como “Arrais Estino”, ou ainda “Ti Estino”. O seu pai, Manuel da Silva, era natural da freguesia de Sousa, em Vagos; a mãe, Rita Francisca (ou Rita Pinto Chumbau) era natural de Sesimbra. Acumulou igualmente as funções de Patrão do salva­vidas, primeiro em Sesim­ bra, e depois no Portinho da Arrábida (como Sota­Patrão). Também desenvolveu a acti­ vidade de banheiro, com toldos e outros serviços de apoio a turistas, inicialmente na praia a poente da Fortaleza, e depois na praia nova que se formou no extremo poente da baía, devido à construção do molhe em finais da década de 1940. Com o desaparecimento desta praia, devido às obras de ampliação do porto, a família de Justino da Silva abriu um restaurante no mesmo local, o “Lobo do Mar”, cuja decoração constitui um pequeno memorial em sua homenagem. Justino da Silva foi por diversas vezes homenageado pe­ las autoridades, devido aos salva­ mentos que protagonizou, quer de banhistas, quer de embarcações em perigo. Entre os naufrágios que socor­ reu e que lhe valeram medalhas de louvor, contam­se os dos na­ vios Maria Grécia (1912), Con­ ceição e Guiné (1914), Pérola Preciosa (1915) e a Numância (1916).


O naufrágio da fragata Numância

Página 15

O couraçado espanhol “Numância” em perigo Cezimbra, 17. – Com a violência do temporal que a noite passada se fez sentir do lado sul, deu à costa nesta praia o velho couraçado espanhol “Numancia”, que já há oito dias se encontrava nesta baía fundeado juntamente com os dois rebocadores que o trouxeram, ao abrigo do forte vento sudoeste que fez ultimamente. Seriam umas 18 horas de sábado quando, impelido pela força do vento e muito mar, o “Numancia” garrou, vindo até à praia, pedindo socorro por meio de sinais e foguetes, cujo socorro não pode ser prestado de forma alguma devido à enorme agitação do mar. Assim se conservou toda a noite, sofrendo o forte embate do mar e como é muito alto só a vante se encheu de água, até que hoje pela manhã

A fragata Numancia nos seus dias de glória, em 1867, numa pintura de Rafael Monleón y Torres


Página 16

O naufrágio da fragata Numância

lhe foram passados uns cabos de vai­vem pelos quais à hora a que escrevemos se está procedendo ao salvamento da tripulação. O velho vaso de guerra está de proa à terra e muito próximo da estação de Socorros a Náufragos. Os dois rebocadores, de noite, como o temporal fosse muito, suspenderam ferro e aguentaram todo o rigor do tempo navegando fora da baía, porque de contrário tínhamos hoje que relatar mais sinistros devido aos barcos serem pequenos. Aproveitamos a oportunidade para levarmos até às instâncias competentes o nosso desgosto pela forma como aqui está montado o serviço de socorros a náufragos que nas ocasiões necessárias revela a sua insuficiência e ainda mais o grande abandono a que votaram tão útil como humanitária instituição. * Procurando ontem informes sobre este assunto no consulado de Espanha foi­nos respondido que por enquanto não podiam acrescentar mais informações às que constam dos jornais. O desastre deu­se num ponto que pertence à jurisdição de Setúbal, tendo estado em Lisboa o vice­cônsul, que imediatamente partiu para Cezimbra. Neste mesmo dia 18, o correspondente do jornal O Século enviou um telegrama para a redação, que foi incluído na edição do dia seguinte: Cezimbra, 18. – T. – Os rebocadores levantaram ferro a noite passada, seguindo hoje para Setúbal. Chegou aqui o cônsul de Espanha, sr. Afonso O’Neill, que falou com as autoridades marítima e fiscal, informando­se da causa do encalhe do “Numância”, ficando combinado tomarem­se as devidas providências, quando abonançar o tempo. O cônsul seguiu para Setúbal, a fim de falar com o comandante dos rebocadores, para tratar do destino a dar à equipagem do navio que aqui está a cargo do sr. Fortunato Barroso. Para além do telegrama, neste mesmo dia o correspondente d'O Século enviou uma carta, que seria publicada apenas na edição do dia 20: Cezimbra, 18. – T. – O “Numância” está encalhado na praia. A tripulação, composta de 32 homens, foi salva pelo aparelho porta­cabos. Segundo informação do contramestre Eulápio Gonzales y Moreno, o navio à data da sua vinda para terra, não fazia água. Os rebocadores espanhóis “Alte Jumendi” e “Sturrimendi”, que rebocavam o


O naufrágio da fragata Numância

Página 17

“Numância”, suspenderam, seguindo para o mar, pela uma hora, meia de ontem, e fundeando hoje nesta baía, pelas 10 horas. A tripulação encontra­se ainda nesta vila. Espera­se o agente da companhia. Se o tempo amainar, é possível a salvação do navio. Ao contrário do que se disse, o couraçado “Nu­ mancia”, que deu à costa em Sesimbra, já não pertencia à marinha espanhola. Era actualmente pro­ priedade de um particular, a quem fora vendido, seguindo para Cadiz, conduzido por dois rebocadores, quando o temporal o surpreendeu. Na sequência do naufrágio ainda foram feitas tentativas para colocar o navio de novo a flutuar, que a certa altura pareceram bem encaminhadas, mas um novo temporal arrastou­o para cima de umas rochas, pondo fim a estas tentativas

Construção

Modelo da fragara Numancia existente no Museu Naval de Madrid

O navio que naufragou em Sesimbra, a notável fragata blindada Numancia, era agora uma pálida recordação da silhueta que ostentara nos seus dias de glória. Aquele que fora um poderoso veleiro motorizado a vapor, agora, em vez dos três enormes mastros, tinha apenas dois pequenos mastros, sem quaisquer velas: configuração que lhe fora dada aquando da sua transformação em couraçado guarda­ costeiro. Construída em França, em 1863, por encomenda do governo espanhol, tratava­se de um navio de guerra algo hibrido, de transição entre os navios de madeira e os de


Página 18

João Augusto Aldeia

ferro. De facto, era um compromisso entre duas tecnologias que se experimentavam nessa época, simbolizadas pela fragata francesa La Gloire, de 1959 (casco de madeira protegido com couraças de ferro) e pelo navio inglês Warrior, de 1860 (apenas casco de ferro). O Museu de Pontevedra possui um modelo feito previamente à construção, cujo casco diverge do que foi efectivamente construído, pois, numa versão inicial acordada com os estaleiros em 1860, teria casco de madeira com blindagem de ferro. A Numancia acabou por ter um casco de ferro, mas porque era facilmente penetrável pela artilharia, foi reforçada com oito fiadas de placas de ferro forjado com espessuras entre os 120 mm e os 130 mm, da proa à popa, e desde a coberta até 2,3 m por abaixo da linha de flutuação – o que justificou a classificação de “fragata blindada”. Foi ainda reforçada, interiormente, com 440 mm de madeira de teca. Na coberta, dois redutos circulares blindados por 12 cm de ferro forjado, protegiam as zonas de comando e governo do navio. O carácter hibrido também se manifestava no sistema propulsor: tratava­se de um veleiro, de três mastros, mas equipado com motor a vapor. Este último

Aspecto da Numância quando naufragou em Sesimbra: equipada com dois pequenos mastros, mas sem a artilharia que ainda aqui tinha.


O naufrágio da fragata Numância

Página 19

proporcionava­lhe uma velocidade de 13 nós, enquanto que o velame, só por si, não garantia mais que 4 nós. Sendo um modelo de transição entre os navios de madeira e de ferro, ficou obsoleta muito rapidamente. Construída nos estaleiros da Société Nouvelle des Forges et Chantiers de la Mediterranée, na cidade francesa de Toulon, entre 1862 e 1863, com projecto do engenheiro Noel Verlaque, director daqueles estaleiros, foi lançada à água em 19 de Dezembro deste último ano. Com 96 metros de comprimento e calado de 7,9 metros, deslocava 7.200 toneladas, e estava equipada com um motor de 3.000 cava­ los. O Museu Naval de Madrid tem em exposição um modelo da fragata, de 1863, que dá uma ideia da imponência (imagem na página 17).

História Já fora o mais importante navio da armada espanhola, mas agora era apenas um destroço, rebocado por navegadores, rumo a um triste destino: ser desman­ telada nos estaleiros de Bilbao. Em 1865, depois de armada e equi­ pada, dirigiu­se ao Pacífico, comandada por Casto Méndez Núñez, incorporando­ se na esquadra espanhola do Pacífico, fundeada em El Callao. Participou em alguns episódios bélicos, nomeadamente nos bombardeios de Valparaíso e de El Callao (2 de Maio de 1866). Neste último, Méndez Núñez acabaria mesmo por ser Troço da couraça da Numancia ferido por um projéctil. perfurada por um projectil No entanto, o bombardeio de Valpara­ (Museu Naval de Madrid) iso gerou alguma polémica diplomática, pois tratou­se de uma acção punitiva, presenciada e criticada por navios de várias nacionalidades, fundeados naquele porto. A Numancia regressou depois a Espanha pela rota do Cabo da Boa Esperança, sendo por isso o primeiro navio couraçado a realizar a circunavegação do planeta. Chegaria a Espanha em 20 de Setembro de 1867. Sujeita a reparações em Cartagena, no ano de 1868, fizeram­lhe a substituição de


Página 20

João Augusto Aldeia

algumas das couraças de ferro, tendo sido enviadas para o Museu as que ostentavam a penetração de obuses (imagem na página anterior). Teve algum protagonismo na rebelião cantonal de Cartagena (1873­1874), uma intentona ocorrida durante o primeiro período republicano de Espanha, tendo sido utilizada por alguns dos revoltosos para se evadirem do cerco de Cartagena, já no final do conflito. Em 1874 mudou o equipamento de artilharia, com redução do poder de fogo. Em 1876 foi integrada na Esquadra de Instrução. Juntamente com a fragata Victoria, foi o primeiro barco electrificado da Armada espanhola (1877). Realizou várias viagens com os reis de Espanha a bordo e integrou a esquadra concentrada em Mahón na previsão de uma ruptura com a Alemanha, devido à crise das Carolinas (1885). Acompanhou a Exposição Universal de Barcelona e fez um cruzeiro pelo Mediterráneo (1888). Em 1896 regressou a Toulon para ser modernizada, mas ao ser declarada a guerra entre a Espanha e os EUA (Abril de 1898) não estava pronta e teve de ser rebocada para Barcelona para evitar o internamento. Regressou a Toulon depois de finalizada a contenda, sendo então transformada em navio guarda­costeiro blindado. Outra transformação sofrida foi a substituição da imponente estrutura vélica por dois pequenos mastros encimados com "ninhos de pega" – a configuração que é visível nas fotografias de Sesimbra.

Restos do costado: uma das suas últimas imagens sobre as águas.


O naufrágio da fragata Numância

Página 21

Em Outubro de 1910 foi enviada para Lisboa, por causa da revolução republicana. Poucas semanas depois sofreu uma tentativa de revolta a bordo, que foi sufocada. Gradualmente despromovida, a outrora imponente embarcação, ainda serviu co­ mo estação flutuante (em Tânger) e como asilo de órfãos da Armada espanhola – neste caso, um destino semelhante ao da nossa fragata D. Fernando II e Glória, que abrigou rapazes desprotegidos, durante alguns anos, até ao incêndio que sofreu em 1963 – os meninos da fanfarra, que tantas vezes participaram na procissão do Senhor das Chagas, em Sesimbra. Em 18 de Dezembro de 1912 foi abatida ao serviço. Apesar do clamor popular no sentido de que fosse conservada como relíquia histórica, foi deliberada a sua venda em 28 de julho de 1915.

A traineira Marbelo, presa nos destroços da Numancia (Arquivo Municipal)


Página 22

João Augusto Aldeia

Memórias que ficaram A Numancia ainda ficou muitos anos abandonada na praia onde naufragou, pas­ sando a fazer parte da memória visual e afectiva dos Sesimbrenses – e esta última ainda hoje se mantém. Diz­se que se chegaram a realizar bailes a bordo do velho navio, acompanhados à viola por um dos espanhóis. Várias famílias firmas que nas suas casas, em portas e móveis, foi utilizada madeira retirada da fragata – a qual, em Sesimbra, ficou co­ nhecida como "o cruzador Numancia", ou simplesmente "o Numancia", por causa das Tabuleiro de jogos, feito com madeira do convés da funções que desempenhara no fragata Numancia. Mandado executar pelo far­ final da sua vida útil. macêutico Augusto Marques, pertence actualmente Quem melhor colocou por ao seu neto, José Vidal Marques. escrito a presença do velho navio no imaginário sesimbrense foi António Cagica Rapaz que numa crónica de 2005 escreveu que, para os rapazes de Sesimbra: O Numância era o nosso Adamastor, a nossa Atlântida, palco de aparições quiméricas do enigmático cavaleiro Emílio da Rocha Negra, senhor de Vintemilhas, mais conhecido pelo Corsário Negro que, ao leme do seu “Relâmpago”, rasgava a noite a coberto da espessa bruma do mar dos Ursos, rumo à ilha das Tartarugas… Depois, estendendo a metáfora até à sua idade adulta, acrescentaria: O Numância foi desmantelado pelo mar e pela dinamite, lenda diluída, sonho desfeito, presépio desmontado. A praia do tio Abel mudou­ se para o Espadarte, rumo à Califórnia. E nós abalámos para a vida que a muitos arrastou para o largo. Às tantas voltamos ao porto, um tanto à deriva. Atracamos como podemos, a carta de navegação está desactualizada, a bússola tresloucada, fiamo­nos no instinto e na memória enferrujada, e mal reconhecemos as tabernas do cais. Só o mar não mudou…


O naufrágio da fragata Numância

Página 23

Além dos vestígios ainda ocultos sob as areias de Sesimbra, e que afloram nos períodos em que as correntes marítimas afastam areia suficiente, a memória da Nu­ mância é preservada no Museu Naval de Madrid, onde se pode ver o magífico mo­ delo e a blidagem perfurada da sua couraça, a que já fizemos referência, e no Museu de Pontevedra. que mantém em exposição diversos objectos da fragata, nomeada­ mente o seu livro de bordo, e uma réplica da cabina dos oficiais. Pontevedra está relacionada com a Numância através de Castro Mendez Nunez, que a comandou no período mais glorioso da sua existência, e que, natural de Vigo, viveu e faleceu em Pontevedra. Mas existe em Sesimbra uma memória viva do grande naufrágio de 1916: a fa­ mília Vêga, descendente de um dos náufragos. De facto, alguns dos tripulantes ficaram aqui para os trabalhos de salvamento e dois deles acabaram por casar em Sesimbra, e, curiosamente, com duas irmãs. Um desses tripulantes, de nome Aquilino, e a mulher, mudaram depois a sua re­ sidência para Algés. O outro, Manuel Vêga Blanco, casou com Emília Leite, irmã da anterior, e o casal teve três filhos: Manuel, Carminha e Ondina. Manuel, já faleceu. Ondina, quando era ainda pequena, acompanhou o pai, que regressou a Vigo, de onde qualquer deles já não voltou. Carminha ainda escreveu para os familiares de Sesimbra, uma única vez, e daqui responderam enviando uma foto da família, tirada de propósito – mas de Vigo nunca mais os contactaram. Um desencontro familiar que talvez ainda se possa remediar...

Maria Alice Vêga, neta de Manuel Vêga Blanco, um dos dois tripulantes da Numância que casaram em Sesimbra.


Página 24

João Augusto Aldeia

A Numância como fragata blindada.


O naufrágio da fragata Numância

Página 25

A Numância como guarda costeiro blindado. Desenho de Andrés López


Pรกgina 26

Joรฃo Augusto Aldeia

Restos da Numancia submersos na praia de Sesimbra Fotografia de Miguel Lourenรงo


O naufrágio da fragata Numância

Página 27

Vestígios da Numancia junto ao pontão do Hotel do Mar Fotografia de Kaptum_Different_Perspectives ­ Aerial Video & Photography



O naufrágio da fragata Numância

Página 29

Os foragidos de Vila Cisneros

Na noite do dia 14 de Janeiro de 1933, pelas 18 horas, um grupo de 29 espanhóis “foragidos” – como a imprensa sesimbrense lhes chamou – desembarcou no lado poente da baía, na pequena enseada Angra, junto do Forte do Cavalo. A embarcação que os transportou fora avistada da vila, navegando ao largo, durante algumas horas, mas depois de ter desembarcado os espanhóis, com o auxílio de uma lancha, rumou para destino desconhecido. Os “foragidos” causaram espanto na pequena vila piscatória, dado o lamentável estado que apresentavam: com longas barbas, vestidos com farrapos, mais pareciam náufragos: tal era o resultado dos 14 dias que tinham passado a bordo da embarca­ ção, uma chalupa lagosteira francesa: “Os foragidos apresentavam um aspecto triste, já pelo seu crescido cabelo e barbas, como pelos seus exóticos trajes”, escreveu o jornal O Sesimbrense. Tratava­se, afinal, de um grupo de militares que se tinha evadido de Vila Cisneros, na costa do Saara Ocidental, que nessa altura era uma possessão espanhola – actualmente está integrada no reino de Marrocos, com o nome de Dakhla. Eram na sua maioria oficiais, com excepção de cinco civis, e todos tinham participado, em Agosto do ano anterior, numa fracassada revolta contra o regime republicano, conhecida como a “Sanjurjada”, por ter sido dirigida, a partir de Sevilha, pelo general José Sanjurjo – revolta de inspiração fascista. O general Francisco Franco esteve inicialmente comprometido com este movimento, mas ter­ se­ia depois afastado. Estes revoltosos tinham sido para ali enviados enquanto aguardavam julgamento. O general Sanjuro viria a ser julgado em tribunal e condenado à morte, pena depois comutada em prisão perpétua. Um indulto do presidente da República, Niceto Alcalá­Zamora, restituiu­lhe depois a liberdade, tendo­se então exilado em Portugal, no Estoril. Foram as notícias de que estaria para breve a chegada de um vapor que os transportaria de novo a Espanha para serem submetidos a julgamento,


Página 30

João Augusto Aldeia

que os motivou a tentar a fuga. Vila Cisneros funcionava como colónia penal já desde finais do século 19. Em 1932 tinham ali estados presos numerosos anarquistas, implicados na insurreição de Alto de Llobregat, entre os quais se incluía o famoso Buenaventura Durruti. E posteriormente, seriam para ali deportados outros republicanos, participantes da sublevação de Tenerife, em 1936. Todos estes grupos organizaram a sua própria fuga daquela colónia

A aventura marítima Um relato da fuga, que teve início no dia 1 de Janeiro de 1933, veio publicado nos jornais portugueses. Embora os participantes se tenham recusado a identificar a identidade do barco em que a realizaram, soube­se depois que foi o lagosteiro francês Aviateur le Brix, que os transportou por interesse meramente financeiro. Na versão publicada pelo jornal Diário de Lisboa, teriam inicialmente tomado o rumo oeste, para se afastarem da costa e, assim, diminuírem a possibilidade de serem alcançados por outra embarcação. Rumaram depois a norte, até que se aperceberam de que já se encontravam no meridiano da Galiza, território onde não lhes convinha aportar. Rumaram então ao sul, com o objectivo de demandar Lisboa. Quando se aproximaram de terra, avistaram Sesimbra, onde finalmente desembarcaram, tendo a embarcação seguido o seu próprio rumo. No entanto, um outro relato, divulgado no livro que um dos foragidos – Garcia de Vinuesa – viria a escrever, apresenta bastantes diferenças. Entre os objectivos dos foragidos estavam os arquipélagos de Cabo Verde, Madeira ou Açores, não só pela simpatia que adivinhavam do governo português, como pelo facto de existirem ali linhas de vapores comerciais com destino a Lisboa. Finalmente foi o vento que os levou a mudar de planos, forçando­os a uma travessia demorada – 14 dias – que acabou por provocar escassez de alimentos. Quando, A fuga teve início na no dia 14 de Janeiro, aportaram a Sesimbra, costa saariana.


O naufrágio da fragata Numância

Página 31

O grupo de 29 presos que protagonizou a fuga que acabaria em Sesimbra, era apenas uma parte dos deportados da Sanjurjada, e era constituído pelas seguintes pessoas: ­ Afonso de Bourbon, capitão aviador, marquês de Esquilache ­ Coronel Gamil de Benito ­ Coronel Ricardo Serrador Santés ­ Coronel Pabo Martin Afonso ­ Marquês de Sanceda, comandante de engenharia ­ Capitolino Emile, comandante de engenheiros ­ Comandante Malcampo, marquês de S. Rafael ­ Capitão Manuel Fernandes Silvestre ­ Capitão Luiz Cavanas ­ Capitão Gonsalo Ruker, marquês de Bocollo ­ Capitão Joaquin Barroeta ­ Capitão Miguel Morlan ­ Dr. Gomez Roiz e o seu filho ­ Francisco Roiz de Ansaldo ­ Tenente Honório Moreus ­ Tenente Alfonso Pineda ­ Tenente Pedro Sarraiz ­ Conde del Serrallo ­ Capitão Ernesto Fernandez Maquieira ­ Tenente Francisco Manella ­ Arquitecto Aristides Fernandes Vallespin ­ Julio Torres Azara (estudante de filosofia) ­ comandante Manuel Gonçalez de Jonte ­ Capitão Fernando Garcia de Vinuesa ­ Capitão José Lopez Garcia ­ Capitão do estado­maior Juan Roca de Togores ­ Tenente Daniel Alós ­ Carlos Gonzales Ricardo Serrador Santés viria a ter um papel preponderante na conspiração militar que que conduziu ao Golpe de Estado de Julho de 1936 e ao início da Guerra Civil espanhola de 1936­1939.


Página 32

João Augusto Aldeia

foi por casualidade, já que tinham perdido a noção da sua localização. Em Sesimbra ainda hesitaram no ponto a desembarcar, tendo primeiro considerado a praia do Ribeiro do Cavalo, como veremos adiante, mas desistiram devido às formidáveis falésias – no entanto, havia um caminho de saída acessível, só que não era visível do mar.

Regresso a Sesimbra De Sesimbra seguiram depois para Lisboa, onde ficaram alojados no luxuoso hotel Avenida Palace. O regime salazarista, nascido duma revolução contra uma República democrática, era declaradamente inimigo de tudo o que cheirasse a comunismo ou republicanismo democrático, como era o caso da República espa­ nhola, pelo que não seria de esperar outra coisa senão o apoio a estes militares. Co­ meça­ram a receber visita de familiares e com eles, menos de uma semana depois – no dia 20 de Janeiro – organizaram uma visita a Sesimbra: visita sentimental, para rever as últimas horas da sua aventura marítima. Atravessaram o Tejo com partida do Cais do Sodré e chegaram a Sesimbra pelas 10 e 30, tendo então cumprimentado o Administrador do Concelho, a quem agradeceram o apoio recebido. Visitaram de seguida a Fortaleza de Santiago, onde se deixaram fotografar pela Alguns dos refugiados, já em Lisboa, no luxuoso hotel imprensa que os Avenida Palace. acompanhou. Na esplanada da Fortaleza explicaram aos familiares o seus derradeiros movimentos, antes do desembarque. De seguida, em dois “gasolinas” (barcos motorizados a gasolina) foram até à praia do Ribeiro do Cavalo, local onde primeiro tentaram desembarcar, “tendo reconhecido a impossibilidade de o fazer, em virtude da costa ser a pique”. Na


O naufrágio da fragata Numância

Página 33

realidade, havia um caminho de saída para, bastante acessível, mas que não vislumbraram a partir do mar. Dirigiram­se então à Angra (veja­se a localização da imagem da página 7), a poente da baía de Sesimbra, zona sofrivelmente abrigada por um pequeno molhe er­ guido em 1923, mas que nunca chegou a ser completado, devido a problemas de construção, e que a pouco­e­pouco o mar foi destruindo. De novo os visitantes desembarcaram na Angra, e com as suas famílias, ajoelharam e rezaram, tal como tinham feito no dia do desembarque. Regressaram então à vila e, em frente aos restos da Numancia – que nessa altura

Visita a Sesimbra com familiares: em cima, na Fortaleza de Santiago; em baixo, frente à praia do Ribeiro do Cavalo. Fotos publicadas pelo Diário Popular.


Página 34

João Augusto Aldeia

ainda se encontrava com a sua imponente silhueta intacta – descobriram­se e um deles gritou um “viva” à Espanha, que os restantes secundaram, bastante comovi­ dos. Mas não seria esta a última vez que visitaram Sesimbra: passados poucos meses, no dia 26 de Maio, vieram prestar uma homenagem mais formal à comunidade Sesimbrense, numa cerimónia que decorreu no Salão da Vila Amália. Usou da palavra Ricardo Serrador Santés, afirmando que “Jamais será esquecida a maneira carinhosa como o nobre povo desta terra recebeu os emigrados políticos espanhóis, desembarcados na noite de 14 de Janeiro.” Na ocasião, o médico sesimbrense Manuel Marques da Mata, recitou o soneto “O povo de Sesimbra, hospitaleiro”. Foi também feita entrega de uma placa de homenagem, com as assinaturas de todos os 29 refugiados (imagem na página seguinte). Um outro dos oficiais espanhóis, Aristides Fernandes Vallespleza, enviaria mais tarde ao jornal O Sesimbrense uma poesia, que este jornal publicou juntamente com a notícia da cerimónia de Junho

A Angra, com o seu molhe meio desmantelado, tal como os refugiados devem ter encontrado (Arquivo Municipal).


O naufrágio da fragata Numância

Pueblecito de nascimiento, bello Pueblo de mis amores, Quando amanece, através del viento a ti van mis recuerdos y mis Dolores. A ti va la sonata, dulce y temprana del que através de mares te presentió y que en la mansedumbre de una mañana, ante ti pueblecito, se commonió. Ya la tarde a caído com sus tristesas y en las sombras que envuelven su ultimo adiós, ¡ Pueblecito ! te esfumas entra asperezas, com joya olvidada…! Premio de Dios! Marzo de 1933, Aristides Fernandes Vallespleza

Página 35



O naufrágio da fragata Numância

Página 37

O naufrágio do cargueiro Urola Às quatro da madrugada do dia 25 de Março de 1955, a sul do Cabo Espichel e no meio de um espesso nevoeiro, o cargueiro russo Vtoraya Pyatiletka, de 5.757 to­ neladas, abalroou o cargueiro espanhol Urola, de 3.675 toneladas, provocando o seu afundamento. Segundo o relatório da Armada Espanhola, enquanto o navio espanhol navegava a velocidade moderada, o russo movia­se à velocidade máxima, sem respeitar as regras de navegação em caso de visibilidade reduzida. O abalroamento provocou a imediata entrada de água no costado de estibordo da embarcação espanhola. Nas primeiras horas após o abal­ roamento, o cargueiro russo manteve­se nas proximidades, mas sem res­ponder às chamadas de socorro dos espanhóis, nem oferecendo qualquer ajuda. A tripulação do Urola, de 32 pessoas, manteve­se, a bordo até às 10 horas da manhã, após o que, dando por perdidas as esperanças de manter o navio a flutuar, o capitão Antonio Arrizabalaga ordenou que se arriassem os botes salva­ didas, salvando­se a tripulação em duas embarcações. Uma desta baleeiras salva­vidas, com Localização do naufrágio, a sul do 15 náufragos, foi rebocada pela barca Espichel.


Página 38

João Augusto Aldeia

Alzira I, do arrais José Eduardo Narciso da Silva, de Sesimbra, e a outra, com os restantes 17 marinheiros, pela barca Matilde, do arrais Abel Olival. Vieram todos para Sesimbra, onde chegaram às 4 horas da tarde, sendo aqui recebidos pelo capitão do porto e assistidos pelo vice­cônsul de Espanha em Setúbal, que se dirigiu a esta vila piscatória, acom­panhado pelo capitão do porto da mesma cidade. Compareceu também o agente da empresa pro­ prietária do barco em Lis­ boa. Os tripulantes conse­ guiram salvar todos os se­ us objectos de uso pessoal, e inclusivamente o diário de bordo. Depois do jantar seguiram para Lisboa, numa camioneta da carrei­ ra. O Vtoraya Pyatiletka rumou também para Lis­ boa, para reparações. Du­ O Urola no porto de Santander rante esta viagem, os (Arquivo de Manuel Rodriguez Aguilar) russos emitiram vários avi­ sos à navegação para que outras embarcações se mantivessem afastadas, o que convenceu os espanhóis de que entre a sua carga se encontrariam explosivos.

Historial do Urola O Urola tinha sido construído em 1898, em Glasgow, por encomenda duma empresa norueguesa, arvorando então o nome de Storfond. Com um comprimento total de 103,33 metros, estava equipado com um motor Rankin & Blackmore de 1.505 HP. Após a primeira guerra mundial, foi adquirido, em 1919, pela empresa espanhola Naviera Ricardo Ortiz de Artiñano, de Bilbao, que lhe mudou o nome para Mercedes Em 1922 passou para a propriedade da Compañia Naviera Bidasoa, e adquiriu


O naufrágio da fragata Numância

Página 39

A identidade dos náufragos, revelada por uma notícia do jornal lisboeta Diário de Notícias, num despacho do seu minucioso correspondente em Sesimbra, António Reis Marques, era a seguinte: Capitão: Antonio Ardenza Arrizabalaga mediato: Francisco Sabalha 2.º Oficial: Felix Goiri Masso 3.º Oficial: Joaquin Arengueri Olivi Telegrafista, Maximo Perez Gil Contramestre: Manuel Rodriguez Castiñera Marinheiros: Francisco Rodrigues Cervantes Manuel Ordavila Benito Barreiro Tanaga Eladino Seniadas Conde Julian Colachea Bilbao Manuel Conde Manero Frutuoso Diaz Fernandez Manuel Alcina Cascais 1.º Maquinista: Gregorio Gustinza Madariaga 2.º Maquinista: Alexandre Urresti 3.º Maquinista, Angel Gonzalez Alvarez Ajudantes: Aurelio Gomez Moralles Zeferino Ordeales Alvarez Caldeireiros: Pedro Salamanca Calle Ramon Garcia Lajo Jose Garcia Trapiello Outros tripulantes: Francisco Perez Rodriguez Enrique Fernandez Garcia Manuel Piñero Caamanho David Cao Goas Dionisio Mencheca Garaizar Jose Rebolar Alvarez Joaquim Gallardo Gallardo Manuel Aparca Zalgonide Jenaro Lopez Alonso Ricardo Urdinaga Aldecoa


Página 40

João Augusto Aldeia

então a designação de Urola, nome de um rio basco. Durante muitos anos transportou carvão das Astúrias, desde o porto de Musel para diversos outros portos espanhóis. Durante a guerra civil de Espanha, rumou com frequência aos portos soviéticos do Mar Negro, nomeadamente para Odessa, Sebastopol e Novorossiysk, para carregar material bélico, entre outras mercadorias. No final de 1938, em consequência de um bombardeamento da aviação Franquista, foi ao fundo no porto de Valência. A sua recuperação foi feita já pelas novas autoridades, em 1941, e realizada com relativa facilidade, pois só tinha sido danificado em cerca de 3 metros do costado, necessitando essencialmente de uma antepara provisória, além de uma outra na coberta de um dos porões. Posto a flutuar

O Urola num cais flutuante, em Valência, em 1941. Imagem do livro “Memoria de la Comisión de la Armada para Salvamento de Buques”, reproduzida por Manuel Rodriguez Aguilar.


O naufrágio da fragata Numância

Página 41

no dia 23 de Junho de 1939, foi entregue aos proprietários para a subsequente reparação. Em 1942 foi vendido à Compañia Naviera Española, que não lhe alterou o nome. Durante a Segunda Guerra Mundial transportou, ao longo das costas espanholas, carvão e potassa. Rumou também, por algumas vezes, ao porto de Lisboa, com mercadorias para a Cruz Vermelha Internacional. Depois da Grande Guerra, transportou cereais para países da América do Sul. No final da década de 1940 converteu­se exclusivamente em cargueiro de carvão, navegando entre os portos das Astúrias e a costa espanhola do Mediterrâneo. Aquela que seria a sua última viagem realizava­se, precisamente, entre El Musel (La Coruña) e Barcelona.



O naufrágio da fragata Numância

Página 43

Um bergantim espanhol em Sesimbra

O documento que transcrevemos a seguir, foi redigido pelo Juiz de Fora de Sesimbra, Sebastião António de Sande Vasconcelos e Carvalho, e enviado ao Intendente Geral da Polícia da Corte e do Reino, participando irregularidades do comportamento do comandante militar da Fortaleza de Santiago, ou Governador da Praça de Sesimbra, o coronel Duarte de Melo da Silva Castro de Almeida. A participação reporta­se ao modo como aquele militar recebia os navios que demandavam Sesimbra, infringindo as regras da controlo sanitário, que impunham que a primeira autoridade a ir a bordo fosse o Guarda Mor da Saúde. Importa referir que esta ocorrência teve lugar durante a guerra civil (1828­1834) entre partidários da monarquia absolutista (Miguelistas) e da monarquia liberal ou constitucional (Pedristas). Nesta época, Agosto de 1832, o território continental português era governado pelo rei D. Miguel, pelo que qualquer das autoridades envolvidas – o Juiz de Fora, o Governador da Praça Militar e o Guarda Mor da Saúde – tinha sido nomeada por este monarca. Foi também um período em que a Península Ibérica – e toda a Europa – foi assolada pela epidemia da cólera, o que justificava as excepcionais medidas de controlo sanitário nas zonas portuárias. Sesimbra, de resto, acabaria por sofrer um ataque violento desta epidemia logo no ano seguinte, durante o qual morreram umas 400 pessoas do concelho, quando a média usual de óbitos anuais rondava as 90 pessoas. Os conflitos entre a máxima autoridade civil em Sesimbra – o Juiz de Fora – e a máxima autoridade militar – o Governador da Praça Militar – caracterizaram todo este período da guerra civil, com o Juiz de Fora a queixar­se frequentemente de que o Governador, cuja autoridade se limitava ao perímetro da Fortaleza de Santiago, extravasava as suas competências, organizando rondas e realizando prisões, muitas vezes arbitrárias, na própria vila de Sesimbra. Reproduzimos a seguir a carta.


Página 44

João Augusto Aldeia

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor É forçoso que eu continue a importunar V. Exª. Tendo aparecido em a manhã do dia 25 do corrente [Agosto de 1832] na altura do porto desta vila um Bergantim de Nação Espanhola, e demandado com bandeira arvorada este porto, tendo­a posto à colha , que denota ter necessidade de algum objecto, o Governador lhe faltou a todos os direitos de hospitalidade, e caridade, mesmo àqueles que não consta terem­se ainda negado em parte alguma, mesmo no tempo das maiores epidemias; pois pondo­se o Bergantim à capa, e deitando­se a Lancha fora, e dirigindo­se esta à Fortaleza, para representar a necessidade que experimentava, ou sofria, a forçou a retirar­se sem ouvi­ la, nem prestar­lhe socorros alguns; o que o obrigou a demandar o Porto da Baleeira, onde amarou (?), oficiando logo o seu Mestre, ou Capitão, ao Comandante do Destacamento de Caçadores do Alentejo, que se acha naquele porto, o qual ignorando talvez as medidas sanitárias, recebeu ele sem escrúpulo o dito Ofício, remetendo­o daí para o seu Major acantonado em S. Payo, termo desta Vila; e daí passou, segundo o que me consta, a Azeitão, à mão do Brigadeiro Galvão, e deste ao Governador da Praça desta Vila; o que tudo me parece contrário às Ordens, e Medidas Sanitárias, que El Rei Nosso Senhor Ordenou, que escrupulosamente se observem. Advirto que quando no dia 25 o Bergantim demandou esta Enseada, o Governador o obrigou a retirar­se, foi com dois tiros de peça de artilharia. O Bergantim, segundo me consta, foi mandado vir hoje, por ordem do Governador, para esta enseada, e finalmente aqui está, é proveniente de Cadiz, segundo o que me consta, vai­se a dar os auxílios de que carece, que era de água, e mantimentos, de que estavam na última necessidade, e isto feito debaixo de todas as cautelas, segundo penso, a sair logo deste porto. Este, Exm.º Sr., não é o primeiro caso desta natureza, e outras há mais agravantes. Em a noite do dia 21 do corrente deu fundo nesta Enseada um Caíque Português, vindo do Algarve com pescarias salgadas, e logo nessa mesma noite, sem ter sido visitado pela Saúde, foi por ordem do Governador o Ajudante da Praça com soldados a ele; e trouxeram para terra os papéis necessários para tomar conhecimento da Embarcação e tripulação e segundo dizem até trouxeram o mesmo Mestre do Caíque, com quem tiveram toda a comunicação: o Caíque ao outro dia é que foi


O naufrágio da fragata Numância

Página 45

visitado pela Corporação da Saúde: ainda aqui existe, tendo já descarregado; cujo procedimento me parecendo que não é só contra as medidas e ordens sanitárias, mas contra o Sítio em que superiormente se acham declarados todos os portos Marítimos. Igual acolhimento não achou o Caíque Português Jesus e Maria, recebeu um bem contrário e oposto auto (?), como V. Exª conhecerá do Informe do Corregedor da Comarca que V. Ex.ª lhe ordenou a este respeito. Eu não sei como hei­de nesta Vila regular o Serviço sem me comprometer nem com o Governador, nem com o Real Serviço, eu talvez que pareça excessivo na minha representação, mas posso assegurar a V. Exª que o não tenho sido, antes muito comedido; e a ter representado quanto devo, seria o tempo pouco para contar os seus desatinos, que são tais a ponto de ter posto a Augusta Efígie de El Rei Nosso Senhor pública na Bateria da Praça, no lugar mais indecente, que na mesma havia, por cima quase de uma pia onde a guarnição ia verter águas, e aí a conservou por quase 50 dias, sem ter a lembrança ao menos de proibir à guarnição o fazerem uso daquela Pia; o que fez o 2.º Tenente de Artilharia, Rafael da Silva Campos, que até entulhou com algumas pedras aquela pia, segundo o que me constou. Este procedimento do Governador, como todos os mais, estou persuadido que foi filho da sua falta de conhecimentos e por isso que cometeu mais uma grande falta do que um atentado contra a Soberana Dignidade, porém não obstante isto, não deixou este acontecimento de ser geralmente notado. No estado em que o reputo, e geralmente é reputado, receio que não pratique aqui algum procedimento que venha a ser pernicioso a toda a Nação Portuguesa, fiel ao seu Adorado Rei, ao Altar, e à Pátria. Deus Guarde a V. Ex.ª muitos anos. Sesimbra, 30 de Agosto de 1832 = [ao] Illm.º e Exm.º Intendente Geral da Polícia da Corte e do Reino = O Juiz de fora Sebastião António de Sande Vasconcelos e Carvalho



O naufrágio da fragata Numância

Página 47

Apresamento da nau São Valentim No ano de 1602 Portugal tinha como monarca… o rei espanhol, Filipe II – uma situação decorrente da crise dinástica de 1580, pois era neto de D. Manuel I de Por­ tugal, filho de Isabel de Portugal, casada com Carlos V de Espanha. Filipe herdou assim os dois tronos ibéricos, sendo o primeiro rei português com este nome. Embora formalmente Portugal e Espanha se mantivessem como estados independentes, e cada um com o seu próprio governo, havia uma efectiva integração política dos dois reinos, com subordinação de Portugal aos interesses políticos de Espanha. Foi por isso que Portugal teve que participar na Invencível Armada, com que Filipe tentou, sem sucesso, a invasão da Inglaterra, em 1588 – a qual fez a sua solene partida de Lisboa, integrando embarcações de ambos os países. Apresar do fracasso da Invencível Armada, as frotas de Espanha e de Inglaterra continuaram em estado de conflito latente. A Inglaterra enviava com frequência os seus barcos de guerra para as costas da península, para se manter informada sobre as movimentações do inimigo, e para efectuar algum possível apresamento, nomeadamente das embarcações que regressavam das Índias Ocidentais (Américas) e Orientais, com cargas riquíssimas. Foi o que aconteceu no início do ano de 1602: apreensiva quando tomou conhe­ cimento dos contactos de Filipe II com os povos irlandeses, a soberana inglesa, Isabel I, enviou uma frota de 9 navios para a costa ocidental da Península, sobretudo para as proximidades da embocadura do rio Tejo, zona marítima que era então designada pelos ingleses como “The Rock”, uma referência ao maciço da serra de Sintra. Esta esquadra era comandada pelo Almirante Richard Leveson, no navio, Repulse, e tinha William Monson como vice­almirante, a bordo do navio Garland. William Monson viria mais tarde a escrever uma extensa obra sobre a marinha de guerra inglesa, “Naval Tracts”, que é a fonte mais detalhada do que se passou


Página 48

João Augusto Aldeia

com esta esquadra e, nomeadamente, sobre o episódio que teve lugar no início de Junho de 1602, em Sesimbra. Embora se encontrem referências detalhadas noutras obras, estas limitam­se a repetir a descrição de Monson, que, com frequência, distorce os factos de modo a realçar os seus próprios feitos – pelo que deve ser lida com sentido crítico. A esquadra zarpou em dois grupos: o primeiro, do Almirante, com 5 navios; pouco depois seguir­se­ia William Monson com os restantes. Os ingleses tiveram notícia de que regressava a Espanha uma frota dos “navios da prata” – era deste modo, ou ainda como “frotas da prata” ou “frotas do tesouro”, que os ingleses designavam os comboios espanhóis que vinham do Novo Mundo para Espanha, com carga de ouro e prata. Richard Leveson conseguiu aproximar­se desta “frota da prata”, mas não a confrontou abertamente, por se considerar em situação desvantajosa: Monson ainda não se lhe tinha juntado. A frota inglesa continuou a sua missão de vigilância, navegando entre o “Rochedo” e o “Estreito” (de Gibraltar), abordando diversas embarcações, nomea­ damente para obter informações sobre o inimigo. O historiador espanhol, Cabrera de Mora, escreve, em 15 de Junho que, algum tempo antes, esta frota inglesa de sete galeões, tinha desembarcado 600 soldados na costa portuguesa e saqueado a zona de Coimbra. Uma carta do embaixador de Veneza para o Senado desta cidade, confirma este desembarque e revela o nome das povoações saqueadas: Buarcos e Figueira, modestos lugares. No dia 1 de Junho, souberam que na baía de Sesimbra se encontrava uma nau oriunda do Oriente, notícia que os animou, pois deve ter parecido uma presa ao seu alcance, numa baía fracamente defendida. Não era a “frota da prata”, mas poderia ser um prémio de consolação, perante a desanimadora incapacidade para capturar uma presa maior. Além da nau, encontravam­se em Sesimbra onze galés, oito das quais da armada espanhola, e três da armada portuguesa, mas, em ambos os casos, sob o comando de espanhóis: respectivamente, Frederico Spínola e o Marquês de Santa Cruz, Álvaro de Bazán y Benavides. As galés de Spínola dirigiam­se para os Países Baixos espa­ nhóis, carregando munições e pólvora. Quanto à nau, era portuguesa, a São Valentim, e regressava da Índia, tendo como destino Lisboa. Vinha carregada como muita mercadoria, como era usual, e tinha sofrido uma viagem acidentada, razão talvez de ter aportado a Sesimbra, como por vezes acontecia aos navios da carreira da Índia, quando chegavam muito debilitados, a meter água, com a tripulação doente, etc. A nau era comandada por D. Diogo Neto, e grande parte da mercadoria a bordo pertencia a Duarte Gomes de Solis, um rico mercador português, cristão­novo – ou seja, descendente de judeus convertidos – que também vinha bordo. A tripulação vinha reduzida a duas dezenas de sobreviventes, sustentados "com minha despesa e


O naufrágio da fragata Numância

Página 49

a minha indústria", como relatou Solis, o qual testemunhou igualmente o racionamento de água doce e as doenças que foram dizimando a tripulação ao longo da viagem. Monson também se referiu à difícil viagem da São Valentim: É interessante saber que esta nau fizera a invernada em Moçambique, na viagem de retorno das Índias, ao que parece um local doentio e infeccioso, pela mortalidade provocada entre eles, pois de mais de seiscentos, apenas vinte sobreviveram para regressar a casa. Depois de grandes calamidades e mortandade, chegaram a este porto de Sesim­ bra. Para além das galés, Sesimbra estava ainda defendida por um Forte – a meio da praia, no local da actual Fortaleza de Santiago, que é de construção posterior. Havia ainda tropas em terra: Monson escreve, a certa altura, que eram 20 mil soldados, e noutro passo, que estava ali toda a tropa da país. As galés encontravam­se no lado poente da baía, ao abrigo da pequena reentrância com o nome de Angra. A nau fundeara a poente do Forte, mas protegida pelo seu poder de fogo. Um desenho publicado em Inglaterra sugere que estaria também na Angra (reproduzido na página 51), a poente dos morros do Macorrilho e Alcatraz, mas Monson não é claro quanto a esta localização, algo afastada do Forte. A frota inglesa estava perante um dilema: se se aproximasse muito da caravela,

Pintura de Hendrick Cornelisz Vroom, com o conflito bélico de Sesimbra que levou ao apresamento da nau São Valentim, visível em segundo plano. Uma encomenda dos ingleses, fantasiada para exagerar o perigo enfrentado por Monson, que surge aqui cercado pelas galés ibéricas, enquanto os restantes navios ingleses ficam também em segundo plano


Página 50

João Augusto Aldeia

Navios envolvidos no conflito:

ingleses: – – – – –

Warspite, com Richard Leveson, Almirante Garland, com William Monson, Vice­Almirante Nonperil, com o Capitão Humphrey Reynolds Dreadnougt, com o Capitão Edmond Mainwaring Adventure, com o Capitão Sackville Trevor

galés portuguesas e espanholas: – – – – – – – – – – –

São Cristóvão, o navio almirante de Portugal, com o Marquês de Santa Cruz São Luis, com Frederico Spínola, general das galés de Espanha Fortaleza, com o vice­almirante do Marquês de Santa Cruz Trindade, com o vice­almirante de Frederico Spínola, que foi queimada Leva, na qual William Monson estivera prisioneiro em 1591 Ocasião, que foi queimada, e o capitão preso São João Batista Lucera [Lazar, no texto de Monson] Padilla São Filipe São João


O naufrágio da fragata Numância

Página 51

teriam de contar com disparos do Forte, e eventualmente também das galés, que dispunham de bocas de fogo instaladas à proa. Temiam igualmente que alguma mu­ dança de vento os empurrasse para o largo – o que acabou por acontecer precisa­ mente ao navio do Almirante, talvez por erro de manobra. Segundo Monson, os ingleses ponderaram se deviam ou não atacar, no que levaram dois dias, e finalmente decidiram atacar, na manhã do dia 3, pelas 10 horas. Monson descreve deste modo situação, com nítido exagero da capacidade defensiva da povoação: [Sesimbra] constitui um bom abrigo do vento norte. Está construída com pedra de cantaria, e perto do mar ergue­se um forte sólido e espaçoso, bem abastecido com munições. Acima da povoação, sobre o topo de uma colina, existe um paróquia antiga [o castelo], cuja

Desenho publicado em 1902, numa reedição da obra Naval Tracts pela Navy Records Society, com propostas de localização das galés (A) e da nau São Valentim (B).


Página 52

João Augusto Aldeia

localização a torna inexpugnável e capaz de dominar a povoação, a fortaleza e as águas da baía; perto de terra encontrava­se a nau, como um baluarte no lado oeste da fortaleza, defendendo­se a si mesma e à

Gravura, igualmente fantasiada, com o conflito de 1602 em Sesimbra. Em 1º plano duas galés, uma das quais a pique; em segundo plano um navio inglês, e em terceiro plano a nau São Valentim.


O naufrágio da fragata Numância

Página 53

parte oriental da povoação. As onze galés tinham sido colocadas lado a lado, abrigadas num pequeno esporão de rocha , no lado oeste da baía, com suas proas virada para o mar, para dispararem sobre nós, cada uma delas equipada com um canhão nas suas plataformas, além de outras peças de artilharia nas proas; numa localização que as protegia dos nossos disparos, pelo menos até que nos aproximássemos até um ponto em que ficaríamos ao alcance de toda a sua artilharia. Estando as galés colocadas com esta grande vantagem, eles calcularam (como nos confessou mais tarde um dos seus capitães) que poderiam afundar os nossos navios, sem qualquer outra ajuda. Viam­se em terra várias tendas armadas, e muitos soldados, que era nada menos do que todo o país em armas contra nós. Chegada a manhã do dia 3 de Junho, uma quinta­feira, sentindo que se levantava algum vento – essencial à manobra dos navios – decidiram iniciar o ataque, por volta das dez da manhã: O Almirante levantou âncora, disparou um tiro, e içou a sua bandeira no mastro principal. O vice­almirante fez o mesmo no seu mastro da gávea, de acordo com o costume do mar. Cada capitão incentivou seus homens, animando­os de tal modo que, ainda que tivessem esmorecido e desanimado no dia anterior, renascia­lhes agora um novo alento. O almirante foi o primeiro avançar para o ataque, seguido pelos outros navios, com não menos resolução dos seus comandantes, mostrando grande coragem e honra. O último de todos foi o vice­almirante, que tentou aproximar­se da costa quanto pôde, fundeando num ponto onde trocava disparos com a povoação, o forte, as galés e a nau, tudo simultaneamente, pois colocou­se mesmo no meio deles, de modo a poder disparar ao mesmo tempo de ambos os bordos. Podiam­se ver os remadores das galés nadando e os cativos vindo na nossa direcção, tudo numa grande confusão, mantendo­se a batalha até às cinco horas da tarde. Durante o confronto, duas das galés carregadas com pólvora, incendiaram­se e afundaram. Perante esta ocorrência, as restantes galés acabaram por abandonar a baía. Sem as galés, o destino da nau estava traçado: o poder de fogo dos cinco navios ingleses acabaria por incendiá­la ou afundá­la, o que, de resto, ponderaram fazer. A artilharia do forte não seria tão poderosa como Monson pretende mostrar, nem as tropas em terra estariam equipadas com artilharia capaz de fazer frente os ingleses. Decidiram, finalmente, iniciar negociações para rendição da nau.


Página 54

João Augusto Aldeia

Os ingleses enviaram primeiro, como mensageiro, um dos compatriota que esti­ vera cativo numa das galés, e que escapara durante o bombardeamento. Em respos­ ta, o capitão da nau acedeu a enviar "alguns homens de qualidade, com mandato para negociar". As negociações decorreram depois a bordo do Dreadnought. De parte da nau tentaram algumas cedências dos ingleses, nomeadamente que deixassem sair todos os tripulantes e a mercadoria, mas aqueles não cederam: alguns tripulantes poderiam sair, mas um pequeno grupo de notáveis teria de ficar a bordo como reféns, até que a frota inglesa estivessse em condições de partir. Segundo Monson, os responsáveis pela nau acabam por aceitar as imposições dos ingleses. Surpreendente é o que se passou a seguir, ainda segundo o mesmo Monson, que não tem qualquer problema em se retratar na terceira pessoa: Então, Sir William Monson levou o capitão e o resto dos cavalheiros a bordo de seu próprio navio, onde eles jantaram e passaram a noite com música e outros divertimentos, com grande prazer e deleite. Na manhã seguinte, ele próprio os acompanhou àquela terra, para onde o Conde da Vidigueira, cujo antepassado foi o descobridor das Índias Orientais, tinha enviado toda a força do país, correspondente a vinte mil homens.

Epílogo Como referimos no início, o testemunho de Monson é uma fonte de grande valor, por ter participado activamente nesta acção, mas que tem de ser lida com o devido espírito crítico, pois é evidente que embeleza a narrativa de modo a dar maior brilho à sua própria acção. Existem, no entanto, testemunhos alternativos, e também da mesma época, que permitem antever algumas nuances. Isto mesmo é reconhecido numa edição crítica da obra Naval Tracts, feita pela Navy Records Society, em 1902, onde se citam e publicam relatos que completam, e por vezes contrariam, a narrativa de Monson. Refere, nomeadamente, o historiador espanhol Cabrera de Códova, que escreveu que o ataque fora feito por “sete galeões e três lanchas inglesas”, e que as onze galés “resistiram durante três dias”. Monson diz, a certa altura, que nos primeiros dias “Viam­se também barcos a fazer ligação entre terra e a nau, ao longo de todo o dia, supondo nós que estavam a descarregar mercadoria, mas soubemos depois que a estavam a reforçar com homens e munições” e que, por isso, a carga da nau tinha sido capturada intacta. Ora um depoimento, feito posteriormente em Inglaterra, por dois ingleses – Frances Cowper e Henry Parramore – prisioneiros na galé Leva e que foram libertados na­


O naufrágio da fragata Numância

Página 55

quele dia, revelou que “não só tudo o que fosse fácil de transportar, como ouro e jóias, foi retirado ou roubado, mas também muita da carga pesada tinha sido removida” antes dos ingleses tomarem posse da nau. Ainda segundo o depoimento de Cabrera de Cordova, se mais mercadoria não foi retirada, foi devido aos oficiais da alfândega, que opuseram alguma resistência, para salvaguardar a cobrança dos direitos – o poder da burocracia já era forte naquela época. No final, o resultado do saque acabou por não ser tão elevado como os agressores inicialmente supuseram. Em Inglaterra foram preservados os documentos que detalham a carga que chegou àquele país e que, ainda assim, revelam uma grande quantidade de têxteis e de especiarias (canela, gengibre, incenso, cânfora, etc.) e uma razoável quantidade de moedas. Grande parte do saque foi absorvido pela rainha (especiarias, tapetes), ou utili­ zado para pagar os serviços dos oficiais envolvidos – Monson, por exemplo, teve direito a uma partida de pimenta. Não é verdade que da acção inglesa tenha resultado a destruição do forte de Sesimbra, como já se escreveu – nada no relato de Monson aponta nesse sentido, a despeito da sua tendência para ampliar os seus próprios feitos. O esforço de artilharia dos ingleses foi concentrado nas galés ibéricas e, quando estas abandonaram Sesimbra, a contenda ficou decidida. O aprisionamento da nau São Valentim, não passou, afinal, de um acto de pirataria, sem qualquer justificação militar, e ainda que possa ter tido um efeito moral positivo para os ingleses – e negativo para Espanha – pode­se questionar se teria valido o risco a que se expuseram os navios de Isabel I. Também não é correcto classificar o acto como uma batalha naval, e nenhum historiador contemporâneo o classifica como tal. O facto desta armada inglesa, tendo encontrado uma “frota da prata”, ter evitado o combate, envolvendo­se depois em acções menores, nulas em termos militares, como o saque da Figueira e de Buarcos, ou mesmo o aprisionamento da nau São Valentim, não enobrece o papel deste destacamento, nomeadamente em contraste com a brilhante história das arma­ das inglesas em outros períodos. Do lado ibérico, no entanto, as consequências foram inevitáveis, tanto mais que se tratou de uma acção com enorme visibilidade, às portas de Lisboa. Vários dos intervenientes foram presos e objecto de inquéritos. Diogo Lobo, capitão da nau São Valentim, conseguiria evadir­se da prisão e fugir para o estrangeiro, mas foram­lhe retirados todos os cargos que tinha e morreu sem regressar a Portugal. O piloto da nau não teve melhor sorte: um dos prisioneiros que foi seu companheiro de cárcere, relatou aos ingleses que uma busca feita pelas autoridades na casa desse piloto, resultara na apreensão de três bolsas com diamantes e outras pedras preciosas, motivo pelo qual acabou condenado.


Página 56

João Augusto Aldeia

Duarte Gomes de Solis, o mercador que maior fortuna tinha na nau, continuaria a sua actividade mercantil, transformando­se num importante financeiro da época, associado ao trato de mercadorias, tendo sido o grande defensor da constituição de uma companhia estatal para controlo do comércio com as Índias, ideia que se viria a concretizar na da criação da Companhia Portuguesa da Índia Oriental, ainda durante o período de união dos reinos ibéricos ibéricos. Portugal ainda viveria quatro décadas de união ibérica, até que uma parte da no­ breza portuguesa levou a cabo a revolução de 1640, que devolveria a independência a Portugal – mas só depois de um longo período de guerra com Espanha. É no contexto desta Restauração, e da necessidade de reforçar a defesa das fron­ teiras terrestres e marítimas, que vai ser tomada a decisão de construção da Fortale­ za de Santiago, substituindo o velho Forte, que entretatnto se arruinara. No entanto, ainda no século 16, já tinha sido concebido um plano para rodear to­ da a vila de muralhas, com a zona militar instalada no morro do Calvário – e defen­ dida do resto da vila por um fosso! Reproduzimos a seguir a planta desse projecto, datado de entre 1568 e 1570, que se encontra actualmente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e que dá uma ideia muito aproximada de como seria a Sesimbra que recebeu o ataque da esquadra inglesa em 1602.


O naufrágio da fragata Numância

Página 57

Planta de Sesimbra, datada de entre 1568 e 1570, com o projecto de rodear toda a vila de muralhas, o qual nunca chegou a ser realizado.



O naufrágio da fragata Numância

Página 59

Bibliografia Sobre a fragata Numancia Cátedra de Historia y Patrimonio Naval (blog): https://blogcatedranaval.com (desenho reproduzido na página 24) Caleja, Pedro (2005) Numancia, in Planeta Água, ano II, Março de 2005, pp. 46­50 Fernández, Marcelino González (2013) Primera vuelta al mundo de un acorazado: La Numancia, ed. Navalmil Marques, António Reis (2013) O naufrágio do Numância, in Sesimbra Acontece n.º 72, Março de 2013, pp. 26­27 Marques, Francisco Reis (2015) Ecos do Passado, in jornal Mares de Sesimbra n.º 25, 5 de Outubro de 2015, p. 2 Museo de Pontevedra:

http://www.museo.depo.es/

O Sesimbrense (jornal) edições de 12 de Abril de 1936, 1 de Outubro de 1944 e 27 de Maio de 1973 Rapaz, António Cagica (2015) Noventa e Tal Contos, ed. Câmara Municipal de Sesimbra, p. 11­12 Sobre os foragidos de Vila Cisneros Diário de Lisboa (jornal) edições de 15, 18, 20 e 22 de Janeiro de 1933 García, Guadalupe Perez (2002) La colonia penitenciaria de Villa Cisneros. Deportaciones y fugas durante la Segunda República, in revista de Historia y Comunicación Social, vol. 7 (2002) pp. 169­186


Página 60

João Augusto Aldeia

O Sesimbrense (jornal), edições de 22 de Janeiro de 1933, 4 e 18 de Junho de 1933 Vinuesa, Garcia de (1933) De Madrid a Lisboa por Villa Cisneros, Madrid, ed. Estrella Sobre o cargueiro Urola Armada Española, Memoria de la Comisión de la Armada para Salvamento de Buques Aguilar, Manuel Rodriguez (2009) El Abordaje del Urola, in “Baixamar”: http://vidamaritima.com/2009/07/el­abordaje­del­urola/ Diário de Notícias (jornal), edição de 25 de Março de 1955 O Sesimbrense (jornal), edições de 3 de Abril de 1955 Sobre a nau São Valentim Brown, Ruth Rhynas (2005) Seis canhões do século XVI provenientes do Santíssimo Sacramento: uma reestimativa, in Navigator, Rio de Janeiro, vol. 1, n.º 2, p. 22 Campbel, John (1817) Lives of the British Admirals: containing ana ccurate naval history from the earliest periods, ed. C. J. Barrington, Strand & J. Harris, pp. 456­457 Coelho, António Borges (2015) Os Filipes, História de Portugal V, editorial Caminho, p. 141 Cordova, Luiz Cabrera de (1626) Relaciones de las cosas sucedidas, principalmente en la Corte de España, desde el año de 1599 hasta el de 1614 Goldsmith, William (1825) The Naval History of Great Britain from te earliest period, ed. K. Jaques & W. Wright, pp. 68­69 Grant, James (1897) British Battles on Land and Sea, ed. Cassel & Company Ltd, pp. 189­192


O naufrágio da fragata Numância

Página 61

Monson, William (1703) Naval Tracts, ed. A. and J. Churchil, p. 198­203 Moreira, Rafael (1997) Uma planta de Sesimbra de cerca 1568­1570, in Sesimbra Monumental e Artística, pp. 188­194 Patalano, Rosário e Reinert, Sophus A. (2016) António Serra and the Economics of Good Government, ed. Palgrave Macmillan, Nova Iorque Serrão, Eduardo da Cunha Serrão, Vítor (1997) Sesimbra Monumental e Artística, ed. Câmara Municipal de Sesimbra Solis, Duarte Gomes (1622) Discursos sobre los Comercios de las Indias Southey, Robert (1810) Lives of the British Admirals, ed. Longman, Orme, Brown, Green & Longman, vol. V, pp. 87­97 The Council of the Navy Records Society (1902) Naval Tracts (republicação da obra de Monson, comentada e acompanhada da transcrição de documentos coevos das acções nela tratadas) Whymper, Frederick (1877) The Sea: Its Stirring Story of Adventure, Peril, & Heroism, vol. 2, ed. Cassell, Petter & Galpin, pp. 19­22


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.