Nº temático: Actas do I Encontro Internacional do Ensino da Língua Portuguesa Editor - Pedro Balaus Custódio
A Revista EXEDRA, propriedade da Escola Superior de Educação de Coimbra, (ESEC) assume-se, tal como a etimologia do seu nome, como um espaço de encontro e conversa entre homens e mulheres de saber. Pretende servir a sociedade e a cultura portuguesas através da promoção do intercâmbio científico, académico e artístico entre instituições e elementos representantes da comunidade educativa nacional e internacional. A EXEDRA aceita trabalhos académicos originais(1), sendo os artigos publicados, da exclusiva responsabilidade do (s) seu (s) autor (es). Os trabalhos situam-se nas áreas científicas da Educação/Formação, das Artes e Humanidades, da Comunicação e das Ciências Empresarias sob a forma de artigos, revisões de investigação e de críticas de literatura, sínteses, estudos de caso, comentários e ensaios. Os artigos enviados pelos seus autores à EXEDRA serão objecto de apreciação, numa primeira fase, pelo Director e Conselho Científico da Revista e, numa segunda, serão alvo de avaliação por dois “referees” independentes e sob a forma de análise “duplamente cega”. Neste caso, a aceitação de um e a rejeição de outro obrigará a uma terceira consulta. A Revista EXEDRA publica números genéricos e temáticos.
Nº temático: Actas do I Encontro Internacional do Ensino da Língua Portuguesa Editor - Pedro Balaus Custódio
Corpo Editorial da EXEDRA Director Rui Manuel Sousa Mendes Editor do número temático Pedro Balaus Custódio
Conselho Científico Ana Maria Sarmento Coelho - Educação/Formação Maria Cláudia Perdigão Andrade - Comunicação e Ciências Empresariais Pedro Balaus Custódio - Artes e Humanidades Comissão editorial Margarida Paiva Oliveira (CDI) Agostinho Franklin Carvalho Carla Matos Dias (CDI) José Pacheco (CIC/NDSIM) Produção pré-impressão Carla Matos Dias (CDI) José Pacheco (CIC/NDSIM) edição online José Pacheco (CIC/NDSIM) logo Agostinho Franklim Carvalho/Pedro Coutinho projecto gráfico Agostinho Franklim Carvalho/José Pacheco
Ficha Técnica da EXEDRA EXEDRA - Revista Científica Escola Superior de Educação de Coimbra Periodicidade: Semestral Publicação electrónica semestral da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra ISSN 1646-9526 versão impressa Copyright A reprodução de artigos, gráficos ou fotografias da Revista EXEDRA só é permitida com autorização escrita do Director. Contactos e endereço para correspondência e envio de artigos: EXEDRA Revista Científica Escola Superior de Educação de Coimbra Praça Heróis do Ultramar 3000-329 Coimbra Portugal Tel: +351 239793120 Fax: +351 239 401461 E-mail : exedra@esec.pt www.exedrajournal.com
06-10 Rui Mendes / Pedro Balaus Custódio Editorial e apresentação 11-22 Ana Passos, Isabel Bessa, Manuela Aguiar, M.ª Gorete Cruz e M.ª José Freitas AO SABOR DOS LIVROS. Do gosto pela leitura à sua encenação pragmática em contextos diferenciados. 23-48 Anabela de Oliveira Figueiredo O lúdico e o didáctico na obra de Alves Redol 49-68 Celda Maria Gonçalves Morgado Choupina Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula? 69-84 Clara Ferrão Tavares Viajar para aprender: implicações e potencialidades das TIC no desenvolvimento da literacia 85-90 Conceição Manaia “Receita para a Felicidade”: Da compreensão de textos à escrita criativa 91-106 Cristina Mello Promoção da leitura no ensino básico. Questões sobre o ensino dos processos de compreensão na leitura 107-110 Ignacio Vázquez O papel do dicionário no ensino e aprendizagem das línguas 111-118 Inês Sim-Sim Pontes, desníveis e sustos na transição entre a educação pré-escolar e o 1º ciclo da Educação Básica 119-132 Isabel Sofia Calvário Correia “ Isso não Soa Bem”. A Consciência Fonológica do lado de Lá - Reflexão em torno exercícios de Consciência Fonológica no Primeiro Ciclo. 133-144 Isabel Lopes Delgado Ensinar Literatura, Promover Valores – uma proposta de leitura de A Maior Flor do Mundo, de José Saramago 145-154 Isabel Oliveira / Mª Albertina Abrantes A Língua - Portuguesa na Metodologia de Trabalho de Projecto, no 1º CEB 155-160 João de Mancelos O Ensino da Escrita Criativa em Portugal: Preconceitos, Verdades e Desafios
161-174 João Luís Pimentel Vaz
O ensino da compreensão para uma leitura mais eficaz
175-184 Lola Geraldes Xavier A língua portuguesa em evolução: os Acordos Ortográficos 185-196 Montserrat Bigas Consideraciones acerca de la enseñanza de la lengua (escrita) en la educación infantil 197-208 Maria Madalena Belo da Silveira Baptista Alunos Surdos: Aquisição da Língua Gestual e Ensino da Língua Portuguesa 209-224 Maria da Oliveira Martins / Cristina Branco Fernandes de Sá O manual escolar de Língua Portuguesa e o seu papel na promoção da leitura e da literacia 225-230 Helena Oliveira / Paula Costa Motivar para Aprender – O que fazer? 231-234 Paula Silva e Artur Abreu Balanceio - Uma experiência de recriação textual no 1.º ciclo e no ensino pré-escolar 235-244 Pedro Balaus Custódio O novo Programa de Português para o 1º Ciclo do Ensino Básico: Orientações e Perspectivas 245-256 Rosa Maria Lima e Cláudia Sofia Pais Tavares Ferreira Colaço Falantes Conscientes, Leitores Competentes 257-280 Rosa Oliveira
To our children’s children’s children: a literatura para a infância em idade tardia
281-296 Rui Alexandre de Medeiros Prata
Textos que se cruzam – contribuindo para o ensino precoce da literatura
297-316 Susana Margarida Nunes Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria 4
Missão e Objectivos A Revista EXEDRA, propriedade da Escola Superior de Educação de Coimbra, (ESEC) assume-se, tal como a etimologia do seu nome, como um espaço de encontro e conversa entre homens e mulheres de saber. Pretende servir a sociedade e a cultura portuguesas através da promoção do intercâmbio científico, académico e artístico entre instituições e elementos representantes da comunidade educativa nacional e internacional. A EXEDRA aceita trabalhos académicos originais(1), sendo os artigos publicados, da exclusiva responsabilidade do (s) seu (s) autor (es). Os trabalhos situamse nas áreas científicas da Educação/Formação, das Artes e Humanidades, da Comunicação e das Ciências Empresarias sob a forma de artigos, revisões de investigação e de críticas de literatura, sínteses, estudos de caso, comentários e ensaios. Os artigos enviados pelos seus autores à EXEDRA serão objecto de apreciação, numa primeira fase, pelo Director e Conselho Científico da Revista e, numa segunda, serão alvo de avaliação por dois “referees” independentes e sob a forma de análise “duplamente cega”. Neste caso, a aceitação de um e a rejeição de outro obrigará a uma terceira consulta. A Revista EXEDRA publica números genéricos e temáticos. Forma e preparação de manuscritos Os trabalhos podem ser escritos em português, espanhol, francês e inglês no formato Word, em Arial, corpo de letra 12, com duplo espaço, não devendo ultrapassar as 40 páginas A4 (3 cm de margem). As notas, de fim de página, em Arial 10 com um espaço entre linhas, deverão figurar no final do trabalho. As figuras (em formato jpg, png, ou gif) no corpo do texto devem aparecer em numeração árabe pela ordem de apresentação do texto, com título curto na parte inferior e, a negrito, em Arial 10. Os quadros deverão ser incluídos no corpo do texto com título curto na parte superior, a negrito, em Arial 10, espaço simples e no mesmo formato das figuras. Todos os quadros e figuras devem ser colocados em páginas individuais e separadas no final do manuscrito. Os artigos devem ter um título conciso, ser acompanhados de um resumo de 1000 caracteres, incluindo espaços, em Arial 10, espaço duplo, em português e em inglês, acompanhados das respectivas palavras-chave (4 a 6). Os artigos devem ainda ser acompanhados da identificação do (s) autor (es) (nome, morada, mail e filiação institucional). 5
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Na primeira página do artigo (capa) deverão constar o título do artigo, o(s) nome(s) do(s) autor(es) (excluindo graus académicos), a filiação institucional, a morada e o mail. Deve também ser indicada em qual das áreas científicas da revista o manuscrito se insere: Educação/Formação, Artes e Humanidades ou Comunicação e Ciências Empresarias. Referências bibliográficas A lista de referências bibliográficas deverá ser incluída no final do texto, em Arial 10. No caso de mais de três autores devem ser todos indicados (não utilizar a expressão “et al”). A lista deverá ser organizada por ordem alfabética dos apelidos dos autores obedecendo ao formato dos seguintes exemplos: a) Livro: Bandura, A. (1977). Social learning theory. Oxford: Prentice-Hall. b) Referências de artigos on-line: Kuhn, P.S. (1987). Alternative Paradigms. Journal of Teaching, 34 (3), 7-56. Consultado em Janeiro 2005, htpp://www.apa.org/journals/kuhn.html c) Capítulo de livro: Hughes, D. & Galinsky, E. (1988). Balancing work and family lives: Research and corporate applications. In A. E. Gottfried & A. W. Gottfried (Eds), Maternal employment and children’s development (pp. 233-268). New York: Plenum. d) Artigo: Hoyt, K. B. (1988). The changing workforce: a review of projections from 1986 to 2000. The Career Development Quarterly, 37, 31-38. Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão consultar as normas de publicação da American Psychological Association (APA), última versão. Citações As citações deverão ser apresentadas com indicação de autor, data e localização (página). Submissão de artigos para publicação A submissão de artigos para a EXEDRA deverá ser efectuada via e-mail, anexando o ficheiro contendo o manuscrito em processador de texto Microsoft Word (*.doc) com as figuras e quadros numeradas de acordo com o formato solicitado
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Pedro Balaus Custódio • Apresentação
Editorial É com grande satisfação que editamos, neste número especial da Exedra, as Actas do I Encontro Internacional do Ensino da Língua Portuguesa, iniciativa promovida pela Escola Superior de Educação de Coimbra nos dias 30 de Junho e 1 de Julho de 2008. A Exedra apresentará, regularmente e a partir de agora, números temáticos e / ou especiais que resultam não só de reuniões e encontros científicos mas, também, de jornadas de trabalho desenvolvidas no âmbito de cursos, áreas científicas e/ou de linhas de investigação consideradas relevantes. Os encontros científicos são uma fonte de produção de conhecimento, de investigação e de apuramento de boas práticas que têm, neste instrumento editorial, uma oportunidade de se tornarem visíveis. Cabe, pois, à Área Científica de Língua Portuguesa, que organizou o encontro, o grato prazer de inaugurar esta nova via de divulgação, ao editar neste número especial, as Actas do I Encontro Internacional do Ensino da Língua Portuguesa. Esta edição, há já muito tempo prevista, sofreu incontornáveis demoras. Esse diferimento fica agora definitivamente reparado e esperamos que a publicação destes textos seja um estímulo e uma recompensa para os autores, professores, participantes e para todos aqueles para quem o ensino da língua materna constitui um desafio diário nas suas práticas docentes.
Apresentação das Actas O I Encontro Internacional do Ensino da Língua Portuguesa, realizado a 30 de Junho e 1 de Julho de 2008, na Escola Superior de Educação de Coimbra reuniu mais de duzentos educadores, professores e investigadores, nacionais e estrangeiros, e possibilitou uma reflexão sobre as questões e os estudos respeitantes ao ensino do Português nos niveis básico e pré-escolar.
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Uma das razões que moveu este I Encontro decorre de várias análises e estudos que, nos últimos anos, nos têm dado conta dos défices de competências dos alunos no âmbito da língua materna, quer no plano da escrita, quer no da leitura. Outro dos motivos na base deste evento advém dos actuais desafios lançados a todos os profissionais desta área disciplinar. Se a este adicionarmos a constante necessidade de actualização científica, encontraremos causas e razões de indisfarçável peso para reuniões científicas desta natureza. Assim, e na antevéspera de uma nova reforma curricular no Ensino Básico, pareceu-nos crucial debruçarmo-nos sobre os novos desafios e obstáculos que se têm vindo a desenhar nas políticas de ensino da Língua Portuguesa e nas práticas pedagógicas operadas na Escola. Durante os dois dias em que decorreu o I Encontro abordaram-se temas específicos relacionados como o Ensino do Português Língua Materna; o Ensino do Português L2; a Promoção da Leitura; a Promoção e o Desenvolvimento da Escrita; o Ensino precoce da Literatura; a Oralidade em Contexto Lectivo e o Ensino da Gramática. Estes e outros temas proporcionaram sessões variadas e que foram ao encontro das expectativas dos participantes, nos domínios da formação, do refrescamento teórico nas áreas em análise e na partilha de boas práticas. Assim, as sessões plenárias do I Encontro Internacional do Ensino da Língua Portuguesa revelaram-se bastante diversificadas e responderam aos desafios actuais que as novas metodologias do ensino do Português nos colocam. Foram apresentadas as mais recentes investigações no âmbito da linguística adaptada ao ensino da língua, nomeadamente nos domínios do conhecimento explícito, da consciência fonológica e da gramática. Não foram descuradas as perspectivas de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita e houve lugar para sublinhar a importância do ensino da Literatura. Pôde-se ,ainda, reflectir sobre o resultado das avaliações das competências leitoras nos relatórios internacionais. No âmbito das comunicações livres, foi possível conhecer e divulgar diferentes linhas de investigação em todas as temáticas que nortearam este I Encontro. Assim, reflectimos sobre a importância do ensino precoce da literatura sugerindo-se estratégias e opções de trabalho sobre o texto literário, muitas delas que decorrem das práticas docentes, da experiência e do contacto com a literatura para crianças 8
Pedro Balaus Custódio • Apresentação
e jovens. Saliente-se, também, que foram apresentadas comunicações no âmbito de ensino-aprendizagem do Português enquanto língua não materna e que incidiram em estudos de caso e outras abordagens no ensino de Português a estrangeiros. A importância do treino da Consciência Fonológica foi objecto de duas comunicações em que se apresentaram casos práticos, bem como estratégias de uso de elementos da fonologia como meio de prevenção do insucesso na área de língua portuguesa. A leitura e a escrita foram temas amplamente versados, desde perspectivas no âmbito da psicologia até experiências didácticas. Estiveram também, em particular destaque, as questões relacionadas com o Acordo Ortográfico. O uso de materiais didácticos como o dicionário no ensino-aprendizagem da língua foi outros dos temas focados neste I Encontro. Para além das diversas práticas em sala de aula, houve comunicações que se centraram nas estratégias de combate ao insucesso escolar, dando ênfase à formação literácita. Discutiram-se ainda as novas orientações dos curricula do Ensino Básico e suas implicações para docentes e discentes de língua materna. Convém realçar, também, que o enriquecimento dos debates ao longo destes dois dias foi fruto da ampla e empenhada participação de docentes dos vários ciclos de Ensino que partilharam diferentes reflexões pedagógicas e experiências. Acompanhámos também a defesa de projectos de longo alcance relativamente à política de divulgação e ensino da Língua Portuguesa no estrangeiro e, diversamente, como encarar a motivação para a leitura literária, por vezes tão afastada dos interesses imediatos dos alunos. Uma parte significativa das reflexões, apresentada sob a forma de comunicações mais curtas, versou sobre o relato de experiências concretas e da sua leitura pedagógica, sociológica e linguística. Neste contexto, pudemos acompanhar distintos percursos didácticos e pedagógicos no âmbito da língua materna e da literatura e, deste modo, ficámos a conhecer os casos de Espanha e da Catalunha, em particular. Pudémos ainda observar, num contexto comparativo europeu, importantes dados que a sociologia do ensino tem recolhido como é o consabido exemplo do relatório Pisa. Ora, as Actas que com tanto regozijo trazemos agora a público merecem-nos duas observações preliminares: a primeira é sobre a prolongada demora com que são publicadas e, a segunda, por não incluírem todas as comunicações apresentadas, com particular destaque para as que resultaram das sessões plenárias. 9
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Com efeito, lamentamos não integrar nesta colectânea os textos de alguns dos professores convidados. Essas reflexões, pelo seu rigor e novidade contribuiriam, ainda mais, para a qualidade e abrangência temática desta publicação. Infelizmente, e por razões de natureza diversa, alguns deles não tiveram oportunidade de nos fazer chegar atempadamente o seu texto para publicação. Os diversos compassos de espera nesta edição deveram-se, pois, a um conjunto de razões técnicas que se prenderam com a edição electrónica da própria revista Exedra. Desde o primeiro momento, foi nossa intenção editar as actas deste I Encontro conferindo-lhe lugar de destaque, primeiramente em formato digital, nesta publicação da responsabilidade da Escola Superior de Educação de Coimbra. Alguns contratempos logísticos, que resultaram da escolha e dos reacertos da plataforma electrónica de suporte a esta publicação, bem como de sucessivos atrasos na entrega das versões finais de alguns textos, fizeram com que esta edição sofresse, progressivamente, adiamentos incontornáveis. Destes factos, apresentamos aos autores e aos participantes deste I Encontro as nossas mais vivas desculpas. Este atraso tem privado a partilha de conhecimentos, experiências e reflexões a todos os que ansiavam por rever, com maior detalhe, as pistas de trabalho e de reflexão adiantadas ao longo desta reunião. Estando esta tarefa parcialmente cumprida, daremos de seguida, continuação a outra etapa importante que se traduzirá na edição impressa dos referidos textos. A terminar esta sumária apresentação das actas, quero agradecer de novo a participação de todos os professores e investigadores que acederam a partilhar os seus saberes, experiências e reflexões, e endereçar-lhes, desde já, o convite para que nos brindem com a sua presença e colaboração na próxima edição deste Encontro que terá lugar em Outubro de 2010. Escola Superior de Educação, Dezembro de 2009 Pedro Balaus Custódio
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AO SABOR DOS LIVROS. Do gosto pela leitura à sua encenação pragmática em contextos diferenciados.
AO SABOR DOS LIVROS. Do gosto pela leitura à sua encenação pragmática em contextos diferenciados.
Ana Paula Passos, Isabel Bessa, Manuela Aguiar, M.ª Gorete Cruz e M.ª José Freitas Escola Secundária de Caldas das Taipas Palavras-chave:
promoção da leitura; projectos educativos.
Resumo: O objectivo do presente artigo é o de apresentar um projecto, intitulado “Ao Sabor dos Livros”, que tem vindo a ser desenvolvido há vários anos na Escola Secundária de Caldas das Taipas, com vista à promoção da leitura, tomando como ponto de partida a criação de contextos diferenciados para a encenação dramática de discursos pertencentes a múltiplas variedades linguísticas. Assim sendo, apresentar-se-ão as linhas teóricas do projecto e as metodologias utilizadas e exemplificar-se-ão as suas formas de operacionalização pelo recurso a experiências concretas realizadas nestes últimos anos. Demonstrar-se-á de que modo a desierarquização (quer de laços formais e institucionais entre os intervenientes, quer de categorias e géneros discursivos) pode ser posta ao serviço do gosto pela leitura, pela revelação das múltiplas potencialidades semântico-pragmáticas que os textos encerram e que só podem ser desocultadas através da criação de contextos inusitados e libertadores.
Introdução. O presente artigo encontra-se dividido em três partes distintas. Em primeiro lugar, proceder-se-á à identificação e caracterização de alguns dos obstáculos com que os docentes de Língua Portuguesa se deparam nas suas tentativas de promoção da leitura junto dos públicos escolares actuais e, para além disso, tentar-se-á mostrar de que forma esses desafios assumem um carácter invulgar, cuja especificidade radica nas contingências impostas pela vivência numa era tecnológica, em que noções como a de experiência se encontram fragilizadas. Na segunda parte deste texto, apresentar-se-ão os fundamentos básicos do projecto “Ao Sabor dos Livros” e demonstrar-se-á de que modo os mesmos surgem como uma resposta prática e directa aos problemas novos diagnosticados anteriormente. Assim, 11
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algumas das linhas matriciais da acção desenvolvida serão descritas, dando-se uma ênfase particular ao seu modo de articulação com a vivência dos públicos escolares actuais e com as suas formas de ocupação dos tempos de lazer. Finalmente, referir-se-ão vários exemplos concretos de actividades desenvolvidas no âmbito do projecto, demonstrando, em simultâneo, como é que as mesmas obedecem aos pressupostos teóricos explanados no segundo capítulo e de que forma contribuem para a estimulação do gosto pela leitura e para o enraizamento de hábitos regulares de análise crítica da realidade, através do exercício da análise de discursos impressos. Parte 1: Desafios contemporâneos à promoção da leitura. Os docentes dedicados à promoção da leitura encontram, nesta era tecnologicamente dominada pelos meios informáticos e audiovisuais, obstáculos muito fortes que dificultam de modo inequívoco a sua acção. Os obstáculos surgem tanto dentro, como fora da instituição escolar e são de natureza muito diversa. De facto, no que diz respeito aos entraves extra-escolares, os professores deparam-se com alunos maravilhados por processos muito fortes de criação de realidades virtuais, que exigem por períodos muito prolongados toda a sua atenção e que envolvem meios tecnológicos capazes de explorar, de forma sofisticada, as potencialidades atractivas do som, da imagem e da conjugação animada destes dois elementos. Estes processos – favorecidos pela proliferação de jogos informáticos, via web ou através de aparelhos domésticos como as Playstation, Xbox ou Wii – excluem quase na totalidade o discurso verbal, escrito e oral, circunscrevendo-o ao domínio de um léxico básico, relacionado com as instruções de funcionamento das aplicações informáticas utilizadas. Em consequência das prolongadas exposições a semelhantes instrumentos e da sujeição regular às suas subsequentes lógicas de pensamento (forçosamente rápido e fugaz, funcionando por impulsos breves, que solicitam respostas imediatas), é fácil verificar uma tendência nos públicos escolares para a resposta a estímulos, numa lógica behaviorista, que, desenvolvendo competências de descodificação visual muito próprias, impedem, contudo, o desenvolvimento da capacidade de formular raciocínios mais complexos e estruturados. Esta tendência simplificadora desta forma bizarra de economia de pensamento advém de experiências de aceleração e compressão das coordenadas de espaço e de tempo, alienantes e típicas de uma lógica cultural de 12
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um capitalismo tardio que Frederic Jameson associa ao período pós-moderno (1995). Estas experiências acarretam uma diferente forma de inserção dos sujeitos nos seus contextos vivenciais, como assinala o filósofo francês Paul Virilio (1977), por um quase total despojamento de si. Este advém de uma anulação do sentido forte de experiência, favorecida ainda pela hegemonia daquilo que Gianni Vattimo apelida il pensiero debole (1987), isto é, de um pensamento que descrê de ontologias fortes e que desvaloriza, por conseguinte, toda a realidade vivencial como relativista, hermenêutica, numa perspectiva marcadamente niilista. No caso deste filósofo italiano, semelhante forma de encarar a realidade não é forçosamente derrotista, nem carregada de conotações negativas. Contudo, caso se cruze esta ordem de pensamento com a do filósofo francês Jean Baudrillard, concluise que, afinal, a situação é capaz de provocar alguma apreensão. De facto, Baudrillard (1995) acredita que pela sobreexposição a estímulos tecnológicos, dada a proliferação de experiências virtuais e a banalização dos meios técnicos de reprodução de imagens, a humanidade não teve sequer consciência de que o crime perfeito aconteceu: a realidade desapareceu e a apatia reina, dada a desierarquização e o desvanecimento de fronteiras entre realidade e ficção. O exercício da leitura tem, aqui, uma posição difícil, dado tudo aquilo que implica em termos de mediação entre realidade exterior e verdade do discurso, que obriga o sujeito a posicionar-se criticamente face ao mundo em que se integra e à imagem que tem de si mesmo. A necessidade imperativa de um tempo de reflexão não se compadece de lógicas de pensamento que dispensam a experiência real do tempo e recriam simulações atópicas do espaço. Assim, a promoção da leitura encontra um obstáculo enorme em públicos que, não estando familiarizados com nem treinados para este exercício de libertação, o dispensam liminarmente. Contudo, apesar de o panorama já ser suficientemente negro, a verdade é que os obstáculos à promoção da leitura também se encontram dentro da instituição escolar. Em primeiro lugar, porque a actividade da leitura, no espaço da aula, vê em grande parte anulada a sua margem de liberdade, sendo esta uma condição essencial do seu poder de atracção e do seu fascínio. Com efeito, a imposição de textos de leitura com carácter obrigatório funciona, muitas vezes, como um entrave à didáctica da leitura e da literatura, independentemente da grandeza e da importância estéticoliterárias dos objectos seleccionados e integrados no cânone escolar. O funcionamento 13
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da escola como instância de consagração literária (Machado, 2001) é um processo complexo, como se sabe, recheado de sucessos, mas também atravancado por histórias mais camufladas de fracassos. Alguns destes derivam da recusa da imposição de determinados textos previstos nos programas curriculares. A imposição de textos de leitura obrigatória vê-se complementada, na sua acção manipulatória dos processos de constituição canónica, com a obediência a modelos de leitura e a grelhas de interpretação, implícitos ou explícitos, que fazem um jogo de sombras chinesas com a didáctica da língua e da literatura, entendida esta última como veículo de transmissão cultural (Diogo, 1995). Estes modelos de interpretação, postos ao serviço da instrumentalização pedagógica do objecto textual, servem na perfeição os desígnios avaliativos de um sistema educativo que pretende a regulação, aferição e quantificação de todos os processos ensino-aprendizagem desenvolvidos. Assim sendo, a relação livre de sujeito leitor com o objecto texto nunca chega a manifestar-se, visto que a relação constituída se encontra sempre orientada pela actividade dos docentes como mediadores. Estes, por sua vez, avaliando o processo, implicam nesse mesmo impulso a estruturação hierarquizada e formal dos laços sociais discente-docente. No fundo, estas experiências escolares de leitura são a definição de uma série de restrições hermenêuticas (Kermode, 1979) que servirão de guia aos processos activados.
Parte 2: Apresentação dos objectivos e metodologias previstas no projecto “Ao Sabor dos Livros”. Quando o projecto “Ao Sabor dos Livros” foi criado na Escola Secundária de Caldas das Taipas, a intenção explícita das suas dinamizadoras foi a de promover experiências de leitura invulgares e heterodoxas junto de públicos escolares frequentemente refractários às dinâmicas de análise textual promovidas no espaço das aulas. De facto, um dos fundamentos básicos do projecto era o de que as práticas que o constituíssem deveriam ser avessas às rotinas escolarizantes com que os alunos desde há anos se confrontavam e, nessa medida, deveriam funcionar como um espaço motivador de liberdade, em que a surpresa fosse constante. Assim, em definitivo, o carácter de obrigatoriedade das participações, a sujeição a práticas formais de avaliação, a definição de um horário fixo a cumprir escrupulosamente, a estabilidade 14
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do núcleo de participantes e a hierarquização tradicional das relações entre professores e alunos, seriam realidades a abolir. A participação dos alunos neste projecto é, desde o início, voluntária e está sempre dependente da sua disponibilidade de tempo, em função das suas obrigações escolares. A regra que impera é a da responsabilização, dado que o que conta é o compromisso assumido pelos participantes de se envolverem realmente na actividade até ao fim do tempo de vigência da mesma. Conclui-se, portanto, antes do mais, que a motivação conseguida junto dos alunos para a sua participação nas múltiplas actividades constitutivas do projecto é assegurada desde o início por esta informalidade das relações estabelecidas entre os intervenientes e pela vivência de situações de aprendizagem que estão, em simultâneo, mais dependentes do envolvimento e da responsabilização de cada elemento participante do que da imposição de regras externas de funcionamento. Por conseguinte, a consciência da importância dos factores endógenos sobrepõe-se ao imperativo da obediência a regras de funcionamento exógenas. Por outro lado, o suplemento de motivação é concretizado pelo carácter das próprias experiências de leitura que constituem a razão de ser do projecto. A primazia é concedida à leitura, em sentido lato, ou seja, como momento privilegiado de interpretação do texto, entendendo-se o termo como tendo um duplo sentido. Em primeiro lugar, como actividade geradora de sentido pela desconstrução dos múltiplos signos formadores de um texto e pela sua posterior reconfiguração num todo coerente, que constitui a mensagem textual. Esta actividade de mediação entre significante e significado pela intervenção de um sujeito que se apresenta como agente descodificador surge em paralelo com outra, representativa da segunda acepção do termo interpretação. Esta é a mais comummente usada no domínio da musicologia, aparentando-se com o conceito de execução ou actualização e demonstração pública das potencialidades expressivas contidas numa determinada partitura, entendendo-se esta última como metáfora do texto e, por conseguinte, também do discurso. A interpretação como execução prática das potencialidades expressivas dos textos alicerça-se, então, numa promoção de experiências de leitura em que a oralidade 15
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assume o privilégio. As docentes dinamizadoras do projecto procuram, assim, favorecer a criação de contextos novos para a apresentação dos textos e, ao mesmo tempo, tentam levar os alunos participantes a reabilitarem o sentido filosófico forte da experiência, pelo seu confronto pessoal com as realidades textuais enunciadas face a um público que nunca sabe o que deve esperar. Com efeito, como se sabe desde há longo tempo, a linguagem verbal assume-se como sistema modelizante primário e, numa perspectiva estruturalista, a literatura apresenta-se como sistema modelizante secundário (Aguiar e Silva, 1984: 90107). Assim sendo, a compreensão e a representação do mundo depende sempre da competência linguística dos sujeitos (Aguiar e Silva, 1977). Esta competência, contudo, não pode ser entendida unicamente como o domínio de um corpus vocabular mais ou menos vasto, pois depende sempre do reconhecimento e da consciência dos múltiplos cambiantes semânticos de cada vocábulo em específico, no eterno jogo das iterabilidades que Jacques Derrida entende estar na base da différance linguística (1968). Ora, a experiência da leitura em voz alta em contextos diferenciados, medindo as reacções do público e obrigando a tomar consciência da importância semânticopragmática de todos os elementos prosódicos da enunciação, constitui uma forma privilegiada de o aluno tomar consciência, por um lado, das capacidades que o texto apresenta de modelização do real e, por outra parte, do poder de transformação de si mesmo em função dos factores que intervêm na enunciação comunicativa produzida. O texto literário assume, aqui, um lugar importante, mas nunca exclusivo e privilegiado, dado o seu carácter proteiforme e a sua superior disponibilidade para a participação em jogos de linguagem e para o desbravar de múltiplos caminhos exegéticos. O aluno, colocando-se no centro da actividade, tal como um actor num palco, põe-se a si mesmo à prova, submetendo nesse mesmo gesto o texto, reconhecendo-o como elemento fundador de realidades novas. Neste processo, os ensinamentos de Nietzsche, que nos diz que o mundo é uma fábula cujo conhecimento só é possível sob a forma discursiva, tornam-se claros para os alunos participantes nas múltiplas actividades que “Ao Sabor dos Livros” realiza.
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AO SABOR DOS LIVROS. Do gosto pela leitura à sua encenação pragmática em contextos diferenciados.
Parte 3: Descrição das actividades práticas realizadas no âmbito do projecto. Como já foi referido, as finalidades do projecto são múltiplas e, para as concretizar, esta componente extracurricular funciona obrigatoriamente de modo flexível, dado que a participação dos alunos é voluntária e independente de anos e cursos frequentados (no caso desta escola, há turmas do sétimo ao décimo segundo ano de escolaridade, para além do ensino nocturno), e, na medida do possível, em articulação com outras estruturas da Escola Secundária de Caldas das Taipas, desde a Biblioteca/Centro de Recursos Educativos, passando pela Oficina de Eventos, pelo Departamento de Línguas e, inevitavelmente, por questões de ordem logística, até chegar ao Conselho Executivo. A tentativa de criar contextos novos que redimensionem a componente semântica dos textos na sua enunciação pragmática pelos alunos é concretizada com actividades como, por exemplo, a que foi dinamizada para a comemoração do aniversário da publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nessa ocasião, os alunos analisaram, de forma ligeira e superficial, em sessões conjuntas presenciais, a referida Declaração de acordo com a redacção definitiva formulada pela Organização das Nações Unidas. Depois dessa análise conjunta, vários alunos seleccionaram textos para serem lidos em voz alta numa sessão pública a realizar na escola. Para o efeito, foram convidadas duas individualidades de reconhecido mérito, a saber, o Dr. Pedro Bacelar Vasconcelos, ex-Governador Civil de Braga e activista dos Direitos Humanos, e o Dr. Eduardo Jorge Madureira, responsável pela edição do jornal Público-Escola. A palestra levada a cabo – em que se falou sobre a importância histórica, o valor simbólico e o imperativo ético da Declaração Universal dos Direitos Humanos numa sociedade que se pretende fraterna e justa – foi intercalada com a leitura expressiva de vários artigos do documento em análise, num gesto iluminador e recíproco, que permitiu alcançar dois objectivos distintos: por um lado, em função do teor da palestra, os alunos leitores e os assistentes ficaram com uma noção mais sólida e consistente dos temas tratados, que os conduziu a novas perspectivas hermenêuticas sobre o texto lido; por outro lado, os próprios oradores convidados viram a sessão tornar-se mais produtiva e eficaz do ponto de vista comunicativo, por se conseguir articular uma dimensão mais teórica do evento com uma mais lúdica e cativante para o público escolar, pela criação de um contexto situacional próximo do de uma intervenção teatral.
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Nesta actividade, procurou-se, por conseguinte, promover uma desierarquização das tipologias textuais, demonstrando de que forma um texto de cariz supostamente jurídico, fundador de um conjunto de princípios éticos e morais de aspiração universal, pode ser objecto de uma apropriação criativa que, pela sua recontextualização situacional, vem acrescentar-lhe uma mais-valia de sentido. Esta desierarquização das tipologias textuais, capaz de demonstrar que o texto literário não é o único a revelar-se polissémico, proteiforme e poliédrico, só é conseguida pelo favorecimento do hibridismo das variedades genológicas, tal como sucedeu em outra actividade realizada no ano de 2007, aquando da leitura e dramatização de textos de Natal. Nesta ocasião, todo o tipo de textos foram apresentados ao público, desde os mais tradicionais e conhecidos contos até às mais heterodoxas e iconoclastas poesias do heterónimo sensacionista de Fernando Pessoa, que se dá a conhecer pelo nome de Alberto Caeiro. O confronto de mundividências e de ideologias patente nesta sessão tornou-se mais visível pelo facto de os textos serem todos apresentados como se a sessão fosse uma performance poética. Esta incursão pelos domínios teatrais da performance é uma outra característica marcante do projecto, visto que este procura simultaneamente o desvanecimento de barreiras epistemológicas no campo da estética, pelo cruzamento do texto verbal com outras formas de expressão e experimentação criativas. Com efeito, semelhante a priori explica por que razão, na comemoração do Dia Mundial da Poesia de 2006, os alunos foram convidados a produzir textos e desenhos (graças à colaboração prestimosa dos docentes de Educação Visual e Tecnológica) para posterior distribuição pública e afixação nos mais variados locais da escola, desde vitrinas a portas, passando por árvores e postes. A simbólica invasão da vida pela poesia – um objectivo assumido das vanguardas artísticas da primeira metade do século XX, com vista a uma esteticização global da existência – foi também concretizada pela criação de piquetes que se deslocavam de sala em sala, declamando poemas ao maior número de alunos e de turmas. Para além disto, esta actividade contou com uma outra realização que, não sendo do domínio verbal, procurava que cada pessoa que entrasse nas instalações da escola percebesse que esse iria ser um dia diferente: a criação de um tapete de flores, atraente e apelativo, que não deixava nenhum dos transeuntes indiferente. A encenação pragmática de discursos em contextos diferenciados é também realizada através da realização regular e frequente da “Hora do Conto”, em que 18
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múltiplas turmas são convidadas a participar, ouvindo e lendo textos, num espaço mais informal da Biblioteca/Centro de Recursos Educativos, em que os alunos se podem sentar no chão, em sofás com uma disposição específica para o acontecimento ou, até, esticar-se ao comprido, por cima de almofadas deixadas pelo chão, sobre um tapete. A diversificação dos textos e a participação do maior número de turmas e de alunos é uma condição essencial desta actividade, para que a mesma tenha sempre um cunho diferente e original. Para além disso, a escola, com o apoio de “Ao Sabor dos Livros”, mas por iniciativa do Departamento de Línguas, organiza anualmente a Maratona da Leitura, como forma de promover a leitura em contextos diversificados. Para o efeito, requisita-se uma sala específica, que é decorada de forma original todos os anos com motivos associados à leitura (jornais, revistas, livros, versos soltos, etc…) e organiza-se uma escala de visitas, de forma a que a totalidade dos alunos da Escola Secundária das Caldas das Taipas possa participar, desde o sétimo ao décimo segundo ano, passando pelos adultos do Centro Novas Oportunidades e contando com a visita de elementos que, não participando da vivência quotidiana da escola, tenham ligações à comunidade educativa. Assim, nas cerca de doze horas ininterruptas de funcionamento da Maratona da Leitura, cerca de mil pessoas – considerando alunos, professores, funcionários e representantes de organismos culturais e autárquicos – são convidados a frequentar o espaço e a colaborarem com a sua leitura, numa actividade de grande sucesso e aceitação, que contou, inclusivamente, na sua última sessão, em 2008, com a presença de Sua Excelência a Senhora Ministra da Educação, Doutora Maria de Lurdes Rodrigues. Finalmente, a título de exemplo de actividades realizadas, esta encenação de textos pode ser levada a cabo pela criação de contextos invulgares e inusuais, desfamiliarizando espaços quotidianos, numa espécie de reactualização do famoso processo de estranhamento ou desautomatização da existência, constitutivo da essência do literário, tal como concebida pelo Formalismo Russo (Chklovski, 1917), neste caso, não dependente da materialidade dos textos, mas sim de condicionalismos de ordem pragmática. Este tipo de enunciação esteve na base da “Via Sacra Torguiana”, em 2007, em que os alunos, numa forma sui generis de procissão, circularam pelos espaços da escola, convidando os restantes membros da comunidade educativa a acompanhá-los, de forma a poderem visitar três estações, que representavam três temas fulcrais da poesia de Miguel Torga, a saber: a problemática religiosa, o 19
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sentimento telúrico e o desespero humanista. Cada uma das estações era um espaço com uma decoração simbólica, com motivos que apelavam à descodificação dos signos empregues, reveladores dos temas a serem abordados, estimulando um jogo de pesquisa em que o público deveria participar, encontrando-se a solução nos textos declamados.
Considerações finais. Em conclusão, como se depreende do exposto, múltiplas são as possibilidades que se oferecem no espaço de uma escola para promover o hábito e o gosto pela leitura, podendo passar grande parte desse trabalho para o tempo extra-aulas. A criação artificial de contextos inusitados para a leitura de textos em voz alta, pela experiência singular que oferece a um leitor de dar a conhecer enfaticamente a sua forma de interpretação perante um público, apresenta-se como uma experiência privilegiada das possibilidades semânticas que o jogo textual das derridianas différances implica: a errância do sentido, a sua precariedade e a sua instabilidade, dependem em grande parte do contexto situacional que assiste à sua actualização e verbalização. A organização lúdica de actividades deste género, que promovem um relacionamento inter-pares diferente do habitual, desierarquizando relações e promovendo um relativo grau de informalidade, reforça a possibilidade do reconhecimento da importância do texto como instrumento modelizador do real. As actividades promovidas pelo projecto “Ao Sabor dos Livros” prezam-se, por conseguinte, de serem capazes de “problematizar situações pedagógicas procurando as formas mais eficazes de criar ambientes estimuladores e enriquecedores que motivem os alunos para uma aprendizagem da língua na sua omnifuncionalidade semiótica” (Azevedo, 2006: 78). Ao fazê-lo, contribuem para a criação de uma nova imagem de escola, não dependente em exclusivo das aprendizagens criadas no espaço das aulas, mas aberta à interacção dos múltiplos agentes em ambientes e contextos invulgares, que, promovendo uma relação mais aberta com o meio, vem evitar o risco de enfeudamento dos docentes em práticas pedagógicas fossilizadas, cuja consequência nefasta é, por vezes, contrária aos objectivos didácticos inscritos nos programas curriculares. A abertura a novas experiências de leitura vem demonstrar, assim, que os livros, 20
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apresentados em contextos diferenciados, podem ter outro sabor e esse é, sem margem para dúvidas, o sabor da liberdade.
Bibliografia Azevedo, F. (2006). Literatura infantil e leitores – da teoria às práticas. Braga: Departamento de Ciências Integradas e Língua Materna – Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho. Baudrillard, J. (1995). O crime perfeito Lisboa: Relógio d’Água . (Trad. de Silvina Rodrigues Lopes). -----------, ----. (1981). Simulacres et simulations. Paris: Galilée. Chklovski, V. (1917). A arte como processo. In T. Todorov (Org.). (1979). Teoria da literatura – I – textos dos formalistas russos. Lisboa: Edições 70. (Trad. de Isabel Pascoal). Derrida, J. (1968). La différance”. In J. Derrida (1972). Marges - de la philosophie. Paris: Éditions de Minuit. Diogo, A. A. L. (1995). Teoria, didáctica: sombras chinesas. In A. A. L. Diogo (1996). Menos que um – uma história literária por intermitência. Braga: Cadernos do Povo – Ensaio. Jameson, F. (1995). El posmodernismo o la lógica cultural del capitalismo avanzado. (2ª ed.). Barcelona: Paidós. (Trad. de José Luis Pardo Torío). Kermode, F. (1979). El control institucional de la interpretación. In E. Sullà (Org.). (1998). El canon literario. Madrid: Bibliotheca Filologica, Serie Lecturas, Arco/Libros. Machado, C. (2001). Contra os filhos de Jakobson - ou a escola como instância de consagração literária. ELO – Revista do Centro de Formação Francisco de Holanda, 9. Silva, V. M. A. (1977). Competência linguística e competência literária – sobre a possibilidade de uma poética gerativa. Coimbra: Livraria Almedina. Silva, V. M. A. (1984). Teoria da literatura (6.ª ed.). Coimbra: Livraria Almedina. Vattimo, G. (1987). O fim da modernidade – niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna. Lisboa: Editorial Presença. Virilio, P. (1977). Velocidade e política. São Paulo: Estação da Liberdade. (Trad. de Celso M. Paciornik)
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O LÚDICO e o DIDÁCTICO na OBRA de ALVES REDOL Anabela de Oliveira Figueiredo Agrupamento de Escolas de Penacova PALAVRAS-CHAVE
Alves Redol, Literatura Infantil, legado escrito, lúdico, pedagógico.
Resumo O principal objectivo deste trabalho consistiu em fazer uma análise mais aprofundada e as possíveis interligações entre os diferentes textos que compõem a obra para crianças de Alves Redol, nomeadamente os quatro volumes da Colecção «Flor», uma área que se tem mantido na penumbra, no conjunto dos títulos escritos pelo romancista. O estudo permitiu fazer uma análise textual dos livros que Redol escreveu, conjuntamente com a colaboração e apoio de quatro docentes do 1º CEB do Agrupamento de Escolas de Penacova, incidindo sobre os trabalhos de alunos, colocados em prática nas Sessões Tutoriais do Programa Nacional de Ensino do Português (PNEP). Na abordagem aos textos do autor destacámos como eixos fundamentais os aspectos lúdicos, didácticos e pedagógicos, o legado cultural, as vivências rurais, alguns valores, comportamentos e atitudes das personagens, presentes nessas obras.
Introdução Este trabalho, no âmbito do PNEP (Programa Nacional de Ensino do Português), resulta de uma vontade individual em aprofundar um estudo na área do Desenvolvimento da Escrita, tendo por base a colecção «Flor», de Alves Redol. Um conjunto de vivências e o interesse de alguns alunos pelas obras do romancista, terão estado na base das motivações que nos levaram, quase instintivamente, a escolher 23
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a sua obra como objecto de trabalho. Abordar os textos do escritor, para crianças, significa aprofundar uma área da obra de um autor consagrado que nunca foi explorada com a particularidade que julgamos merecer. É nossa intenção lançar uma nova luz sobre esta parte da sua escrita que se vem mantendo na penumbra. Em colaboração com quatro docentes do Agrupamento de Escolas de Penacova, durante as Sessões Tutoriais do PNEP, procurámos tornar mais visível, neste estudo, a componente lúdica, didáctica, o legado cultural, as vivências rurais e a importância pedagógica das obras de Redol. A Colecção «Flor»
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Títulos como A Flor Vai Ver o Mar, A Flor Vai Pescar Num Bote, Uma Flor Chamada Maria, e Maria Abre o Livro das Surpresas, pertencem a um conjunto de obras dedicadas à infância que contam histórias de uma grande criatividade. Através de depoimentos feitos pelo escritor é possível reconstituir algumas particularidades que estiveram na origem das suas histórias. Como o próprio esclarece, no artigo «Como Escrevi Histórias para Crianças» (A Capital, nº 316, Jan. 1969): Eram menos de cento e cinquenta palavras. Quase todas de uma sílaba. Algumas velhas e relhas […] inventário de vocábulos […]. E aí me pus eu […a jogar com as palavras […] em novas combinações e ritmos; elas com a sua realidade e imaginação prodigiosas, eu a inventar outros caminhos para a inesgotável fantasia da música fonética […] estímulo e deslumbramento para os meninos de seis anos. 25
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Num outro artigo do Diário de Lisboa, Vida Literária e Artística (nº499, Fev. 1967), o escritor fala do seu método, de como inventariou palavras de uma sílaba convivendo com elas «longas horas até tratá-las por tu». Neste seu percurso acrescentou algumas personagens e enquadrou-as em ambientes próprios. Conjuntamente com a ilustradora Leonor Praça iniciaram a tarefa da escrita, com frases curtas recheadas de monossílabos. Numa última etapa, consultou algumas professoras, acatando sugestões, como exemplifica a seguinte passagem: Retocada a história […] interessadas quatro professoras primárias […] passei à máquina trinta cópias do original e fizeram-se testes entre crianças dos 6 aos 9 anos. […] Criada uma ficha para cada criança, ficámos com material para meditar. E soubemos que havia um máximo de 8 palavras de sentido desconhecido para os leitores infantis; deixei ficar algumas para que se habituassem ao gosto de descobrir. (Ibidem).
E, desta forma, surgiu A Flor Vai Ver o Mar. Inspirado, iniciou uma nova viagem, com «botes e arrais», entre as «ondas do Mar Alto e as areias do Alto Mar», numa história em que a personagem principal, uma flor, deseja ser menina, em A Flor Vai Pescar Num Bote. É esta menina, chamada Maria Flor, que vai dar origem a Uma Flor Chamada Maria. Já no último volume, Maria Flor Abre o Livro das Surpresas, a “menina flor” vai correr mundo atrás de um sonho, com a ajuda de um livro.
A Flor Vai Ver o Mar – a palavra e os sons Neste livro, Redol alterna momentos de humor e fantasia com a realidade. As personagens, ao longo do texto, aparecem animadas, têm mãos, falam e até se ajudam umas às outras. Numa recolha feita ao longo do livro, os alunos do 3º ano da EB1 de Figueira de Lorvão, orientados pela docente, procederam ao levantamento das características das personagens:
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Pela leitura, as crianças foram captando um conjunto de vivências reveladoras de uma profunda amizade, apresentadas de forma lúdica, ajudando-as a ver o mundo com outros olhos. Ao longo de toda a história, um conjunto de saberes ligados ao meio rural e ao mundo aquático são apresentados em jeito de brincadeira. Neste âmbito, salientamos o trecho referente à história do pão – «o chão dá grão que a mó mói em pó e o pó do grão dá o pão». Ao percorrermos o livro, conjuntamente com as crianças, estas aperceberam-se, pela mancha gráfica, efeitos fónicos e rítmicos, que predominam os monossílabos. Damos aqui conta do registo feito, neste sentido, pelo mesmo grupo de alunos:
Estas crianças, numa análise feita à área vocabular, notaram a predominância dos substantivos, essencialmente nomes de animais, elementos da natureza e membros do corpo humano, entre muitos outros, assim como alguns numerais, como se pode verificar no exemplo dado:
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Aperceberam-se, também, que os pronomes são uma constante, e que os adjectivos aparecem em menor número, procedendo, ainda a um levantamento sobre os verbos, constatando algumas particularidades da sua conjugação, como tão bem registaram na tabela que se segue:
Nesta linha, ainda relativamente aos verbos, verificaram, ao longo da história, a repetição do mesmo som, como que a intensificar o que foi dito, como mostram no seguinte exemplo:
Um outro aspecto que aparece de uma forma muito evidente e natural é a predominância do diálogo. As personagens recorrem com frequência às frases 28
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interrogativas e exclamativas, reveladoras de alguma admiração. Este recurso pode ser considerado como um auxiliar didáctico e educativo de alguma eficácia. Apresentamos alguns exemplos recolhidos pelos alunos:
Observando o quadro acima exposto, deparamo-nos, também, com o uso da negativa, frequente nos diálogos estabelecidos entre as personagens, salientando algumas acções que não devem ser feitas ou algumas situações que não podem ser levadas a cabo. Podemos ainda referir a utilização frequente de onomatopeias, identificando sons resultantes dos comportamentos dos animais, ou traduzindo ruídos do mundo, como as crianças tão bem transcreveram, no trabalho que lhes foi pedido:
Estes sons cativam o leitor pelo seu conteúdo fónico permitindo uma identificação mais directa com o elemento que representam.
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A Flor Vai Pescar Num Bote – o imaginário e o lúdico Neste segundo volume, A Flor Vai Pescar Num Bote, a atenção pelos detalhes levou o escritor a dar vida às coisas, aos pequenos seres e objectos do quotidiano, realçando a singularidade de alguns momentos: o Pau que é a nau, o Sol que é lume, a Lua que tem um ninho dentro do Céu e o Cão que ri e dorme sem se ralar. Todo o enredo prossegue recheado de brincadeira com as transformações da rã em bola e a gente do cais brincam com ela, num conjunto de situações em que o lúdico e a fantasia assumem papel preponderante. Um outro centro de interesses bem explorado nesta história é o da cor, sendo vários os exemplos apresentados. Os alunos do 4º ano, da EB1 de Penacova recolheram expressões com referência directa às cores (em que o nome da cor está presente) e expressões em que a cor aparece de forma indirecta (induzindo a sua existência), como denotam os seguintes exemplos:
Procuraram, também, aspectos representativos do vocabulário, um repositório do imaginário e do lúdico, como é o caso dos verbos que aparecem aos pares, com valor gradativo:
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Ou, então, pares de verbos com função reiterativa, como mostram os exemplos recolhidos:
Um outro grupo de palavras trabalhado, os adjectivos, aparece ligado às características das personagens, do mar e do rio. Assim, a utilização da adjectivação surge de forma recorrente nas descrições, estabelecendo uma maior aproximação com o jovem leitor, levando-o a produzir uma imagem no seu subconsciente. Na recolha feita pelos alunos a adjectivação aparece associada à comparação, como nos excertos abaixo indicados:
A dupla adjectivação também marca presença ao longo da obra, como podemos ver pelos exemplos descobertos:
A dimensão da oralidade é também, aqui, valorizada por Redol através do recurso ao diálogo, notando-se, no entanto, uma maior escassez relativamente à história anterior. Predominam as frases negativas, que aparecem em situações de recusa em aceitar 31
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determinadas atitudes, ou na simples constatação de factos evidentes. O discurso exclamativo surge a enfatizar a participação emotiva das personagens, em situações de dar ordens ou de chamar a atenção. As interjeições também estão presentes nos diálogos. Neste sentido, os elementos da turma recolheram alguns exemplos para ilustrar o exposto:
Há ainda a referir as comparações, que aparecem em situações diversas. Temos o exemplo da Rã que é comparada a um Boi quando começa a inchar, à medida que conta a sua história, criando situações muito caricatas. Por outro lado, de uma forma mais realista, aparece a comparação do bote a uma noz, demonstrando da sua fragilidade quando sujeito às intempéries das perturbações atmosféricas. Podemos acrescentar, aqui, a recolha feita pelos alunos:
Ao longo de toda a história, o aspecto lúdico também se vai impondo na forma de trocadilhos, repetições, jogos de palavras, algumas rimas e aspectos do imaginário 32
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que aparecem bem integrados no texto. As crianças entram no mundo do nonsense, o que permite um maior entusiasmo na sua leitura. Estes são alguns dos exemplos recolhidos:
Mencionamos agora a inversão dos papéis desempenhados pelos objectos e pelos animais, em que muitas vezes os objectos reagem como se fossem animais e estes como se fossem pessoas, como se pode ver em alguns dos exemplos dados:
Este grupo, na Auto-avaliação, em que foi pedida a opinião dos alunos sobre a obra trabalhada, deu respostas muito elucidativas, destacamos duas:
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Uma Flor Chamada Maria – o lúdico e o didáctico Neste volume, Redol introduz o leitor num tema que lhe é familiar, apresentando o percurso da aprendizagem das letras e das palavras, na escola. O autor retoma palavras que surgiam nos antigos livros do 1º ano de escolaridade, e em alguns actuais, mas coloca-as em contexto, contrariamente ao que acontece nos manuais escolares. Palavras como “popó”, “papá”, “papa”, “pipa” surgem integradas num texto em que a aprendizagem se processa já não de forma automática e “papagueante”, mas lúdica e coerente. Assim, apresentamos um conjunto de actividades realizadas pelos alunos do 1º ano da EB1 de Aveleira, integrando o levantamento de vocábulos referentes a algumas letras do alfabeto:
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Seguindo o percurso da história, um dia Flor regressa a casa numa grande tristeza porque a escola fechou só por o T ter desaparecido. Perante a situação, Chim, o chinês, oferece-se para dar lições no seu bar e a aprendizagem prossegue em grande tom de brincadeira. Redol desenvolve nas suas obras o prazer lúdico de brincar com os sons, com jogos verbais, destacando-se a fonologia, na produção dos textos. Consequentemente, surgem listas de palavras e expressões que podem ser facilmente memorizadas. O processo de aprendizagem vivido na escola é aqui recreado de forma lúdica aproximando-se da realidade escolar actual. O aluno, na aquisição dos conhecimentos da leitura e da escrita, vai tomando contacto com um número significativo de vocábulos novos respeitantes às diferentes letras do alfabeto. Este aspecto aparece muito bem representado evidenciando o valor didáctico do livro. 35
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O escritor criou, assim, um variadíssimo leque de assuntos, num ritmo de histórias e episódios que se vão interligando entre si. Partindo de algumas referências ocasionais, vão surgindo pontos paralelos entre episódios sucessivos que vão sendo imaginados, recriados e inventados com vocábulos novos, dando origem a acontecimentos recheados de imaginação, como os expostos:
Observemos, agora, mais pormenorizadamente, alguns dos aspectos de ordem estética que o texto encerra, tendo como suporte a linguagem do discurso apresentado por Redol. Na recolha feita, os alunos do 3º ano, desta turma, destacaram os verbos, essencialmente verbos de acção, que copiaram para o caderno e colaram também em cartaz, aqui apresentados:
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Como já apontámos, ao longo do conto, o escritor brinca com as palavras, dando vida às letras do alfabeto, enriquecendo o vocabulário do livro com um conjunto de sons articulados correspondentes às consoantes. Nestas listagens de palavras, é de salientar o aspecto pedagógico da formação de grupos de palavras que pertencem à mesma área vocabular ou conjuntos de vocábulos da mesma família, como a seguir indicamos:
É notória, também, a predominância do adjectivo, contribuindo para diversificar a caracterização dos diferentes elementos referidos ao longo do texto, provocando alguns jogos fónicos muito apreciados pelos alunos, que listaram alguns dos adjectivos encontrados:
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Demarca-se, no levantamento feito pelos alunos, a musicalidade da escrita provocada pela acumulação de adjectivos, formas verbais, nomes e algumas onomatopeias que produzem ruídos ou representam sons de animais, contribuindo para dar ritmo à narrativa:
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Maria Flor Abre o Livro das Surpresas – as vivências rurais e a fantasia No último volume, Maria Flor vai “correr mundo”, leva no saco o Livro e no coração os amigos que deixou no Cais do Sul. Já à sombra de um castanheiro, a menina abre o Livro que lhe deu o Chim e procura o R da rã:
(Redol, 2007:12,13)
Os alunos do 4º ano, da EB1 de Cheira, a título do exemplo recolhido no livro, escreveram uma descrição para o Papagaio e, também, para a Anaconda, com as devidas transformações e ilustraram os trabalhos, como podemos constatar nos exemplos a seguir:
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Podemos adiantar que, neste último volume da colecção «Flor», Redol proporciona ao receptor uma imagem do fantástico constituída pelo insólito. Porém, esta situação só é possível tendo por base o Livro das Surpresas, um instrumento de magia capaz de conseguir grandes feitos. Além das transformações pouco acertadas que provocou na Rã, o livro vai permitir um fenómeno muito mais apelativo, só possível de se realizar no reino da fantasia e do sonho, num episódio muito feliz do burro que se transforma em automóvel, como os alunos tão bem descreveram e ilustraram, a partir da descrição feita no texto do autor: 40
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(Redol, 2007: 24,25) 41
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Esta transformação é capaz de encantar a imaginação fértil de qualquer criança, é também um episódio que encerra um importante valor simbólico, na medida em que representa, de certa forma, a evolução da sociedade. As vivências rurais são um ponto preponderante nesta história, embora não se explore o tema em profundidade, mas tão-somente se vão apontando alguns aspectos mais pontuais, como as referências feitas aos processos agrícolas. Podemos acrescentar, ainda, alguns aspectos relacionados com o ambiente do mundo rural, reportados à época em que a história foi escrita, nomeadamente a descrição da aldeia, das casas, das ruas, das quais destacamos algumas passagens que consideramos mais significativas:
(Redol, 2007: 27-29) Tendo por base a descrição apresentada no livro, os alunos ilustraram a aldeia, segundo as palavras de Redol e descreveram a aldeia da Cheira, seguindo o exemplo dado pelo escritor:
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Para potenciar o sucesso que a leitura do livro causou, o grupo de alunos da EB1 de Cheira teceu comentários muito positivos, como podemos observar pelos exemplos dados:
Numa actividade de articulação entre a leitura e a escrita, as crianças, considerando que o escritor deveria ter produzido mais um volume onde fosse incluído um final para 43
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cada uma das personagens, colocaram em prática a proposta apresentada:
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Conclusão Da abordagem aos quatro volumes da colecção «Flor», achamos que ficou explícito o facto de as crianças encontrarem um conjunto de narrativas repletas de situações lúdicas, numa sucessão de vocábulos e situações com ordem lógica, um conjunto de personagens que variam entre animais, objectos e pessoas, situações diversificadas repletas de aventuras, jogos de palavras e viagens imaginárias do mundo da ficção. Parece-nos também notável destacar as situações divertidas, o ritmo e a musicalidade dos textos escritos, referidos pelos alunos, provocando um clima de sedução no público leitor. Podemos ainda acrescentar que a obra de Redol manteve até aos tempos de hoje a sua actualidade, no apelo natural à imaginação das crianças e no despertar do interesse por costumes e modos de vida de outros tempos. Bibliografia Activa Redol, A. (1968). A Flor vai ver o mar. Lisboa: Publicações Europa-América. Redol, A. (1968). A Flor vai pescar num bote. Lisboa: Publicações Europa-América. Redol, A. (1969). Uma Flor chamada Maria. Lisboa: Publicações Europa-América. Redol, A. (1970). Maria Flor abre o livro das surpresas. Lisboa: Publicações EuropaAmérica. Redol, A. (2006). A Flor vai ver o mar. Lisboa: Caminho. Redol, A. (2006). A Flor vai pescar num bote. Lisboa: Caminho. Redol, A. (2007). Uma Flor Chamada Maria. Lisboa: Caminho. Redol, A. (2007). Maria Flor abre o livro dassSurpresas. Lisboa: Caminho.
Bibliografia Passiva Figueiredo, A. (2005). A obra de Alves Redol para crianças. Tese de mestrado. Universidade Aberta. Lisboa.
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Periódicos Redol, A. (1967). Breve encontro com Alves Redol. Diário de Lisboa, Vida Literária e Artística, 499, 22 de Fevereiro. Redol, A. (1969). Como Escrevi Histórias para Crianças. A Capital, 316, 8 de Janeiro.
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Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula?
Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula?
Celda Maria Gonçalves Morgado Choupina Instituição: ESE -IPP Palavras-Chave
Ensino da gramática; faseamento pedagógico-didáctico; orações relativas; subtipos de orações relativas.
Resumo A presente comunicação intitula-se Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula? e tem dois objectivos fundamentais. Primeiro, apresentar três aspectos interligados com a aquisição das relativas: faseamento da aquisição; propriedades sintácticas, semânticas e discursivas e a sua ocorrência nas produções textuais dos alunos. Segundo, a partir desta reflexão teórica, com base numa revisão bibliográfica orientada sobre estudos experimentais disponíveis, em Programas de Ensino de Língua Portuguesa e em manuais escolares, apresentar uma proposta de reorganização dos Programas de Língua Portuguesa dos 1º, 2º e 3º ciclos relativamente ao momento e aos modos de trabalhar os diferentes subtipos de orações relativas, distinguindo recepção e produção escrita. Para dar cumprimento aos objectivos enunciados, far-se-á uma rápida revisão da literatura existente sobre o tema, seguida de uma reflexão apoiada por uma bateria de exemplos colhidos em excertos de obras da literatura infantil, presentes em manuais de Língua Portuguesa de 1º ciclo, e em produções de alunos dos 2º e 3º ciclos e concluir-se-á com uma proposta para a Língua Portuguesa. Com este trabalho, pretende-se apresentar um tipo de construção de orações relativas que não se adequa com facilidade à oposição semântica relativa restritiva/relativa explicativa – “Era uma vez um mealheiro que era um porco.” (António Torrado), e propor que as orações relativas do subtipo restritivo sejam inseridas na sala de aula no final do 1º ciclo ou início do 2º, como forma de alargar grupos nominais.
1. Introdução A linguagem, como é do conhecimento de todos, é uma capacidade exclusiva e universal à espécie humana. Por um lado, não há conhecimento de nenhuma outra espécie animal com a capacidade para adquirir linguagem1 e, por outro lado, não há 1
Importa salientar que o termo linguagem é usado no sentido de sistema linguístico. 49
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conhecimento de nenhum grupo de seres humanos sem linguagem – onde há seres humanos há linguagem. O desenvolvimento linguístico da criança nos seus primeiros anos de vida está marcado pelo ambiente linguístico que a cerca. Este ambiente linguístico não é “um todo unitário” (RAMOS PEREIRA, 1992:23). Quer isto dizer que intrínseco a este processo estão pelos menos dois tipos de linguagem, a linguagem que lhe é especificamente dirigida e a linguagem que ouve mas que não lhe é destina (por exemplo as conversas entre adultos e os programas televisivos infantis). É a qualidade deste imput que vai definir a aquisição precoce ou não das orações relativas pelas crianças. Por volta dos cinco anos, incrivelmente, os enunciados das crianças apresentam as orações relativas completas, e todas as formas de subordinadas conjuntivas, sejam elas temporais, finais, causais, entre outras. Entre os 5 e os 6 anos, a linguagem está adquirida e a criança sabe usá-la de forma correcta, dominando a estrutura básica da língua. Como é sabido, a aquisição do módulo sintaxe implica em simultâneo a aquisição de módulos da gramática como o da lexicologia e o da morfologia. Na verdade, sabemos que não se podem comunicar factos ou acontecimentos complexos sem dominar a morfologia e a sintaxe da língua. Desta forma, a criança usa a competência gramatical no que se refere aos mecanismos básicos por volta dos 5-6 anos, podendo-se afirmar que a criança atingiu o domínio da capacidade de produção. O período que vai desde o início da escolaridade básica até à puberdade caracteriza-se pela consolidação e aperfeiçoamento das estruturas sintácticas já existentes e também pelo aparecimento de construções que requerem “alterações nas estratégias gerais de interpretação e de formulação de frases” (SIM-SIM, I. 1998:167). Após a periodização anteriormente exposta, passamos, então, a analisar a ordem de aquisição das diferentes orações compostas, no sentido de situar a compreensão e produção de orações relativas. 2. Aquisição das orações relativas pelos sujeitos falantes A aquisição dos diversos tipos de orações complexas faz-se de forma gradual e sequencial. Numa perspectiva geral, a parataxe é o primeiro processo de ligação entre orações a ser adquirido e dominado pelas crianças, “en el habla espontánea de los niños no hay sino parataxis, e la hipotaxis de oraciones es meramente vestigial.” (GARCIA, 1999: 3518)2 2 Parataxe consiste na “propriedade mediante a qual duas ou mais unidade de um mesmo estrato funcional podem combinar-se nesse mesmo nível para construir, no mesmo 50
Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula?
Vários estudos sobre a ordem de aquisição das diferentes orações compostas, realizados em diferentes línguas maternas3, revelam que as orações coordenadas serão as primeiras a ser adquiridas, logo seguidas das substantivas e posteriormente as relativas (embora esta aquisição se faça relativamente cedo). Desta forma e reproduzindo os exemplos de VASCONCELOS, M. (1996), as crianças, de uma maneira geral, produzem mais cedo as orações de tipo (1), porque são coordenadas, e mais tardiamente as orações de tipo (2) e (3), porque subordinadas. 1. 2. 3.
O bebé caiu e fez dói-dói. Ele disse que tem fome. Eu tenho um carro que anda muito depressa.
No entanto, entre estas últimas, a preferência das crianças de tenra idade vai para as orações substantivas, exemplificada em (2), porque formam um complemento verbal e, neste sentido, são complementos essenciais à frase, ou seja, que tem fome é um complemento exigido pela entrada lexical do verbo «dizer», enquanto em (3) a relativa que anda muito depressa não é um complemento obrigatório, podendo ser suprimido, originando-se a frase gramatical (3a). 3a. Eu tenho um carro. Esta questão é também expressa por VASCONCELOS, M. (1996: 323), argumentando que a gramática da criança “corresponderia assim, numa primeira fase, a uma gramática em que estão apenas os complementos exigidos pelas entradas dos itens lexicais” (p.324). Contudo, os dados sugerem que as crianças têm desde muito cedo “competência gramatical para produzir frases relativas: «certo tipo» de relativas ocorre no discurso estrato, uma nova unidade susceptível de contrair relações sintagmáticas próprias das unidades simples deste estrato” (BECHARA 2002:48). Os termos parataxe e coordenação não são verdadeiramente coincidentes, pois o primeiro aplica-se apenas à ligação de orações, enquanto o segundo se aplica tanto à ligação de orações como à de frases. O vocábulo hipotaxe sintetiza a possibilidade de uma unidade “correspondente a um estrato superior poder funcionar num estrato inferior, ou em estratos inferiores. É o caso de uma oração passar a funcionar como “membro” de outra oração” (BECHARA 2002:47). À semelhança dos termos parataxe e coordenação, também hipotaxe e subordinação não são sinónimos, o termo hipotaxe tipifica relações entre orações e com a subordinação nomeiam-se tanto as relações entre orações como entre frases. 3 Estudos como APARICI et al. (1996) para o catalão; LIMBER (1973) para o Inglês; CLARK (1985) e AMY e VION (1976) para o francês (citados por SERRA, M. et al. 2000) e VASCONCELOS, M. (1991) para o português. 51
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de crianças com cerca de dois/três anos, embora raramente” (VASCONCELOS, M. 1996: 324). A não ocorrência ou a pouca frequência pode dever-se a vários factores, desde logo a dificuldade de processamento que algumas frases envolvem e a qualidade do input linguístico que cerca a criança. Que a criança tem desde muito cedo uma gramática que lhe permite gerar frases com orações relativas é um dado aceite pelos diferentes estudiosos das orações complexas, daí que, partindo deste pressuposto, se tente averiguar qual o grau de dificuldade na aquisição dos diferentes tipos de relativas. Estudar esta dificuldade foi o objectivo das experiências realizadas por Vasconcelos, M. (1991) num outro estudo efectuado com crianças portuguesas entre os três anos e meio e os oito anos e meio. A autora pretendeu, assim, testar a compreensão e a produção de diferentes tipos de orações relativas através da aplicação de diversos testes. Para testar a compreensão pediu às crianças que representassem/mimassem com bonecos as frases que o experimentador pronunciava e para a produção aplicou testes de repetição imediata e diferida, com o apoio de desenhos. Dos resultados do teste de compreensão, a autora concluiu que, numa situação real de comunicação, as crianças não têm dificuldade na compreensão de orações relativas. No entanto, as frases com encaixe ao centro e com a alteração da ordem canónica na oração relativa, como em (4), revelam dificuldades relacionadas com o processamento, pois o objecto directo de «morder» vem antes do verbo. 4.
O cavalo [que o cão mordeu] saltou por cima do porco.4
Quanto aos testes de produção, repetição imediata ou diferida, estes indicaram que as frases encaixadas à direita são de mais fácil produção do que as encaixadas ao centro. Vejam-se os exemplos (5) e (6) respectivamente: 5. 6.
A senhora beijou o menino [que o cão mordeu]. A menina [que o cão mordeu] chorou.
No que se refere à função que o morfema relativo desempenha na frase, as relativas com foco no complemento indirecto (7) e no locativo (8) são de mais difícil produção do que com foco no complemento directo (6) ou no sujeito (9). 7. 4
O professor [a quem o menino deu o livro] é careca. Os exemplos 4 a 9 são de VASCONCELOS, M. (1996). 52
Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula?
8. 9.
A mesa [onde o professor pôs o livro] tem gavetas. O cão [que tem orelhas compridas] mordeu a menina.
Embora as orações relativas surjam na linguagem infantil por volta dos 3 anos, o conhecimento sintáctico que permite a construção de relativas, bem como de outras construções complexas, está ainda em desenvolvimento à entrada no 1º ano do Ensino Básico (cerca dos 6 anos). Neste sentido, cabe à escola proporcionar “condições para que as aquisições ainda em marcha se consolidem e alarguem” (SIM-SIM, I. 1998: 165), e se consciencializem por meio da aprendizagem. 3. Subtipos de orações relativas As orações relativas são iniciadas por elementos que, segundo a revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário, Setembro de 2007, se denominam pronomes, determinantes e quantificadores relativos5. Estes elementos sozinhos ou acompanhados por preposições formam o constituinte relativo. Nos enunciados (11) e (12) o constituinte relativo é formado apenas pelo morfema que e no (13) por quem.. Estes morfemas estão associados a uma expressão já referida anteriormente, à qual se dá o nome de antecedente (O menino e O João em (11) e (12) respectivamente). Existem orações relativas com antecedente expresso, como (11) e (12) e orações relativas sem antecedente expresso (ou relativas livres), como em (13). 10. O menino que está doente tem olhos azuis. O menino doente tem olhos azuis. 11. O João, que faz hoje anos, recebeu uma grande prenda. O João, aniversariante, recebeu uma grande prenda. 12. Quem vai ao mar perde o lugar. As relativas com antecedente integram o grupo das subordinadas adjectivas. Este tipo de orações subordinadas são assim classificadas porque, segundo CUNHA, C. & CINTRA, L., 1984:596, “as funções que desempenham são comparáveis às exercidas por adjectivos, como se ilustra nos exemplos (11) e (12) acima transcritos. As orações relativas sem antecedente expresso são também denominadas 5
Tradicionalmente denominados “pronomes”, “advérbios” e “adjectivos”
relativos. 53
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pelos gramáticos como relativas substantivas, uma vez que desempenham as funções dos substantivos, no exemplo (13) a de sujeito. As primeiras, com antecedente expresso, são tradicionalmente consideradas de dois tipos: as relativas restritivas e as relativas explicativas, como em (11) e (12) respectivamente. As explicativas podem ser explicativas de nome (12), quando anaforicamente retomam um SN já mencionado, ou explicativas de frase (14), quando retomam anaforicamente uma frase. 13. O sol é perigoso, o que exige cuidados. - As relativas restritivas são orações que identificam ou determinam referencialmente o antecedente. Vejamos o exemplo (14), 14. O menino que não gostava de ler comprou um livro. De entre um grupo de referentes possíveis (o menino que não gostava de ler, o que gostava de ler, o que gostava de jogar futebol, o que gostava de andar de bicicleta...) é seleccionado um (o menino que não gostava de ler) sobre o qual é feita uma predicação (comprou um livro). - As orações relativas explicativas são orações que não contribuem para a construção da identificação do referente contido no antecedente. O referente é identificado, determinado e definido por outros meios, nomeadamente pela expressão nominal antecedente. Nos exemplos (15) e (16),
15. João, que não gostava de ler, comprou um livro. 16. Lisboa, que é a capital de Portugal, é muito grande. as relativas explicativas (que não gostava de ler e que é a capital de Portugal) contêm uma informação adicional ou suplementar, que geralmente é do conhecimento do interlocutor, acerca dos referentes (João e Lisboa respectivamente) já determinados em si mesmos, porque são nomes próprios com unicidade referencial. Uma vez que a relativa apositiva expressa uma informação suplementar e que o seu referente está já pré-determinado, esta oração apresenta um carácter parentético. Este carácter é traduzido pela presença, na escrita, de vírgulas ou traços e, na oral, de uma pausa entre o SN antecedente e a relativa. 54
Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula?
Estes dois subtipos de relativas apresentam características próprias quanto ao antecedente, ao determinante e ao morfema relativo que as introduz. 3.1. Construções relativas de tipo apresentativo Do ponto de vista semântico, a distinção entre relativa restritiva e explicativa apresenta alguns problemas, que têm sido notados na bibliografia. Diversos estudos que foram realizados na década de 806 mostram que o campo de aplicação da oposição relativa restritiva/relativa explicativa é mais limitado do que parece ser à primeira vista, nomeadamente quando a relativa se afasta da estrutura canónica Os+N+Qu. Sem ignorar as propostas apresentadas por outros autores, teremos por base na nossa reflexão apenas as de KLEIBER, G. (1981). Ainda que sem entrar em detalhes sobre a problemática da interpretação de relativas, vale a pena apresentar exemplos de um conjunto de relativas apresentativas: (i) construção de tipo apresentativo em início de abertura de narrativa: V existenciais (era uma vez) + UM+N+Qu17. a) Era uma vez uma estrela que tinha caído em cima de um carro. (7º ano7) b) Era uma vez um homem que não gostava de couves e andava sempre a dizer “couves não hei-de comer”. (Alice Vieira, Eu bem vi nascer o Sol8) c) Um dia nasceu uma menina que tinha os dentes muito feios (...) (7º ano) (i) construções de tipo apresentativo de abertura de narrativa em fragmentos da história: V existenciais (ser, haver, ou existir) + UM+N+Qu18. (18) Era um caçador que acabava de disparar três tiros. (Maria Isabel Mendonça Soares, 365 Histórias de Encantar 9) 19. (19) Havia uma senhora que antigamente vivia perto da casa da minha avó. (9º ano) 6 Cf. os trabalhos de FUCHS, C. (1987), REVIÈRE Cl. e REVIÈRE N. (1987) e de DEMOLIER, D. (1987). 7 Os exemplos deste tipo são retirados de textos de alunos do 7º ao 9º anos. 8 in TORRES, N., (2005), Pirilampo 3. Língua Portuguesa. Edições Nova Gaia, p. 56. 9 in TORRES, N., (2005), Pirilampo 3. Língua Portuguesa. Edições Nova Gaia, p. 74. 55
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V encontrar/descobrir- SU + V + SN (UM+N+Qu-) 20. O caranguejo seguiu a sua vida e descobriu uma família que andava para a frente (...) (7º ano) V de entrada em cena (ex: aparecer, aproximar-se, chegar, surgir, vir, entrar, ir, nascer...) + UM+N+Qu21. Apareceu, de repente, um atum que o encontrou e levou-o para sua casa. (7ºano) 22. Um dia nasceu uma menina que tinha os dentes muito feios (...) (7º ano) Estas construções são complexas, pois são formadas por uma oração dita principal com função apresentativa e por uma subordinada relativa. O que distingue estas construções de outras construções relativas são características particulares motivadas principalmente pela sua natureza discursiva, em particular pela função discursiva, embora a natureza do predicado e a natureza do antecedente sejam distintivos10. Função discursiva Estas construções relativas representam um tipo de frases importante, pois, como testemunha Le Goffic, são dos primeiros tipos de relativas que as crianças produzem (LE GOFFIC, P. 1979: 143). Deste modo, é interessante notar que estes enunciados são realizados, na sua maior parte, na linguagem infantil e integram, frequentemente, o chamado texto narrativo11. Narrar uma história implica a introdução, primeiro, de uma entidade nova no discurso, através de uma estrutura apresentativa, e, depois, de um ou vários episódios narrativos. As construções em análise são características da chamada abertura da narrativa, que pode ser no início ou em qualquer outro momento da história. A 10 Ver BRITO e DUARTE (2003) e CHOUPINA C. (2004). 11 Dos vários subtipos de orações relativas, as que surgem com mais frequência nos manuais e nos textos dos alunos são, sem dúvida, as orações relativas com antecedente expresso, portanto as que integram o grupo das subordinadas adjectivas. Dentro deste grupo, a ocorrência das restritivas é preponderante. Tendo em conta o factor idade, aumenta consideravelmente a ocorrência de relativas apresentativas em textos de manuais para o primeiro ciclos e em textos de crianças mais jovens (até ao 7º ano de escolaridades). 56
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abertura inicial da narrativa tem um carácter introdutório e a sua função é apresentar um referente novo e localizá-lo espacio-temporalmente. Ao longo de uma narrativa podem existir várias outras aberturas cujo objectivo é também a introdução de novas entidades em diferentes pontos da história.12 As construções apresentativas têm, assim, como função, por um lado, apresentar uma entidade nova no discurso (função apresentativa) e, por outro, exprimir uma informação nova acerca dessa entidade (função predicativa). Ao nível discursivo, o referente do SN antecedente da oração relativa é o foco em relação ao predicado da oração matriz, mas, simultaneamente, essa informação vai ser não só o ou um dos tópicos da história como o da própria relativa. Enquanto foco, o referente veicula informação nova dada pela oração matriz e, enquanto tópico, marca a entidade a propósito da qual a relativa exprime ela própria uma informação nova. Uma construção apresentativa é definida por LAMBRECHT, K. (2000: 51) como “une structure phrastique dont la fonction discursive n’est pas d’informer l’interlocuteur d’une propriété attribuée à une entité ou situation donnée mais d’introduire une entité ou situation nouvelle dans un monde de discours, normalement dans le but de la rendre cognitivement accessible en vue d’une prédication ultérieure. Vejamos o exemplo (23): 23. Era uma vez um mealheiro que era um porco. (António Torrado, Da rua do contador para a rua do ouvidor13) Embora a oração Era uma vez um mealheiro exprima uma proposição logicamente independente que afirma a existência de um mealheiro, não constitui um enunciado completo ao nível do discurso. Será apenas a combinação da proposição relativa com Era uma vez um mealheiro que permite exprimir uma unidade de informação pronta a ser inserida no texto. Assim, ainda que estas proposições estejam sintacticamente bem formadas, não constituem um enunciado completo quando 12 Vejam-se a propósito de aberturas de narrativa os seguintes trabalhos: BATORÉO, H. J. e I. DUARTE 1998; BATORÉO, H. J. e I. DUARTE 1999. A partir do corpus, 120 narrativas, do estudo de BATORÉO, H. J. 1996, BATORÉO, H. J. e I. DUARTE 1999 delimitaram um corpus linguístico de 332 aberturas de narrativas, metade de adultos e metade de crianças. Estas duas linguistas concluíram, tendo em conta a variável idade, que (i) todo o repertório de construções de aberturas narrativas está disponível aos 5 anos; o processo de desenvolvimento da gramática atingido aos 5 anos inclui (ii) a perda da deixis, i. e., processo de um progressivo domínio da narrativa como modo linguístico não ancorado no eu-aqui-agora do discurso e (iii) o domínio da correlação entre introdução de um referente novo e utilização de SN’s não definidos. (BATORÉO, H. J. e I. DUARTE 1999) 13 in TORRES, N., (2005), Pirilampo 3. Língua Portuguesa. Edições Nova Gaia, p. 120. 57
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isoladas das relativas: 24. #Era uma vez um mealheiro.
4. Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula? 4.1. Diferentes subtipos de orações relativas – quando inseri-los na sala de aula? O estudo da frase complexa, de um modo geral, é proposto nos Programas muito tardiamente em relação ao nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos e a frequência com que estes utilizam os diferentes tipos de orações. Porque a própria concepção dos Programas prevê que “a reflexão sobre o funcionamento da língua acompanhe e favoreça o desenvolvimento das competências dos alunos” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 1995: 2), pensamos que a introdução das orações relativas restritivas proposta para o 9º ano se realiza demasiado tarde14, quando, na verdade, a frequência de uso destas orações é elevada já no nível do 7º ano de escolaridade, a nível da escrita. Além da sua elevada ocorrência, são de precoce aquisição (adquiridas entre os 32-33 meses), muito antes do que as adverbiais temporais15 (38-39 meses), por exemplo, cujo estudo é proposto para o 7º ano16. Outro dos aspectos que reteve particularmente a nossa atenção foi a questão dos subtipos de orações relativas propostos pelos Programas: estes propõem que se trabalhe unicamente as “orações subordinadas relativas restritivas com antecedente” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 1995: 52). Veja-se que os Programas, neste conteúdo, apresentam uma dupla limitação: por um lado, propõem o tratamento explícito das orações relativas muito tarde em relação ao desenvolvimento cognitivo do aluno e à sua competência linguística; por outro lado, restringem o seu tratamento apenas às relativas restritivas, quando existem, pelo menos (se não considerarmos as relativas apresentativas), mais dois subtipos, as relativas apositivas e as livres. Nesta perspectiva, e porque a abordagem das orações relativas proposta pelos programas no 9º ano se faz demasiado tarde e limita o estudo a um único subtipo “verificar a natureza das relações entre diferentes espécies de orações subordinadas (orações subordinadas consecutivas e concessivas; orações subordinadas relativas restritivas com antecedentes)” é um dos processos e níveis de operacionalização para o 9º ano de escolaridade (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 1995: 52).
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15 citadas. 16
Sobre as orações adverbiais cf. o estudo de LOPES, H. C. (2004) e as referências aí
Um outro conteúdo que nos parece ser introduzido demasiado tarde é o das orações completivas, só proposto para o 8º ano. Veja-se que estas orações subordinadas são as primeiras a serem adquiridas pelas crianças, aproximadamente aos 30 meses, segundo o estudo de APARICI et al. (1996) para o castelhano.
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(orações relativas restritivas), propomos uma reorganização da introdução dos diferentes subtipos de orações relativas no Ensino Básico, que se apresenta organizada da seguinte forma: 1 - orações relativas restritivas, estudadas logo no 1º ou 2º ciclo, após o estudo dos constituintes da frase, uma vez que estas orações aparecem como prolongamento de um constituinte; as orações completivas e as orações relativas restritivas seriam estudadas no mesmo nível de ensino, as primeiras como um constituinte sintacticamente obrigatório que desempenha funções idênticas à de constituintes nominais (SN) e a segunda como uma estrutura encaixada num SN (constituinte com função de sujeito ou complemento directo) que surge como forma de o expandir e cuja função é semelhante à dos adjectivos (modificadores restritivos do nome). 2 - orações relativas apresentativas; pela sua frequência nos níveis mais baixos, nomeadamente em abertura de narrativas, propomos que sejam trabalhadas no ano seguinte ao estudo das restritivas, 6º ou 7º anos. Esta proposta prende-se com o facto de a sequência textual em que ocorrem, a narrativa, ser muito trabalhada nestes anos lectivos e porque são características do chamado conto tradicional. Da observação dos Programas do Ensino Básico (2º e 3º Ciclos) constatamos que o conto tradicional integra a lista de propostas de obras para leitura orientada do 5º e 6º anos de escolaridade17. Deste modo, propomos que o estudo deste subtipo de orações relativas seja realizado preferencialmente até ao 6º ano, pelas razões já descritas, embora possa estender-se ao início do 7º ano. 3 - orações relativas apositivas, que são excluídas das propostas programáticas, poderiam ser introduzidas no fim do 3º ciclo, a par do estudo da função sintáctica de modificador apositivo de nome (aposto), proposta para o 9º ano. LOPES, H. C. (2004: 338) é da mesma opinião, até porque, como refere a autora e de forma muito pertinente, “é difícil trabalhar a noção de aposto sem referir as orações relativas apositivas”. 4 - por fim, as orações relativas sem antecedente expresso ou relativas livres (também excluídas nos actuais programas); julgamos que, pelo nível de competência gramatical desenvolvido que estas construções requerem, deveriam ser abordadas no final do 9º ano e retrabalhadas no Ensino Secundário. Por razões já explicitadas nesta comunicação, as relativas apresentativas têm características discursivo-pragmáticas que as permitem identificar claramente com a sequência narrativa, daí que tenhamos corroborado a ideia do seu tratamento em aula 17
Cf. ME (1991: 28-29) e ME (1995: 33-36).
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paralelamente ao estudo dos contos tradicionais. Em suma, pensamos que o ensino da gramática, especialmente o das orações em análise, deve ser repensado, de forma a adequá-lo ao desenvolvimento da competência linguística do aluno em determinado nível de ensino, como síntese apresentamos no Quadro 1, anexo I. 5.2. Orações relativas – como inseri-las na sala de aula? Dado o papel que a linguagem desempenha na comunicação e na veiculação das aprendizagens (escolares e não escolares), a estimulação linguística é fundamental para o crescimento do sujeito. No terceiro capítulo de MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO (1997: 36), intitulado «Princípios Orientadores do Ensino da Língua Materna», pode ler-se que, para além do domínio implícito da língua materna, “as aprendizagens escolares, particularmente a mestria da leitura e da escrita, implicam formas de apreensão do conhecimento que mobilizam um conjunto de processos cognitivos conducentes à consciencialização do conhecimento já implícito e à análise e explicitação de regras, estratégias e técnicas que devem ser objecto de um ensino sistematizado, rigoroso e cuidado por parte da escola”. Embora a leitura e a escrita sejam domínios que necessitem de uma aprendizagem para se desenvolverem e a gramática do oral seja apreendida por aquisição (pois faz parte do domínio implícito da língua), esta também deve ser objecto de estudo sistematizado e programado em contexto escolar. Não podemos ensinar gramática só porque, por acaso, um determinado conteúdo vem a propósito ou a aula terminou mais cedo do que o programado. No domínio da gramática há aquisições implícitas, realizadas intuitivamente pelo sujeito, mas que precisam de uma reflexão, observação e descrição orientadas para se tornarem conscientes. Neste sentido, “seria importante que o ensino da gramática fosse sempre orientado na perspectiva de que a descrição gramatical é a descoberta do conhecimento linguístico que os falantes e, neste caso, os alunos espontaneamente dominam sem terem consciência disso”18 (BRITO, A. M. 1997: 56). “A gramática deve ser ensinada de forma explícita, consciente e integrada nos outros domínios da aprendizagem, como a leitura, a escrita, a oralidade, desde os primeiros anos de escolaridade” (FIGUEIREDO, O. 2000: 181). Estamos a pensar sobretudo na noção de gramática como descrição do conhecimento linguístico interiorizado dos sujeitos falantes, imposta na segunda metade do século XX sob influência do linguista suíço Ferdinand de Saussure e, posteriormente, o paradigma generativo. Esta concepção opõe-se à noção instrumental, conservadora e normativa de gramática, a qual exerce grande influência no ensino da língua materna até ao século XIX.
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Se é certo que a reflexão gramatical deve existir nas aulas de língua materna19, então coloca-se a questão de saber quais os métodos que se apresentam mais adequados e eficazes para a sua transposição pedagógico-didáctica. A primeira consideração a ser feita é que reflectir sobre a estrutura e o funcionamento da língua não é uma mera actividade de apresentação de etiquetas e regras que se espera que os alunos memorizem. Trata-se, muito pelo contrário, de “um trabalho, organizado e em progressão, de observação e sistematização dos paradigmas e grandes regularidades da língua” (DUARTE, I. 2000: 56). Neste sentido, a reflexão gramatical envolve, pelo menos, quatro fases: observação dos dados disponibilizados pelo professor (que devem ser devidamente seleccionados e organizados); detecção de padrões de comportamento ou correlação de propriedades; propostas de generalização de regras; e avaliação dos dados. A nível prático, deve ainda existir actividades de treino do conhecimento adquirido, que permite a confirmação ou reformulação da generalização. Se o trabalho for conduzido desta forma a aula de língua materna proporcionará ao aluno o jogo da descoberta (factor imprescindível ao conhecimento) e “assumirá assim um papel formativo e não apenas informativo e de memorização, semelhante ao que se passa nas aulas de Matemática e de Ciências da Natureza, e desenvolvendo nos alunos a capacidade de raciocínio abstracto” (BRITO, A. M. 1997: 57). Tendo por base estas considerações acerca da reflexão gramatical em geral e dos métodos a utilizar na aula de língua materna, reflictamos agora acerca da abordagem das orações relativas. As orações relativas são um conteúdo complexo, que implica um amplo trabalho quer ao nível da palavra (pronomes e antecedentes), quer ao nível da frase (confronto com outras orações, nomeadamente as completivas finitas) e do texto (valor coesivo do pronome relativo), por isso pensamos que se poderá dividir o seu estudo em três etapas: estudo da palavra; da frase e do texto. Cada etapa deste estudo compreenderá o trabalho sistematizado e ordenado das fases antes descritas (observação; detecção de regularidades; generalização e avaliação). Desta forma, sugerimos que, na primeira etapa do estudo das orações relativas (que pode ser no 5º/6º anos, uma vez que os Programas propõem o estudo dos pronomes para este nível), se trabalhe o pronome relativo (identificação, função e sua relação com o antecedente), para assim levar os alunos a adquirir automatismos necessários DUARTE, I (2000: 55-57) apresenta três argumentos a favor da importância da reflexão gramatical no ensino da língua materna: constitui uma actividade metacognitiva; facilita o acesso ao Português padrão; permite a consciencialização de mecanismos e processos linguísticos desejavelmente mobilizados no escrito.
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ao estudo das orações que introduzem. O aluno só compreenderá que uma oração relativa é a expansão de um determinado SN e, em termos sintácticos, faz parte desse SN, quando perceber a relação anafórica que se estabelece entre o pronome e o nome que ele substitui na oração encaixada. Pensamos ser também essencial que o aluno entenda que esse pronome tem uma função específica dentro da oração relativa e que pode ser distinta da do seu antecedente. Quer dizer, já aqui o estudo da palavra é indissociável do estudo da frase. Numa segunda etapa é imprescindível que se reflicta sobre frases complexas que contenham relativas e completivas finitas, aproveitando se for necessário as hesitações e as dúvidas quanto à classificação do que relativo e do que integrante ou complementador para reflectir sobre as possibilidades da língua. Pensamos que a comparação entre estas duas orações irá levar o aluno a distinguir com clareza uma oração que é um acrescento ao SN e uma oração que é um argumento seleccionado por um verbo. Este tipo de exercício pode ser um complemento do anterior uma vez que insiste novamente na relação com o antecedente; de facto, o vocábulo ao qual um pronome relativo se liga é um nome, incluído num SN, e o vocábulo com o qual a oração introduzida por uma conjunção integrante estabelece relações estreitas é geralmente um verbo, fazendo juntos o SV. Numa terceira etapa (que pensamos ser adequada ainda no 6º ano), e nunca uma única vez, porque há muitos aspectos a trabalhar, poder-se-á reflectir sobre o carácter coesivo do pronome relativo, trabalhando-a, deste modo, ao nível do texto. Numa actividade de aperfeiçoamento de texto, trabalhando a coesão textual, poder-se-á trabalhar o conteúdo “orações relativas”, pois estas impedem a repetição lexical e permitem o enriquecimento do texto (evitando repetições léxicas, por exemplo). Para que um texto se possa considerar bem constituído, é necessário que exista coesão entre as suas partes, isto é, que os sucessivos enunciados estejam ligados mediante processos morfosintácticos, lexicosemânticos e referenciais: os conectores extraoracionais, que asseguram a conexão semântica das orações; as formas léxicas (repetição ou substituição de lexemas, relações semânticas entre lexemas, ...) e gramaticais (pronomes, advérbios, elipses, oposição definido / indefinido, determinado / indeterminado, ...) cuja referência está no próprio texto; relação entre tempos verbais, etc. Segundo ZAYAS, F. (1997: 202), o domínio destes processos no acto da escrita “constituye uno de los espacios de intervención didáctica más importantes. En este espacio es donde hay que situar buena parte de las actividades gramaticales, de 62
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manera que quienes aprenden a escribir usen con destreza estos procedimientos y sean capaces de revisar sus textos, es decir, puedan identificar los problemas de cohesión, diagnosticarlos e resolverlos mediante las oportunas modificaciones.” A coesão textual e os processos anafóricos que a asseguram já figuram no Programa do 2º Ciclo do Ensino Básico, que propõe nos processos e níveis de operacionalização “Aperfeiçoar a coesão textual através da utilização de palavras de sentido equivalente, de sentido mais geral ou de sentido mais restrito”, em que se está a fazer referência às relações lexicais e gramaticais, e “treinar a delimitação do período e do parágrafo no decurso do aperfeiçoamento de textos” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 1991: 4142). Como vemos, o conteúdo “orações relativas” deve ser trabalhado, desde o início do seu estudo, com os pronomes relativos, numa perspectiva textual, pois só assim se intervém eficazmente ao nível do aperfeiçoamento de texto20. Quando falamos em aperfeiçoamento de texto estamos a colocar a tónica no processo e na diversidade de operações que a actividade de escrita implica, pois a “intervenção educativa durante o processo de construção discursiva permite, por um lado, oferecer ajudas para melhorar o texto antes de o terminar; por outro lado, permite mostrar aos estudantes que escrever é um processo complexo de construção e reconstrução textual” (CAMPS, A. 2003: 209), que passa por várias fases: planificar, escrever e reescrever. A revisão e a reescrita podem ser efectuadas em todos os níveis: locais e globais. Sem dúvida que a atenção posta no processo de construção textual permite situações propícias a uma aprendizagem da língua e sobre a língua, integrada nas necessidades da produção escrita. Nesta perspectiva, a reflexão gramatical adquire um duplo sentido para os alunos: por um lado, apresenta-se como uma descoberta do conhecimento intuitivo dos falantes; por outro, converte-se num instrumento para a melhor compreensão e produção de textos, inter-relacionando, desta forma, os conhecimentos específicos (lexicais, sintácticos, morfológicos, etc.) com as actividades de uso da língua. Esta será, sem dúvida, uma forma de a língua escrita propiciar a actividade metalinguística que, de certo modo, lhe é inerente. Já o Programa do 1º Ciclo constata esta dupla funcionalidade da reflexão sobre a língua: “o Módulo Funcionamento da Língua Os Programas apresentam uma deficiente compartimentação dos conteúdos pelos 5 anos do Ensino Básico (2º e 3º Ciclos), pois propõem o conteúdo aperfeiçoamento de texto no 2º Ciclo, quando, na verdade, os meios para levar a cabo tal tarefa são apenas propostos no 3º Ciclo (por exemplo, a coordenação e a subordinação).
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- Análise e Reflexão deve ser entendido como um instrumento de descoberta e de desenvolvimento das possibilidades de uso da Língua e de aprendizagem da Escrita e da Leitura” (MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO, 1990: 120). Uma abordagem das orações relativas deste género poderá ser levada a cabo em qualquer dos níveis de ensino propostos anteriormente, com atenção aos subtipos de relativas e graus de dificuldade diversos. 6. Considerações finais a) Embora as orações relativas surjam na linguagem das crianças por volta dos 3 anos21, particularmente com mais facilidade as encaixadas à direita e com foco no complemento directo, o conhecimento sintáctico que permite a construção de orações relativas, bem como a de outras construções complexas, está ainda em desenvolvimento à entrada no 1º ano do Ensino Básico. b) Motivados pelas características sintáctico-semânticas de alguns construções de orações relativas, nomeadamente aquelas que integram o determinante indefinido um, propusemos, na sequência de Kleiber, uma revisão dos subtipos de relativas, que vai no sentido de considerar que às relativas com determinante indefinido um como antecedente não se adequa facilmente à oposição relativa restritiva/ relativa não restritiva e que o mais importante parece ser a distinção entre um específico e um não específico. d) Foi na posse destes dados que o conteúdo orações relativas foi abordado no ponto 5., analisando-o numa perspectiva pedagógico-didáctica. Neste âmbito e tendo os Programas de Língua Portuguesa dos 2º e 3º ciclos por referência, foi notado que os Programas apresentam uma deficiente compartimentação dos conteúdos gramaticais pelos cinco últimos anos do Ensino Básico, propondo-se a abordagem das orações relativas demasiado tarde (apenas no 9º ano) em relação à frequência com que ocorrem nos textos escritos e ao desenvolvimento cognitivo dos alunos e cingem o seu estudo apenas ao subtipo das relativas restritivas. Não se põe em causa que se inicie o percurso por este subtipo de relativas, o que, de certa forma, tem a sua justificação uma vez que são as relativas mais típicas, o que encontramos discutível é a sua abordagem apenas no 9º ano de escolaridade. Porque a aprendizagem, em oposição à aquisição (via exposição), envolve um conhecimento consciente, sugerimos que o ensino da gramática se conduza de forma a levar os alunos a tornar conscientes os conhecimentos adquiridos intuitivamente Cf. estudo de VASCONCELOS (1991) para o português e outros para outras línguas maternas.
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e a adequar as actividades de uso da língua, a nível da produção escrita, com os conhecimentos específicos do seu funcionamento. Neste sentido, entendemos que o recurso à reflexão linguística no ensino da gramática é o meio mais natural e eficiente de conduzir o aluno ao metaconhecimento da sua língua materna, podendo ser conduzida como um trabalho experimental com quatro fases: observação, detecção de regularidades, generalização e avaliação. O grande objectivo do ensino da gramática deve, assim, assentar no desenvolvimento de capacidades metalinguísticas, para que à proposta de ensino do professor corresponda o comportamento de aprendizagem do aluno. Bibliografia Aparici et al. (1996). El orden de adquisición de morfemas en catalán y castellano. In Pérez-Pereira (Ed.), Estudios sobre la adquisición del castellano, catalán, eusquera y gallego. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela. Brito, A. M. (1991). A sintaxe das orações relativas em português. Estrutura, mecanismos interpretativos e condições sobre a distribuição dos morfemas relativos. Tese de doutoramento. INIC, Porto. Brito, A. M. (1997). Retomar e reinventar o ensino da gramática da língua materna. In A língua mãe e a paixão de aprender homenagem a Eugénio de Andrade, Actas do 2º Encontro de Professores de Português. Porto: Areal Editores. Brito, A. M. & Lopes, H. C. (2001). Da linguística ao ensino da gramática: para uma reflexão sobre a coordenação e a subordinação. In F. I. Fonseca, I. M. Duarte & O. Figueiredo (Orgs.), A linguística na formação do professor de português. Porto: CLUP. Brito, A. M. & Duarte, I. (2003). Orações relativas e construções aparentadas. In M. H. Mateus et al., Gramática da língua portuguesa (5ª ed.) (pp. 653-694). Lisboa, Caminho. Camps, A. (2003). O ensino e a aprendizagem da composição escrita. In C. O. Lomas, O valor das palavras (I). Falar, ler e escrever nas aulas (pp. 2001-222). Porto: 65
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Edições ASA. Cunha, C. & Cintra, L. (1997). Nova gramática do português contemporâneo (13ª ed.). Lisboa: Sá da Costa. Choupina, C. (2004). Orações relativas : aspectos descritivos e didácticos. Tese de mestrado. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto. Duarte, I. (2000). Língua portuguesa. Instrumentos de análise. Lisboa : Universidade Aberta. Figueiredo, O. (2000). A anáfora nominal em textos de alunos. Tese de doutoramento. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto. Kleiber, G. (1987). Relatives restrictives/relatives appositives: dépassement(s) autorisé(s). Les Types de Relatives. Langages, 88, 41-63. Lambrecht, K. (2000). Prédication seconde et structure informationnelle: la relative de perception comme construction présentative. La Prédication Seconde. Langue Française, 127, Septembre, 49-66. Lopes, H. C. (2004). Aspectos sintácticos, semânticos e pragmáticos das construções causais. Contributos para uma reflexão sobre o ensino da gramática. Tese de doutoramento. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto. Ministério da Educação (1994). Programas de língua portuguesa. Plano de organização do ensino-aprendizagem, vol. II, ensino básico 2º Ciclo (2ª ed.). Lisboa: M. E. Ministério da Educação (1998). Programas de língua portuguesa. Plano de organização do ensino-aprendizagem, vol. II, ensino básico 3º Ciclo, (6ª ed.). Lisboa: M. E. Ministério da Educação (1997). A língua materna na educação básica. Competências nucleares e níveis de desempenho. Lisboa: M. E.
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Pereira, D. R. (1992). O papel dos diferentes ambientes da língua de input no processo de aquisição, desenvolvimento e aprendizagem da língua materna. In M. D. Martins et al., Para a didáctica do português. Seis estudos de linguística. Lisboa, Edições Colibri. Serra, M. et al. (2000). La adquisición del lenguaje. Barcelona: Editorial Ariel. Sim-Sim, I. (1998). Desenvolvimento da linguagem, Lisboa: Universidade Aberta.
Torres, N. (2007). Pirilampo 3. Língua portuguesa. (3ª Ed.). Edições Nova Gaia. Vasconcelos, M. (1996). Compreensão e produção de frases relativas em português europeu. In I. H. Faria et al., Introdução à linguística geral e portuguesa (pp.323-330). Lisboa: Caminho. Vasconcelos, M. (1991). Compreensão e produção de frases com orações relativas. Um estudo experimental com crianças dos três anos e meio aos oito anos. In I. Sim-Sim, (1998), Desenvolvimento da linguagem. Lisboa: Universidade Aberta. meio, Dissertação de Mestrado em Linguística Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa. Zayas, F. (1997). Las actividades gramaticales desde una perspectiva textual. In C. Lomas & A. Osoro (Org.), El enfoque comunicativo de la enseñanza de la lengua. Barcelona: Paidos.
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Anexo I Quadro 1 - Proposta de introdução dos diferentes subtipos de orações relativas no Ensino Básico Conteúdos Programáticos
Proposta de abordagem dos diferentes subtipos de orações relativas
1º C 2º C
5º ano 6º ano
Ensino Básico
7º ano
3º C
8º ano
9º ano
- orações relativas restritivas Frase complexa: - coordenação; . copulativas . adversativas . disjuntivas . conclusivas - subordinação: . temporais . causais
- orações relativas apresentativas
Frase complexa: - coordenação; - subordinação: . condicionais . finais . completivas ou integrantes Frase complexa: - coordenação; - subordinação: . consecutivas . concessivas . relativas restritivas com antecedente
- orações relativas apositivas
- orações sem antecedente expresso ou relativas livres Secundário
Adaptado de CHOUPINA, C. (2004)
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Viajar para aprender: implicações e potencialidades das TIC no desenvolvimento da literacia1
Clara Ferrão Tavares Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém CIDTFF da Universidade de Aveiro CEDICLEC-Université de Saint Étienne
Palavras-chave
Literacia digital, leitura electrónica, zona potencial de desenvolvimento, inteligência colectiva.
Resumo
Este artigo tem como finalidade mostrar algumas implicações das TIC na aula de língua portuguesa, no 1.º ciclo do ensino básico. Num primeiro momento, apresentam-se justificações para a presença de um módulo sobre as TIC integrado no Programa Nacional de Ensino do Português (PNEP), destinado aos professores. Define-se o conceito de literacia digital e, em seguida, procura caracterizar-se o processo de leitura electrónica, com a proposta de algumas actividades pedagógicas. Por último, aborda-se a dimensão comunicativa da literacia digital em relação com os dispositivos de partilha do conhecimento.
Introdução «Magalhães» chegou às escolas, a banda larga chegou a muitas escolas, muitas salas foram equipadas com computadores, projectores, quadros interactivos multimédia… A disponibilização das tecnologias constitui, efectivamente, o primeiro passo para que todos os cidadãos possam aceder à informação. A questão a que importa dar resposta, a partir deste momento, é a seguinte: e agora… que usos vai a Escola fazer das tecnologias e dos equipamentos para os alunos transformem essa informação em conhecimento? Em 1976, na sequência da publicação de Un Niveau Seuil, obra que iria ter grandes implicações na aula de língua (estrangeira mas também materna), Eddy Roulet colocava a seguinte questão: «À quoi bon introduire dans les cours un document authentique pour le réduire à une analyse grammaticale traditionnelle?» (Eddy Roulet, 1 Este artigo retoma partes e propostas apresentadas na brochura Implicações das TIC no Ensino da Língua, Ferrão Tavares e Barbeiro (no prelo), disponibilizada no âmbito do Programa Nacional de Ensino do Português (PNEP). 69
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1976) Colocámos esta mesma questão no momento em que fomos encarregados de propor uma brochura sobre as implicações das TIC na aula de língua, no âmbito do PNEP. A metáfora que está na base da designação dos computadores, apesar de ser posterior à brochura construída, resume a nossa perspectiva: para que os alunos possam ser «Magalhães». Michel Serres em «Le tiers instruit» convida alunos e professores à viagem porque «aucun apprentissage n’évite le voyage». E o filósofo acrescenta ainda em relação a si próprio «je n’ai rien appris que je ne sois parti, ni enseigné autrui sans l’inviter à quitter le nid» (1991 : 27). Os computadores vão dar (nas escolas onde há Internet) a possibilidade a todos os alunos de «sair» da sua sala e “viajar” na descoberta e construção do conhecimento, para encontrar outros alunos, outras escolas, outros espaços de aprendizagem. Viagem que implica um projecto, um roteiro; que implica armazenar “víveres”, vencer obstáculos com esforço e determinação, para se obter a gratificação da chegada. «Qui ne bouge n’apprend rien» (idem. p.28) sublinha, ainda, Michel Serres. Equipar escolas e fornecer computadores aos alunos para estes fazerem só “jogos”, palavras cruzadas, sopas de letras, exercícios de completamento de espaços, ou colocar quadros interactivos multimédia para que os alunos “arrastem” imagens de objectos para junto de palavras ou frases não nos parecem justificações suficientes para o enorme investimento em tecnologias, mesmo considerando o efeito no reforço da motivação dos alunos2. Do mesmo modo, fornecer computadores aos alunos para que estes viajem sozinhos, na escola ou em casa, muitas vezes trancados nos quartos, poderá gerar efeitos indesejáveis. Torna-se , assim necessário que a Escola assuma o papel de “guia”. «Sous la conduite d’un guide, l’ éducation pousse à l’extérieur» (ibidem) refere ainda o filósofo francês. A brochura sobre As implicações das TIC na aula de língua pretende ajudar os professores a desempenhar essa função. Permitam-nos um recuo no tempo e nas «tecnologias». A observação de algumas propostas de materiais pedagógicos para utilização nos computadores ou nos quadros interactivos fizeram-nos «viajar» no tempo em que éramos alunos ou até no tempo em que os nossos pais foram alunos. Com efeito, por volta dos anos 40 – 60 do século passado, os liceus portugueses foram equipados com quadros parietais: os «Tableaux Delmas»3. Estes quadros, que hoje fazem parte da colecção do Ministério da Educação, apoiaram a difusão, entre nós, do método directo no ensino das línguas (o método directo foi adoptado em Portugal nos últimos anos do século XIX, princípios do Século XX) e levavam a que as crianças verbalizassem o vocabulário organizado em «centros de interesse», como as divisões da casa, a praia, a estação de caminhos de ferro, etc, como se vê nas reproduções de quadros seguintes. 2
O que não quer dizer, evidentemente, que não se façam exercícios deste tipo, no computador ou nos quadros interactivos ou até em papel. 3 http://www.eexhibitions.net/platform/common/PublishedExhibitions/000000000238/1_1/por_1.htm
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Inventário e Digitalização do Património Museológico da Educação (http://edumuseu. sg.min-edu.pt/
Através destes quadros eram apresentadas «coisas»4 em contexto, a partir de imagens com qualidade estética. A partir destes suportes, os alunos referiam os nomes dos objectos, contavam histórias, descreviam a praia, a estação; enumeravam… davam opiniões. Verbalizavam noções de espaço, de tempo, de qualificação, de quantificação… Empregavam conjunções, verbos, nomes, adjectivos, determinantes, pronomes, numerais… E, através das imagens marcadas culturalmente, “viajavam” por outros países. Concluindo este parêntesis para nos ajuda a reflectir sobre as inovações que decorrem das “tecnologias” , importa sublinhar que, em termos de operações cognitivas e discursivas mobilizadas pelos alunos e verbalizadas, a exploração destes suportes5 ia muito além do que algum software educativo. Importa, assim, propor, hoje, usos das tecnologias que equipem os alunos com instrumentos de “navegação”. A observação de práticas das crianças com os computadores ou de algumas propostas pedagógicas de tipo comercial ou feitas pelas escolas, levaram-nos, com efeito, a reflectir sobre o potencial de aprendizagem que decorre do uso das TIC. Quando utilizamos o termo «potencial» temos presente a designação de «zona de desen4 5
Segundo o princípio das «lições de coisas» de Maria Montessori. Veja-se o retrocesso, em termos metodológicos de algumas actividades propostas em suportes digitais. Veja-se também o retrocesso de algumas ilustrações de páginas WEB (muitas vezes imagens com função unicamente referencial) em comparação com a diversidade dos álbuns infantis em suporte papel (imagens com função referencial, estética, simbólica, humorística…).
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volvimento potencial» que, em 1934, Vygotski desenvolveu pondo em destaque o papel do Outro – o elemento mais experiente que ajuda as crianças a atingir níveis de domínio e desempenho que, por si sós e sem ajuda, não conseguiriam alcançar. Para o autor, o funcionamento inteligente é mediado por agentes, ferramentas e sinais (a linguagem, os símbolos, etc.) que transformam as acções dos indivíduos. A aprendizagem tem lugar, por conseguinte, num contexto social. No contexto social em que nos encontramos hoje, dispomos de várias ferramentas tecnológicas recorrendo a diferentes linguagens que poderão levar as crianças a alcançar níveis de desenvolvimento mais elevados; mas esse processo exige, quase sempre, a mediação da família e da Escola (Ferrão Tavares, 2000, 2007). Os computadores – e sobretudo a Internet – abriram a Escola a outros espaços. As crianças podem ser “descobridores”, “sair” da sala e visitar bibliotecas, museus, jardins, cidades, aldeias, em Portugal, na Europa, no Mundo. Por um lado, a sala de aula, as actividades e os produtos aí realizados podem abrir-se ao mundo, por meio da Internet. Por outro, os computadores implicaram outras formas de ler e escrever e de partilhar os nossos textos, pelo que o domínio precoce das tecnologias pode desenvolver a relação das crianças com a leitura e a escrita e atenuar os efeitos das desigualdades, no domínio da literacia. Foram estas as razões que nos levaram a propor um módulo sobre as implicações das tecnologias na aula de língua portuguesa no âmbito do PNEP. Não se trata, no caso deste programa, de desenvolver «competências básicas em TIC por parte dos professores». Esse objectivo tem estado presente noutros programas. Mas trata-se de desenvolver, nos professores e nos alunos, a literacia digital ou as literacias, colocando-as ao serviço da aprendizagem. Partamos, assim, da definição do termo literacia ou de literacias, nomeadamente de literacia informática, de literacia digital ou de literacia multimodal. A literacia, numa perspectiva ampla, pode ser definida como o tratamento cognitivo do quotidiano, isto é: o tratamento – em simultâneo e em diferido – de vários suportes, e, importa sublinhá-lo, de várias linguagens já que a literacia é o tratamento cognitivo não apenas dos signos linguísticos, mas da imagem (imagem concreta, imagem abstracta, imagem simbólica). Este tratamento da informação multimodal exige a capacidade do leitor gerir a simultaneidade e a contracção da informação (Ferrão Tavares, 2008). Enquanto termo genérico, a literacia inclui (embora não se limite à) a literacia numérica, a literacia mediática, a literacia científica, a literacia emocional… interessando-nos, ainda, referir os conceitos de literacia informática e de literacia digital. O primeiro, que data dos anos 80 do século XX, pode definir-se como a capacidade de utilizar um computador enquanto conjunto de habilidades técnicas e instrumentais. O segundo, que começa a desenvolver-se nos anos 90, implica o domínio de um conjunto de competências com vista a favorecer nos utilizadores as potencialidades comunicativas das TIC, por exemplo ser capaz de utilizar as TIC para a selecção de 72
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uma informação determinada, para a construção de um determinado saber e para o desenvolvimento de um pensamento crítico e criativo (Larose et al. in Desbiens et al. 2004). No documento da Comissão Europeia Implementation of Education and Training 2010. Work Programme», de Novembro de 2004, refere-se que a literacia digital «involves the confident and critical use of electronic media for work, leisure and communication. These competences are related to logical and critical thinking, to high-level information management skills, and to well-developed communication skills. At the most basic level, ICT skills comprise the use of multi-media technology to retrieve, assess, store, produce, present and exchange information, and to communicate and participate in networks via the Internet.” (Education and training 2010, 2004:7). A opção tomada ao propor uma brochura sobre a utilização das TIC no âmbito do PNEP visa o desenvolvimento da literacia digital de professores e alunos, para que estes armazenem, seleccionem, hierarquizem, construam e partilhem informação. Para que proponham a leitura de textos, por obrigação e pelo prazer de ler, leitura do ser humano, leitura do Mundo. A literacia implica a apropriação do conhecimento e o desenvolvimento do pensamento crítico e de competências comunicativas e relacionais. Na sequência do exposto, a tarefa do professor é, hoje, muito mais complexa do que no tempo em que devia alfabetizar todos os alunos, apesar da aparente facilidade com que acedemos à informação. Com efeito, o tratamento da informação multimodal, apresentada de forma simultânea e não só sequencial (como no livro ou na sala de aula) exige o tratamento da complexidade e implica flexibilidade do leitor. Assim, para se utilizar bem o computador e sobretudo a Internet impõe-se que o leitor seja um bom leitor, contrariamente a muitas representações de professores e de encarregados de educação. No âmbito da nossa participação no PNEP, com a brochura dedicada às implicações das TIC na aula de língua, pretendemos, entre outros objectivos que não desenvolvemos neste artigo, que os professores. • Integrem nas actividades a propor às crianças documentos multimédia; • Acompanhem as crianças nos seus processos de procura e selecção de informação, construindo itinerários de pesquisa. • Tirem partido das potencialidades comunicativas dos dispositivos tecnológicos. Vamos, assim, por caracterizar os processos de leitura electrónica com utilização do computador, propondo alguns exemplos de actividades pedagógicas para o desenvolvimento da literacia digital. 1. As TIC e a leitura: manipulação, apropriação e interpretação 73
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Em relação à leitura no ecrã, um primeiro plano que nos parece importante abordar prende-se com a definição de hipertexto. T. H. Nelson, em 1965, utilizou o termo «hipertexto» para designar «uma escrita não sequencial». Trata-se de um texto aberto ou plural que estabelece redes intertextuais. O leitor escolhe o seu percurso entre os diferentes blocos de texto que se ligam através de elos (http://pt.wikipedia.org/wiki/ Hipertexto). Um outro investigador Pierre Levy (2003) enumera alguns princípios do hipertexto que nos permitimos resumir numa perspectiva pedagógica. O primeiro princípio que distingue o autor de obra disponibilizada na rede Inteligência colectiva6 engloba, de certa forma, todos os outros é o da «metamorfose». O hipertexto apresenta possibilidades de mobilidade intrínseca, é imaterial e fugitivo. As mutações decorrem não só no ecrã, reflexo do que se passa na rede, mas são também geradoras de percursos do leitor. O hipertexto é heterogéneo, permitindo passagens entre códigos semióticos diferentes. A rede constitui-se a partir de vários centros, configurando-se e reconfigurando-se permanentemente. Permite uma multiplicidade de percursos, de organizações de informações hipertextuais, quebrando fronteiras no espaço e no tempo. Os elementos de coesão discursiva e as transições que nos conduzem através do texto escrito estão muitas vezes ausentes, permitindo circulações multidireccionais. A capacidade do hipertexto se «metamorfosear» obriga o leitor a construir a sua sequência de maneira diferente, a proceder por associações em função de um projecto de leitura. O ecrã mostra e esconde e o leitor constrói o seu percurso, o seu projecto, através de circulações multidireccionais, fazendo deslizar o texto no ecrã, “folheando“, isto é, sobrepondo janelas no seu ecrã. Apesar das fronteiras entre o hipertexto, o hipermédia e o multimédia serem ténues (já que um texto pode ser e é, quase sempre, heterogéneo), poderemos considerar o hipermédia como um sistema que permite ao utilizador escolher o seu percurso, condensando num único meio diferentes linguagens (gráficas, iconográficas, textos escritos, imagens, filmes, sons). O multimédia implica a integração dos diferentes suportes através das possibilidades de interactividade. As características dos “textos” digitais apontadas modificam, evidentemente, as nossas maneiras de ler e de escrever. Estas dependem não só de situações de leitura como do tipo – e até do suporte – do texto. Lemos de maneira diferente um horário de comboio consoante está afixado num grande ecrã, num pequeno desdobrável ou na Internet; consoante estejamos a preparar uma viagem com antecedência ou no momento que antecede a partida de um comboio… Convirá, ainda, sublinhar que a leitura electrónica é uma actividade complexa, envolvendo a realização de várias acções e operações cognitivas. Como se pode ler numa obra com um título sugestivo, L’outre-lecture: manipuler, (s’) approprier, interpréter le web (Ghitalla et al., 2003), na web é preciso «fazer para ler», assim como é preciso «ler para fazer». Como afirma Ghitalla, «descrever as novas articulações 6
http://inteligenciacolectiva.bvsalud.org/ 74
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entre ler e fazer é crucial para compreender a mudança no acto de ler, quer dizer, como o processo de leitura em suporte impresso (textual) se transforma num processo de recepção/tratamento/actualização da informação em formatos plurais em suporte numérico». (Ghitalla, 2003: 181) Procuraremos caracterizar algumas operações cognitivas que mobilizamos para ler e pesquisar informação na Internet, propondo um esquema construído a partir do título da obra referida L’outre- lecture: manipuler, (s’) approprier, interpréter le web (Ghitalla et al., 2003) e da afirmação seguinte: Apesar das mutações nos suportes, a leitura continua a ser «a actividade-chave para aceder ao conhecimento na Internet» (Colombi et al. in Piolat: 39). A LEITURA COMO ACTIVIDADE-CHAVE PARA ACEDER À INFORMAÇÃO NA INTERNET E COMO FORMA DE COMUNICAÇÃO MANIPULAR
APROPRIAR-SE
Acção
Elaboração de 1º projecto de leitura
Técnica
Mobilização de conhecimentos prévios Antecipação Formulação de hipóteses Recolha de indícios
Rotinas Exploração do «mosaico» Procura de indícios icónicos e linguísticos Experiência individual de leitura
Relação com representações sobre os conteúdos e sobre a rede Reconhecimento automático de palavras Conhecimento da língua Contextualização
INTERPRETAR Reelaboração do projecto Formulação de novas hipóteses Testagem das hipóteses Conceptualização Integração em rede pessoal de conhecimentos Crítica das fontes Confronto com experiência individual do Mundo
Memorização de conteúdos e de procedimentos.
Intervenção do ensino Actividades de apropriação
Actividades de Interpretação Elaboração verbal do vivenciado
Actividades sobre elementos de coesão textual
Projectos de leitura
Questinamento Resumo – Síntese
Materialidade (articuladores icónicos e verbais)
Mapas de conceitos e de itinerários de leitura
Críticas Webquest
Actividades de manipulação
CONHECIMENTO
Parafraseando o esquema, podemos considerar que a leitura permite aceder à informação na Internet e comunicá-la. Implica operações de manipulação, de apropriação e de interpretação que, evidentemente, estão interligadas, mas que diferenciaremos para agir em contexto pedagógico. Assim, desta esquematização pode surgir uma tipologia de intervenções no ensino, sob a forma de actividades, visando que a criança transforme a informação recolhida em conhecimento.
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1.1. A leitura electrónica: Actividades de manipulação Para nos debruçarmos sobre a manipulação do novo suporte, procuremos, em primeiro lugar, sublinhar as características do hipermédia, nomeadamente, a capacidade de metamorfose, de multimodalidade , de transformação num tempo contraído. Dessas características decorrem efeitos no processo de leitura, nomeadamente sobre a velocidade de acesso e sobre a simultaneidade de exposição do utilizador a mensagens diferentes. A leitura electrónica é por natureza manipulatória, visto ser sempre condicionada por constrangimentos corporais e materiais exigindo operações técnicas de manipulação: a exploração do teclado e do rato, a passagem da página, a exploração da ergonomia de uma interface, a descoberta das hiperligações, o controlo das barras, a activação de certos ícones, de botões … A operação de articulação entre o menu e a informação correspondente pressupõe, como referido, a aprendizagem das marcas de coesão discursiva que se transformam no ecrã em instrumentos de “navegação” como os esquemas, os índices, os títulos… Ora, como sublinha J- F. Rouet (2001), os conhecimentos que o leitor possui sobre a organização material e retórica de um texto (tipografia, disposição na página, marcas de coesão, estruturas enunciativas, etc.) são essenciais na leitura funcional. Rouet salienta, ainda, que muitos alunos não desenvolvem as competências metalinguísticas necessárias para compreender textos e muito menos para pesquisar. O investigador acrescenta que estudos conduzidos no Laboratoire Langage et Cognition (http://www. mshs.univ-poitiers.fr) mostram que alunos de 9-11 anos não possuem boas estratégias de pesquisa. Muitos lêem de forma extensiva, folheiam páginas de modo linear sem utilizar nem instrumentos de coesão textuais (sumários, índices), nem marcas de materialidade gráfica como títulos e sublinhados. Repare-se que estas operações foram, muitas vezes, adquiridas pelos adultos através do livro e transferidas para a leitura electrónica. De facto, as gerações mais velhas exportam para a cultura digital muitos hábitos da cultura impressa, o que nem sempre acontece aos alunos que, por vezes, chegam à cultura impressa através dos suportes digitais. Por este motivo, as operações de manipulação que condicionam a leitura são de natureza diferente e exigem uma aprendizagem. Mas o ecrã implica outras dificuldades. Implica, por exemplo, “folhear” o texto (como fazemos com um livro) e desbobinar páginas, como faziam os leitores de papiros (scrolling). A articulação entre os dois “movimentos” – abertura de janelas e scrolling – complica a tarefa do leitor electrónico que tem de gerir simultaneamente as duas acções e portanto estar atento à informação não linear. Ora um mau leitor ao efectuar estas operações tem dificuldade em se situar no texto que estava a ler.
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Interroguemo-nos sobre as operações que as crianças vão mobilizar para realizar algumas actividades. Actividade - Visita ao Oceanário Vão preparar uma visita ao Oceanário de Lisboa. Fazem uma visita virtual antes da visita presencial. Que tarefas terão de fazer? Onde se encontra o menu? Que botões serão de activar? • Qual é a imagem que representa o oceanário (logótipo)? • Em que parte do ecrã se encontra? • Que forma geométrica apresenta? • Qual é o animal que a forma? • Tentem explicar por que se escolheu esse animal e não outro? • Que imagem vêem em movimento? • Onde têm de clicar para a imagem desaparecer? • Que palavras conseguem ler? • Onde fica localizado o oceanário? • Procurem o nome de 5 espécies de peixes que podem lá encontrar. • Quais as actividades que poderão realizar no Oceanário?
http://www.oceanario.pt/site/ol_home_00.asp?popup=1
Neste caso, o domínio da noção de espaço é necessário para uma primeira manipulação do ecrã. Depois de alguma ajuda do adulto, as crianças interiorizam as rotinas e conseguem manipular a página sozinhas.
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1.2. A leitura electrónica: Actividades de apropriação A apropriação passa pela gestão da multiplicidade de informação que está na rede. O facto dos utilizadores abrirem múltiplas janelas leva à necessidade de manipular a simultaneidade espacial, de gerir a co-presença de documentos de natureza diversificada. A gestão e a arrumação dessa informação na nossa memória ou na memória do próprio computador exigem actividades de apropriação. Com efeito, muita da informação que recolhemos, de forma intencional ou sem intenção, fica armazenada na nossa memória, havendo muita informação que fica a “decantar“ (nos favoritos, no ambiente de trabalho). Guardamos não só as informações relativas à pesquisa que pretendemos fazer mas também as informações recolhidas no processo de exploração da rede, como a estrutura desta, páginas visitadas, páginas recusadas… Como implicações deste aspecto no ensino da leitura, sugerimos a insistência no projecto de leitura. Mas concretizemos. Actividade - Fazer uma viagem com «Magalhães» Vão perceber a designação do vosso computador. Podem descobrir diferentes informações disponíveis numa enciclopédia, como a biografia do navegador, seguir o seu percurso em mapas... • Por que se chamará o computador «Magalhães»? • Quem foi Magalhães? • Que quererá dizer circum-navegação? • Que países terá visitado? • Situem alguns países no mapa.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_de_Magalh%C3%A3es
Neste caso, as crianças fazem uma leitura rápida ou em zapping. Quando pretendem ficar com uma ideia global de um determinado assunto, “varrem” o texto, navegam na rede, recorrendo a estratégias de selecção e de eliminação. Quando fazem zapping, 78
Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula?
são movidas pela emoção e pelos seus gostos. Podem fazer uma leitura “aleatória“, navegando sem destino, ou retirando rapidamente a informação necessária. Os leitores descobrem por acaso, se descobrirem. No entanto, por vezes, descobrem aquilo de que não estava à espera, mas que vão «armazenar» para uma outra oportunidade. Esta actividade pode assumir a modalidade de lacunas de informação (information gap). Cada aluno ou grupo de alunos pode procurar informações diferentes que, numa segunda fase, vai partilhar; por exemplo, um grupo vai descobrir informações relativas às viagens efectuadas, outro a dados biográficos. Neste caso, as crianças aprenderam a seleccionar informação. A leitura selectiva está ligada ao projecto de leitura. Trata-se de uma leitura de ordem funcional, isto é, quem lê pretende encontrar uma informação específica: dados geográficos, históricos… que poderão ser mobilizados através de actividades de interpretação. 1.3. A leitura electrónica: Actividades de interpretação A pesquisa e a leitura têm a finalidade de levar à transformação da informação em conhecimento e à verbalização deste. Se os alunos tiverem um projecto de leitura, se tiverem formulado hipóteses através de actividades como as que propusemos anteriormente ou outras, vão chegar a esta fase e relacionar os conhecimentos novos com os que tinham construído, formando uma rede pessoal. Para isso, têm de criticar as fontes, relacioná-las, interpretá-las (cf. definição de literacia). Neste exemplo, idealmente, as crianças “juntarão” os conhecimentos que obtiveram a partir da observação com os conhecimentos adquiridos na aula e procurarão no ecrã elementos para completar a sua informação e realizar a tarefa pedida. Mas se se limitarem a formular hipóteses e não linearizarem, a compreensão poderá ficar comprometida. Para realizar esta tarefa, a leitura extensiva ou em profundidade é necessária. Propomos esta designação para a leitura que fazemos do ecrã do computador, quando mergulhamos na leitura de um livro ou de um artigo. Para a realizarem, as crianças terão de dispor de tempo. Exemplifiquemos, utilizando uma das grandes potencialidades pedagógicas da Internet: a possibilidade de «sairmos» da nossa casa e da nossa escola. Os seus alunos vão fazer uma visita virtual a um museu para aprofundar conhecimentos sobre os Descobrimentos. • Por que serão os Descobrimentos o período mais universal da História de Portugal? • Quem foi D. João II? • Quem foi D. Manuel I? • Que instrumentos de navegação seriam utilizados?
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http://museu.marinha.pt/museu/site/pt/Exposicoes/ExposicaoPermanente/SaladosDescobrimentos.
A preparação da visita é proposta pelo próprio Museu que propõe materiais pedagógicos em: http://museu.marinha.pt/Museu/Site/PT/Educacao/MateriaisVisita/. Vemos, assim, que uma das vantagens da Internet está em proporcionar a todos os alunos visitas virtuais7. Como referido, a leitura continua a ser a chave de acesso ao conhecimento, mas o percurso para o acesso a esse conhecimento é complexo. É nossa convicção que a proposta de leitura do ecrã por todos os alunos implica considerar que, apesar da representação em contrário partilhada por famílias e educadores, nem sempre o multimédia conduz a aprendizagens mais fáceis e mais fecundas, ou até mais motivantes. A escola terá de ensinar o aluno a adoptar diferentes percursos, a ser capaz – quer contextualizando os elementos que recolhe, quer associando e construindo interpretações – de proceder à reconstrução interactiva do sentido. Por último, vamos centrar-nos na dimensão comunicativa da literacia digital. 7 A visita virtual que propusemos ao Museum of Modern Art na brochura e em várias acções de formação http://www.moma.org/destination/ tem sido feita por muitas crianças, como se pode ver em alguns blogues ligados ao PNEP. O site do MoMa está a colocar on line outras visitas de exposições temporárias. http://media.moma.org/subsi-
tes/2008/miro/flashsite/index.html
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Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula?
2.1 As TIC para partilhar com os outros A facilidade tecnológica levou à adopção do formato blogue como ferramenta de aprendizagem em situações mais ou menos formais. E a Escola, como agente educativo da sociedade, não se alheou deste contexto tecnológico. Do âmbito pessoal, o blogue passou a ser dinamizado também por escolas, por turmas ou por grupos ligados a projectos concretos. Vejamos um exemplo dessa utilização enquanto ferramenta de dinamização pedagógica. Centremo-nos em alguns extractos de participações de crianças do 1.º Ciclo, num blogue do projecto Interescolas – Competências Básicas em TIC nas EB1 da ESE de Leiria, que decorreu em 2006. « Hoje tivemos muitas surpresas, porque vieram à nossa escola as senhoras da Internet e os senhores da Higiene Oral. Agora vou vos contar o que eu aprendi sobre os dentes: - que tenho de lavar os dentes depois de comer, senão os micróbios estragam os nossos dentes; - temos de comer fruta e legumes; - ir ao dentista regularmente. Gosto muito dos computadores, porque podemos aprender muitas coisas novas. » EB1 de Chamiço, Fabiana do 3.º ano 20/11/2006 « Era uma vez um menino chamado José, que era viciado em computadores. Um dia, chegou atrasado à escola, porque tinha ficado a noite toda no computador e de manhã não lhe apetecia ir à escola. Mas como era obrigado, sempre foi… A meio das aulas adormeceu e sonhou…
Agora é começar a sonhar e continuar » Alunos do 4º ano da EB1 de Pocariça « Somos da EB1 António Vitorino, na Vieira de Leiria, e hoje estivemos com as monitoras dos computadores. Fizemos várias actividades divertidas, entre elas, a história: « Os sonhos do Francisco ». Como somos 25 alunos, formámos pequenos grupos de trabalho. O primeiro grupo começou a história para o segundo continuar e o terceiro acabar. Vejam o resultado final! Cliquem aqui . » 1. EB1 do Travasso comentou em 21 Novembro, 2006 às 11:44 : « Olá Luís e Miguel! Nós também já aprendemos o corpo humano e gostámos muito. » 81
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2. Ricardo e Carolina comentaram em 22 Novembro, 2006 às 9:51 : « Olá Luís e Miguel o osso mais comprido é o fémur. O mais curto é o estribo, que fica dentro do nosso ouvido. » http://www.interescolas.esel.ipleiria.pt/
O aspecto didáctico da relação computador-criança está presente na constante referência à aprendizagem (notemos a recorrência do «aprendemos», «aprendi») e até às metodologias (veja-se a referência a «grupos de trabalho»). Ainda de salientar que o computador é algo de que se «gosta» tanto que leva a «sonhos» e com ele pode estabelecer-- se uma relação de dependência (as crianças já admitem a possibilidade de um José «viciado» nele). Uma verificação importante é que os extractos mostram uma relação com a Internet que equilibra notavelmente os aspectos lúdico e didáctico. Este equilíbrio é evidente na substituição do termo «jogos» por «actividades» – as quais estão, por assim dizer, a meio caminho entre os «jogos» e os «deveres»… Repare-se ainda que as crianças da EB1 do Travasso escrevem «nós também já aprendemos o corpo humano e gostámos muito». De que é que de facto gostaram muito? Daquilo que estudaram, ou de o terem estudado com recurso ao computador? Idealmente, não o podem distinguir; o equilíbrio lúdico-didáctico do uso do computador “contaminou” positivamente aquilo que foi estudado. Concluindo, o computador para estas crianças não é apenas um recurso pedagógico “engraçado”. Elas exploram as potencialidades do computador e da Internet: aprendem, divertem-se, comunicam e partilham os seus conhecimentos, as suas histórias, os seus desenhos. A partir dos exemplos visitados, parece poder referir-se que a prática dos blogues, por parte de crianças e adolescentes, renova as “antigas” práticas do diário e dos correspondentes. Os correspondentes, com quem os segredos eram partilhados e cujos nomes eram obtidos em revistas de adolescentes, são agora em maior número, embora não sejam tão fiéis – e, sobretudo, podem ser bastante perigosos, pelo que o conheci82
Orações Relativas: Como e Quando inseri-las na sala de aula?
mento das características deste dispositivo constitui uma “arma” para o utilizador. No âmbito deste artigo não abordámos as implicações das TIC na produção escrita, embora, evidentemente, o desenvolvimento desta competência possa ser integrado nas actividades propostas - as operações de «armazenamento», por exemplo, implicam a construção de gráficos, de glossários, de resumos… Voltando à questão colocada no início deste artigo, reformulada em termos de «para quê introduzir os computadores na Escola?» Procuramos, com as sugestões apresentadas, que, de acordo com a definição de literacia digital, as crianças aprendam a «armazenar, produzir, apresentar e partilhar informação». Que aprendam a ser utilizadoras críticas. Que tirem partido da Internet para conhecer outros países, outros espaços, outros interlocutores… Para que tenham a possibilidade de ampliar a sua «zona de desenvolvimento próximo», com a ajuda das tecnologias mas das tecnologias mediadas pela Escola como forma de atenuar as diferenças sociais. BIBLIOGRAFIA Sá, Araújo, M. H. A. et al. (2006). Comunicação electrónica em contextos de educação linguística. Teorias e práticas. Intercompreensão, 13 Baccino, T. (2004). La lecture électronique. Grenoble: Presses de l’Université de Grenoble. Barbeiro, L. (2005) Página da escola e escrita: Da divulgação dos produtos à construção do conhecimento. In A. Mendes; I. Pereira, I. & R. Costa, (Eds.). Actas do VII Simpósio Internacional e Informática Educativa. Leiria. Escola Superior de Educação. CD-ROM. Barbeiro, L. (2007) Blogues, escrita e aprendizagem: O caso do blogue interescolas. In Actas do 3.º Encontro de Reflexão sobre a Escrita. Leiria: Escola Superior de Educação.CD-ROM. Carignan, I. (2008). Les stratégies de lecture efficaces déclarées à l’écran et sur papier par des élèves de 3e secondaire (14-15 ans). Intercompreensão,14. Dejean-Thircuir, C. & Mangenot, F. (Coord.) (2006). Les échanges en ligne dans l’apprentissage et la formation. Le Français dans le Monde, 40. Desbiens, J.-F., Gardin, J.-F. & Martin, D. (2004). Intégrer les TIC dans l’activité enseignante: Quelle formation? Quels savoirs? Quelle pédagogie? Sainte-Foy: Les Presses de l’Université Laval. Galisson, R. (1999). La pragmatique lexiculturelle pour accéder autrement à une autre culture, par un autre lexique. Études de Linguistique Appliquée, Revue de Didactologie des langue-cultures, 116. Gaonac’h, D. & Fayol, M. (2003). Aider les élèves à comprendre du texte au multimédia. Paris : Hachette Éducation. Ghitalla, F. et al. (2003). L’outre-lecture. Paris : Bibliothèque Centre Pompidou. Granieri, G. (2006). Geração blogue. Lisboa: Presença. 83
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“Receita para a Felicidade”: Da compreensão de textos à escrita criativa
“Receita para a Felicidade”: Da compreensão de textos à escrita criativa
Conceição Manaia Professora do Ensino Básico, a desempenhar funções de Formadora Residente do PNEP no Agrupamento Vertical Àlvaro Viana de Lemos, na Lousã.
O desenvolvimento das competências de leitura e escrita reveste-se de enorme relevância na sociedade actual, pois é o “uso de informação impressa e escrita que permite funcionar em sociedade, atingir objectivos pessoais, bem como desenvolver e potenciar os conhecimentos próprios», (Benavente, 1966). Cabe à escola implementar estratégias pedagógicas que permitam percursos de aprendizagem coerentes com esta necessidade. O objectivo da minha comunicação é mostrar como, na prática, o ensino da comprensão de textos e os processos de escrita, mais concretamente de escrita criativa, podem interligar-se e promover o desenvolvimento das capacidades literácicas dos alunos. Ilustrarei a comunicação com actividades realizadas em contexto de turma. I - A compreensão de textos instrucionais: a receita Entende-se leitura como o processo interactivo entre o leitor, o texto e o contexto (Colomer, 2003) em que consoante os conhecimentos prévios do leitor, a intenção do autor (conteúdo e forma) e as condições da leitura, o leitor reconstrói o significado do escrito. Esta competência implica a capacidade de descodificar cadeias grafemáticas e delas extrair informação e construir conhecimento (Currículo Nacional do Ensino Básico – Departamento da Educação Básica, 2001). A aprendizagem dos mecanismos básicos de extracção de significado do material escrito passa por experiências de leitura de textos autênticos com funções reais de comunicação, informativas ou de recreação (Duke, Purcell- Gates, Hall & Tower, 2007). Implica que as crianças sejam familiarizadas com diversos géneros textuais e lhes sejam ensinadas estratégias específicas para a abordagem de cada tipo textual (Sim-Sim, 2007). Foi esta a mensagem que, como formadora do Programa Nacional 85
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de Ensino do Português (PNEP), tentei passar aos docentes, meus formandos Seguindo o percurso de uma actividade prática, em contexto de sala de aula, os alunos serão levados a aceder eficazmente ao significado do texto instrucional, através de estratégias pedagógicas concebidas para o efeito. Assim, durante as tutorias (sessões práticas de formação em que formando e formador estão no mesmo espaço, complementando a acção um do outro) foram apresentadas actividades baseadas nas sugestões da brochura oficial do PNEP “O Ensino da leitura: a compreensão de textos” de Inês Sim-Sim, para a compreensão do texto instrucional “receita”. A tutoria visava atingir os seguintes objectivos: compreensão do texto instrucional através de estratégias de antecipação do conteúdo, mobilização de conhecimentos prévios para a compreensão do mesmo e, finalmente, verificação da mesma compreensão. No início da primeira sessão, cumprindo o objectivo da antecipação, a docente começou por distribuir aos alunos uma tira com o título da receita “Bolo de iogurte” que recortara previamente. De seguida, questionou-os sobre que tipo de texto iriam ler, para que serviria uma receita de um bolo, o que precisariam saber para fazer o bolo e, finalmente, que ingredientes poderia levar este “Bolo de iogurte”. Na segunda etapa do trabalho, foi distribuído pelas crianças o recorte da receita com a lista dos ingredientes. A tarefa consistiu em verificar na lista dos ingredientes referidos quais os que faziam parte da receita e quais os que faltou mencionar. Posteriormente, a professora procedeu ao levantamento de hipóteses sobre o modo de preparação. Finalmente, foi distribuído o recorte com as etapas necessárias à confecção do bolo. Os alunos identificaram os ingredientes e os materiais que era necessário levar para a confecção do bolo. A receita foi colada na folha do caderno diário e posteriormente ilustrada. Cada aluno ficou responsável por trazer ingredientes ou utensílios necessários para a confecção do bolo na sessão seguinte. Na segunda sessão, os alunos leram a receita de forma sequencial, dando especial atenção às quantidades e executaram por etapas essa mesma receita, confeccionando um belo bolo de iogurte. Para verificar se compreenderam o género textual, no final destas actividades, a docente apresentou uma ficha onde constava uma lista de ingredientes baralhados. Os alunos tiveram de assinalar os ingredientes do bolo que confeccionaram. Registaram igualmente os ingredientes da segunda receita, acrescentaram o modo de confeccionar 86
“Receita para a Felicidade”: Da compreensão de textos à escrita criativa
e deram-lhe um título II - Escrita criativa: desenvolver a capacidade de escrita de uma forma lúdica; aprofundamento e domínio do género textual Escrever de forma lúdica é abrir uma janela para dentro para se descobrir a si próprio em matéria de criatividade (Margarida Fonseca e Costa, 2007), é ultrapassarse dizendo o que se quer dizer, de outra forma. Estas experiências de escrita permitem viver no imediato as possibilidades literárias dos textos que se escrevem (Luísa Costa Gomes, 2007). O papel do professor é o de informar as crianças das regras deste “jogo” em que como afirma Cristina Norton “as palavras podem ser usadas como acessório” e as crianças acedem à leitura e à escrita despidas de preconceitos. Após a actividade de compreensão de texto, a professora ao lançou aos alunos uma sugestão de trabalho desafiadora: a escrita de uma receita original - “Receita para ser feliz”. E o primeiro ingrediente indicado foi: “um pai e uma mãe que nos amam”, Seguidamente, os alunos puderam dar asas à imaginação e escrever... O Fábio, do 3.º ano, escreveu: «Receita para ser feliz Ingredientes: • 1pai e 1 mãe que nos amam • 200 g de amor • 150g de carinho • 100 g de beijinhos • 300 g de abraços • 10 g de ternura • 50g de alegria • 70 g de emoção • 900 g de amizade Preparação: Numa taça juntam-se um pai e uma mãe que nos amem, 200g de amor, 200g de amor, 150g de carinho,100 g de beijinhos,300g de abraços,10 g de ternura, 50g de alegria, 70 g de emoção e 900g de amizade. Vai ao forno durante toda a vida.» O texto do Bruno: «Receita para ser feliz
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Ingredientes: • 1pai e 1 mãe que nos amam • 5 colheres de amor • 7 copos de carinho • 2 copos de de beijos • 100% de amizade • 4 colheres de paciência • 5 taças de paz • 8 copos de sinceridade
Preparação: Encontrar um pai e uma mãe que nos amem, misturar com 7 copos de carinho e bater com uma colher de pau. Passado um bocado, voltar a misturar 5 colheres de amor e 2 copos de beijos. Noutra taça, bater os 100% de amizade até se segurarem à taça. Quando os 100% de amizade estiverem prontos, misturar com 4 colheres de paciência até formar uma massa castanha. Misturar tudo e, para o bolo ficar doce, adicionar 5 taças de paz. Por fim, pôr 8 copos de sinceridade para o bolo crescer. Colocar o bolo no forno durante cerca de 45 minutos. Bom apetite!» A língua escrita é um produto sócio-cultural e o seu uso dá origem a uma enorme variedade discursiva. O desenvolvimento de competências de escrita exige um forte domínio da consciência metalinguística, o que pressupõe modelos de ensinar com alguma complexidade e actividades diversas tendentes à apropriação dos conhecimentos necessários para evoluir dentro de cada género discursivo sobre que se trabalha. Assim, as sequências didácticas devem prever situações interactivas muito diversas desde a oralidade, à leitura e à escrita inter-relacionada (Camps, 2003). Foi o que aconteceu com estes alunos que a partir de um texto “real” e de um “jogo criativo” se apropriaram de processos de escrita específicos do texto instrucional. O respeito pela estrutura do género textual nas suas criações mostra que houve um bom aprofundamento das características discursivo-linguísticas do texto produzido. E, se ler e comprender permite melhor escrita, podemos também afirmar que “quem tenha a experiência de escrita sabe ler de outra maneira” (Luisa Costa Gomes, 2007).
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Bibliografia: Barros, E. (2008). Escrita criativa: uma janela para um novo mundo (entrevista). Noesis, 72, Janeiro/Março Ministério da Educação.Departamento de Educação Básica (2001). Currículo nacional do ensino básico. Lisboa: ME-DEB. Gomes, L. C. (2008). Um escritor na sala de aula. Noesis ,72, Janeiro/Março. Leão M. & Filipe, H. (2001). 70+7 Propostas de escrita lúdica. Porto: Porto Editora. Leitão, N. (2008). As palavras também saem das mãos. Noesis, 72, Janeiro/Março. Lomas, C. et al. (2003). O valor das palavras (I), falar e escrever nas aulas. Porto: Edições Asa. Sim-Sim, I. et al. (2007). O Ensino da leitura: a compreensão de textos. Lisboa: Direcção Geral de Desenvolvimento e Inovação Curricular.
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Promoção da leitura no ensino básico. Questões sobre o ensino dos processos de compreensão na leitura
Promoção da leitura no ensino básico. Questões sobre o ensino dos processos de compreensão na leitura
Cristina Mello, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Resumo: Nesta intervenção pretende-se exemplificar uma metodologia de leitura tendo por referência vectores articuladores de dimensões pedagógicas centrais da leitura em contexto escolar, designadamente o ensino de estratégias de leitura inferencial no terceiro ciclo do ensino básico. O equacionamento da proposta que se apresenta toma como texto exemplificativo o conto “O pastor Gabriel”, de Miguel Torga, antologiado em Novos Contos da Montanha. 1. Preâmbulo Os factores frequentemente convocados na problematização da leitura de textos literários em contexto escolar, especificamente da leitura hoje designada por leitura orientada (que faz eco de toda uma tradição de análise literária, cada vez mais reconfigurada), são, como se sabe, o contexto escolar em que a leitura tem lugar, os seus objectivos, a natureza dos textos e as particularidades linguísticas e culturais dos leitores. Na ponderação de estratégias didácticas, e de acordo com esse eco da tradição de análise literária, continua a ser objecto de relacionamento um conjunto de aspectos relacionados com dimensões de natureza estético-literária. Assim, se na ponderação de estratégias de leitura do poema “Autopsicografia”, importa pensar como abordar a problemática da criação literária (um tema nuclear deste poema), no conto “Fronteira”, de Miguel Torga, tem interesse equacionar formas de aproximação da questão do contrabando que, conforme é representada no texto, se praticava no espaço social fronteiriço com Espanha. Quando se faz este tipo de recorte metodológico, o que está em causa é o equacionamento o que fazer com um texto tendo em conta os seus signos semânticos, mas não só. Dependendo do tipo de enquadramento genológico e histórico-literário que se faça, teremos componentes que vão ser activadas e que terão um relevo central nas práticas de leitura, ditando por assim dizer conteúdos literários objecto de abordagem. Este tipo de discorrer é bem aquele que justamente tem informado uma longa tradição de reflexão teórica sobre as práticas de leitura em contexto escolar. Mas 91
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ao lado desse modo de pensar a leitura escolar, no qual continuamos a encontrar uma justificação teórica no quadro do ensino da literatura, vão emergindo, um pouco por toda a parte, novas abordagens das práticas escolares de leitura. Assim, se a consideração das componentes dos textos tem interesse para o seu ensino, ao equacioná-las isoladamente, podemos perder de vista a complexidade das acções didácticas que envolvem muitos outros problemas, quando se pensa, designadamente na natureza dos contextos e nos objectivos das práticas de leitura, articuladamente com a consideração de princípios que enformam as práticas educativas. O que está em causa nesta reflexão sobre modos de pensar a abordagem dos textos literários em contexto escolar é a consideração de um factor que hoje é assinalado com muita ênfase, qual seja, a necessidade de pensarmos que a passagem dos conhecimentos académicos (sobretudo aqueles que são construídos numa formação superior) para graus de ensino anteriores obriga a que sejam equacionados os dispositivos didácticos com que se vai operar. Quando o assunto é a promoção da leitura no ensino básico, as questões de maior abrangência didáctico-pedagógica não podem ser descuradas. E se não se pode deixar de operar ao nível da complexidade semiótica dos textos (que envolve os seus códigos e poli códigos, o universo imaginário, etc.), convocando enquadramentos genológicos, histórico-literários, bem como outros desses decorrentes, incluindo a reflexão sobre as relações entre essa prática estética que é a literatura, na sua relação com outras práticas artísticas e sócio-culturais, o facto é que todo esse conhecimento (de tipo declarativo), sendo central para que se desenhe um dispositivo de trabalho didácticopedagógico, não é suficiente. Como assinala Antonio Mendoza Fillola, “El centro de la intervención didáctica es potenciar las actividades cognitivas y metacognitivas que consolidan los aprendizajes, haciéndolos significativos y operativos”1 Convergindo com este autor, se lidarmos com uma concepção de leitura atenta às razões dos textos, dos contextos e das acções com os textos, importará pensar nos modos de operacionalizar actividades cognitivas de leitura que favoreçam a formação intelectual dos leitores desse nível de escolaridade. Tendo em conta precisamente uma exemplificação de possibilidades de actividades cognitivas, com vista ao desenvolvimento de capacidades de leitura no âmbito da disciplina de Língua Portuguesa, no terceiro ciclo do ensino básico, apresentaremos, mais adiante, uma proposta de abordagem inferencial do conto “O Pastor Gabriel”. Comecemos por interrogações frequentes no contexto da preparação do acto de ler por parte do professor de Língua Portuguesa: o que fazer com o conto “O pastor Gabriel”? Como organizar a sua leitura? Neste momento, não basta ao professor ter em mente objectivos de leitura, assim como não basta uma equação das categorias narrativas do conto, embora o seu conhecimento seja relevante como ponto de partida pois que é 1 Cf. Mendoza Fillola, Antonio, “Enfoques y conceptos en la didáctica de la lengua y la literatura”, ao Colóquio de Didáctica, realizado a 7 de Março de 2008, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (actas no prelo). 92
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inerente à estrutura compositiva do conto. A abordagem textual, no quadro da problemática da promoção da leitura no ensino básico, continua a ser uma questão para a qual as soluções nunca são definitivas. Sabendo-se que ao lidar com os elementos que compõem o eixo do trabalho didáctico, avultam sempre problemas e que somente nos contextos eles são resolvidos, parecenos continuar a fazer sentido que, em colóquios como este, seja debatida a naturalizada dificuldade em operacionalizar abordagens didácticas do texto literário, tendo em conta estes factores situados no pólo textual com outros factores dos contextos reais de leitura. Quanto a nós, não se deve separar didacticamente questões do domínio textual de questões do seu ensino. Quando trazemos à discussão a abordagem de textos literários em contextos pedagógicos, importa fazê-lo na assunção de que, se somos sensíveis a orientações educativas contemporâneas, somos, igualmente, herdeiros de outras tradições e formações académicas. Neste sentido, quando se pensa na promoção da leitura no ensino básico, não se pode descurar a diversidade considerável de opções que a formação académica tem oferecido aos professores, assim como os seus saberes e experiências profissionais. Factores de cariz histórico, sociológico e educativo explicam o que foi uma perdurável tendência para dar primazia à racionalidade dos problemas em detrimento dos seus contornos reais. Estes últimos não têm sido suficientemente convocados para explicar as mudanças de paradigmas na educação, o que faz todo o sentido, para se compreender de onde partimos e onde chegámos, para se compreender a instauração, no passado, de determinadas ordens de discurso que naturalizaram um modo de ver a abordagem do texto literário na sua dimensão textual, sem levar em linha de conta os contextos pedagógicos de leitura. Uma tal tradição não podia dar conta dos problemas reais do ensino e em muitos casos sequer pretendia. No entanto, hoje, com uma significativa aproximação da Universidade às escolas do ensino básico e secundário, a vários níveis do ensino e da investigação, começam a surgir trabalhos que se ocupam da didáctica do texto literário em contexto escolar. Tendo em consideração a diversidade de perspectivas analíticas, e não acreditando na existência de modelos fechados a serem aplicados na prática pedagógica, já que a experiência do ensino da literatura escapa aos modelos teóricos e didácticopedagógicos rígidos e recusa equações que não considerem a articulação entre teoria e prática, entre concepções dos problemas e os seus contornos práticos, apresentarei aqui alguns tópicos para a ponderação de opções de tratamento didáctico dos textos literários no terceiro ciclo do ensino básico. 2. Vectores didácticos em equação na promoção da leitura Diversas vertentes impendem na preparação pré-pedagógica dos textos literários, considerando o desenvolvimento de capacidades de leitura dos alunos, designadamente 93
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o estímulo de atitudes face aos textos, sempre na ponderação de actividades de leitura produtoras de sentido, que se revistam de interesse cognitivo, intelectual e cultural. Encarar a complexidade da leitura do texto literário neste contexto é certamente uma conduta de uma exigência particular, que implica a configuração de uma amplitude de processos didácticos que são de ordem muito diversa. Questões desse tipo são explícita ou implicitamente convocadas quando nos voltamos para a didáctica da leitura literária, procurando articular as suas múltiplas vertentes teoréticas e praxeológicas. Assim, dada a observação de práticas de leitura do texto literário no terceiro ciclo do ensino básico e tendo em conta a mencionada teia de aspectos que impendem na sua abordagem, destaco, por ora, uma questão que constitui para mim um dos nós implicados na ponderação dos modos de abordar os textos, numa fase anterior ao trabalho que com eles é produzido na sala de aula, portanto numa fase de preparação pré-pedagógica. Formulo-a de modo interrogativo: que conjugação se pode postular entre uma condução do processo da leitura orientado para a construção de conhecimentos declarativos, objectivos, factuais e uma condução do processo da leitura orientado para a vivência da experiência de fruição estética? A pergunta traz no seu bojo o viés da cognição e o viés da fruição.Retomo aqui a máxima horaciana expressa na conjugação dos termos “utile/dulce”, de acordo com a qual poderíamos dizer que os textos encerram um potencial cognitivo que é sempre formativo, e, por esta via, um potencial estruturador de experiências intelectuais, mentais, afectivas, um potencial para desencadear prazer intelectual, sensorial, numa palavra, para cultivar e expandir o nosso imaginário. Uma perspectiva que me parece defensável para o exercício de uma pedagogia da leitura no actual momento histórico seria aquela que apostasse na conjugação destes princípios, numa assumida valorização dos legados da razão e da sensibilidade de que somos culturalmente dotados. Vem a propósito de uma desejável e produtiva conjugação dessas motivações lembrar o quanto, em várias áreas disciplinares, se avançou quando se deu um passo na afirmação da indissolubilidade entre o racional e o emotivo, de que estudos tão diversos como os de Roland Barthes, de António Damásio e Boaventura Sousa Santos são exemplos paradigmáticos. Esta análise toma em consideração concepções e práticas de leitura norteadas pelas duas perspectivas – conhecimento textual e prazer do texto. Uma leitura atenta do que se diz em sede teórica e do que se faz no terreno pedagógico pode ter a utilidade de destacar olhares particulares sobre o modo como os discursos e as práticas ao longo dos tempos incorporam as duas perspectivas de abordagem do texto literário. A este propósito, faz sentido um levantamento das formulações para expressar essas dimensões nucleares da experiência do literário, num eixo temporal que abrange necessariamente textos fundadores da poética ocidental. É de notar a distinção entre uma concepção que tende a separar cognição de fruição, de uma outra concepção que coloca num mesmo eixo os planos da cognição e da fruição, operando, ou tentando operar, a conjunção. Certamente o legado de conhecimentos disponíveis em matéria de cognição do 94
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literário, assim como no campo de experiências de leitura, é vasto. Apesar disso, não se tem conseguido operar uma desejável conciliação desses âmbitos no contexto das práticas de leitura. Em causa estão problemas de reconfiguração profissional de conhecimentos académicos, pois uma grande parte dos saberes académicos em matéria de ensino de leitura (fruto de estudos conduzidos de acordo com uma enorme variedade de perspectivas teóricas) ainda não tem sido objecto de uma adequada escolarização. Apesar da saudável heterogeneidade teórica, no campo académico, o contacto com práticas pedagógicas sugere ponderar a conjugação de vertentes do acto de leitura, favorecendo a interacção texto/leitor. Asssim, opções didácticas que contemplem a construção do conhecimento sobre os textos, o processo de ler, o grau de proficiência do leitor no desenvolvimento de habilidades e capacidades, parece-nos, hoje, obter concenso. Partindo do pressuposto de que os esquemas cognitivos (nos quais se incluem os psico-afectivos) intervêm nos processos de aprendizagem, trata-se de ponderar modos de aproximação dos textos literários que constituam experiências de leitura envolvendo cognição e fruição, e que, pela abrangência de conhecimentos que devem ser construídos, exigem do docente a atenção para com uma multiplicidade de factores didáctico-pedagógicos Ora, porque a experiência do literário produz no sujeito uma complexa revelação de mundos, também didacticamente, se torna importante operar com modos de aproximação mais subjectivos, ou mais objectivos, mas sempre numa explícita simbiose. É desse procedimento estratégico que podemos partir para o equacionar de práticas pedagógicas de leitura, no terceiro ciclo do ensino básico, que associem cognição e fruição. A partir do quadro metodológico em equação, passamos a considerar alguns procedimentos susceptíveis de aproximarem os alunos dos textos, através de acções didácticas que conjuguem conhecimento e prazer do texto, tomando como exemplo o conto “O pastor Gabriel”. 3. Possibilidades de aplicação prática À pergunta “que leituras desta narrativa se podem fazer com alunos deste ciclo de escolaridade?”- trata-se de clarificar hipóteses para um ponto de partida, designadamente quanto ao sentido e aos objectivos da leitura. Com vista a valorizar conjugadamente cognição e fruição, na escolha de estratégias para se proceder a abordagens inferenciais, pode-se prever movimentos de reconstrução textual narrativa, privilegiando, equilibradamente, zonas de produção de sentido, tanto ao nível sintagmático, como ao nível paradigmático. 95
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Noto estar a utilizar aqui uma noção lata de inferência, aquela que é consensualmente adoptada pelos professores de Português na abordagem da compreensão semântica dos textos2. Considerando a produtividade de um primeiro questionamento inferencial ao nível da sintagmática narrativa, dele poderiam emergir produtivas interacções que servissem como patamar para a antecipação de signos temáticos ao nível macro textual. Neste processo ficam assegurados a construção de um corpo de conhecimentos e o desenvolvimento de habilidades de leitura, valorizando-se, de acordo com a enciclopédia dos alunos, a subjectivização de sentidos da narrativa, associada à objectivação de cariz cognitivo e metacognitivo, num esforço de verbalizar o “texto da leitura”, com a preocupação de trabalhar domínios verbais como a oralidade e a escrita. Deste modo, o que se passa num plano mais pessoal (“evocações imaginativas, excitações sentimentais e emoções estéticas”, como pretendia Gustave Lanson), fecunda a interacção de vozes, em registo polifónico. E assim, entre as vozes que tendem a fixar sentidos e as que ficam presas pelo magma da linguagem, mas que não são capazes de nomear, as hipóteses inferenciais abrem espaço para verbalizar o que for julgado conveniente e pertinente3. 4. Exemplos de interacções em práticas pedagógicas de leitura do terceiro ciclo do ensino básico A abordagem que se apresenta pressupõe uma leitura que operacionalize com os alunos procedimentos inferenciais possíveis em situação de interacção verbal, dando azo a processos cognitivos complexos e compósitos. Desde logo, trata-se de mobilizar a estrutura informacional do texto, por forma a que os alunos reconstruam as sequências discursivas e arquitectem um quadro de tópicos textuais. Com esta estratégia pragmática pretende-se desenvolver habilidades discursivas voltadas para a compreensão do funcionamento textual, o que coloca o leitor em situação de poder interagir com o universo que vai sendo narrado, fazendo funcionar estratégias de leitura que incidem na compreensão. Esta forma de centrar as estratégias de leitura interactiva no processamento da informação facultada pela narrativa, nas suas múltiplas configurações semióticas, encerra potencialidades de aprendizagem a vários níveis: i) por conjugar, em nosso entendimento, o viés da cognição e o da fruição, coloca o leitor face àquilo que é a natureza mesma da experiência estética, na sua dimensão de compreensão e fruição; 2 Para uma síntese acerca da conceptualização da noção de inferência, ver o verbete “inférence”, inserto no Dictionnaire d’analyse du discours (dir. de Patrick Charaudeau e Dominique Mainguenau), Paris, Seuil, 2002, pp. 309-313. O verbete é da autoria de P. Charaudeau. 3 Apud Remédios, Mendes dos, História da Literatura Portuguesa: desde as origens até à actualidade, Coimbra, Atlântica Editora, 1930, 6ª ed., p. 7. 96
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ii) por articular perguntas e respostas, confere dinamismo ao processo da leitura entendido como co-construção de informações necessárias a uma interpretação bem fundamentada no texto e nas estruturas da enciclopédia dos leitores; iii) por operar a fusão de horizontes, exige que o leitor inscreva na leitura o seu universo de conhecimentos pessoais, as suas dúvidas, certezas e incertezas e se coloque disponível para ir para onde o texto o possa levar. Nesse processo pragmático mobilizador das estruturas textuais e das estruturas pragmáticas do leitor, a leitura assume também o seu carácter de jogo interrogativo, um princípio com o qual se opera quando se pretende desenvolver o treino de manejar o texto. Uma tal perspectiva da leitura permite construir hipóteses, levantar ideias de força, focar e estreitar a significação. Como ponto de partida para um possível processamento de interacções de acordo com o quadro metodológico que se está a esboçar e com a diversidade de procedimentos operatórios sugeridos, passamos a exemplificar um percurso de leitura, começando por sugerir que seja lançado aos alunos o desafio de pensar as razões da pergunta e da resposta plasmadas no incipit narrativo: “Nunca houve em toda a montanha pastor como o Gabriel. — Merecias outras ovelhas, homem! - disse-lhe um dia o Prior, desanimado da anarquia dos seus paroquianos, quando viu o rebanho do rapaz atravessar a estrema dum centeio sem tirar uma dentada. — Deus me livre! Já me vejo maluco com estas...” A curiosidade que suscita no espírito do leitor este início do conto pode constituir o móbil para múltiplas inferências, num processo activo e dinâmico de manejamento do texto, devidamente organizado e previsto pelo docente, com o intuito de propiciar aos alunos uma re-significação do texto. A sequência transcrita sugere interrogações sobre as duas personagens do diálogo: quem é o pastor Gabriel? em que reside a sua singularidade? qual a razão da observação que é feita pelo Prior? o que se passa com estas ovelhas que não tocam num campo de centeio? E o que pensar da resposta do pastor, que dá a entender que o rebanho lhe dava trabalho? De grande simplicidade, perguntas como estas abrem o diálogo sobre o texto a ler, fixam o olhar do leitor na narrativa textual, suscitando na sua mente interrogações sobre as informações que vão sendo facultadas por um hábil narrador. Nessa fase em que\ ainda não se conhece o desenrolar da história, faz sentido colocar os alunos em situação de leitura interrogativa sobre o que é dito explicitamente e o que fica por dizer. Prosseguindo, no segundo parágrafo, pode optar-se por focar o sentido de estranheza do Prior, justificada no texto, pela comparação entre a anarquia dos seus paroquianos e a serenidade do rebanho de Gabriel. No espírito do leitor, provavelmente fica instalada a interrogação sobre as razões deste lamento do Prior e do possível significado dessa comparação. Prospectando um pouco mais, o sentido de estranheza associa-se ao de 97
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perplexidade. O narrador é peremptório ao opinar sobre as possíveis razões do segredo de Gabriel, no que converge com o Prior: “Mentira. O padre tinha razão. Era uma pena ver tanta autoridade, tanta vocação, tanto jeito natural, ao serviço de animais. Nem se pode fazer ideia! O carneiro mais teimoso, mais lorpa, mais churro, chegava às mãos do Gabriel e mudava de condição. Só não ficava a falar.” Centrando o olhar dos alunos neste segmento, pode-se conduzir o diálogo para a observação da estratégia discursiva adoptada, cuja interrogação e explicação conjuntas levam à compreensão de que algo se passa no modo como Gabriel desempenha o seu labor, aspecto que o texto afirma explicitamente. Observando o texto, é de notar a estruturação baseada, por um lado em procedimentos textuais ao serviço da concretização da estratégia do suspense, e, por outro lado, no esquema discursivo “tópico/comentário”, abrangendo o tópico os enunciados “mentira” e “o Padre tinha razão”. Na observação da sequência que constitui o comentário do tópico, há-de notar-se três tipos de efeito. Em “Era uma pena...”, o enunciado desperta no leitor curiosidade o que o leva a indagar: por que era uma pena? Continuando a leitura, surge a explicação por via da qual são destacadas qualidades e capacidades de Gabriel. O segundo enunciado – “Nem se pode fazer ideia” – reforça, em crescendo, o tom de suspense, enquanto o terceiro exemplifica. No final da sequência, a frase “Só não ficava a falar” funciona como remate do comentário. No diálogo com os alunos, os procedimentos discursivos aqui sugeridos, de observação da estrutura textual, podem ser operacionalizados com questões que suscitem a construção de múltiplas inferências. A título de exemplo, questões do tipo “que informação nos traz a frase x? obrigam os leitores a pensarem no significado mínimo. No primeiro caso, entre outras inferências que poderão surgir no diálogo, estas parecem-nos possíveis, tendo em conta as capacidades cognitivas e habilidades inferenciais dos alunos: Gabriel era muito competente, habilidoso, singular. Este exercício de tradução semântica dos lexemas e de expressões qualificativos (“autoridade”, “vocação” e “jeito natural”) não é despiciendo. O procedimento obriga o leitor a concretizar uma série de operações de tipo analógico, a operar no campo da sinonímia, a fazer condensações semânticas. Uma outra sugestão para o questionamento do texto pode ser conduzida no sentido de pensar a função dos tópicos na apresentação das sequências discursivas. Tendo os alunos conhecimentos de sequências textuais prototípicas (narração, descrição, etc.), pode promover-se a experiência de observação dessa dimensão. Uma questão didáctica que surge quando se aborda essa temática é o problema da sua finalidade. Que aprendizagens se podem ponderar para esse nível escolar? Se concordarmos 98
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que a compreensão do funcionamento das sequências capacita o leitor para investir o conhecimento da estrutura temática e informacional do texto em actividades de leitura e também de escrita, tal conhecimento explícito alarga a sua compreensão dos discursos e textos, ao mesmo tempo que lhe permite um melhor, porque mais consciente, desempenho verbal, em todos os domínios. Conscientes da necessidade de investir em diversos momentos no conhecimento prévio dos alunos sobre os tipos de sequência, tornando aquele explícito, e dele partindo para as aquisições e aplicações que se julgarem oportunas, entre outros aspectos que podem ser alvo de observação e de diálogo, afiguram-se imprescindíveis o tempo verbal da narração, a cadência melódica das frases, a sua reduzida extensão, tudo contribuindo para sugerir aspectos caracterizadores da economia verbal do conto. Na operacionalização dessas sugestões, é preciso ter em conta que o conhecimento da estrutura e da função da sequência narrativa (ou outra qualquer) deve ser ponderado na sua dimensão heurística e interpretativa de cariz significativo, isto é, deve ser operacionalizado por forma a que experiências prévias sobre o uso das sequências seja trazido à consciência dos alunos. Em causa está, especificamente na abordagem desta dimensão do discurso, em contexto pedagógico, um tipo de abordagem que atenda a vários aspectos da sua cognição, designadamente o valor declarativo e performativo do conhecimento da sequência. Mas retomemos o texto: “— Que fazes tu ao gado, criatura? Parece que o enfeitiças! — Nada. Dou-lhe monte, como a outra gente.” O texto progride, desenvolvendo uma estrutura baseada no esquema ponto/ contraponto, que deixamos de lado, para destacar outros elementos que podem ser considerados na orientação da construção inferencial. “Sorria. E lá continuava a educar os malatos com gestos e palavras que ninguém sabiafazer nem dizer. Nunca batia numa rês. O castigo era um simples olhar reprovativo, um assobio impaciente, uma interjeição mal humorada. Mas bastava. Ao fim de algum tempo, cada cabeça como que porfiava em não desagradar ao dono, em viver sintonizada com aquele governo sem cajado. E dava gosto ver a disciplina com que o rebanho deixava o redil e atravessava o povo. — Não há dúvida! Nem o mestre, na escola! Continuava a rir-se por dentro. Espantavam-se com pouco. Com a pequenina amostra do muito que estava por detrás...” O sentimento de perplexidade do prior mantém-se no discurso narrativo, enquanto o narrador não entender resolver a dúvida sobre o mistério da conduta do pastor. 99
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A observar, então, dois aspectos. O primeiro diz respeito à assinalada estrutura ponto/contraponto, procedimento de cariz dramatúrgico, patente no modo como é constituída a alternância na tomada da palavra: com frases curtas, formadas, por vezes, por uma só palavra. O segundo aspecto relaciona-se com a acumulação semântica, isto é, com sentidos que se vão estruturando numa mesma linha, de modo a criar uma isotopia. A título de exemplo, podemos considerar como questões passíveis de sugerirem aos alunos um horizonte inferencial, algumas perguntas que formulamos e justificamos a seguir. “E fica resolvida a dúvida do prior relativamente à conduta do pastor?” Uma pergunta deste tipo orienta as inferências a construir pelos alunos, já que o lexema “dúvida” para isso contribui. Mas se entendermos operar com perguntas de tipo aberto, podemos perguntar-lhes: “que elementos novos são aduzidos nesta sequência do texto”? Não se tratando aqui de deixar formulado um roteiro acabado para a construção de inferências, mas apenas de exemplificar algumas possibilidades, tenha-se em conta ponderações que são necessárias quanto ao tipo de questões por que se deve optar, parecendo-nos mais eficaz o recurso a uma tipologia diversificada. Avancemos na narração, que se encaminha para um ponto de esclarecimento das questões que vão sendo textualizadas através de esquemas retórico-discursivos de acordo com as estruturas tópico/comentário e ponto/contraponto. Agora é o narrador que se vai colocar na cena narrativa, e, dizendo o que muito sabe (pois ele assume aqui o papel de um contador de histórias), deixa uma informação preciosa: “Continuava a rir-se por dentro. Espantavam-se com pouco. Com a pequenina amostra do muito que estava por detrás...” Mesmo não tendo revelado o segredo do pastor, o leitor fica a saber com o segmento citado que este narrador sabe coisas. A considerar-se plausível esta sugestão de re-significação textual, as perguntas que podem mobilizar raciocínios para construir inferências, se formuladas com base nos elementos textuais, poderão contemplar a reflexão, por parte dos alunos, do significado das reticências, sugerindo a existência de um segredo a descobrir.. De acordo com os esquemas compostos já assinalados, o avançar textual vai no sentido de conjugar tópicos temáticos e seu desenvolvimento, de modo a ir pontuando o discurso com informações essenciais e a não quebrar o efeito de suspense que é criado. O discurso narrativo principia, como vimos, com a apresentação de um procedimento inusual, estranho. Segue-se a interrogação sobre a estranheza, arquitectada de forma a insinuar dúvidas no espírito do destinatário. E neste jogo de velar e revelar, eis que o véu é parcialmente destapado pelos poderes de um narrador que sabe tudo e constrói a sua história doseando a qualidade e a quantidade de informação que veicula. “Na verdade, toda aquela disciplina tinha um fim, e era muito mais apertada 100
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do que parecia. Como os pastos no verão escasseavam, só havia uma solução: aceivar os nabais de noite, pela calada. Ora, para Áfricas dessas, o Gabriel necessitava de gado mudo e lesto, cegamente obediente ao comando. Por isso, sem dizer porquê nem por que não, exigia sistematicamente dos patrões que vendessem os carneiros mancos ou rebeldes, e ninguém ouvia o balido de nenhum.” A atentar na voz que fala, na qualidade e na quantidade de informação que fornece, poder-se-á formular perguntas que permitam aos alunos construir inferências não só de acordo com os elementos textuais, assim deduzindo o tipo de conduta do pastor, mas também formulando um juízo sobre essa mesma conduta, o que coloca a interacção verbal no domínio axiológico, isto é, numa atitude de ponderação sobre valores. É o mesmo narrador que nos elucida sobre a conduta desta figura “fora da lei” e que nos fornece pistas para a nossa atitude interpretativa, com ele, mas também de acordo com os elementos constituintes da nossa enciclopédia. “— O teu gado não berra? — Pergunta-lhe. É o berras! Ou não se chamasse ele Gabriel e não capitaneasse um bando de salteadores. No meio da escuridão, abria a porta do curral e punha-se a andar. O rebanho atrás, como um cão rafeiro. À entrada da melhor sementeira, parava, perscrutava os horizontes e arrombava o tapume. Depois, em silêncio, deixava entrar os famintos e esperava que cada boca se fartasse em silêncio. Se por acaso ouvia vozes ou passos de gente que se aproximava, subia acima da parede, descalçava os socos, batia com um no outro e largava a fugir com quantas pernas tinha. Não era preciso mais: quando chegava ao redil, já o rebanho lá estava. — Não, tu hás-de ter qualquer segredo, qualquer mistério... – insinuava o Languna, a sondar. — Palavra de honra que não. E realmente não tinha. A coisa vinha-lhe espontaneamente, duma maneira directa, rápida, infalível, de entender e de se fazer entender por todos os seres vivos. Via um coelho na cama, falava-lhe e punha-lhe a mão em cima. Acalmava um cão açulado – a sorrir-lhe.” Ora vejamos o que pode estar em causa nos diversos patamares em que estamos a laborar. Já vimos que as perguntas endereçadas a Gabriel com o objectivo de colher esclarecimentos sobre o “seu mistério” ficam por responder cabalmente. Com efeito, a personagem limita-se a responder com uma palavra que não responde, a encenar seriedade (“palavra de honra que não”) a sorrir, enfim, a pôr em prática a estratégia discursiva do disfarce. Em abono da verosimilhança narrativa, são aduzidos atributos da personagem (a docilidade, a afabilidade com os animais), que podem levar o leitor a pensar estar 101
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diante de uma figura que cuja compleição psicológica, dada a breves traços é certo, aponta para a figura de um homem simples, ingénuo e bondoso.
Mas avancemos no conto.
“E realmente não tinha. A coisa vinha-lhe espontaneamente, duma maneira directa, rápida, infalível, de entender e de se fazer entender por todos os seres vivos. Via um coelho na cama, falava-lhe e punha-lhe a mão em cima. Acalmava um cão açulado a sorrir-lhe. Mas esta comunhão instintiva com a natureza dos bichos não tentava o Gabriel alargá-la à natureza dos homens. Desses arredava-se discretamente, sem querer passar, nas relações com eles, do plano amorfo da neutralidade. Alugava o suor. Enjeitado, sem vintém, servia este e aquele. A indústria de Ferrede era comprar gado magro, engordá-lo e vendê-lo. Portanto, quem tinha dinheiro tinha o poder, e não valia a pena discutir. Que lhe interessava a ele perder tempo com palavreado ou mendigar intimidades que sabia impossíveis de antemão? O que os donos de cada rebanho queriam já o sabia: era que lho entoirisse de qualquer maneira. Recebia, pois, o farnel pela manhã, e ala, que se faz tarde. Cada qual para o que nasce.” O parágrafo agora transcrito fornece informações sobre o perfil da personagem, acentuando o carácter bondoso e genuíno. A observação do texto, no sentido de desencadear uma construção de inferências pode ser orientada pela consideração dos diversos enunciados ao serviço da caracterização da personagem, os quais combinam o registo explicativo, o comentário, a exemplificação. Mas eis que a história que é contada com a habilidade de um exímio narrador de histórias do povo, sofre uma volta. Seguindo o mesmo esquema de perguntas que temos vindo a ensaiar, trata-se, agora, de formulá-las tirando partido dos novos dados que são apresentados. A interrogação que fazemos sobre a vitalidade da personagem ganha uma explicação, ao ser apresentada como um homem rude. Outros elementos podem ser considerados, como por exemplo as indicações que são fornecidas sobre a consciência de classe social que justifica a sua atitude de distância, reserva e fechamento relativamente aos patrões. O discurso indirecto livre, trazendo até nós a corrente de consciência da personagem, deixa entrever outros atributos de Gabriel, o seu lado pragmático, sugerido pelos comportamentos de quem se vai revelando um homem astuto. Progressivamente, o narrador vai apresentando um conjunto de elementos para que se possa deduzir sobre a sua visão da personagem. Nenhuma condenação moral é feita pelo narrador, que opta, antes, por poetizar a personagem, o que muito se fica a dever ao gosto torquiano pela figura do pícaro. Tal compleição psico-social há-de notar-se com toda a clareza no desfecho da história, arquitectado com arte por quem maneja com sageza a arte do conto. Ainda 102
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considerando o parágrafo acima, as questões que podem ser formuladas aos alunos para desencadearem produtivas inferências pragmáticas e criativas podem, orientarse no sentido de levá-los a prospectar sobre a solução encontrada pelo narrador para encerrar a sua fala. “No verão em que fez vinte e dois anos, não pôde, contudo, ficar indiferente a um apelo que, muito embora fosse de cordeira no cio, vinha duma criatura cristã, com quem, de resto, acabou por casar.” Uma vez ponderadas as sugestões dos alunos, pode-se partir para o cotejo com o texto, momento que se reveste de surpresa.Além da valorização dessa dimensão da experiência de leitura, pode fazer sentido observar a construção do texto. Nesse caso, não se pode deixar de reparar em diversos aspectos, a saber, no modo como textualmente enuncia o dado novo. Aqui, a conjunção “contudo” desempenha uma função semântica importante, pois que introduz uma notação na caracterização de Gabriel que o coloca num patamar de maior humanidade do que aquela que lhe vinha sendo conferida até este momento da história. Depois de introduzida essa viragem no rumo da narração, que anuncia um novo desenvolvimento, uma nova sequência, pode-se partir com os alunos para uma actividade de previsão de finais alternativos. É, então, pertinente fazerem-se perguntas que desencadeiem um produtivo trabalho inferencial, como por exemplo uma actividade de previsão de finais alternativos do conto. “Foi assim: como a serra inteira ardia na fornalha do Agosto, certo dia, no pino do sol, resolveu assestar o gado na loja. Servia então o Silvano, o maior proprietário da terra. E enquanto o rebanho, sonolento, ruminava, estendeuse também no catre, igualmente sonolento e a ruminar. Era a hora do jantar, e lá em cima os patrões comiam e bebiam à tripa-forra. Ele, coitado, teria uma malga de caldo no fim do banquete, e viva o velho!” Chegados aqui, os leitores estão em posição heurística para avançar um pouco mais na formulação de hipóteses sobre o final da história, actividade que pode ser também respaldada nos novos dados fornecidos pelo texto, como a notação de traços semânticos (moleza, sonolência, calor, festa, riqueza vs pobreza), que isoladamente não têm grande significação, mas que se pensados a partir da função de construir a imagem da personagem a partir do reconhecimento do local, faz todo o sentido. Assim, a acção como que desenha a personagem. “Nisto, sente passos pela escada abaixo, abre-se a porta, e a filha da casa, bonitona, mas de pêlo na venta, que nunca dera conta que o olhasse como homem e nunca lhe consentira que a olhasse como mulher, aparece de cântaro na mão, ao vinho.” Imaginamos, nesse passo da leitura, o leitor a visualizar o que teria 103
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acontecido. “Em silêncio e sem se mexer, deixou-a passar para a adega, que era ao fundo, numa loja contígua. Mas apenas sentiu desandar a torneira da pipa e a espuma do tinto a ferver dentro do barro lhe fez cócegas na garganta, pediu humildemente: — Minha ama, dê-me uma pinga! — Dou. Anda cá bebê-la...” Observe-se como o narrador constrói a cena. A filha dos patrões vai buscar o vinho na adega, para o que precisa de passar pelo compartimento onde se encontra Gabriel . A exiguidade do espaço é significativa para a colocação da personagem Gabriel em primeiro plano, numa posição inicialmente estática (“em silêncio e sem se mexer”) e, de imediato, em posição activa, a partir do gesto que a desencadeia. Ao narrador interessa manter em suspenso a descoberta por parte do leitor da cena da aproximação entre os dois jovens. Por isso, coloca as personagens num curtíssimo diálogo, constituído por uma fala e uma réplica. As reticências no final desta última têm por função acentuar a continuidade da construção do suspense em torno da aproximação que se vem a dar.
“Ergueu-se num pronto, saltou por cima do gado, entrou no armazém, recebeu a pichorra, levou-a à boca e começou a consolar a alma. De repente, sem mais nem para quê, a moça, calada, dá-lhe um empurrão à vasilha com a ponta do dedo. De respiração afogada e ainda engasgado, a tossir, relanceou-a toda. Ao machio, a senhora morgada! E nada mais simples: pousou a caneca e dobrou a rapariga sobre uma facha de palha.” As inferências que possam surgir no final da leitura do texto prendem-se com as operações realizadas até este momento. Uma sugestão de grande eficácia é cotejar a validade dos movimentos preditivos no início e no final da leitura, bem como na situação de releitura, se houver espaço para tal. O processo inferencial devidamente encaminhado constitui inequivocamente um ganho cognitivo que beneficia as interpretações. Um aspecto fundamental a considerar, neste âmbito analítico, são os sentidos que o título de claras ressonâncias bíblicas possa sugerir, sobretudo se o trabalho heurístico prever a pesquisa bibliográfica. Mais do que apresentar agora sentidos que reputamos significativos para uma hermenêutica do conto, parece-nos de maior utilidade apresentar algumas ilações acerca desta exemplificação de procedimentos. O exercício do raciocínio por parte dos alunos ao longo da leitura implica sempre uma manipulação por parte do professor, no sentido de conferir alguma coerência às falas que vão sendo produzidas. Tal manipulação textual da narrativa e dos seus 104
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possíveis significados coloca os leitores em posição de clarificar a pertinência das suas predições e abduções. Assim, ao longo dos vários turnos de palavra, no contexto das interacções discursivas, pode-ser ir pontuando as sugestões de sentidos enunciadas pelos alunos, assim explicando-lhes os seus diversos movimentos inferenciais, processo que legitima do ponto de vista cognitivo, a apreensão e a confirmação de elementos semânticos, de efeitos de sentido, etc. É evidente que só o prosseguimento das operações inferenciais pode esclarecer acerca do seu ajustamento ou desajustamento, o que obriga que se pratique um continuado movimento de confirmação de hipóteses interpretativas. 5. A concluir A valorização de sugestões para a aquisição de conhecimentos processuais para uma produtiva leitura inferencial é uma proposta subsidiária de estudos de natureza transdisciplinar sobre o processo de compreensão na leitura. Trata-se de um aspecto que em sede teórica é objecto de investigação em váreas áreas científicas, como por exemplo na pedagogia, na psicologia cognitiva, na linguística e também em estudos sobre a leitura que se voltam para a sua dimensão semiológica. O desejável é ensinar a prática de modos de operacionalizar a construção da compreensão leitora, numa atitude favorecedora de abordagens que se adeqúem aos contextos de ensino e intelectualmente significativas e motivadoras para os alunos. A partir de dados observados sobre práticas pedagógicas de leitura em vários cenários (ensino básico, secundário e superior), estou convicta de que o desenvolvimento da habilidade inferencial se reveste de um grande alcance cognitivo e metacognitivo no acto de ler, capacidade que, além do mais, é susceptível de potenciar positivos resultados em todos os domínios verbais. E porque acreditamos que as abordagens didáctico-pedagógicas da leitura do texto literário, em contexto escolar, podem conciliar o trabalho cognitivo e o prazer de ler, continuamos a considerar uma mais valia para os alunos a aquisição de um conhecimento explícito acerca dos processos de compreensão e verbalização que têm lugar nas práticas de leitura. E para o professor, que, no presente momento histórico, a si também chama a função de mediador da literatura, são múltiplos os benefícios que uma tal prática didáctica de natureza transdisciplinar pode trazer para o seu ofício de ensinar aos mais jovens a aquisição e o desenvolvimento de habilidades de leitura – questão que continua a ocupar-nos no debate sobre a formação de leitores no século XXI. Bibliografia: Bernardes, J. A. C. (2005). Como abordar a literatura no ensino secundário. Outros caminhos. Porto: Areal. Castro, R. V. & Dionísio, M. L. (1998). Entre linhas paralelas. Estudos sobre o 105
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português nas escolas. Braga: Angelus Novus. Costa, M. A. (1998). Saber ler e saber ensinar a ler do básico ao secundário. In R. V. Castro & M. L. Sousa, Linguística e Educação. Actas do Encontro da Associação Portuguesa de Linguística. Lisboa: Colibri. Dionísio, M. L. & Castro, R. V. (Org.) (2005). O Português nas escolas. Ensaios sobre a língua e a literatura no secundário. Coimbra: Almedina. Eco, U. (1983). Leitura do texto literário. Lector in fabula. Lisboa: Presença. Festas, M. I. (1998). O desenvolvimento de estratégias de compreensão de leitura de textos escritos. In Ensaios em homenagem a Joaquim Ferreira Gomes (pp. 327-332). Coimbra: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Núcleo de Análise e Intervenção Educacional. Festas, M. I. (1998). A compreensão da leitura: a construção de um modelo mental do texto. Revista Portuguesa de Pedagogia, 32, 1, 81-98. Giasson, J. (1993). Compreensão na leitura. Porto: Asa. Kleiman, Â. (1989). Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes. Martins, M. E. O. & Sá, C. M. (2008). Ser leitor no século XXI : importância da compreensão na leitura para o exercício pleno de uma cidadania responsável e activa. Saber (e) Educar, 13, 235-246. Mello, C. (1998). O ensino da literatura e a problemática dos géneros literários. Coimbra: Almedina. Mello, C. (2008). O encontro do leitor com o texto: dificuldades cognitivas no acto de ler. Paradigmas literários e ensino da literatura, hoje – parte II. In No Branco do Sul. As cores dos livros (pp. 14-28). Lisboa: Caminho. Mello, C. (2004). Saberes, competências e valores. Subsídios para a didáctica da leitura do texto literário. In Actas del VII Congreso Internacional de la Sociedad Española de Didáctica de la Lengua y la Literatura (pp. 343-352). Coruña: Deputación da Coruña. Mello, C. (2005). O leitor na cena da leitura. In T. M. K. Rösing, M. Rettenmaier & E. V. Weschenfelder (Org.), Vozes do terceiro milénio: a arte da inclusão (pp. 157-179). Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo. Mendoza Fillola, A. (1995). De la lectura a la interpretacion. Orientaciones para el profesorado sobre el proceso lector y la formación de la competencia literaria. Buenos Aires: A-Z Editora. Mendoza Fillola, A. (1998). Tú, lector – Aspectos de la interacción texto-lector en el proceso de la lectura. Barcelona: Octaedro. Otten, M. (1987). Semiologie de la lecture. In M. Delcroix & F. Hallyn, Méthodes du texte. Introduction aux etudes littéraires (pp. 340-350). Paris : Duculot. Solé, I. (2001). Estrategias de lectura. Barcelona : Graó.
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O papel do dicionário no ensino e aprendizagem das línguas
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Ignacio Vázquez Universitat de Barcelona
Gostaria de apresentar nas seguintes linhas o dicionário como elemento importante – e sob a minha opinião indispensável – na aprendizagem de línguas. Fá-lo-ei nos seus dois aspectos mais importantes, na aprendizagem da língua materna e na aprendizagem de uma língua estrangeira. No que diz respeito à aprendizagem da língua materna tem um duplo valor: • o primeiro deles vem apoiado hoje pela Sociologia, • o segundo contribui para que o aluno aprenda o uso do vocabulário. Os dois valores estão unidos indissociavelmente e respondem claramente à aquisição da língua materna dentro de parâmetros sociais mínimos considerados necessários para conviver numa dada sociedade. Um dos grandes problemas que apresenta hoje a educação nos nossos países é a falta de um critério claro quando não se considera que os aspectos formais da educação são importantes. Mas, na realidade, sem forma não há fundo e se há mas não se sabe controlá-la é como se não houvesse. Não se trata do debate entre os conteúdos ou o aprender a aprender, mas de conseguir uma cabeça bem pensante graças ao domínio das formas. Como afirma o já clássico pressuposto, sem linguagem não há pensamento. Trata-se, enfim, e utilizando terminologia pedagógica, de adquirir as “competências básicas” estabelecidas na Ley Orgánica de Educación (espanhola) [L.O.E.] de 2006: • • • • • • • •
competência em comunicação linguística, competência para aprender a aprender, autonomia e iniciativa pessoal, aprender a tratar a informação, ter competência social e cidadã, competência no conhecimento de interacção com o mundo físico, competência artística e cultural e competência matemática. 107
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Para conseguir esse estado aceitável de indivíduo bem pensante segundo as linhas sociais marcadas – e eu acrescentaria também, segundo o senso comum e prático – a pessoa tem de começar desde uma idade precoce a utilizar elementos de consulta. Desde o início da sua educação que o aluno deveria de mostrar curiosidade pelas coisas e ser ciente de que está a aprender tudo acerca do mundo em que vive. Se essa capacidade não aparece de motu proprio pode ser fomentada pelo professor. Seja como for, o dicionário é a ferramenta ideal para aprender o procedimento da consulta. É o primeiro professor que os alunos vão ter na longa etapa da aprendizagem. A consulta é a procura de dados, de informação sobre qualquer assunto ou matéria que os vai conformar como seres humanos pensantes. O uso desse livro normalmente alfabético pode supor o descobrimento das estratégias adequadas para tirar as dúvidas que se lhes apresentam, e para adquirir consciência da necessidade de um uso responsável da língua.
Torna-se necessário, pois, que os alunos conheçam as possibilidades que lhes oferece esta ferramenta de consulta. É um instrumento imprescindível para a aprendizagem do léxico e da língua em geral. Deveria estar presente em todas as aulas. Os programas actuais – lembremos o Real Decreto de Mínimos da ESO (Real Decreto 3473/2000, de 29 de Dezembro) – outorgam-lhe uma importância especial juntamente com as novas tecnologias (a Internet). O conhecimento das informações que oferecem os dicionários e a sua utilização proporcionam ao aluno um grau de autonomia muito elevado. Todo esse processo se baseia, fundamentalmente e de maneira inequívoca, na aquisição e no uso do léxico. Através dele é que se forma a língua e através dele é que funciona toda a estrutura da língua (gramática e sintaxe).
No que diz respeito à aprendizagem e mesmo ao ensino de uma língua estrangeira, é sabido que o dicionário é actualmente um instrumento essencial: nos primeiros tempos, quando o aprendiz está a conhecer a língua; e quando já a conhece e precisa de aperfeiçoar a linguagem. Se a pessoa se dedica à tradução, então a importância do dicionário é fundamental. Mas esta situação é assim apenas no presente, desde há muito poucos anos. No início, o dicionário, esse livro por todos conhecido, servia basicamente para a descodificação de um texto escrito, uma obra ao serviço da literatura. Não esqueçamos que antes de Saussure a língua por excelência era a escrita. A oral não se tinha em conta. Nesse aspecto, Bally já em 1925 criticava a tendência anacrónica e présaussureana de estudar a língua como definição de normas linguísticas a imitar dos clássicos. Dizia Bally: 108
O papel do dicionário no ensino e aprendizagem das línguas
«Valeria a pena mostrar a que excessos e a que erros conduziu esta falsa concepção. Em primeiro lugar, o fetichismo da língua escrita, acompanhado evidentemente de um menosprezo soberano para a língua falada, qualificada de reles, que não obstante é a única verdadeira, já que é a única original»1 É a partir dessa altura que o dicionário atinge a importância que hoje tem em qualquer nível da língua. Surgem então dicionários de dúvidas, de erros, de sinónimos e, sobre tudo, de uso, para além dos históricos, normativos, monolingues, multilingues e bilingues já existentes. Estes últimos, iniciadores verdadeiros há 4.000 anos da lexicografia na antiga Suméria, são construídos agora para servirem na aprendizagem da língua B partindo da língua A, e aperfeiçoam a técnica da tradução. A aprendizagem e o ensino de vocabulário foram durante anos os grandes esquecidos em qualquer aula de línguas estrangeiras. Erroneamente considerava-se que um enfoque meramente gramatical era prioritariamente necessário, quando hoje sabemos que uma maior profundidade no conhecimento do vocabulário facilita o processo de aprendizagem gramatical e ajuda o aluno a identificar estruturas mais facilmente, que os alunos ganham confiança quando escrevem ou lêem se têm mais léxico. A estrutura e a norma estavam por cima da comunicação que é, em definitiva, o fim básico de uma língua. A falta de concordância entre distintas disciplinas linguísticas no âmbito da pedagogia do vocabulário, tal como a ausência de uma metodologia clara para definir e delimitar a aquisição do mesmo contribuíram para ignorar os dicionários como ferramentas indispensáveis na aprendizagem e ensino de línguas estrangeiras. Se considerarmos que um estudante aprende vocabulário com a leitura e vê no dicionário uma ferramenta de apoio, esse livro converte-se num ponto de referência absolutamente necessário no âmbito educativo de uma segunda língua. O léxico foi ignorado durante décadas na sua aplicação didáctica dado que os métodos linguísticos que marcaram durante anos a investigação, o estudo e a metodologia da língua (estruturalismo e generativismo) preferiram estudar a fonética e a gramática porque o vocabulário parece menos proclive a ser generalizado do que um sistema fechado como a fonética ou a gramática2. Mas não só os novos métodos didácticos, também os recentes estudos levados a cabo e a experiência docente de professores de L2 levam a afirmar a importância do léxico no ensino e aprendizagem de uma língua. Diz Laufer que o vocabulário é hoje 1 Bally, Charles (1925), Le langage et la vie, Droz, Genève. 2 Laufer, B. (1997), “What’s in a word that makes it hard or easy: Some intralexical factors that affect the learning of words.” en N. Schmitt y M. McCarthy (eds.) 1997: Vocabulary: Description, acquisition and pedagogy. Cambridge: Cambridge University Press. Capítulo 2.3. 109
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reconhecido como o ponto central no processo da aquisição da língua, nativa ou não nativa3. Quase todos os investigadores concordam em afirmar a importância do dicionário na aprendizagem de uma língua e caberia dizer no seu aperfeiçoamento. É juntamente com a gramática um dos elementos imprescindíveis nesse processo. Mas os investigadores assinalam nessa sequência uma necessidade que afecta a um dos elementos fundamentais do ensino: é o professor que não deve supor nenhum conhecimento no uso do dicionário por parte do aluno, porque ainda que conheça a ordem alfabética, o dicionário tem uma série de codificações, abreviaturas, informações que é preciso saber para lhe tirar o máximo rendimento e, por isso, o docente tem de explicar ao aluno esses procedimentos. O professor tem de ensinar o aluno a manejar o dicionário e tem de lhe mostrar a sua utilidade. No fim, utilizando cada docente o método que achar adequado, como interpretar um dicionário ajuda a melhorar o uso da língua pelo aluno. Se as suas possibilidades são infinitas, destacam-se, porém, as seguintes como principais: • descodificação escrita (leitura) • codificação escrita (escrita) • descodificação oral (compreensão oral) • codificação oral (expressão oral) • descodificação de L1 (tradução de L2 a L1) e • codificação de L2 (tradução de L1 a L2). Leitura, escrita, compreensão, expressão, tradução... o dicionário parece cobrir inúmeras necessidades no processo da aprendizagem do aluno. Mas, para além disso, o dicionário é um elemento divulgador de cultura, seja o dicionário monolingue, seja o bilingue. Josefina Prado Aragonés4 diz que o dicionário não é só uma obra linguística, mas também um instrumento cultural que inclui informação extra-linguística (enciclopédica, etnográfica, antropológica e ideológica) e transmite e difunde socialmente, confirmadas como norma de uso, palavras com informação sobre o mundo e sobre a cultura da comunidade que fala essa língua. Essa informação cultural e enciclopédica apresenta-se no dicionário, por vezes na definição, mas fundamentalmente nos exemplos de uso nos quais se mostram contextualizados os modelos de uso da língua. Quer dizer, a informação contida num dicionário é outro modo de explicar a cultura. Consideramos que apesar das possíveis limitações do dicionário, este é uma excelente ferramenta de trabalho e de consulta quer para professores, quer para alunos, tanto de uma língua materna como de uma segunda língua. 3 Laufer, op. cit., p.140. 4 Prado Aragonés, Josefina (2004), “El ejemplo lexicográfico como referente cultural en la enseñanza del español como lengua extranjera” en Prado Aragonés y Galloso Camacho, Diccionario, léxico y cultura, Huelva, Universidad de Huelva (págs. 157-173). 110
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Pontes, desníveis e sustos na transição entre a educação pré-escolar e o 1º ciclo da educação básica
PONTES, DESNÍVEIS E SUSTOS NA TRANSIÇÃO ENTRE A EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR E O 1º CICLO DA EDUCAÇÃO BÁSICA
Inês Sim-Sim ESE de Lisboa Palavras-chave
transição escolar; continuidade nas aprendizagens linguísticas
A transição entre ciclos de vida é sempre carregada de emoções e conotada com períodos de expectativa, stress e medos. Para a maior parte das culturas, são consideradas transições importantes o nascimento, a puberdade, o casamento e a morte; a finalização da vida escolar, a entrada no mundo do trabalho, o divórcio, a maternidade são outros momentos marcadamente relevantes na sociedade dos nossos dias. A transição implica sempre a perca e a separação de algo conhecido e, simultanea mente, a integração num contexto novo e desconhecido, envolvendo o medo do que é estranho, o abandono de rotinas estabelecidas e a aprendizagem de comportamentos e atitudes adequados aos novos ambientes (sociais e físicos). Uma das formas que a colectividade encontrou para lidar com estes momentos de transição foi a criação de ritos de passagem, os quais são celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade, ajudando o próprio a compreender melhor o seu novo papel, deveres e direitos. A antecipação da passagem pode, quando bem preparada, compaginar-se como a antevisão de um momento de prazer na nova etapa da vida. Nesta comunicação, procurarei centrar-me na transição da criança entre o jardim de infância e o 1º ano de escolaridade e, mais especificamente, reflectir sobre o processo de transição nas aprendizagens linguísticas nessa fase etária. Ao deixar o jardim de infância, a criança perde um espaço conhecido, um profissional de referência, rotinas e hábitos instalados e a segurança perante o que conhece e lhe é habitual. A contrapor a estas percas, ganha expectativas sobre o que a transição lhe pode proporcionar. Se lhe perguntarmos nessa altura por que quer ir para a escola, a resposta será, muito provavelmente, para aprender coisas novas e, quase de certeza, para aprender a ler. O novo lugar, a escola, está socialmente associado à entrada formal na linguagem escrita. Esta transição, geradora de expectativas e de ansiedades, pode materializar-se em 111
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medos ou em desafios para o que transita e para os que acompanham a transição, i.e., a criança, o educador de infância, o professor do 1º ciclo e a família. Se soubermos como actuar, este momento pode ser sentido como algo muito positivo, como um estímulo ao desenvolvimento da criança, e também como um momento de colaboração especial entre profissionais de educação e entre a família e esses mesmos profissionais. Quando a transição é menos feliz, os principais interessados, as crianças, vêem-na desta forma:
Estava assustado porque não conhecia o professor... No Jardim de infância havia coisas para saltar, escorregar, subir e descer... Gostava de estar numa escola que fosse como o Jardim de infância... (Folque, M. , 2002, in M. Woodhead & P. Moss (2007)1
Ou materializa-se nestas comparações: No jardim de infância brincamos mais
Na escola trabalhamos mais
No JI não trabalhamos; é só brincar
Na escola só brincamos no recreio
JI é lindo: só brincava e fazia desenhos
Aqui trabalho e às vezes aprendo letras
Lá estávamos sempre no recreio
Aqui é diferente porque faço coisas; trabalho
Lá não aprendia contas, nunca lia, não Aqui trabalho muito e fico cansado; não podemtrabalhava; só brincava os jogar futebol (Folque, M. , 2002, in M. Woodhead & P. Moss (2007)2
Esta imagem da transição, sentida dicotomicamente por muitas crianças, reportanos para a questão de fundo sobre a continuidade ou descontinuidade na transição de níveis de ensino, em que o jardim de infância é visto como um espaço e um tempo preparatórios em que a criança adquire o que era comum designar por pré-requisitos para as aprendizagens escolares. Subjacente a esta perspectiva reside um velho conceito que remonta à concepção maturacionista de prontidão para as aprendizagens escolares. Exemplificando, na escola a criança era suposta aprender a ler, cabendo ao jardim de infância o papel de desenvolver um conjunto de capacidades de coordenação motora, de conhecimento do esquema corporal, de estabilização da dominância lateral, de discriminação visual e auditiva, as quais lhe franqueariam as portas da aprendizagem da leitura. Dito de uma outra forma, através de actividades desenvolvidas no jardim de infância, o aluno deveria ficar pronto para aprender a ler e a escrever. A perspectiva de prontidão da criança para enfrentar as aprendizagens escolares contém em si uma semente de ansiedade contagiante para todos os intervenientes; para a criança, em primeiro lugar, para os educadores que procuram deixá-la pronta, para os professores que muitas vezes a julgam como não pronta e, claro, por arrastamento 1 Woodhead, M. e Moss, P. Early Childhood and Primary Education - Transitions in the lives of young children. Walton Hall: The Open University. 2 ibidem 112
Pontes, desníveis e sustos na transição entre a educação pré-escolar e o 1º ciclo da educação básica
para as famílias. O insucesso nas aprendizagens e o desinteresse das próprias crianças espelham, muitas vezes, as consequências desta visão ultrapassada da necessidade de prontidão para aprender. A evolução dos conhecimentos sobre como é que as crianças aprendem veio contradizer, por um lado, a concepção de prontidão e, por outro, questionar o conceito de pré-requisitos para aprender a ler. Sabe-se hoje que a prontidão não é uma realidade dicotómica, determinada pela idade cronológica (estar pronto ou não estar pronto, tal como a fruta está ou não está madura). A noção de ambientes estimulantes onde as crianças, através da orientação guiada (andaimes, na perspectiva de Vygotsky) se desenvolvem e constroem conhecimento, guia as perspectivas actuais sobre o processo de desenvolvimento e de aprendizagem. Da a velha noção de prontidão da criança para aprender, evoluiu-se para o conceito de prontidão das instituições para servirem as necessidades de cada criança. Ou seja, para que a transição entre o jardim de infância e a escola seja um processo natural e um desafio para todos os intervenientes, é importante que ambas as instituições se constituam como ambientes estimulantes de aprendizagem e de desenvolvimento para todas e cada uma das crianças. A questão da transição entre ciclos é, antes de mais, uma questão de política nacional de continuidade educativa. Dentro dessa política, é da máxima importância a articulação curricular ao nível da sequência nas aprendizagens, evitando percursos descontínuos, inconsistentes e repletos de sobressaltos. É, por isso, determinante que as aprendizagens implementadas no jardim de infância sejam um processo continuado e consolidado no 1º ciclo. Para tal é necessário que o currículo enunciado nas Orientações Curriculares do Pré-escolar esteja articulado com as aprendizagens enunciadas e a implementar no 1º ciclo do Ensino Básico. Para que a continuidade na transição seja eficaz, é igualmente necessário que profissionais de cada um dos níveis de ensino conheçam o âmbito de actuação dos ciclos vizinhos, para o que muito ajudará uma formação inicial partilhada, tal como preconiza o novo ordenamento jurídico da formação de professores. Finalmente, e não menos importante, é necessário que a política educativa nacional estimule o envolvimento das famílias na manutenção da continuidade pedagógica e, consequentemente, nas aprendizagens das crianças. Sem essa continuidade, a transição corre riscos de sobressaltos e de angústias com consequências nefastas para todos os intervenientes. Ao nível da política educativa local, a continuidade pode ser materializada se houver partilha de serviços e coordenação dos mesmos entre o pré-escolar e o 1º ciclo do Ensino Básico; se educadores de infância e professores do 1º ciclo compartilharem momentos de formação contínua, se forem escolhidos os melhores profissionais para o ensino do 1º ano de escolaridade e se a família for chamada a contribuir para o processo da transição. Em síntese, a passagem será um momento sem sobressaltos se se estimular a consistência e a continuidade na perseguição de objectivos pedagógicos, na organização dos conteúdos curriculares, na partilha dos espaços e tempos escolares e, claro, se 113
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todos (profissionais, família e crianças) se envolverem em actividades específicas para a transição. Se nos centramos na continuidade e consistência da aprendizagem da língua, o grande objectivo a perseguir é o estabelecimento de pontes conducentes ao desenvolvimento da linguagem oral e ao sucesso da aprendizagem da linguagem escrita. Tornar-se leitor é um processo longo, que será prazeroso ou penoso, conforme os adultos o conduzirem. O sucesso na entrada no clube dos leitores depende profundamente do que se fizer deliberada e conscientemente no jardim de infância e nos dois primeiros anos da escolaridade básica, nomeadamente nas actividades de desenvolvimento da linguagem oral e na experiência com materiais escritos e de escrita. A partir do 1º ciclo vai ser pedido ao aluno que estude, através da leitura, que demonstre conhecimentos, através da escrita, o que implica que lhe sejam ensinadas estratégias de extracção de significado (implícito ou explícito), de exploração consciente de diversas tipologias textuais, de auto-monitorização da compreensão, de antecipação e de reformulação do conhecimento, antes e após a leitura. Este é o percurso a percorrer para formar leitores fluentes. Tomando como limite temporal a transição entre o pré-escolar e o primeiro ano de escolaridade, gostaria de deixar claro que, de modo algum, considero que o Jardim de Infância deva visar o ensino da leitura e da expressão escrita. Por outro lado, isto não significa que a criança não possa nem deva aprender sobre a linguagem escrita nem, muito menos, que lhe seja tolhido o prazer de contactar com o escrito e de viver num ambiente de escrita. Julgo imprescindível que, no esbater de assimetrias sociais que todos desejamos, cada criança deva ter a oportunidade para se deixar seduzir pela escrita e, assim, iniciar a sua viagem pela floresta da linguagem graficamente representada, mesmo antes de formalmente ensinadas a ler. No sentido da promoção de uma transição nas aprendizagens linguísticas sem descontinuidades e com prazer, procurarei, em seguida, equacionar quatro roteiros que podem ajudar numa continuidade sem sobressaltos. (i) A promoção do desenvolvimento da oralidade, com ênfase especial para o desenvolvimento lexical À medida que crescemos linguisticamente, usufruímos cada vez mais da língua materna, mas nem todos atingimos os mesmos níveis de mestria linguística. Embora com idênticas capacidades à partida, os desempenhos que cada um consegue são condicionados pelas experiências vivenciadas. A universalidade do processo de aquisição da linguagem oral pela criança é determinante, mas não implica, contudo, que a mestria linguística do jovem falante seja atingida pela simples exposição ao sistema linguístico falado na comunidade de pertença. À escola, aqui incluindo o jardim de infância, cabe um papel basilar no crescimento linguístico das crianças, quer esbatendo as assimetrias devidas à deficitária estimulação do meio social de ori114
Pontes, desníveis e sustos na transição entre a educação pré-escolar e o 1º ciclo da educação básica
gem, quer potencializando capacidades individuais. Não basta deixar falar as crianças para que elas se desenvolvam linguisticamente. É necessário que ambos, o educador e o professor, promovam intencionalmente, e com grande regularidade, actividades com fins específicos para o desenvolvimento da linguagem oral dos alunos. É frequente no jardim de infância a audição de histórias (contadas e lidas). A criança gosta de ouvir narrativas mas, para além do prazer da audição da narrativa, há que levá-la a aprender a prestar atenção a pormenores e a conservar essa atenção por períodos cada vez mais alargados. Igualmente temos que lhe proporcionar a audição de poesias e de exposições informativas (notícias, diálogos, entrevistas, debates) para que, de forma progressiva, aprenda a compreender e a distinguir diferentes géneros do oral. A estimulação da oralidade passa também pelo pedido da produção de narrativas estruturadas, pelas discussões orientadas sobre experiências vividas individual ou colectivamente, pela descrição de previsões de acções a realizar e pelo questionamento e respostas formalmente organizadas sobre o que foi ouvido. Deve ser dada à criança no jardim de infância, e igualmente nos primeiros anos de escolaridade, a oportunidade para realizar actividades que envolvam a função distintiva da entoação (e.g., para perguntar, para pedir, para dar ordens, etc), para vivenciar conscientemente situações interactivas que exijam adequação ao interlocutor (formas de tratamento) e a adequação à situação (formal/informal), respeitando a tomada da palavra e a troca de papéis. Embora assumindo a forma lúdica, estas actividades não podem ser confundidas com simples momentos verbais deixados à informalidade da comunicação. Há que fazer deles verdadeiros tempos de crescimento para todas as crianças, permitindo que cada uma participe e progrida linguisticamente. Um atenção especial deverá ser concedida ao desenvolvimento e enriquecimento lexical. Quanto mais rico e diversificado for o léxico da criança, mais possibilidades terá de compreender o que lhe dizem e o que lê, e maior será a sua capacidade para antecipar o que ouvirá ou lerá em seguida. É determinante que, em ambos os contextos (jardim de infância e escola), a criança seja exposta a um léxico diversificado e que se envolva em actividades explícitas de ensino do significado das palavras. No desenvolvimento da oralidade, não chega, portanto, a aquisição natural e espontânea da língua, via exposição. Sem intencionalidade pedagógica do educador e do professor do 1º ciclo, o desenvolvimento linguístico ficará muito aquém do desejável.
(ii) O contacto com material escrito e de escrita A linguagem escrita é uma representação da linguagem oral que, por sua vez, rep115
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resenta o real. Na entrada no mundo da linguagem escrita, a primeira grande descoberta a ser feita pela criança é que o escrito contém significado que se destina a ser lido, i.e., a ser transformado em linguagem oral. A descoberta da função da escrita – escrevemos para que outros leiam e lemos porque alguém escreveu - e da natureza da mesma – permanente e regulada por princípios gráficos – deve ocorrer antes que a criança seja formalmente ensinada a ler, portanto durante o período do jardim de infância e, igualmente, na escola. O acesso a material escrito tem como função as experiências de leitura e de escrita, em situação de vida real, e o diálogo sobre essas mesmas experiências. É por isso que é importante para a criança ouvir o adulto ler-lhe em voz alta histórias ou notícias, ver o adulto a escrever e conversar sobre essa mesma escrita, elaborar com o adulto listas de compras, consultar o calendário, procurar identificar rótulos e desdobráveis publicitários, reconhecer a mancha gráfica do seu próprio nome, de marcas comerciais significativas para a criança, ou o destino do autocarro que todos os dias a leva para casa; aceder ao computador e experimentar o aparecimento mágico de “letras em carreirinha” pelo simples toque no teclado... Todas as experiências que proporcionem o conhecimento da estrutura física do livro (a capa, o título, o nome do autor, onde se começa a ler e termina a página) são também de grande importância e oportunidade. Sendo importante para todas as crianças o contacto com a linguagem escrita, este ganha um valor acrescido junto das populações que não beneficiam no meio familiar dessa mesma estimulação. O jardim de infância e a escola devem proporcionar uma atenção particular às crianças cujo ambiente familiar é parco em contacto e experiências com livros, jornais, revistas e todo o material de escrita. (iii) A consciência dos sons da língua (consciência fonológica) Embora a entrada no mundo dos sons da fala se inicie muito cedo, só muito mais tarde a criança vai ser capaz de identificar consciente e voluntariamente as unidades de som dessa mesma língua. Esta identificação é, contudo, essencial para que ela aprenda a ler e a escrever. Como o Português é uma língua de escrita alfabética aprender a ler implica aprender a correspondência entre os sons da língua e a sua representação gráfica, i.e., as letras. Neste sistema de escrita é assumido como princípio que as unidades mínimas de som da fala são representadas por grafemas, sendo o alfabeto o conjunto de letras com os quais é possível representar graficamente todos os sons de uma língua. É essa correspondência, materializada no chamado princípio alfabético, que as crianças têm que descobrir antes mesmo de aprenderem as características e os nomes das letras. A descoberta do princípio alfabético por parte da criança implica que conscientemente ela reconheça e identifique os sons da sua língua materna. À capacidade para se distanciar dos sons da fala e isoladamente os identificar chamamos consciência fonológica. O gosto pelas rimas e pelos jogos com os sons da fala que as crianças tanto apreciam são indicadores dessa capacidade em idades precoces e deverão ser estimulados ludicamente pelo educador desde muito cedo. 116
Pontes, desníveis e sustos na transição entre a educação pré-escolar e o 1º ciclo da educação básica
No jardim de infância as actividades de desenvolvimento da consciência fonológica deverão sempre aparecer à criança como brincadeiras que lhe permitem segmentar frases em palavras e palavras em sílabas, ou o contrário, reconstruir frases e palavras apresentadas segmentadamente. A identificação de sílabas iguais e a manipulação de sílabas (supressão ou troca de sílabas iniciais, finais ou intermédias) são também exemplos de actividades que fomentam as aprendizagens que conduzem a criança ao conhecimento de unidades cada vez mais pequenas da cadeia de sons da sua língua materna. Ao entrar para a escola, estas actividades deverão progressivamente ser dirigidas para a consciência do fonema, através do mesmo tipo de exercícios que já realizava no jardim de infância para o desenvolvimento da consciência silábica. (iv) O prazer da leitura pela voz dos outros Deixei propositadamente para o fim a abordagem do roteiro em que é maior a evidência da sintonia entre o objectivo central do que me propus abordar – a transição entre o jardim de infância e a escolaridade – e o meio de o conseguir sem rupturas e sem sustos. A transição entre ciclos pode tornar-se sedutora quando o prazer que se segue é antecipado, neste caso o prazer de dominar as competências linguísticas de leitura e escrita, objecto de ensino formal no 1º ciclo da Educação Básica. Há algumas décadas, uma grande investigadora nos domínios da leitura afirmava que “ler é um jogo de adivinhar”, querendo com isso significar que, ao lermos, antecipamos, confirmamos ou rectificamos o que previmos...É o que acontece quando lemos um título de uma notícia ou de um livro, quando folheamos uma revista, ou quando prevemos o sabor de um cozinhado do qual só temos a receita ou a fotografia...É esta antecipação que nos faz querer entrar no conteúdo da notícia, na trama do romance, no deambular do itinerário de uma viagem. É o desejo de melhor conhecer e usufruir do que está embrulhado em letras que nos precipita para o texto, que gera a rotina da leitura e que, em pequeninos, nos leva a querer aprender a ler para chegarmos sozinhos à descoberta do que está escrito. A sedução precoce pelo escrito assenta nas experiências de partilha de leitura que a criança vivencia quando o adulto criou o hábito de lhe ler. Esse hábito enraíza-se tão mais fortemente quanto mais é alimentado por rotinas de tempo e de lugar. Partilhar a leitura é uma experiência ancestral que remonta aos tempos em que saber ler era privilégio de alguns, na idade média quase exclusivamente do clero e dos membros das ordens religiosas. Os conventos e as igrejas eram os grandes pólos da leitura oralizada, em que os textos bíblicos e outros manuscritos de prosa e poesia eram motivo para o ensino e para a convivialidade. Os que não sabiam ler recebiam a informação e usufruíam do prazer da leitura pela voz dos outros. A prática da leitura oralizada continuou através dos tempos e é dela que falo quando me refiro à necessidade de promover na criança o prazer de ler pela voz dos outros. É a força dos momentos de intimidade e de partilha que une leitor, livro e ouvinte. Esta trilogia é a grande geradora de cumplicidades que se constroem na rotina diária à volta do livro; 117
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quanto mais atractiva for a leitura, mais presos estão o ouvinte e o leitor; quanto mais interessados estes últimos estiverem, maior se torna a revelação do que está escrito, mais tempo é consumido a pensar no que se leu e a explorar o livro lido. É por isso que é importante criar rotinas de leitura em voz alta no jardim de infância e na sala de aula do 1º ciclo. Estas rotinas devem obedecer a espaços próprios e a momentos certos e deverão integrar actividades que estimulem a antecipação do que se vai ler, o diálogo sobre o que se leu e a preocupação de habituar a criança a ouvir histórias cada vez mais longas, interrompidas no momento mágico em que o adiar para o dia seguinte o prosseguimento da narrativa amarra o pequeno leitor ouvinte à continuação da leitura. É desta actividade partilhada que nasce o desejo de querer saber ler e o apetite devorador por livros...O mesmo é dizer que a sedução pelo escrito tem as suas raízes nos momentos partilhados da leitura pela voz dos outros... Esses momentos de partilha colectiva devem acontecer com igual regularidade e interesse no jardim de infância e na sala de aula do 1º ciclo. O prazer de ouvir ler deve acompanhar o momento de passagem... Em síntese, ao falar de continuidade na transição das aprendizagens linguísticas, quero sobretudo realçar a necessidade de, em locais diferentes (jardim de infância e sala de aula), com profissionais diferentes (educador e professor), serem intencionalmente continuadas as mesmas actividades pedagógicas para as mesmas crianças. É a isto que me refiro quando menciono a continuidade na transição. Possa este pequeno contributo servir de pontes nesta fase da vida escolar das crianças e dos profissionais que com elas trabalham, esbatendo desníveis e evitando sustos para todos os intervenientes.
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“ Isso não Soa Bem”. A Consciência Fonológica do lado de Lá Reflexão em torno exercícios de Consciência Fonológica no Primeiro Ciclo.
“ Isso não Soa Bem”. A Consciência Fonológica do lado de Lá - Reflexão em torno exercícios de Consciência Fono-
lógica no Primeiro Ciclo.
Isabel Sofia Calvário Correia Escola Superior de Educação de Coimbra Palavras- Chave
Consciência Fonológica; Consciência Fonémica, Práticas Lectivas
Resumo Quando chega ao 1 Ciclo a criança já teve diversos contactos quer com a grafia, quer com a leitura, nem que seja apenas como ouvinte. Se estimularmos nela a consciência de que os sons são unidades passíveis de serem identificadas, segmentadas e manipuladas, a aprendizagem da lecto-escrita não se revela necessariamente frustrante. No contexto de aula de língua portuguesa, o aluno pode contactar com a realidade sonora articulada com outros conteúdos fundamentais como o enriquecimento vocabular ou a correcção ortográfica. O que parece essencial é não alhear as consciências fonológica e fonémica do domínio do conhecimento linguístico reflexivo, mas sim estimular a compreensão de fenómenos da gramática universal do falante para que estes se plasmem no uso oral e escrito da língua. É interessante verificar que as crianças possuem uma sensibilidade peculiar ao som, apercebendo-se dos diversos matizes fónicos da realidade sonora das palavras que independem da rigidez da grafia. Partindo das observações que realizámos num segundo e quarto anos do 1CEB, pretendemos mostrar qual a recepção das crianças perante exercícios que estimulam a consciências fonológica e fonémica evidenciando a capacidade que os discentes revelam em perceber e manipular, usando estratégias próprias, os segmentos fónicos da língua.
1- O Lugar e o Treino da Consciência Fonológica O processo de ensino aprendizagem desenvolvido no primeiro ciclo, na área da Língua Portuguesa, centrava-se, habitualmente, em três grandes domínios: a oralidade, a leitura e a escrita. No que diz respeito ao primeiro saber, o professor procurava que o aluno adquirisse competências, essencialmente, no âmbito da expressão e compreensão do oral. Assim, o professor desenvolvia tarefas tendo por base o treino da consciência linguística, “capacidade menos complexa de reflectir sobre a língua que se manifesta, por exemplo, na aceitabilidade de enunciados e identificação 119
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de unidades do discurso” (SIM-SIM, 1998: 220). O docente partia do conhecimento implícito1 dos alunos e trabalhava a partir daí competências julgadas pertinentes na oralidade, tais como, a escuta activa, a memorização de informação, a descodificação do significado de vocábulos através do contexto, codificar e compreender a sintaxe2. Como se verifica, não havia um lugar determinado para o treino efectivo da Consciência Fonológica. Este domínio inclui-se no Conhecimento Explícito da Língua3 podendo definir-se como capacidade de identificar, segmentar e manipular unidades menores da língua, a sílaba e o fonema4. O Plano Nacional do Ensino do Português (PNEP), criado pelo Ministério da Educação – DGDIC em 2006, veio renovar as práticas docentes, proporcionando uma reflexão em torno da didáctica do português, bem como uma actualização científica dos professores do 1º ciclo. O treino da Consciência Fonológica passa a ser entendido como uma metodologia essencial para a formação de uma proficiente expressão oral, para a promoção da decifração e compreensão leitoras e para a competência ortográfica. Para além disso, as unidades fonológicas passam a ser manuseadas enquanto parte da reflexão necessária em torno do sistema linguístico, constituindo-se como um domínio que, efectivamente, é necessário didactizar e avaliar. Esta nova concepção concretiza o que já diversos estudos5 da psicologia, da psicolinguística e da linguística haviam demonstrado, pois considera imprescindíveis exercícios de Consciência Fonológica como promotores do sucesso escolar ao nível da aprendizagem do português. Todavia, tratando-se do manuseamento de estruturas e conceitos do domínio da linguística, é importante que a sua concretização em sala de aula siga metodologias específicas, nomeadamente considerando as diversas fases para um conhecimento reflexivo eficaz destas unidades. Assim, é fundamental que o treino da Consciência Fonológica seja gradual e, para isso, torna-se necessário apresentar diversas etapas aos alunos de acordo com uma ordem em que se vá aumentando o grau de complexidade. É pertinente começar pela abordagem de unidades relacionadas com a Consciência Fonológica indispensáveis à sua compreensão eficiente, como as unidades suprassegmentais, a discriminação auditiva e a fronteira de palavra. Por unidades suprassegmentais entenda-se os elementos sonoros acima dos segmentos, ou seja, para o domínio em apreço, é importante considerar a entoação, flutuação da curva da frequência fundamental ao nível da frase, que é responsável em Português pela distinção de intenções comunicativas e expressivas (DELGADOMARTINS 1992). A criança deve perceber que ao modelar a forma como diz as palavras e as frases exprime intenções distintas, logo, constrói significados diferentes. Esta noção potencia também a necessidade de uma escuta atenta que determine uma descodificação de sentidos eficaz. Estreitamente relacionada com a entoação e com a percepção de variações que provocam nos segmentos está a discriminação auditiva, isto é, a capacidade de percepcionar e distinguir sons diversos com acuidade. Pelo treino destes dois parâmetros o aluno toma contacto com a realidade fónica inerente à sua língua materna, transformando-se, assim, a prática relacionada com o 120
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plano fonológico da língua uma aprendizagem significativa. Por último, a noção de que a fronteira de palavra é distinta na oralidade e na escrita revela-se também de considerável importância uma vez que o discente é conduzido a perceber que as pausas do discurso oral podem não corresponder àquelas que visualiza graficamente. Desta forma, o estudante compreende a fala como um continuum que obedece a regras e a estratégias diferentes daquelas que caracterizam a realidade gráfica. Partindo do som como elemento principal de estudo, deve prosseguir-se para a unidade central da consciência fonológica, a sílaba. O professor deve orientar os alunos para a compreensão da sílaba como unidade estrutural da palavra, promovendo o desenvolvimento da consciência palavra, isto é, levando o discente a entender que os vocábulos não são uma entidade global, mas constituem-se com recurso a unidades menores. Como sabemos, desde tenra idade, por volta dos dois ou três anos de idade, que a criança, se estimulada, é capaz de completar sílabas omissas em palavras (SIM-SIM, 1998). Esta capacidade revela que a consciência silábica é precoce, sendo, por isso, útil desenvolvê-la desde cedo. Exercícios que tenham como base a divisão silábica são importantes, uma vez que o aluno se apercebe que as palavras podem ser segmentadas. A identificação e produção de rimas são igualmente essenciais para fomentar a noção da existência de padrões fónicos que se relacionam por graus de semelhança. O docente deve proporcionar ao aluno momentos na sala de aula em que ele descubra sílabas com sons idênticos ou muito semelhantes devendo ter o cuidado de separar coincidências fónicas de coincidências gráficas. Como sabemos, muitas vezes, a existência do mesmo grafema em dois vocábulos não corresponde a uma identificação fónica, nem o facto de duas palavras rimarem oralmente significa que tenham grafias idênticas. Para o primeiro caso podemos pensar em termos como “estrela” e “bela”, enquanto que para o segundo temos como exemplo os vocábulos “mãe” e “tem”. O reconhecimento da opacidade da língua6 potencia uma melhor competência ortográfica uma vez que a correspondência unívoca entre grafemas e sons em português não é produtiva. Assim, o aluno ganha sensibilidade perceptiva, compreendendo que não se fala como se escreve. Num segundo momento, é interessante construir exercícios no âmbito da manipulação silábica, como a adição e supressão de sílabas. Como mais atrás dissemos, o treino das unidades fonológicas deve ser gradual. Porém, para além disso, a forma como cada segmento é trabalhado deve também obedecer a fases distintas (FREITAS & SANTOS, 2001). Estas etapas seguem de perto o desenvolvimento tipo da criança tendo em conta a sua maturidade cognitiva e o grau de abstracção que é capaz de atingir. Assim, é essencial começar por identificar as unidades, segmentá-las e, posteriormente, manipulá-las. Neste último momento o aluno manuseia a sílaba como elemento gerador de novas palavras percebendo que a sua ausência, presença ou mudança de lugar no vocábulo motivam o seu significado. A criança deve compreender que se tiver, por exemplo, a sílaba [Ka] pode formar diversos termos, como casa; capa; pacato, entre outras. È aconselhável começar por construir exercícios que incidam na sílaba inicial, de seguida na final e por último, na intermédia. Quando o aluno dominar a manipulação das sílabas, pode-se apresentar actividades que contenham 121
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as diferentes posições da mesma unidade. No fundo, esta gradação prende-se com o natural aumento da complexidade no ensino e possibilita a inexistência de frustração perante um exercício desadequado ao ritmo e faixa etária ou o desinteresse por outro demasiado simples. A sílaba é passível de ser dividida em elementos mais pequenos que ocupam posições fixas dentro da unidade. Como é sabido, os constituintes intrassilábicos são unidades menores dentro da sílaba e a reflexão em seu torno constitui também um dos passos do treino efectivo da Consciência Fonológica. A sílaba é composta por Ataque, consoante antes do Núcleo; pelo Núcleo, a vogal mais forte, e pela Coda, consoante a seguir ao núcleo. Estas três unidades têm concretizações diferentes no português. Assim, o Ataque pode ser simples, quando é constituído apenas por uma consoante, como na sílaba7 [ka] de [kazɐ]; ramificado, composto por uma consoante oclusiva e uma líquida, como em [flɔ] de [flɔku] e [pɾa] de [pɾatu] ou vazio, quando não tem representação como em [ɛɾvɐ]. O Núcleo, sempre representado em português, pode ser simples, quando constituído por uma única vogal, como em [pa] de [patu] ou ramificado, quando constituído por um ditongo, como em [paw]. A coda corresponde em português às consoantes [ʃ] e [ɬ] como em [muʃgu] e [mɛl] e não é um constituinte obrigatório8. A Consciência intrassilábica deve ser estimulada para que o aluno percepcione os formatos possíveis na sua língua materna, isto é, CV; VC; V; CVG; CCV; CVC9, para que faça a divisão silábica respeitando a existência e a indivisibilidade destes constituintes10, para que articule com clareza e leia e escreva com correcção. As tarefas propostas assentam na metodologia geral do treino fonológico, ou seja, identificação, segmentação, adição, supressão e manipulação. Por último, deve-se despertar a Consciência Fonémica do discente. Como o nome indica, a unidade matricial não é a sílaba, mas sim as unidades mínimas da língua. Esta capacidade requer um grau de abstracção maior pelo que deve ser desenvolvida num estádio posterior ao da consciência silábica. Todavia, esta afirmação não supõe que no momento em que se inicie o treino das competências fonémicas, se abandone a abordagem da sílaba. Ambos os elementos devem ser continuamente treinados para que o estimulo seja eficaz e a capacidade de reflexão sobre a língua se desenvolva. A competência fundamental da Consciência Fonémica é a compreensão a relação arbitrária entre fonema e grafema. A criança deve compreender que a ortografia não tem uma relação directa com o plano fonológico na medida em que uma letra pode ter vários sons e um fonema pode ser representado por diversos grafemas. Esta capacidade é fundamental para uma maior correcção na escrita, pois fornece à criança elementos que a levam a reflectir no momento de grafar as palavras orais, bem como conduz à autoavaliação de erros fonológicos. Pela breve descrição das unidades matriciais da Consciência Fonológica e da Consciência Fonémica, conclui-se que o treino faseado e continuado destes segmentos linguísticos é importante para um conhecimento explícito da língua, proporcionan122
“ Isso não Soa Bem”. A Consciência Fonológica do lado de Lá Reflexão em torno exercícios de Consciência Fonológica no Primeiro Ciclo.
do igualmente um desempenho com maior qualidade em tarefas de leitura e escrita. Contudo, convém acrescentar que a relação da Consciência Fonológica com a leitura é biunívoca. Como diversos estudos evidenciam11, o treino precoce da Consciência Fonológica é determinante para a formação de melhores leitores, mas o aumento de competências leitoras também propicia um melhor desenvolvimento da Consciência Fonológica. Tratando-se este artigo da aplicação do saber linguístico, no plano fonológico, na prática docente do primeiro ciclo apresentamos em seguida uma reflexão sobre duas actividades12 no âmbito da Consciência Fonológica e Fonémica aplicadas em sala de aula. Começaremos por apresentar o primeiro exercício desenvolvido no segundo ano de escolaridade, que observámos13, procurando relacionar o desempenho dos alunos ao nível da Consciência Fonológica. Semelhante procedimento teremos para a segunda actividade que decorreu numa turma de quarto ano de escolaridade. Como o título deste trabalho já sugere, vamos procurar entender como as crianças percepcionam a Consciência Fonológica procurando perceber as estratégias que elas usam e a sua justificação14. 2- Corrida de Sílabas Esta actividade contemplou várias tarefas no âmbito da Consciência Fonológica, a divisão silábica, o constituinte intrassilábico ataque ramificado e, num último momento, a distinção ente translineação e segmentação de sílaba. Foi também observado o comportamento dos alunos em relação a sílabas com coda ainda que tal unidade não fosse o foco principal. Esta acção decorreu numa aula de uma turma de segundo ano da zona urbana do Porto, composta por cerca de vinte crianças sem dificuldades de aprendizagem, aliás, segundo a docente, com um bom nível de aquisição de conhecimentos. O treino da Consciência Fonológica não era efectivo, tendo a docente começado nesse ano lectivo a trabalhar conscientemente esse domínio devido à formação no âmbito do PNEP. Tratou-se de um exercício que foi desenvolvido no exterior e que consistia numa corrida semelhante à “corrida de sacos”. As crianças estavam dispostas em fila e deveriam atingir uma meta delimitada no espaço do recreio. A docente pedia a cada aluno que tirasse de um saco uma tira de papel. Depois, o discente devia ler a palavra em voz alta e fazer a sua divisão silábica. A criança devia pular o número de vezes correspondente à quantidade de sílabas do vocábulo, se errasse, ficava no mesmo lugar. Ganhava quem chegasse primeiro à meta. Os termos eram geralmente dissílabos e trissílabos, na sua maioria compostos por ataque e núcleo ramificados. Para potenciar uma maior significação do exercício às crianças, as palavras tinham relações semânticas pertencendo ao campo das profissões. Alguns exemplos de palavras usadas, pertinentes para esta nossa reflexão escrita, foram “professor”, “peixeiro”, “electricista”, “merceeiro”, “atleta”. Depois de concluído o jogo, os alunos voltaram para a sala e 123
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foi-lhes pedido que escrevessem num papel a divisão silábica das palavras que lhes tinham calhado durante a corrida. Todas as crianças reagiram com entusiasmo ao exercício pois o seu carácter lúdico, potenciado por se tratar de uma actividade no exterior, era bastante evidente. Os alunos fizeram, na generalidade, a divisão silábica correctamente, registando-se apenas três casos que merecem a nossa detenção. O primeiro tem a ver com a divisão da palavra “atleta”. A criança dividiu a palavra da seguinte forma: [ɐ] [tə] [lɛ] [tɐ]. Vários colegas começaram a corrigi-la, porém sem verbalizarem a divisão, afirmando que o vocábulo tinha apenas três sílabas. A menina, algo confusa, persistiu na sua contagem quando questionada pela professora. Entretanto, um outro menino fez a divisão correcta da palavra, mantendo o ataque ramificado. Depois de uma explicação sucinta da docente, a aluna pareceu ter compreendido que tinha dito um som que na verdade não está na palavra. O segundo e terceiro exemplos relacionam-se com o núcleo ramificado. No segundo caso, o aluno dividiu a palavra “peixeiro” identificando apenas um ditongo: [pɐ][i] [ʃɐj] [ɾu]. O discente afirmou que o termo tinha quatro sílabas. A maioria dos alunos não se apercebeu do erro do colega, mas, quando a professora verbalizou a palavra novamente, alguns fizeram a divisão silábica correcta. O terceiro caso não se relaciona directamente com o exercício, mas foi uma situação que, de forma espontânea, a actividade proporcionou. Um menino dividiu silabicamente o termo “merceeiro”. A divisão foi feita de forma correcta, mas a criança pronunciou a primeira sílaba como [mɐɾ] ao invés de [məɾ] que corresponde à pronúncia padrão culta. A professora disse o vocábulo em português padrão, destacando a primeira sílaba, e um dos alunos acrescentou: “tem lá um é”. O discente que tinha pronunciado de forma menos esperável murmurou “ merceeiro não tem lá é nenhum…”. A parte do exercício que decorreu dentro da sala foi bem conseguida havendo apenas a registar a seguinte forma gráfica para a divisão silábica de “professor”: *“profe-s-sor”. Cada um dos exemplos descritos merece a nossa observação particular que conduziremos procurando não apenas comentar o erro, como também sugerir o domínio da Consciência Fonológica em que se afigura relevante intervir. Assim, no primeiro caso, encontra-se um típico erro de regularização por sobregeneralização. A menina não identificou uma sílaba complexa, CCV, eliminando o ataque ramificado com o acrescento de um som intermédio. Esta situação é típica pois o padrão silábico do português mais recorrente é CV, logo, a estudante transformou um padrão irregular num regular. Tratando-se de uma turma, como a docente referiu, bastante motivada em tarefas de escrita é natural que a consciência intrassilábica seja 124
“ Isso não Soa Bem”. A Consciência Fonológica do lado de Lá Reflexão em torno exercícios de Consciência Fonológica no Primeiro Ciclo.
ainda um domínio necessário a incluir, com maior incisão, na sala de aula. È certo que em cerca de vinte alunos apenas se registou este erro, facto que terá ocorrido devido ao gosto e treino da decifração e compreensão leitoras que, como já referimos, potenciam o desenvolvimento da Consciência Fonológica. Contudo, tendo em conta a reacção positiva das crianças a este exercício, será profícuo que mais actividades em torno da consciência dos constituintes internos da sílaba façam parte do contexto lectivo. Desta forma, todos ganham, melhorando e sedimentando competências. O desenvolvimento de actividades de discriminação auditiva, tendo como alvo a identificação de ataques ramificados e a construção de exercícios de manipulação destes constituintes são, certamente, uma boa solução. O segundo erro incidiu também numa unidade intrassilábica, o núcleo ramificado. O aluno desfez o ditongo, pronunciando como vogal integra a glide [i]. Todavia, o estudante identificou o segundo ditongo, idêntico ao primeiro. As razões desta ocorrência podem prender-se com a extensão da palavra, mas, também, com a pouca percepção da diferença entre vogal e glide. Tal confusão é natural pois para além de se tratar de um fonema quase idêntico, mudando apenas a intensidade com que se produz, é frequente que a criança aprenda que um ditongo “é constituído por duas vogais”. Mais uma vez, parte-se da imagem gráfica da palavra para explicar uma realidade fonológica o que induz em erro. Desta forma, para além da promoção de exercícios relacionados com a identificação de ditongos, seria importante que as crianças percebessem a diferença entre os dois fonemas que compõem o núcleo ramificado. Ao invés de se insistir na afirmação “das duas vogais” seria pertinente que se explicasse que, na escrita, a sua forma é a mesma, mas na oralidade há uma ténue diferença que as distingue, sendo uma “mais fraca” que a outra. No nosso entender, esta explicação não é complexa para as crianças podendo até clarificar a noção de ditongo, evitando a sua elisão na oralidade e até na escrita15. O terceiro exemplo apresentado não se prende com constituintes da sílaba, mas sim com diversos valores fonéticos do mesmo grafema. A pronuncia distinta do aluno não é inusitada, uma vez que a confusão entre os valores de <e> e de <a>, para além de ser secular16, é habitual em falares regionais diversos podendo ser manifestação do input linguístico17 do estudante. A correcção do erro e o comentário daquele que errou é que parecem interessantes do ponto de vista da consciência fonémica. O aluno que corrigiu a pronúncia do colega, pouco habitual na turma, justificou a sua opinião com base na imagem visual que tem da escrita da palavra, pois afirmou que tinha um “é”. Já o estudante que errou, revela sensibilidade à variedade fonética, uma vez que reconhece que essa palavra não tem, de facto, esse som. Seria interessante conduzir os alunos a descobrir, partindo em primeiro lugar do seu conhecimento implícito, que o mesmo grafema pode ter várias representações fonéticas. O treino desta competência consolidaria, certamente, a expressão oral, o desempenho em leitura em voz alta e a correcção ortográfica. Por último, o erro na divisão silábica da palavra “professor” ilustra uma confusão 125
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já antiga e comum entre translineação e separação de sílabas. O estudante aprendeu que, na escrita, deveria separar as consoantes <ss>, assim, quando lhe pediram que, por escrito, representasse as sílabas, fê-lo como se estivesse a obedecer a uma convenção ortográfica, não prestando atenção ao som. Parece fulcral clarificar a diferença entre convencionalidade do registo escrito e realidade fónica da palavra, promovendo exercícios comparatistas entre ambos os domínios. Como se constata pela breve descrição e análise das actividades, os erros dos alunos encontram um denominador comum: de uma forma geral, o seu desempenho é condicionado pelas habilidades de leitura e escrita. Os discentes não estão suficientemente despertos para o plano fonológico, por isso, raciocinam em termos de representações gráficas. Antes de partirmos para uma reflexão mais precisa, vejamos o outro exercício desenvolvido numa turma de quarto ano.
3- À procura da rima perfeita Esta actividade foi desenvolvida e observada na mesma escola que a anterior, numa aula com cerca de vinte crianças. Esta turma do quarto ano não revelava, segundo a docente, um desempenho excelente, como a anterior do segundo ano, mas também não evidenciava nenhum problema preocupante ou dificuldade significativa. O exercício decorreu na sala e os meninos foram desafiados a fazer um pequeno poema, mas teriam de seguir algumas instruções. Depois de formados grupos de quatro elementos, a professora registou no quadro os seguintes vocábulos: atleta; chupeta; velha; ovelha; pó; champô; meta; sapo; pé; café; telha; corneta; azul; coelho; tule; estrela; bela; sonharam
Os alunos deveriam escolher destas palavras aquelas que rimassem, mas o som da rima teria de ser idêntico. No final de terem, em grupo, construído o poema, viriam todos, ou um porta-voz, apresentá-lo à turma. Os colegas opinavam se as rimas eram perfeitas ou não. Depois de uma explicação sobre o que era um poema e que apresentação gráfica se supunha ter, os estudantes redigiram os seus textos e os resultados quer da redacção, quer dos comentários da turma foram bastante interessantes. Registaram-se os seguintes pares de palavras que, de acordo com os autores, rimavam: velha/ovelha; pó/champô; chupeta/atleta; azul/tule. Um grupo registou ainda a palavra “sonharam” embora reconhecesse que não rimava com nada. Quando o primeiro grupo leu a rima “ovelha/velha” um dos meninos da assistência interveio dizendo: “isso não soa bem!”. A docente pediu-lhe que explicasse porquê, mas o aluno disse: “não sei. Só sei que não soa bem”. O discente teve também este comentário para os pares chupeta/atleta e pó/champô. Em relação a este último, o 126
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mesmo discente e outros colegas acrescentaram: “ o acento é diferente, lê-se diferente”. Um dos grupos retorquiu: “mas a letra é a mesma”. A leitura de outro grupo foi particularmente interessante do ponto de vista das estratégias empregues para transformar algumas rimas que se sabia “não soarem bem” em palavras que rimassem de facto. Assim, uma das meninas leu os vocábulos “velha” e “telha” como [vɐλɐ] e [tɐλɐ] e não como [vɛλɐ] e [teλɐ], pronuncias esperáveis na cidade do Porto18. O aluno que dissera anteriormente que as rimas dos colegas não soavam bem, afirmou: “isso não se diz assim!”. Outros discentes concordaram, dizendo que se devia pronunciar [vɛλɐ] e [teλɐ], “ que não rimam”. Várias considerações se podem fazer da prestação dos alunos. Em primeiro lugar, a construção dos poemas evidencia que os estudantes estão muito condicionados pela escrita uma vez que todos colocaram as palavras “velha/telha” e “atleta/chupeta” em posição de rima. O caso de “pó/champô” como par rimático levanta várias hipóteses. Poderia ter havido alguma hesitação entre os sons das vogais finais, uma vez que apenas variam num parâmetro, o grau de abertura, que a acentuação gráfica não desambiguou. Outra possibilidade poderia ter sido o facto de os alunos estarem preocupados em colocar a par palavras semelhantes, que acabassem na mesma letra, tendo ignorado o acento gráfico. Além disso, tendo em conta que o grupo que incluiu estes termos, usou todas as palavras listadas, a formação deste conjunto poderia dever-se à preocupação em utilizar a lista completa o que revela que o objectivo do exercício não foi totalmente compreendido. O facto de todos os grupos terem colocado azul/tule em posição de rima não se prende, a nosso ver, com a influência da escrita mas revela que, ao dizerem as duas palavras, terão acrescentado um som final, [ə], na palavra [ɐzuɬ], não identificando a coda e transformando o padrão silábico irregular CVC no regular CV. A estratégia de leitura da menina demonstra que, provavelmente devido aos comentários prévios em relação aos outros grupos, se apercebeu, já depois de terem feito o poema, que as rimas não eram completas. Assim, usou uma pronúncia que não lhe era natural, mas que seria, certamente, conhecida para anular as dissemelhanças fonéticas. O que nos parece sobremaneira interessante é o tipo de intervenções do aluno que, constantemente, dizia que os poemas não “soavam bem”. Curiosamente, a produção do seu grupo continha o mesmo tipo de ocorrências dos outros, mas o menino foi também autocrítico. Quando a professora lhe perguntou se achava que o poema do seu grupo “soava bem”, respondeu: “não, mas tínhamos de pôr as letras juntas para fazer o poema”. Assim, o menino mostra ter sensibilidade às variações e diferenças entre o sons quando está a ouvir e a reflectir sobre eles, mas não se abstrai da escrita o suficiente para construir as rimas atendendo apenas à imagem acústica das palavras. A criança identifica as divergências das sílabas finais dos vocábulos no tocante à rima, mas não consegue manipular os sons de forma a que eles independam da grafia. 127
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Como se verifica pela descrição e análise desta actividade, a consciência fonológica destas crianças necessita de um treino mais eficaz a diversos níveis. São pertinentes, sobretudo, exercícios em suporte oral de modo a concretizar nas crianças algo a que elas já são sensíveis: a diversidade sonora. Actividades em que os alunos tenham de encontrar sílabas que rimem, identificar concordâncias fónicas, descobrir dissemelhanças e compreender efectivamente que a relação entre fonema e grafema é arbitrária.
Conclusões: a importância do lado de lá Tanto a actividade aplicada ao segundo ano de escolaridade como aquela desenvolvida no quarto ano demonstraram que, de uma forma geral, as crianças não tomam o plano fonológico da língua como ponto de partida. As turmas observadas evidenciaram um forte condicionamento da ortografia na execução de tarefas que dependem, em primeiro lugar, dos sons linguísticos. No final do momento inicial de aprendizagens do primeiro ciclo, o segundo ano, os discentes não revelam, ainda, destreza suficiente na segmentação de unidades intrassilábicas e na conclusão deste ciclo de estudos, o quarto ano, não se denota um conhecimento do sistema fonológico reflectido que propicie a distinção precisa entre variações fonéticas e representações grafemáticas. Todavia, nos dois casos, as intervenções das crianças, motivadas pela existência destes exercícios de Consciência Fonológica, mostram que o conhecimento implícito da realidade fónica da sua língua materna lhes permite inferir que a relação fonema/ grafema é opaca. Os exercícios foram significativos para os alunos pois no seu decurso foram capazes de avaliar criticamente a sua prestação e a dos outros. Assim, é importante que o docente aproveite a motivação da turma em realizar actividades neste âmbito, criando momentos na sala de aula que desenvolvam a sensibilidade aos sons da língua, transformando-a em conhecimento explícito. As crianças, do lado de lá, precisam que o professor as conduza na descoberta do plano fonológico da língua. Assim, os alunos podem entender que as unidades mínimas significativas do sistema linguístico não são as letras, mas sim os fonemas. As crianças devem perceber que os segmentos fónicos podem ter organizações diferentes, que o seu lugar na estrutura da palavra gera significados distintos e origina padrões fónicos com graus de coincidência diferenciados que não dependem de realizações gráficas iguais. Se, como vimos, os alunos evidenciam sensibilidade ao plano fonológico da língua, não é conveniente esquecer que o docente também necessita que a prática lectiva em torno da realidade sonora se revista de significado no contexto do ensino-aprendizagem do português. Para isso, contribuirá o PNEP enquanto formação que possibilita a reflexão sobre metodologias de ensino, propondo uma abordagem efectiva na Consciência Fonológica. Desta forma, todos, alunos e professores, compreenderão efectivamente que os recursos fonológicos servem não apenas para construir pala128
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vras, frases e histórias, como também têm eles a sua própria história para contar. Essa história, certamente, soará bem aos ouvidos de todos.
(Endnotes) 1 Conhecimento Implícito é o Conhecimento [intuitivo] da língua falada pela comunidade linguística a que [se] pertence”. ( SIM-SIM, I; DUARTE,I; FERRAZ, M, 1997, p.19). 2 Para uma listagem mais detalhada das Competências atribuídas ao primeiro ciclo, consulte-se SIM_SIM, I, DUARTE, I & FERRAZ, M.J. , A Língua Materna na Educação Básica. Competências Nucleares e Níveis de Desempenho, Lisboa, Ministério da Educação, 1997, p.53. 3 Por Conhecimento Explícito entenda-se “progressiva consciencialização e sistematização do conhecimento implícito no uso da língua (SIM-SIM, Inês, 1998, p12). 4 A sílaba é o conjunto de um ou mais fonemas pronunciados numa única emissão de voz. Os fonemas que integram a sílaba constituem-se como unidades. Fonema é a menor unidade sonora (fonética) de uma língua que estabelece contraste de significado para diferenciar palavras. Por exemplo os fonemas /p/ e /b/ opõe-se pois diferem no traço vozeamento criando palavras diferentes como “pato” e “bato” graças a essa diferença. 5 Veja-se, por exemplo, GAIL (2007); GONZALEZ, J. &GONZALEZ, M.R (2001). 6 Por opacidade da língua entenda-se a não correspondência entre fonema/ grafema e vice-versa. 7 Assinalamos a negrito o constituinte específico a que nos reportamos. A representação gráfica dos exemplos transcritos foneticamente é: casa; flocos; prato; pato; pau; 8 Para uma descrição mais pormenorizada da estrutura silábica do português veja-se FRITEAS & SANTOS (2001). 9 As siglas usadas correspondem a Consoante/Vogal; Vogal; Consoante/ Vogal; Consoante/Vogal/Glide; Consoante/Consoante/Vogal e Consoante/Vogal/ Consoante. Empregamos o termo glide para designar a semivogal, isto é, o elemento sonoro vocálico de duração e intensidade menores que faz parte do ditongo. 10 É comum que as crianças omitam ataques ramificados, dizendo, muitas vezes [patu] por [pɾatu] ou que acrescentem um som intermédio [pəratu]. Semelhantes procedimentos se observam para o constituinte coda e também para o ditongo de que se omite a glide. 11 Consulte-se, por exemplo, MARTINS ( 2000); SILVA (2003); VIANA (2002) 12 As actividades foram concebidas por Rita Gonzalez e pela autora deste artigo, Isabel Correia. 13 Agradecemos às professoras Rita Gonzalez, Helena Ferreira e Maria Emília 129
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Barbosa a gentileza de terem aplicado esta actividade e nos terem permitido a sua observação. Um agradecimento especial a todos os meninos e meninas que tornaram esta reflexão possível. 14 Convém acrescentar que estas actividades foram aplicadas e observadas quando o PNEP estava ainda em implementação, sendo, por isso, esperável, que no decorrer deste programa o treino da Consciência Fonológica seja mais efectivo. 15 Como sabemos, é frequente que as crianças não representem a semivogal do ditongo na escrita, provavelmente devido ao facto de esta ser menos audível, acabando por involuntariamente ser assimilada pela outra. Porém, factores como a pouca existência de vogais gráficas contíguas no português, para além das dos ditongos, pode também motivar esse erro ortográfico. 16 È muito comum em textos do português medieval 8séculos XIV-XV) a mesma palavra ser grafada com a letra <e> ou <a>, facto que também se observa em narrativas francesas do século XIII,. Assim, esta confusão gráfica pode sugerir que havia na fala diversas pronuncias. 17 Entenda-se por input linguístico, a língua a que a criança é exposta no seio da comunidade restrita, familiar, em contexto não formal. 18 Todavia, por contaminação do resto do país seria possível que o vocábulo “telha” fosse pronunciado [tɐλɐ] Bibliografia Adams, M., Foorman, B., Lundberg, I. & Beeler, T. (2006). Consciência fonológica em crianças pequenas. Porto Alegre: Artmed. Castro, S. L. & Gomes, I. (2000). Dificuldades de aprendizagem da língua materna. Lisboa: Universidade Aberta. Martins, M. R. (1992). Ouvir falar: introdução à fonética do português. Lisboa: Caminho. Duarte, I. (2000). Língua portuguesa. Instrumentos de análise. Lisboa: Universidade Aberta. Freitas, M. J. & Santos, A. L. (2001). Contar (histórias de) sílabas. Lisboa: Colibri. Gillon, G. (2007). Phonological awareness. From research to practice. London: Gilford Press. Gonzalez, J. & Gonzalez, M. R. (2001). Conciencia fonológica y aprendizaje de la lectura. Teoría, evaluación e intervención. Madrid: Sintesis. Martins, M. A. (2000). Pré-história da aprendizagem da leitura. Lisboa: ISPA. 130
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Silva, A. C. (2003). Até à descoberta do princípio alfabético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para Ciência e Tecnologia. Sim-Sim, I., Duarte, I. & Ferraz, M. J. (1997). A língua materna na educação básica. Lisboa: Colibri. Sim-Sim, I. (2006). Avaliação da linguagem oral: um contributo para o conhecimento do desenvolvimento linguístico das crianças portuguesas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Sim-Sim, I. (1998). Desenvolvimento da linguagem. Lisboa: Universidade Aberta. Viana, F. L. (2002). Da linguagem oral à leitura: construção e validação do teste de identificação de competências linguísticas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia.
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Ensinar Literatura, Promover Valores Uma proposta de leitura de A Maior Flor do Mundo, de José Saramago
Ensinar Literatura, Promover Valores – uma proposta de leitura de A Maior Flor do Mundo, de José Saramago
Isabel Lopes Delgado Colégio de S. Teotónio, Coimbra
Assistimos assim a uma espécie de curto-circuito, em que valores ainda balbuciantes da modernidade ( como o gosto da leitura ou a paixão pela música clássica) são por vezes atropelados pela ânsia de não perdermos a última inovação da história. E sucede portanto que a cavalgada de modernização económica e tecnológica não implica automaticamente o progresso da cultura ou da ética, mas pode fomentar formas assustadoras da barbárie contemporânea. Eduardo Prado Coelho, Situações de Infinito, Campo das Letras, 2004.
Antes de entrar n’ A Maior Flor do Mundo: as raízes. A discussão em torno da presença da Literatura na escola tem-se vindo a fazer de uma forma mais acesa no domínio público desde que em dois mil e um foram publicados novos programas de Português para o Ensino Secundário. Quase podemos dizer que a questão entrou no domínio público com o milénio. Não é nosso intuito entrar nessa discussão, esgrimindo argumentos a favor da nossa dama, a literatura, pois parece-nos que ela está bem, parece-nos ainda que ela se recomenda mais do que nunca à escola e na escola e que os sinais apontam obviamente para a solidez da sua presença já que esta é também construída pelas nossas práticas, as de todos aqueles que diariamente estamos nas escolas. A conexão da literatura com o ensino da língua é para nós inquestionável. Indispensável para uma formação completa do indivíduo, a literatura é um lugar de memória e formação para valores, permite crescer no conhecimento da língua na sua vertente estética, permite a inscrição em práticas de cidadania. Reduto do bom uso da língua, a literatura, neste contexto, transforma-se em lugar propício à aprendizagem dessa herança comum a todos os falantes. Achamos, pois, que o contacto com a literatura se deverá fazer desde cedo e que o grau de dificuldade dos textos a abordar deverá acompanhar o desenvolvimento cognitivo da criança e do jovem. Fazer do contacto com a literatura um acto natural, levá-la a um lugar de privilégio numa escola de massas, fazer ver que a literatura interessa a todos, porque nos fala do Homem, são alguns dos objectivos que movem as nossas práticas pedagógicas. 133
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A literatura tem como suporte a língua e para que cumpra a sua eficácia comunicativa é indispensável que aconteça essa decifração que é a leitura. Entendida como um processo, um encontro faseado entre texto e leitor, uma progressão na construção de sentidos, a leitura literária terá de contar em sede escolar com a presença propiciadora do professor. Na sala de aula o professor será um guia. A ele competirá reavivar os saberes já adquiridos pelo aluno e reactivá-los na construção dos sentidos do texto. Neste processo de vai e vem, de confirmação ou de reformulação de hipóteses de leitura, de inferência de sentidos, é indispensável a interactividade que o professor proporciona trazendo para o cenário de leitura a contribuição do maior número possível de alunos, na sua multiplicidade de saberes. A leitura literária em sala de aula, qualquer que seja o nível de ensino, será uma orquestração polifónica em que vozes várias produzirão sentidos num ambiente de respeito mútuo pelo saber do outro, num processo complexo de re - conhecimento. A leitura constrói-se e está ligada a acções mentais que se fundamentam no texto mas que se relacionam com saberes prévios, para além do texto, por isso fazer coisas com o texto é fundamental, é ele que possui a sua própria chave. A nós compete descobri-la, através de inferências, jogando com a nossa enciclopédia pessoal e aceitando a contribuição da enciclopédia dos outros. Centrar a atenção do aluno no texto é fundamental, levando-o a preencher os seus lugares obscuros e tornando-o matéria iluminada, conduzindo-o ao texto como manancial de argumentos/fundamentações para a construção de sentidos/ perspectivas de leitura. Levar o aluno a entender que é capaz de fazer essa construção se souber como se faz, mostrar como se faz, deverá também ser um objectivo do professor, bem como educar para a autoconfiança e desenvolver a auto-estima. Consideramos a leitura que nos propomos construir aplicável a alunos de 2º e 3º ciclo ciclos, cabendo ao professor fazer a modulação dos discursos instrucionais e informativos, no espaço da sala de aula, de acordo com as características de cada turma. A escolha de um conto justifica-se por razões que se prendem com a pertinência pedagógica da leitura de um texto narrativo como estrutura autónoma e nisso o conto é experiência única, proporcionando a percepção de um todo e sendo trampolim para leituras mais extensas e complexas. Pelas suas características reconhecidas, o território do conto será o privilegiado para a educação para valores ganhar todo o sentido. Não nos situamos num terreno moralista, o que nos move é a intenção de conduzir o aluno à reflexão sobre o que o cerca, à problematização das experiências ou não experiências do quotidiano, do bom e do mau, induzindo-o à experiência do juízo crítico e do raciocínio complexo, pela transposição sucessiva de etapas e o alargamento de horizontes. A Maior Flor do Mundo parece-nos constituir um lugar à parte para a sensibili134
Ensinar Literatura, Promover Valores Uma proposta de leitura de A Maior Flor do Mundo, de José Saramago
zação face ao texto literário: escrito pelo nosso prémio Nobel, a narrativa tem uma edição acompanhada por ilustração que representa uma mais-valia na construção de sentidos do texto, não só pelo seu inegável valor estético, o que pode proporcionar um diálogo profícuo entre a palavra e a imagem, como pela relação que a própria imagem mantém com o texto, uma relação dinâmica que conduz o leitor nessa viagem que é a leitura. Explorar as ideias do conto, institui-lo como espaço de intervenção e interacção, reflectir criticamente sobre a sua mensagem, abordar questões que conduzam ao conhecimento do autor e à sua relação com a escrita, à sua intenção e ao modo como utiliza o discurso para o conseguir, eis alguns dos nossos objectivos que acompanham uma dinâmica de integração de todos os domínios a desenvolver de acordo com o programa de Língua Portuguesa dos 2º e 3º Ciclos do Ensino Básico: Ouvir/ Falar; Ler/ Escrever; Reflectir sobre o Funcionamento da Língua, que se concretizarão em actividades diversificadas, como poderão ver pelo nosso roteiro. Acrescentamos outros objectivos que nos parecem pertinentes, no mundo fluído em que nos situamos: educar para valores como o respeito pela natureza; o sentido de entre ajuda, a descoberta do gosto pelo silêncio; o reconhecimento da experiência do belo que as diferentes linguagens nos proporcionam, em particular a linguagem literária; o reconhecimento da voz do outro; o texto literário como espaço de memória e transmissão de uma tradição. Resta-nos agora iniciar o caminho. Iniciando o caminho: aparece o caule. Entremos n’ A Maior Flor do Mundo. O texto de Saramago publicado pela Caminho em 2001 não é um texto novo. De facto, se nos passearmos pela Bagagem do Viajante, recolha de textos publicados no Jornal do Fundão ao longo da década de sessenta, aí encontramos uma crónica cujo desenvolvimento corresponde quase integralmente à narrativa que agora se nos apresenta em formato álbum, artisticamente ilustrada por João Caetano. Nessa pré-história, A Maior Flor do Mundo, não era ainda uma flor e chamava-se História para Crianças. Olhemos bem para o livro como o faríamos se estivéssemos na sala de aula com uma turma. Comecemos por observar a capa. O que vemos? Título, nome do autor, nome do ilustrador. Podemos propor pesquisa de informação relativa aos autores do texto e da ilustração: uma viagem à internet será o mais aliciante, mas nunca desprimoremos os meios de pesquisa mais tradicionais. È absolutamente necessário que os alunos saibam desde cedo procurar informação, dizer de onde provém, não se limitar a transcrever o que encontram seja em rede seja em suporte bibliográfico tradicional. Que o professor explique como se faz, é pois, indispensável. Regressemos à capa do livro. Imagem: um rapaz de boné ao contrário e olhar curioso, o caule de uma planta, duas folhas, uma alusão gráfica a uma paisagem onde poderá correr um rio azul, um círculo luminoso: uma lua ou um sol? As interrogações 135
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ficarão suspensas... a leitura é um território de suspensões e de suspeições. Viremos o livro e vejamos agora a contra capa. A imagem do que pensámos ser um rio confirma-se, umas casas que correspondem a habitações num espaço rural remetem-nos para um lugar bem diferente do espaço citadino em que diariamente vivemos em corrupio. Onde se passará a história? Um pequeno texto desperta a curiosidade do nosso olhar: E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar? Ficamos a pensar se o texto terá como leitores virtuais os jovens e adolescentes a quem nos dirigimos na sala de aula... Não poderá o seu alcance ser muito mais lato? A Maior Flor do Mundo começa a seduzir-nos pelas imagens e pelo mistério que o título encerra, pelas cores quentes e pela poesia de um espaço que não é a fotografia da nossa realidade. Continuemos a viagem: o olhar aberto e vivo do rapaz desperta a nossa própria curiosidade. Quem será? Onde viverá? Terá nome? Como imaginamos a sua pessoa? Há agora que abrir o livro e procurar lá dentro esse rapaz. Uma primeira Folha Abrimos o livro. O texto aparece-nos na página da esquerda e a acompanhá-lo, na página da direita, uma sucessão de três imagens em crescendo. Nas páginas beijes de sugestão rugosa, encontramos um velho em cenário escrita – escritório prateleiras, uma luz que ilumina um rosto que num grande plano se nos afigura familiar. Tem óculos, é careca, tem umas grossas sobrancelhas grisalhas e o ar com que suporta a cabeça com a mão faz-nos lembrar que pode estar a pensar. Na mão direita segura uma caneta e escreve. Observamos melhor. Será que o conhecemos? Onde é que já vimos esta figura? Não será o autor, José Saramago. Propomos agora a leitura do texto verbal. Imediatamente nos surge a voz de um eu que se assume desassombradamente no discurso como se fosse uma presença no espaço da sala onde nos encontramos e aquela pessoa que observámos nas ilustrações ganha vida e fala-nos directamente como um antigo contador de histórias. O autor inscreve-se do espaço da ficção, do imaginário que é o da narração. Esta voz assume a sua pena por não saber escrever histórias para crianças porque esses contos devem “ter palavras simples e exigem muita paciência”. Então e o menino? Onde estará? Quem será? Viramos de novo a página: o cenário é o mesmo, mas de facto, foi o dinamismo da ilustração que nos forçou a avançar. Temos agora um plano mais detalhado desse lugar de reflexão e escrita que é o escritório de Saramago, o autor, contador de histórias, escrevente, escritor. O processo de escrita surge ligado a que momento do dia? Conduzindo os alunos a uma observação atenta da ilustração surgirão certamente pormenores interessantes: a estante, onde sobressaem títulos de livros que fazem parte dos clássicos da literatura infanto-juvenil; os objectos, o mundo da infância que sai 136
Ensinar Literatura, Promover Valores Uma proposta de leitura de A Maior Flor do Mundo, de José Saramago
de dentro dos livros e acompanha o escritor no seu ofício; uma fada que faz o pino na persiana. Pressentimos que é o universo da sua própria infância que Saramago pretende assumir nesta Maior Flor do Mundo. Uma infância que o autor, contador de histórias, sente dever preservar como a memória que só a palavra pode criar. Não nos parece estranho. De facto este gosto pela memória, esta consciência de que a escrita e o que ela guarda pode ser um legado, um acto de conservação de um passado individual ou colectivo tornou-se nos últimos tempos uma quase necessidade por parte do exilado português mais conhecido do mundo, que em Outubro de 2006 publicou As Pequenas Memórias, registos autobiográficos da sua infância e início de adolescência. A ilustração continua a movimentar-se e a focalizar a voz do contador de histórias, escritor que se duvida, que nos anuncia “uma linda história que um dia inventou mas que assim como a vão ler, é apenas o resumo de uma história que em duas palavras se diz”. A referência aos contos de fadas e princesas encantadas mantém-nos presos ao texto e à imagem: quem é que não tem contos de fadas nas suas memórias de infância? O diálogo que o contador tenta manter com o leitor/ouvinte é evidente e com facilidade o aluno reconhecerá no discurso essas marcas da voz em presença. Que histórias de fadas serão estas? E as dos alunos…quais serão? A voz do texto poderá libertar outras vozes e proporcionar o espaço comunitário de diálogo e fascínio que é indissociável do acto de contar, de ler. A proporcionar esta interacção estará sempre o texto, matéria que se move perante o olhar atento dos alunos, fundamento da construção da leitura. No virar da página a ilustração prossegue o seu movimento e conduz-nos do cenário da escrita, da narração, do contar, para um outro universo: só agora reencontramos o menino da capa, a história começa a aparecer. O menino, o herói menino de Saramago, está à janela, uma janela de uma casa que não é uma casa da cidade. Da janela o menino vê o campo, da janela o menino tem o apelo do mundo. Entretanto, o narrador/ autor já chamou a atenção para a consulta do dicionário, quando aparecerem palavras difíceis. E o professor na sala de aula só terá de aceitar a sugestão. Será talvez a altura de procurar o sentido de “concebem”, “aprazadas”, “parentela” e de definir que a consulta do dicionário deverá acontecer sempre que uma palavra nos mover à decifração de um mistério. Daqui para a frente há que fazer circular o dicionário, mexer nas suas inúmeras páginas, procurar os sentidos das palavras desconhecidas e passar os olhos por outras aí guardadas à espera de serem descobertas. A voz do contador de histórias continua a promover a interactividade e os alunos na sala de aula continuam a fazer coisas: respondem às perguntas do professor; observam a ilustração; compartilham outros saberes alheios ao texto mas que preenchem as suas zonas obscuras. Nova folha aparece 137
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Retomemos o livro, continuemos viagem pelo caule. As aventuras já foram anunciadas. Que nos diz o contador sobre o espaço onde elas vão acontecer? Então o que irá acontecer? O menino vai fazer uma viagem... o menino vai brincar com os amigos para o rio... o menino vai à procura de alguma coisa que nem ele sabe o que é... o menino vai conhecer o que não conhece... O menino vai saltar os limites das sua aldeia... o menino vai iniciar um percurso... Tanto de Saramago nesta história feita de tantas pequenas memórias: “ Então digo à minha avó: “Avó, vou por aí dar uma volta.” Ela diz “Vai, vai”, mas não me recomenda que tenha cuidado, nesse tempo os adultos tinham mais confiança nos pequenos a quem educavam. […] Não tenho muito por onde escolher: ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe cobre e protege as margens, ou os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo para jusante, depois do ponto de confluência com o Almonda, ou, enfim, na direcção do norte, a uns cinco ou seis quilómetros da aldeia, o Paul do Boquilobo, um lago, um pântano, uma alverca que o criador de paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso. Não havia muito por onde escolher, é certo mas, para a criança melancólica, para o adolescente contemplativo e não raro triste, estas eram as quatro partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro. Podia a aventura demorar horas, mas nunca acabaria antes que o seu propósito tivesse sido alcançado. Atravessar sozinho as ardentes extensões dos olivais, abrir um árduo caminho por entre os arbustos, os troncos, as silvas, as plantas trepadeiras que erguiam muralhas quase compactas nas margens dos dois rios, escutar sentado numa clareira sombria o silêncio da mata somente quebrado pelo pipilar dos pássaros e pelo ranger das ramagens sob o impulso do vento, deslocar-se por cima do paul, passando de ramo em ramo na extensão povoada pelos salgueiros chorões que cresciam dentro de água, não são, dir-se-á, proezas que justifiquem referência especial numa época como esta nossa, em que, aos cinco ou seis anos, qualquer criança do mundo civilizado, mesmo sedentária e indolente, já viajou a Marte para pulverizar quantos homenzinhos verdes lhe saíram ao caminho (…)” 1 A descrição do espaço e da personagem na autobiografia que constitui o discurso de Pequenas Memórias não é muito diferente da realidade evocada em A Maior Flor do Mundo, o que nos leva a concluir que numa e noutra narrativa o autor conta-se e institui-se no universo narrativo. Viramos a página: a caneta do escrevente anuncia a primeira página da verdadeira história, a história do menino herói, não a história do escrevente torturado com os limites da sua capacidade para escrever para crianças. Será? Como justificar a coexistência da imagem da mão da escrita e da criança que pula e corre? Que pensarão os alunos? Olhamos a ilustração: o menino já deixou a janela e espraia-se, saindo dos seus limites, acompanhando um curso de água que corre numa imensa planície. Fazemlhe companhia as aves e as árvores que ligam a terra ao céu, nessa busca incessante 1
Saramago, José, As Pequenas Memórias, Lisboa, Caminho, 2006, pág.20. 138
Ensinar Literatura, Promover Valores Uma proposta de leitura de A Maior Flor do Mundo, de José Saramago
do universo inteiro. Que planície será aquela? Conhecem locais com uma paisagem parecida à das imagens do livro? No caule aparece uma outra folha Continuemos a subir o caule rodopiando no movimento da ilustração que agora lança o menino num escorrega cósmico que o transporta ao planeta Marte da aventura, igual ontem e hoje. Este é o momento exacto em que a metáfora gráfica do escorrega transporta o nosso herói de um espacinho geograficamente assinalado como o do distrito de Santarém, para uma circularidade outra que o desalinho das letras nos leva a identificar como Marte. O que é Marte? E aqui no texto, o que representará? É também altura de perguntar o que pode significar aquele escorrega? E ouvir o que os alunos têm para nos dizer, as referências aos momentos lúdicos da infância em que o escorrega é uma ousadia e exige coragem, faz o reforço da auto-estima, e oferece a alegria de gargalhadas de satisfação. E aquele momento em que as escadas do escorrega nos pareciam demasiado altas e enfrentávamos a dúvida de as subirmos? E a satisfação que era quando decidíamos: vou subir! Assim fez o menino herói: afastou-se do que já conhecia e enfrentou uma natureza nova que se lhe ofereceu sensorialmente. Ainda outra folha È altura de conquistar uma nova página, um momento em que voltamos a reencontrar o universo da natureza plena que já antes lêramos no excerto de Pequenas Memórias. É altura de pedirmos aos alunos para, depois de lerem silenciosamente o texto da página da esquerda, estabelecerem relação com o que observam na ilustração; seleccionarem nomes e adjectivos; destacarem tudo o que lhes parece diferente na utilização da língua portuguesa. Sobressairão “as clareiras macias”, “o silêncio que zumbia”, “o calor vegetal”, “o cheiro de caule sangrando de fresco como uma veia branca e verde”. Explorar os sentidos destas expressões com a contribuição de cada um e com a ajuda do professor, possibilitará certamente a descoberta conjunta do valor da natureza, da beleza que ela nos oferece e para o valor estético que a língua assume em sede literária A recuperação das memórias dos alunos, a constatação da ausência de experiências que pode ser colmatada com uma ida ao campo, a descoberta das margens de um rio, a observação de uma paisagem ribeirinha... Onde é que já experimentaram silêncio a zumbir, clareiras macias, calores vegetais e caules sangrando de fresco? Esta partilha de universos de leitura, estes passeias inferenciais comunitários, contribui também para o conhecimento do grupo e a auto descoberta da turma enquanto organismo autónomo já que, da junção das experiências de cada um, nasce a experiência da identidade do grupo. Viramos mais uma folha e avançamos no território livro, conquistando-o, aos poucos e poucos. Agora é a página da esquerda que surge totalmente ocupada por uma 139
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representação do menino herói, de olhar espantado e triste perante uma flor, murcha, caída, moribunda. O modo como a ilustração nos mostra o dedo do menino a tocar a flor transmite-nos a sua grandeza de alma, o seu carinho e cuidado e deixa adivinhar o que o texto anuncia: o menino não olhará a meios para atingir o seu objectivo: salvar aquela flor única, murcha num ermo onde não há água. Pausa...reflexão... Quem é que já teve necessidade absoluta de salvar algo de que gosta muito? Porque é que o menino se terá interessado por aquela flor? Que monte ermo poderá ser aquele em que se encontra a flor? Onde é que se sente a falta da água? Não será este um problema mundial? Como é que utilizamos a água no nosso quotidiano? Haverá sítios no planeta Terra em que a água que desperdiçamos é uma relíquia? O que sabem os alunos a este respeito? Este intercâmbio possibilitará educar para uma consciência ecológica e para uma cidadania mundial consciente. O que fazemos para poupar esse bem precioso? O que poderemos fazer? Que compromissos podemos assumir individualmente e em grupo? A interacção terá sempre de obedecer a regras e cada um deve sempre respeitar o uso da palavra pelo outro. O pé do menino, no final da página seguinte, continua a tendência do movimento de toda a ilustração que se faz sentir desde as primeiras páginas. De facto, é como se a ilustração conduzisse a leitura do texto: o pé do menino, a flexão da sua perna anuncia a sua corrida, a premência da sua acção e o modo como não se limita a uma constatação, a capacidade que tem em se dedicar aos outros, neste caso, uma simples flor! E nós, no nosso quotidiano, como nos dedicamos aos outros, como é que os tentamos salvar... o que será isso de salvar uma flor? Como podemos salvar as nossas flores? A possível corrida do menino contida na sugestão da imagem, faz-nos virar a página. O pé do menino correu mundo, isso nos dizem as imagens em que uma sucessão de mãos implorando água, sobrepondo-se a um planisfério, nos sugerem a busca do menino herói. A figuração do planeta anuncia-nos que a busca foi imensa e intensa e a flor que, algures no planeta aparece enorme e aberta, diz-nos também que foi consequente e que o menino conseguiu o que procurava: a água para alimentar a sua flor! Para o afirmar nada melhor que o poema que preenche a página seguinte. Será o momento de reconhecer o esforço do menino, solicitando o levantamento dos versos que denunciam o carácter heróico das suas acções: “ Chega ao grande rio Nilo”; “Volta o mundo a atravessar”; “ Pela vertente se arrasta”; “ Vinte vezes cá e lá”; “ Cem mil viagens à Lua”; “ O sangue nos pés descalços”; o efeito da sua dedicação: “Mas a flor aprumada/ Já dava cheiro no ar, / E como se fosse um carvalho/ Deitava sombra no chão.”
Última paragem: a corola da flor, a perfeição Virar a página, de novo. “ O menino adormeceu debaixo da flor” É altura de voltar à aldeia que o menino abandonara na sua viagem para além dos limites. As imagens dizem tudo: pai e mãe a sofrer a dor da ausência, preocupação generalizada; 140
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pela janela da casa humilde observamos o esforço que a comunidade faz procurando aquele menino herói. É tempo de explorar essa imagem da janela...uma janela que já encontráramos antes. Será que se lembram os alunos de quando apareceu a janela? O que pode significar a janela? Porque é que no topo da janela aparece o início do caule da flor? O que fazem aquelas pessoas? Haverá alguma coisa de comum com a acção do menino? Virar mais uma vez a página. A passagem do tempo denuncia o esforço e a preocupação daquela comunidade que de repente ergue os olhos e observa algo nunca visto: “ Viram ao longe uma flor enorme que ninguém se lembrava que estivesse ali.” Como é que a imagem nos transmite a noção da passagem do tempo? E a flor, como está agora? A flor transforma-se num sinal, uma estrela que anuncia o menino adormecido, protegido por “uma enorme pétala perfumada com todas as cores do arco-íris”. O regresso é visto como um milagre: algo de extraordinário, de incomum que se impõe na rotina dos dias, algo que permitiu a descoberta de A Maior Flor do Mundo, uma flor que pode ser o limite do universo que de um momento para o outro se descobre porque um menino correu mundo à procura de água para salvar uma flor murcha, porque uma comunidade se uniu para encontrar um menino que partira à procura de si mesmo, “para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos”. A alegria do reencontro e o milagre do que se consegue com o esforço humano está bem patente na ilustração deste final de história em que, como é hábito em qualquer conto, surge uma moral: a alegria de que vale a pena sair e dar-se aos outros, nem que seja a uma simples flor, porque o que se dá será recebido, o entusiasmo e a coragem de correr mundo, o sacrifício de sangrar dos pés quando se acredita no que se procura, a certeza que a vida é alegria, mas também pode ser preocupação e tristeza e que a momentos piores outros melhores sobrevêm. A história do menino herói de Saramago já terminou...Terá terminado? A imagem do autor no seu cenário de escrita retoma as páginas sob o olhar do leitor: o ar é bem mais sereno, o autor relê-se, revê-se nas páginas que escreveu. Sabe porque o escreveu: a vida impôs-lhe o dever de memória. Fadas e duendes escondem-se nas persianas, aos livros de infância regressam personagens que se anicham em páginas entreabertas, o braço do menino herói acenando com o seu boné a alegria do seu conhecimento despede-se da página e do seu autor, ou é o autor que se despede de si próprio outrora, agora? Viramos para a última página. O contador de histórias volta a lamentar a sua falta de jeito para escrever histórias. Dirige-se abertamente aos seus leitores a quem passa o testemunho “ficaram sabendo como a história seria, e poderão contá-la doutra maneira, com palavras mais simples do que as minhas, e talvez mais tarde venham a saber escrever histórias para crianças...” A voz do contador de histórias explora sabiamente o espaço de intimidade que a narração lhe permite junto do seu leitor/ ouvinte. Por 141
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que não aceitar o desafio de Saramago, por que não contar de novo, com palavras mais simples, a história daquele menino? Eis o desafio final para os alunos. Fecha-se o círculo, chegamos à corola da maior flor do mundo: contar uma história é fazê-la entrar no universo, é passar o testemunho a novas gerações, é deixar uma memória e uma lição, é sair da escuridão e recriar o dia. E a aventura daquele menino Saramago, não terá sido a descoberta dessa enorme flor que é a escrita do mundo? Por isso, o dia entra no cenário da escrita, o contador/escrevente deixou de estar iluminado por uma luz artificial que testemunhou a escrita e abandona o livro e as ilustrações em pleno dia, iluminado pela flor que em criança descobriu deixando-a escrita em memória, a um mundo que deve descobrir a forma circular da corola a que a palavra literária pode dar acesso. E a nós, professores de literatura não nos competirá também educar para a esperança e para a alegria que é a descoberta da maior flor do mundo: um tesouro guardado nas pétalas de todas as literaturas do mundo!
Bibliografia Arnaut, A. P. (2002). Post-modernismo no romance português contemporâneo. Fios de Ariadne- máscaras de Proteu. Coimbra: Almedina. Arnaut, A. P. (2007). José Saramago. Lisboa: Edições 70. Bernardes, J. A. C. (2005). A literatura no ensino secundário: excessos, expiações e caminhos novos. In M. L. Dionísio & R. V. Castro, O português nas escolas. Ensaios sobre a língua e a literatura no ensino secundário. Coimbra: Almedina. Calvino, I. (2006). Seis propostas para o próximo milénio. Lisboa: Editorial Teorema. Castro, R. V. (2005). O português no ensino secundário, processos contemporâneos de (re)configuração. In M. L. Dionísio & R. V. Castro, O português nas escolas. Ensaios sobre a língua e a literatura no ensino secundário. Coimbra: Almedina. Coelho, E. P. (2004). Situações de infinito. Porto. Campo das Letras. Eco, U. (1992). Os limites da interpretação. Lisboa: Difel. Genette, G. (1979). Discurso da narrativa, ensaio de método. Lisboa: Arcádia. Giasson, J. (1993). A compreensão na leitura. Porto: Asa. Melo, C. (1998). O ensino da literatura e a problemática dos géneros literários. Coimbra: Almedina. ---------------(1999). Leitura e memória literária. In Actas das I Jornadas CientíficoPedagógicas de Português. Coimbra: Almedina. -------------(2002). Saberes, competências e valores: subsídios para a didáctica da leitura do texto literário. In Actas do VII Congresso Internacional da Sociedade Espanhola de Didáctica da Língua e a Literatura. Santiago de Compostela. ------------------- (2004). Paradigmas literários e ensino da literatura, hoje. In Vértice, 142
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revista bimestral, Novembro-Dezembro, II Série. Goulart, R. M. (2003). O conto: da literatura à teoria literária. Forma Breve, 1. Morin, Edgar (2002). Os sete saberes para a educação do futuro. Porto: Instituto Piaget. Otten, M. (1990). Sémiologie de la lecture. Paris : Duculot. Savater, F..(2000). Ética para um jovem. Lisboa: Editorial Presença. Saramago, J. (1973). A bagagem do viajante. Lisboa: Caminho. (2001). A maior flor do mundo. Lisboa: Caminho. (2006). As pequenas memórias. Lisboa: Caminho. Silva, V. M. A. (1999). Teses sobre o ensino da literatura nas aulas de português. In Diacrítica ,13-14.
Outros recursos DVD – A Maior Flor do Mundo (10’), realização de Juan Pablo Etcheverry (2007).
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Isabel Oliveira Professora do 1º CEB na EB1 de Tavarede Agrupamento de Buarcos Mª Albertina Abrantes Formadora residente do PNEP Agrupamento de Buarcos Palavras chave
saber construir o próprio saber
Introdução A Instituição escolar e os educadores confrontam-se com a necessidade de implementar estratégias que provoquem no aluno uma aprendizagem relevante. A possibilidade de participação activa na construção e concretização de projectos próprios parece ser um factor relevante no ensino - aprendizagem. Foi assim iniciado, este projecto, numa turma de 2º ano de escolaridade, partindo da formação no âmbito do PNEP. Tendo por base os domínios e conteúdos da formação, adaptando-os ao nível de escolaridade que lecciona, a docente propôs-se trabalhá-los em metodologia de trabalho de projecto: construir com os alunos uma participação activa e responsável nas aprendizagens da Língua - Portuguesa. Objectivos Integrar a formação do PNEP nas descobertas dos saberes curriculares do 1º CEB; Utilizar o texto (história) como tema motivador/problema, para as outras descobertas e aprendizagens (ponto de partida do Trabalho de Projecto); Introduzir a metodologia de trabalho de projecto na aprendizagem da Língua Portuguesa numa perspectiva transversal às outras áreas curriculares e não curriculares. (ponto de chegada do Trabalho de Projecto).
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A METODOLOGIA DE TRABALHO DE PROJECTO NA LÍNGUA PORTUGUESA A METODOLOGIA DE TRABALHO DE
2º ano de escolaridade – EB1 Tavarede
Metodologia A metodologia de trabalho de projecto é um método de trabalho teorizado por W. Kilpatrick, em 1918, que requer a participação de cada membro de um grupo, segundo as suas capacidades, com o objectivo de realizar um trabalho conjunto, decidido, planificado e organizado em comum acordo. A metodologia de trabalho de projecto é, pois, uma metodologia investigativa centrada na resolução de problemas. Estes deverão ser pertinentes para quem procura resolvê-los, deverão constituir ocasião para novas aprendizagens e ter uma ligação à sociedade na qual os alunos vivem. Terão de ser realizáveis com o tempo, as pessoas e os recursos disponíveis ou acessíveis. O trabalho é orientado para a resolução de um problema, para a resposta a uma questão… para… 146
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O Problema/questão… deve: • SER considerado importante e real por cada um dos participantes. • SER relevante ou permitir aprendizagens novas. • SER de natureza tal que tenha de ser estudado e resolvido tendo em conta as condições da sociedade em que os alunos vivem. Para quê? • Para praticar competências sociais: comunicação, o trabalho em equipa, a gestão de conflitos, a tomada de decisões, avaliação do processo. • Para aprender fazendo, ligando a teoria à prática. • Para realizar aprendizagens e desenvolver múltiplas capacidades. Para quem? • Para quem acha que é possível conseguir melhor. • Para quem gosta de se divertir a trabalhar. • Para quem gosta de se deixar surpreender pelos alunos. • Para quem tem (ou quer arranjar) práticas de animação de grupo. Transformar um problema em projecto e concretizá-lo é, em última análise, o objectivo da pedagogia de projecto. A energia que se gastava a tentar controlar o processo e/ou a manter os alunos calados, podemos utilizá-la agora para reflectir sobre o que se está a fazer, para os observar de forma descontraída e despreconceituosa, para verificar (e riscar na lista) as aprendizagens que são do programa e que eles entretanto foram fazendo. O professor tem o seu projecto, os alunos têm o deles, que se vão sucedendo e entrecruzando, e que, longe de serem contraditório com aqueles, são, pelo contrário, a garantia de que o projecto pedagógico do professor se realiza.
SUBPROJECTO DO 1º PERÍODO Ensinar a ler, é acima de tudo, ensinar explicitamente a extrair informação contida num texto escrito, ou seja, dar às crianças as ferramentas de que precisam para estratégica e eficazmente abordarem os textos, compreenderem o que está escrito e assim se tornarem leitores fluentes. Com este propósito se elaborou um subprojecto relacionado com os frutos do Outono, no qual se privilegiou o trabalho de grupo, desde a investigação, à selecção e retenção da informação necessária à elaboração de um documento escrito denominado 147
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“Bilhete de Identidade do Fruto”.Pretendia-se desenvolver e criar, nos alunos, o gosto pela recolha de informação bem como a sua aplicação à leitura e à escrita. Ainda no decorrer do período foram trabalhados os valores contidos nas histórias, sensibilizando os alunos para os valores morais e de cidadania.Foram também abordadas temáticas relacionadas com os costumes e as tradições locais, pela altura das comemorações do S. Martinho, dando especial destaque ao teatro, arte pela qual a freguesia de Tavarede é conhecida.
SUBPROJECTO DO 2º PERÍODO 148
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A par do reforço da prática sobre o oral, tanto na percepção da fala como na sua produção, é de extrema importância a natureza dos exercícios desenvolvidos. A sistemacidade e a consistência constituem as palavras-chave de uma metodologia para a estimulação da oralidade e da consciência fonológica que as crianças desenvolvem sobre a sua própria língua. Foi elaborado um subprojecto a partir do livro “A que sabe a lua?”. Procedeuse à antecipação da história a partir da exploração da imagem contida na capa do livro. Seguiu-se a sua leitura e ilustração da mesma numa ficha de leitura que continha a sinopse da história. Pôde ainda cada aluno expressar o sabor da lua, sendo este o ponto de partida para a elaboração da receita “ Bolinhos da Lua”. Os “Bolinhos da Lua” , confeccionados, serviram de mote para a realização da tertúlia “ Chá com Livros” realizada na Semana da Leitura. A referida história foi ainda o ponto de partida para a pesquisa: “ Porque é que a Lua é mentirosa?” Esta história fomentou também, ao nível da Formação Cívica, o diálogo sobre a importância do respeito mútuo, aceitação da diferença e espírito de equipa. No decorrer do período foram ainda trabalhados alguns textos poéticos também com o objectivo de desenvolver a consciência fonológica - treino da discriminação auditiva, desenvolvimento da consciência de palavra, desenvolvimento da consciência silábica e desenvolvimento da consciência fonémica.
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SUBPROJECTO DO 3º PERÍODO A aprendizagem da escrita ganha consistência quando os alunos têm oportunidade de se envolver em actividades sequenciais que lhes permitam ganhar progressivamente autonomia na produção textual, a fim de acederem cada vez mais às potencialidades da escrita para expressar sentimentos, ideias e opiniões para formular conceitos e conhecimentos, para registar vivências e projectos pessoais. A partir da temática dos seres vivos elaborou-se o subprojecto relacionado com as Fábulas de La Fontaine. Ao longo do período foram trabalhadas várias fábulas tais como: “O Corvo e a Raposa”, “A Raposa e a Cegonha”, “A Pomba e a Formiga”, “O Leão e o Rato”, entre outras. Com recurso a estratégias diversificadas, pretendia-se a partir destas histórias, nos domínios do Ensino da Expressão Escrita e do Desenvolvimento da Linguagem Oral, trabalhar e desenvolver os conteúdos relacionados com a dimensão gráfica e ortográfica, a consciência linguística e lexical, bem como a dimensão textual. Aproveitámos ainda, estas histórias, para dialogar sobre a importância das lições de vida nelas contidas, ao nível da Formação Cívica. Também a partir das personagens principais das fábulas – os animais - se desenvolveu um trabalho de 150
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pesquisa, com o objectivo de elaborar o bilhete de identidade de alguns animais. Ainda no decorrer do período e quando se pretendia trabalhar com os alunos a escrita numa perspectiva de dimensão textual, surgiu a oportunidade dos encarregados de educação colaborarem com os seus educando na realização de uma boneca de trapos, a partir do texto de Matilde Rosa Araújo, trabalhado na sala de aula.
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Resultados “Kilpatrick ( ibidem: 320) “ A ideia unificadora encontra-se numa actividade intencional, feita com todo o coração, e desenvolvendo-se num contexto social” Com esta metodologia de trabalho verificou-se um envolvimento a 100% dos alunos. Estes manifestaram muito interesse e entusiasmo em todas as actividades que realizaram Privilegiámos estratégias dinâmicas e diversificadas a fim de que os alunos pudessem eles próprios ser construtores dos seus saberes a par do saber-fazer, do saber-ser e do saber-conviver. Para além do envolvimento dos alunos e da própria escola/comunidade, também os pais/ encarregados de educação se envolveram, participando activamente nas actividades propostas pelos seus próprios educandos nos sub-projectos Consideramos que a possibilidade de participação na construção dos próprios projectos é um factor relevante no processo de ensino-aprendizagem.
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Conclusão Através da participação responsável e activa dos alunos neste projecto, a par do saber - fazer, do saber -ser e do saber -conviver, desenvolveu-se o saber intervir. A Língua -Portuguesa desempenhou aqui um forte papel de poder, intervindo no sentido de uma melhor comunicação quer a nível da expressão oral quer escrita. É através da compreensão do oral e do escrito que a metodologia de trabalho de projecto assenta. É um processo de aprendizagem que coloca um grupo de alunos em situação de exprimir desejos, necessidade, carências e ambições: (O que quero saber? O que já sei? O que preciso de saber?); De procurar os meios para lhes dar resposta: (Onde vou procurar, pesquisar? A quem vou procurar?) De planificar colectivamente a realização prática do projecto e de o viver. Considera-se que qualquer situação de aprendizagem só tem sentido e só vale a pena se tiver um sentido para a vida, se corresponder à satisfação de uma necessidade e se permitir a concretização de projectos. A escola deve exigir aos alunos algo mais do que ficarem sentados passivamente a ouvir o professor. Deve ser-lhes incentivado o gosto pela construção e desenvol153
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vimento de projectos pessoais, pela participação activa na dinâmica cultural escolar ou comunitária e pela partilha de experiências e saberes.É urgente tirar partido deste contexto cultural e vivencial ainda pouco explorado e projectá-lo como formação integral. Aproveitar em cada aluno esta pulsão interior e potenciar a curiosidade, a capacidade de deslumbramento por antecipação, a inquietação e a capacidade para criar poderá ser um bom ponto de partida para fazer face ao conformismo e à insatisfação que por vezes se instala. Tal como afirma Barbier,” é a vertente poética da escola, onde o que interessa não é o saber que o outro nos pode dar mas fundamentalmente, o saber construir o próprio saber”.
Bibliografia: Barbeiro, L. F. , et al. ( 2007). O ensino da escrita: a dimensão textual. Lisboa: MEDGIDC. Barbier, J.-M..(1996). Elaboração de projectos de acção e planificação. Porto: Porto Editora. Boutinet, J.-M. (1996). Antropologia de projecto. Lisboa: Instituto Piaget. Guerra, I. (1994). Introdução à metodologia de projecto. Lisboa: ISCTE-CET. Sim-Sim, I. et al. (2007). O ensino da leitura: a compreensão de textos. Lisboa: MEDGIDC. Tempo de Projecto Um projecto é tecto ou é fundo falso muito vencedor começou descalço. Um projecto é tempo projectado agora: a tela: o momento angústia: a demora. Projecto é energia que será processo se chegar à via que leva ao progresso. António Macedo (Dez. 1987) 154
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O Ensino da Escrita Criativa em Portugal: Preconceitos, Verdades e Desafios
O Ensino da Escrita Criativa em Portugal: Preconceitos, Verdades e Desafios
João de Mancelos Universidade Católica Portuguesa / Fundação para a Ciência e Tecnologia Resumo A Escrita Criativa, que como disciplina académica existe nos EUA e em Inglaterra há mais de um século, constitui ainda uma novidade no nosso país. Restrita a algumas universidades, clubes do ensino secundário e cursos realizados fora do sistema de ensino oficial, a EC nem sempre é leccionada por pessoas com habilitação ou experiência nas áreas da narrativa ficcional, poesia e guionismo. Daqui têm resultado preconceitos e distorções do que realmente é esta área do saber, remetendo-a apenas para a componente prática (os exercícios), e para o aspecto lúdico, esquecendo a imensa base teórica. Na presente comunicação, procuro clarificar, com brevidade, determinados aspectos basilares para a compreensão da EC: O que é? A escrita literária pode ser ensinada? Quais os objectivos, conteúdos e métodos da EC? A quem se destina? Como se pode e deve articular, interdisciplinarmente, esta cadeira com o ensino da Língua Portuguesa e da Teoria da Literatura? Qual o seu papel no incentivo à leitura. Para responder a estas dúvidas e ansiedades, parto da minha experiência como aluno de EC na Universidade de Luton, em Inglaterra; como escritor; como docente de EC e orientador de dissertações de mestrado nessa área, na Universidade Católica Portuguesa, em Viseu. Perante o actual panorama da EC em Portugal, defendo a necessidade de: a) corrigir alguns cursos de EC, demasiado práticos, introduzindo uma componente teórica sólida e abalizada; b) investir na formação de docentes de EC, devidamente habilitados; c) incentivar o desenvolvimento de livros didácticos escritos por portugueses e com exemplos retirados da nossa literatura, e que não sejam meros cadernos de exercícios. Palavras-chave
Escrita Criativa, ensino, história, interdisciplinaridade
Desde o início do milénio que os cursos de Escrita Criativa, normalmente designados por oficinas, têm granjeado uma popularidade cada vez maior junto do público português. Os aspirantes a escritores frequentam-nos em clubes, universidades, livrarias, bibliotecas ou associações de carácter artístico ou recreativo. Uma consulta na Internet revela também uma proliferação de páginas ou blogues nacionais associados 155
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a esta área, onde as opiniões, conselhos, e técnicas são partilhados pelos cibernautas. Trata-se de um fenómeno curioso, sobretudo porque não constituímos uma comunidade de leitores assídua. Quanto a mim, este interesse quase súbito pela EC resulta do modismo; do rápido êxito de alguns escritores da nova geração, que outros pretendem imitar; e da aparente novidade. Digo aparente, pois estes os cursos desde 1880 que existem na Harvard University (Ramey, 2007: 42), multiplicando-se durante a década de trinta, altura em que surge o primeiro mestrado na área, na Iowa University (Vanderslice, 2007: 37). Ou seja, esta área foi incluída nos programas académicos há mais de uma centena de anos. Mas o que é, afinal, a EC? Ou, como eu prefiro perguntar, o que não é a EC? Uma oficina bem concebida não visa transmitir receitas, mas sim técnicas; não institui regras, mas antes incentiva à experimentação; não promete êxito comercial, mas procura a qualidade, através da técnica, do trabalho árduo, da disciplina, da leitura de grandes obras do passado e presente; não se restringe apenas a exercícios — como acontece quase sempre no nosso país —, mas antes procura um equilíbrio entre a ampla teoria da EC e a prática. Ao estabelecer estes pares de opostos, estou já a esboçar um conceito, que não é meramente pessoal, desta disciplina. Num artigo que intitulei «Um Pórtico para a Escrita Criativa», aventuro uma possível definição: o estudo crítico, a transmissão e o exercício de técnicas utilizadas por escritores e ensaístas de diversas épocas, culturas e correntes, para a elaboração de textos literários ou mesmo não literários (Mancelos, 2007: 14). Há numerosos cépticos que erguem uma sobrancelha desconfiada em relação à possibilidade de se ensinar EC. Afinal, leccionar esta disciplina não é o mesmo que ministrar Biologia, Matemática ou outra ciência exacta. Por um lado, a literatura é uma arte — e, como tal, é complexa e subjectiva; por outro, a apreensão das técnicas de pouco vale, se o estudante não possuir talento para a escrita. Estas condicionantes levaram David Lodge, autor e professor de EC, a afirmar: «Even the most sophisticated literary criticism only scratches the surface of the mysterious process of creativity; and so […] does even the best course in creative writing» (Lodge, 1992: 178). Embora não seja tarefa fácil, leccionar EC é possível e todos os dias é feito, em milhares de escolas, pelo mundo fora. Abordo essa questão num artigo intitulado «A Escrita Criativa também se ensina», onde afirmo: A Literatura não difere das restantes artes — música, pintura, cinema, etc. — e só por arrogância ou desconhecimento a poderemos considerar um caso singular. Não passa pela cabeça de um professor de música, por exemplo, questionar se pode transmitir, aos discentes, técnicas de composição. Do mesmo modo, também não duvido ser possível ensinar estratégias de EC, que contribuam para a formação de poetas, prosadores, dramaturgos e guionistas mais inventivos e habilitados. (Mancelos, 156
O Ensino da Escrita Criativa em Portugal: Preconceitos, Verdades e Desafios
2008: 7) Uma prova de que as técnicas de EC são passíveis de transmissão reside na perenidade desta área. De facto, ao longo dos séculos, a EC tem sido praticada, fora do contexto de um sistema educativo formal, por inúmeros autores. Através de cartas, ou reunindo-se em tertúlias, clubes, academias ou cafés, homens e mulheres de letras sempre debateram técnicas e estilos, comentaram e sugeriram, partilharam leituras e reflexões acerca do acto de escrita. Por outro lado, de modo formal, contistas e romancistas como Ernest Hemingway (1899-1961) ou William Faulkner (1897-1962) frequentaram cursos, com proveito para os seus leitores. Outros, como Raymond Carver (1939-1988) ou Toni Morrison (1931) — vencedora do Prémio Nobel da Literatura, em 1993 — descobriram o seu talento graças ao apoio de docentes e colegas de EC. No nosso país, regra geral, os interessados em frequentar oficinas são jovens que ambicionam escrever o primeiro romance, mergulhar nas águas da poesia, ou tornarse guionistas. Esta última é uma actividade competitiva, mas que oferece algumas possibilidades de carreira, graças a diversas produtoras de programas televisivos, que colaboram com os quatro canais. Para além destes escritores aprendizes, há ainda um vasto público, composto por amantes da literatura. Estes não desejam enveredar pela escrita, pelo menos como profissão, mas somente descobrir os mecanismos complexos da criação literária. Afinal, conhecer as técnicas de um determinado autor pode ser um caminho para melhor esclarecer, fruir e avaliar a sua obra. Sabemos, portanto, quem são os destinatários dos cursos de Escrita Criativa: escritores aprendizes e amantes da literatura. Contudo, quem os ensina? Serão professores competentes, isto é, conhecedores da teoria e da terminologia específica associada à EC, dos métodos de ensino, do sistema próprio de avaliação de um trabalho literário? Sendo escritores, mesmo que pouco conhecidos, possuem também as devidas habilitações para a docência e a necessária preparação pedagógica? Estas questões são prementes e interessam tanto a quem deseje ministrar um curso nessa área como aos eventuais alunos. Gostaria de partilhar convosco um pouco da minha experiência como docente nesta área. No ano lectivo de 2003/04, no Pólo de Viseu da Universidade Católica Portuguesa, tive a oportunidade de leccionar aquela que, tanto quanto sei, foi a primeira cadeira de Escrita Criativa não opcional, integrada numa pós-graduação e mestrado, a surgir no nosso país. Detinha já alguma experiência porque desde 1996 que incluía, no programa da cadeira de Introdução aos Estudos Literários, uma unidade didáctica consagrada à arte da escrita. Por outro lado, tive o cuidado de reforçar a bibliografia específica, e de me inteirar sobre a evolução recente da EC no sentido de se tornar numa cadeira cada vez mais interdisciplinar. 157
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Para adquirir mais conhecimentos, disfarcei-me de aluno, matriculei-me na Luton University, em Inglaterra, onde frequentei um curso intensivo de Verão, na área da EC. Esta universidade era conhecida por ter sido a primeira na Europa a transformar o departamento de Estudos Literários, em 1998, num centro de média e artes, fazendo face à crise que afecta as humanidades (Ramey, 2007: 46). Em Luton, tive a grata oportunidade de aprender técnicas com Jill Barker, Marc Lavelle e Keith Jebb, escritores e especialistas respectivamente em poesia, guião radiofónico e narrativa ficcional. De regresso ao nosso país, leccionei a cadeira de Escrita Criativa no âmbito do referido Mestrado em Comunicação e Expressão. O seminário constou de 16 sessões, de três horas cada, centradas sobre técnicas aplicadas à narrativa breve, à poesia e ao guião. Aos Sábados de manhã, reunia-me com um atento grupo de dez discentes, quase todos professores do Ensino Secundário. Destes, havia dois — os que optaram por elaborar tese de mestrado, sob minha orientação — que acalentavam o desejo de investir na escrita ficcional. O Daniel Martins mostrava-se interessado em escrever guiões para séries televisivas, enquanto a Cláudia Catarina Costa pretendia estrear-se no romance. No programa anunciei vários objectivos, que me pareceram realistas, dos quais enumero apenas cinco, a título de exemplo. No final do ano lectivo, o discente deveria ser capaz de: a) Dominar técnicas básicas de Escrita Criativa nas áreas da narrativa breve, poesia e guião televisivo; b) Compreender os meandros do processo criativo ao nível do conteúdo, estilo e estrutura; c) Desenvolver o espírito crítico na avaliação de textos literários; d) Ler ou declamar textos literários com expressividade; e) Cooperar com os colegas, no âmbito de uma comunidade de Escrita Criativa. Os conteúdos foram repartidos por três áreas: técnicas de EC aplicadas à narrativa breve, à poesia, ao guionismo. Não maçarei os leitores com uma descrição pormenorizada de todas as matérias, pelo que me cingirei aos aspectos que foquei relativamente ao conto: a) Como escrever um parágrafo inicial cativante; b) Tipos de enredo e padrões de desenvolvimento; c) Como gerar conflito e tensão; d) Inventar gente de tinta e papel: as personagens e a caracterização; e) O ponto de vista do narrador e as consequências desta escolha; f) Manipular o tempo: analepses, prolepses, elipses, resumos; g) Como descrever lugares, épocas, personagens e objectos; h) Técnicas para criar diálogos naturais; i) Sugestões para rever um manuscrito literário. No que respeita à metodologia, usei diversas estratégias, de acordo com o ritmo de aprendizagem da turma, os seus conhecimentos e interesses, nomeadamente: 158
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a) Leitura das reflexões que escritores como Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa e Sophia Andresen fizeram sobre a arte da escrita; b) Exposição de técnicas de EC, acompanhadas de exemplos de textos de autores portugueses e estrangeiros; c) Proposta de exercícios práticos, destinados a treinar uma determinada técnica; d) Comentário aos textos produzidos, na perspectiva de um leitor que é também criador; e) Contextualização no âmbito dos Estudos Literários, de certas matérias. Este último aspecto é fundamental, porque a EC não constitui uma área estanque. Pelo contrário, deve oferecer-se como um espaço interdisciplinar, onde a Teoria da Literatura, a História Literária e a Linguística colaboram para ajudar a compreender o complexo fenómeno de criar. A avaliação foi um dos aspectos que me mereceram mais cuidado. Ajuizar acerca da qualidade de um texto literário não é simples, porque implica observar uma série de parâmetros que interagem e contribuem para o resultado final. Por exemplo, numa narrativa, é necessário avaliar a originalidade do tema, a solidez da estrutura, a adequação da voz do narrador, etc. Trata-se de questões subjectivas, que aproveitei para discutir com os alunos, vários deles também docentes, e todos bons leitores. Assim, dada a natureza do seminário, optei pela avaliação contínua. No final do ano lectivo, os discentes apresentaram um portafólio com os trabalhos elaborados ao longo dos seminários, e revistos em casa. Pelo pioneirismo da cadeira; o interesse revelado pelos estudantes; e por ter provado, na prática, que é possível ensinar EC, a leccionação desta disciplina foi uma das experiências profissionais mais enriquecedoras que tive. O que aprendi e o que observei no panorama hodierno do ensino desta área em Portugal, levam-me a deixar ficar três sugestões: a) É necessário corrigir a maioria dos cursos de EC ministrados, demasiado práticos, introduzindo uma componente teórica sólida e abalizada; b) Investir mais na formação de docentes de EC, devidamente habilitados; c) Incentivar o desenvolvimento de livros didácticos escritos por portugueses e com exemplos retirados da nossa literatura. De facto, as obras nacionais que li ou são meros cadernos de exercícios, ou são Teoria da Literatura disfarçada de EC. Trata-se de um projecto moroso, a ser desenvolvido de forma responsável, para que, por fim, se preencha uma lacuna velha de um século nos nossos programas académicos. Só deste modo se formará uma nova geração de escritores, mais capaz e consciente da complexidade desse acto de amor que é o acto de escrever; de construir na mente e no coração do outro um mundo de mentiras alicerçado na verdade de cada dia. Bibliografia 159
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Lodge, D. (1992). The art of fiction. London: Penguin Books. Mancelos, J. (2007). Um pórtico para a escrita criativa. Pontes & Vírgulas: revista municipal de cultura, 2, 5, 14-15. Mancelos, J. (2008). A escrita criativa também se ensina (recensão a Ler como um escritor, de Francine Prose). Rede 2020, 4, 2, 7-8. Ramey, L. (2007). Creative writing and critical theory. In S. Earnshaw (Org.), The Handbook of Creative Writing (pp. 42-53). Edimburgh: Edimburgh University Press. Vanderslice, S. (2007). The creative writing MFA. In S. Earnshaw (Org.), The Handbook of creative writing (pp. 37-41). Edimburgh: Edimburgh University Press.
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O ensino da compreensão para uma leitura mais eficaz
O ENSINO DA COMPREENSÃO PARA UMA LEITURA MAIS EFICAZ1
João Luís Pimentel Vaz Professor Coordenador da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra. Resumo As apreciações repetidamente feitas à qualidade do desempenho dos nossos alunos no respeitante à leitura são tendencialmente negativas, salientando-se as baixas competências reveladas pelos estudantes portugueses quando comparados com os seus pares de outros países. Porém, conhece-se hoje o suficiente sobre o processo de leitura e o seu ensino para permitir a formação de leitores muito mais capazes do que aqueles que hoje saem do nosso sistema educativo. O ensino directo e explícito da compreensão é uma das possibilidade metodológicas há muito abertas pela pesquisa, sendo a sua eficácia comprovada por inúmeros estudos realizados no contexto escolar para o desenvolvimento de competências de leitura dos alunos. Apesar deste conhecimento, não se tem, contudo, verificado, entre nós, a transposição do saber científico-pedagógico disponível neste domínio, para o campo da prática lectiva dos professores. Pelo contrário, esse manancial de conhecimento teima em ficar confinado aos ambientes restritos da pesquisa ou a iniciativas pedagógicas isoladas, meritórias, mas pouco significativas no quadro global do nosso sistema de ensino. Nesta comunicação procuramos, pois, fazer eco da existência desse saber e apelar a um maior empenho, nomeadamente das instituições de formação de professores, na divulgação desta perspectiva e na qualificação dos docentes para a adopção das novas práticas de ensino.
1 O texto aqui apresentado traduz as linhas gerais da comunicação apresentada no I Encontro Internacional do Ensino da Língua Portuguesa, realizado na Escola Superior de Educação de Coimbra entre 30 de Junho e 1 de Julho de 2008. 161
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Palavras-chave
compreensão da leitura; ensino explícito; estratégias de compreensão.
Introdução Ler é compreender. Esta afirmação, que todos nós hoje aceitamos, implica igualmente reconhecer que ninguém saberá ler se não compreender aquilo que lê. É que, embora a capacidade de decifração seja fundamental no processo de leitura, se não houver compreensão, isto é, “atribuição de significado ao que se lê, quer se trate de palavras, de frases ou de um texto” (Sim-Sim, 2007:9), não haverá, em boa verdade, competência leitora. A prática educativa no âmbito do ensino da leitura, entre nós, tem-se preocupado essencialmente com o ensino explícito e directo da decifração – esse é, aliás, um dos principais domínios do trabalho pedagógico em que se insiste na fase inicial do 1º Ciclo do Ensino Básico. Contudo, e uma vez aprendida a “mecânica” da leitura, o desenvolvimento da capacidade de compreensão fica, em grande parte, entregue ao aluno. E isto porquê? A principal razão situar-se-á na própria maneira como têm vindo a ser organizados os programas de formação de professores. Já em 1992, Lundberg e Linnakylä, num estudo sobre sistemas de formação de professores, referiam que, na generalidade dos países, esses cursos incluíam abordagens sobre métodos de ensino da leitura, ou seja, sobre o acesso aos mecanismos de decifração, mas manifestavam uma quase total ausência de informação acerca do ensino da própria compreensão. Um estudo de Cardoso e colaboradores (Cardoso, Costa, Duarte, Ferraz, & SimSim, 1994) no qual vários alunos do final do Ensino Secundário eram questionados sobre quem os tinha ensinado a ler, as respostas dadas são extremamente elucidativas desta realidade. Diziam esses alunos: “Na primária ensinam-nos a conhecer e a juntar as letras; depois nós aprendemos o sentido por nós”. Também há alguns anos, nós próprios2 verificámos que em cerca de vinte aulas da disciplina de Língua Portuguesa do 2º Ciclo do Ensino Básico centradas em actividades de leitura e interpretação de textos, só numa delas se observaram algumas achegas para ajudar explicitamente os alunos a apreenderem o sentido do texto. 2
Elementos não publicados relativos a dados recolhidos em 1991. 162
O ensino da compreensão para uma leitura mais eficaz
Associada a esta realidade, que no essencial se continua a manter entre nós nos dias de hoje, estará a ideia dominante de que as competências de compreensão não se podem ensinar de forma directa, já que se trata de um processo cognitivo “coberto”, inacessível à observação e ao controlo do professor. O desenvolvimento da compreensão deverá, pois, evoluir lentamente, como resultado da prática continuada de leitura e de actividades escolares afins, já que se considera inexequível interferir no desenrolar dos processos mentais do aluno. A prática lectiva centrada na compreensão do texto, mais comum entre nós, poderia designar-se por análise e interpretação. Esta prática assenta primeiramente numa leitura do texto, seguida da colocação de questões pelo professor para avaliar a compreensão obtida. Contudo, quase nada se faz para explicitamente ensinar o aluno a atingir essa compreensão. Isto é, o professor sanciona a correcção ou incorrecção das respostas dadas, mas, directamente, pouco ou nada ensina sobre o modo de chegar às respostas certas. Assim, a aquisição de todo um conjunto de atitudes e procedimentos de que os bons leitores tiram partido para a construção do sentido do texto, continua a estar dependente de um percurso moroso de descoberta – a que nem todos naturalmente chegarão – do contacto ocasional com essas formas de actuação, ou da sorte de beneficiarem de circunstâncias privilegiadas, mas raras, de ensino intencional. Hoje, contudo, e apesar de ainda constituir uma concepção predominante, tal perspectiva está claramente ultrapassada. Os dados trazidos pelo desenvolvimento da psicolinguística, da psicologia cognitiva e da ciência cognitiva abriram claramente as portas ao conhecimento do processo de compreensão do texto. E, a partir deste conhecimento, a pesquisa específica sobre o ensino da compreensão veio a produzir um volume espantoso de trabalhos, nomeadamente nas décadas finais do século XX3, que mostram, sem margem para dúvidas, que a compreensão na leitura é passível de ser ensinada directamente e de forma explícita, permitindo formar leitores mais competentes e motivados. Em Portugal – e enquanto eco da investigação feita no estrangeiro – os trabalhos de Morais (1988) e Silva (1989), foram dos primeiros projectos de intervenção centrados no ensino da compreensão4, situando-se numa linha de orientação que procurava melhorar diversas competências cognitivas dos alunos, valorizando, por um lado, as actividades do pensar e, por outro, o pensar sobre o pensar – a chamada metacognição. Nesta mesma perspectiva, e nos anos seguintes, vários outros trabalhos de pesquisa foram entretanto sendo levados a cabo no contexto português, nomeadamente no âmbito de projectos individuais de formação avançada (vg. Vaz, 1998; Vila-Maior, 3 Prova de que foi esse o período áureo da pesquisa no domínio da leitura e dos processos cognitivos (e metacognitivos) que lhe estão subjacentes, é o facto de, ainda hoje, grande parte das referências que se continuam a citar se localizarem nessa época temporal. 4 Estes dois trabalhos inseriram-se no “Projecto Dianoia - Aprender a Pensar”, do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, coordenado pela Doutora Odete Valente. 163
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2003; Morais, 2006) Actualmente, no âmbito do PENEP (Plano Nacional de Ensino do Português) parece estar, finalmente, a dar-se um passo decisivo na actualização dos professores com vista à introdução de novas práticas de ensino da Língua Portuguesa e, consequentemente, do desenvolvimento das competências de leitura, através do ensino explícito da compreensão. Contudo, a alteração de práticas não é um processo nem fácil nem imediato, quando já se enraizaram procedimentos pedagógicos que o tempo foi sedimentando. Daí que, a nossa ver, a aposta urgente deva ser, desde já, no processo de formação inicial de professores. Por isso a responsabilidade das instituições de formação inicial é grande, revelando-se urgente actualizar currículos e programas que passem a integrar as novas perspectivas sobre o processo de leitura e as metodologias de ensino da própria compreensão. Do processo de compreensão ao ensino da compreensão: Um currículo para o ensino da compreensão da leitura Como proceder então para ensinar a compreensão da leitura? Uma das principais conclusões que ressalta da imensa investigação realizada sobre a leitura é a de que as crianças pequenas e os maus leitores não utilizam estratégias de leitura nem com frequência nem com eficácia se não tiverem ajuda (Brown, Bransford, Ferrara, & Campione, 1983). As estratégias de leitura têm sido definidas como processos ou comportamentos específicos e intencionais, visando alcançar objectivos definidos, e que influem no controlo do esforço do leitor para decifrar e compreender as palavras e para construir o significado de um texto (Afflerbach, Pearson, & Paris, 2008; Garner, 1987) Nesta perspectiva, as insuficiências na compreensão passaram a ser atribuídas à falta de conhecimento e utilização de estratégias adequadas, isto é, à existência de lacunas cognitivas e metacognitivas5 passíveis de serem colmatadas através de um ensino apropriado. Quais então as estratégias fundamentais que deveriam ser contempladas, digamos, num “currículo” para o ensino da compreensão da leitura? Para a resposta a esta questão, adoptaremos como referência um conjunto de práticas consideradas próprias dos leitores-peritos ou bons leitores e que Pearson, Roehler, Dole e Duffy (1992) sistematizaram do modo que a seguir se refere. Defendemos, assim, que ensinar a compreensão poderá passar por ensinar e promover nos alunos, enquanto leitores, o recurso consistente a esses procedimentos. 5 Enquanto que a cognição se refere aos processos mentais envolvidos na actividade intelectual, a metacognição refere-se à tomada de consciência dos próprios processos cognitivos bem como à capacidade de os regular de forma consciente e voluntária. 164
O ensino da compreensão para uma leitura mais eficaz
1.Os bons leitores utilizam o conhecimento prévio para dar sentido ao texto. A chamada “teoria dos esquemas” – adoptada nomeadamente por Rumelhart (1980) e Anderson (1988) para a explicação do processo de compreensão da leitura – salienta a natureza construtiva da compreensão e o papel fulcral do conhecimento prévio nessa construção. Isto é, compreendemos algo quando a informação se enquadra no referencial de conhecimento que possuímos sobre o assunto. Assim, pôde verificar-se através de pesquisa empírica que os alunos que possuem mais conhecimento são também os que aprendem melhor, compreendem melhor e recordam mais informação (v.g., Anderson, Spiro, & Anderson, 1978; Pearson, Hansen, & Gordon, 1979). Contudo, não basta possuir conhecimento para que a compreensão automaticamente se opere: é preciso activá-lo, torná-lo consciente para que essa compreensão se verifique e o sentido do texto seja melhor apreendido. Foi o que a pesquisa veio a comprovar ao revelar que, enquanto lêem, os leitores mais novos e menos competentes tendem a não ter presente o conhecimento prévio sobre o assunto (Paris & Lindauer, 1976). Pelo contrário, os bons leitores utilizam, por norma, a informação pré-existente para determinar o que é importante no texto e para fazerem inferências e elaborações a partir deste (Hansen & Pearson, 1983). Além disso, quando necessitam de demonstrar o entendimento obtido na leitura ou formular questões sobre o tema, mais uma vez é ao conhecimento anterior que os bons leitores voltam a recorrer. E como poderá activar-se esse conhecimento prévio? São múltiplas as formas de o fazer. Por exemplo, antes de passar à leitura propriamente dita de um texto, pode ser vantajoso enquadrar o mesmo. Para tal, o leitor poderá começar por reflectir sobre o título e os subtítulos, observar as eventuais imagens e legendas, atentar nos destaques, examinar questões expressas, rever mentalmente informação relacionada já adquirida e, deste modo, criar um quadro contextual no qual a informação a ler mais facilmente ganhe sentido. De igual modo, poderá interrogar-se e avançar com hipóteses sobre o conteúdo, ou mesmo, trocar impressões ou conversar sobre o tema antes de iniciar a leitura. Desta forma se poderá estimular e avivar informação prévia que se relaciona com o texto em questão e que ajudará a dar sentido à leitura. Para além destes procedimentos que antecedem o acto de ler, será também fundamental que, durante a própria leitura, os sujeitos mantenham essas referências activadas na sua mente, de modo a construírem um significado coerente para o texto Este tipo de procedimentos, que os bons leitores habitualmente assumem de forma autónoma, é pois um precioso auxílio para conseguir uma melhorada compreensão, havendo prova empírica de que é possível ensinar com êxito os leitores menos capazes a adoptarem consistentemente estas práticas (vg. Bransford, Vye e Stein, 1984). 165
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2.Os bons leitores monitorizam (verificam) a compreensão ao longo do processo de leitura Consciente dos seus objectivos de leitura, o bom leitor toma como referência esses objectivos e avalia, a cada momento, em que medida está a apreender o sentido do texto e a atingir as intenções pretendidas. Ele assume uma atitude permanente de monitorização do processo de ler, verificando, de forma continuada, a compreensão que está a conseguir obter. Assim, assumindo uma postura activa, este leitor encontrase, naturalmente, mais preparado para, se necessário, tomar, no momento, as medidas adequadas para repor a compreensão perdida. Pelo contrário, os maus leitores lêem frequentemente sem se preocuparem em analisar se estão ou não a entender o significado. E, o mais frequente, é apenas tomarem consciência das suas dificuldades já depois de terem chegado ao fim do texto… Dados de diferentes estudos (v.g. Baker & Brown, 1984; Garner, 1992, Wagoner, 1983) confirmam claramente esta realidade. Daí que, desenvolver no leitor esta prática de verificação sistemática da compreensão enquanto lê seja fundamental para melhorar as competências leitoras, já que este é o primeiro passo para poder tomar as medidas ajustadas à apreensão do sentido do texto sempre que essa apreensão está em causa. Convém, no entanto, não esquecer que a monitorização constitui uma competência metacognitiva, na medida em que pressupõe uma tomada de consciência, pelo sujeito, dos seus próprios processos cognitivos. Nesse sentido, e como alertam Eme, Puustinen e Coutelet (2006), o seu desenvolvimento não se consegue nem de forma fácil, nem de modo imediato. Apesar disso, vários trabalhos levados a cabo no contexto educativo (v.g. Duffy et al., 1987; Palincsar & Brown, 1984; Paris. Cross, & Lipson, 1984; Vaz, 1998) mostraram ser possível ensinar com êxito a monitorização da compreensão (nalguns casos, já a partir do 3º ano de escolaridade) o que permite sustentar esta proposta de ensino. 3. Os bons leitores tomam medidas para repor a compreensão logo que se apercebem de que não estão a entender Se a monitorização atrás referida leva à identificação de dificuldades na apreensão clara da informação escrita, então várias medidas podem ser assumidas para (re)encontrar a compreensão perdida. No entanto, só os leitores competentes sabem como proceder e tomam habitualmente as necessárias acções remediativas de forma ajustada às circunstâncias. Foi essa a conclusão a que chegaram vários estudos que apontam insistentemente para essa tendência que diferencia de forma clara os bons leitores dos leitores menos competentes (vg. Garner, Macready, & Wagoner, 1984; Raphael & Pearson, 1985). 166
O ensino da compreensão para uma leitura mais eficaz
Quanto aos procedimentos de regulação a adoptar, a reinspecção ou releitura é, provavelmente, um dos mais comuns. Através desta acção, o leitor volta atrás no texto e relê-o de forma a “retomar o fio da meada”, isto é, a captar a compreensão a partir do ponto em que a havia perdido. E não pensemos que, apesar de tão intuitivo, este procedimento corresponde a uma prática generalizada. Pelo contrário, só os bons leitores o usam por sistema. Além da releitura, outras acções se podem mostrar úteis para repor a compreensão: a consulta de um dicionário, se um termo desconhecido se apresenta; a formulação de uma hipótese de significação para uma palavra ou trecho, a partir de elementos do contexto; o recurso à ajuda de terceiros… são algumas das medidas ajustadas para o efeito. 4. Os bons leitores sabem distinguir, no texto, entre informação fundamental e acessória Se uma leitura capaz pressupõe a apreensão da informação relevante do texto, então é fundamental que o leitor saiba distinguir o essencial do acessório, o fundamental do secundário. No entanto, convém lembrar que aquilo que num texto é ou não relevante pode ser determinado pelo autor, mas também pelo leitor. Experiências levadas a cabo por Pichert e Anderson (1977) mostraram que pedindo a sujeitos que lessem a descrição de uma habitação colocando-se na perspectiva de um eventual comprador, estes davam relevo a aspectos claramente diferentes dos salientados por leitores que se imaginavam na pele de um potencial assaltante. Entende-se, assim, que um dos factores definidores da importância da informação sejam os objectivos de leitura estabelecidos por quem lê. Por outro lado, o autor, ao escrever, pretende veicular uma informação, esperandose, de quem lê, a capacidade de a apreender na justa medida das intenções de quem escreveu. É essencialmente nesta perspectiva que se colocam os objectivos da leitura em contexto escolar. Os estudos conduzidos sobre o desempenho dos bons/maus leitores revelaram que os melhores leitores se mostram mais capazes na identificação da informação essencial contida no texto, de acordo com a intenção do autor, do que os fracos leitores (v.g. Afflerbach, 1986; Winograd & Bridge, 1986). Para isso, os bons leitores: • Utilizam o seu conhecimento geral sobre o mundo e o seu conhecimento 167
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específico sobre o assunto em causa; • Usam, como pistas, elementos formais e estruturais de organização e apresentação do próprio texto (por exemplo, tópicos de disposição do texto, palavraschave, características gráficas, eventuais sínteses…) • Recorrem ainda, principalmente os leitores mais adultos, ao conhecimento que possuem das tendências, intenções e objectivos do autor. 5. Os bons leitores sintetizam a informação à medida que lêem e destacam o essencial no final da leitura A síntese ou resumo da informação obriga a um trabalho de elaboração cognitiva que possibilita não só a verificação da compreensão, mas facilita igualmente a retenção mnésica. Esta síntese permite ainda criar mais facilmente um fio condutor para a apreensão do sentido global do texto. Ora, os estudos efectuados por Brown e colaboradores, na década de 80, sobre o resumo (vg. Brown & Day, 1983; Brown, Day & Jones, 1983) vieram salientar que os leitores menos capazes ou principiantes, para além de não se preocuparem em elaborar sínteses da informação à medida que lêem, mal a última palavra é decifrada tendem a abandonar o texto ou a passar a outra actividade. Agindo assim, eles não reflectem minimamente sobre o que acabaram de ler nem tentam avaliar em que medida conseguem reproduzir o essencial do texto. Tais estudos mostraram também que, ao contrário dos maus leitores, os leitores mais capazes tendem a efectuar sínteses da informação no decurso da leitura, o que revela um processo de selecção dos conteúdos fundamentais e conduz a uma compreensão mais clara do texto. Por outro lado, ao terminarem a leitura os bons leitores tendem a rever o texto e a verificar a compreensão obtida, podendo recorrer para isso a várias questões, como as que a seguir se apresentam:
“O(s) meu(s) objectivo(s) foi (foram) atingido(s)? “O que é que eu aprendi?” “Existe lógica no conjunto da informação?” “Serei capaz de sintetizar as principais ideias apresentadas?”
Embora este aspecto ultrapasse já o próprio processo de compreensão, a síntese de informação está intimamente dependente dele, sendo impossível proceder à sistematização do conhecimento se o texto não for compreendido. Como afirma Sprenger-Charolles (1980, p.62), “não compreendemos bem senão aquilo que somos capazes de resumir”. No entanto, porque a capacidade de resumo está directamente relacionada com a capacidade de compreensão, o trabalho pedagógico para melhorar a habilidade de resumir tem sido levado a cabo igualmente com a intenção de promover 168
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as competências de compreensão do leitor (Winograd, 1985)6. 6. Os bons leitores fazem constantemente inferências quer durante quer após a leitura, de modo a obterem um sentido integrado e coerente do texto. Como se tornaria difícil e fastidioso explicitar num texto toda a informação necessária para dar sentido ao mesmo, todos nós fazemos inferências para preencher os detalhes da informação não expressa ou para fazer elaborações mais amplas. Considerada por muitos autores como o expoente da compreensão, a inferência permite chegar a um entendimento que ultrapassa a mera compreensão literal do texto e atingir o que, apesar de não expresso, é legítimo depreender. A inferência permite, pois, extrair novas informações a partir do que está escrito, evocar informações que devem ser adicionadas ao texto e, assim, completá-lo. A inferência é um processo necessário mesmo para a compreensão de textos simples e está já presente em leitores bastantes novos. Segundo Kail, Chi, Ingram e Danner (1977) a inferência pode ser testemunhada na leitura de alunos desde o 2º ano de escolaridade. Assim, e contrariando a ideia de alguns professores que defendem o adiamento das actividades centradas na inferência até que a compreensão literal esteja completamente desenvolvida, os dados da pesquisa disponíveis aconselham a ênfase neste processo desde que a aprendizagem da leitura se inicia. Vários são os estudos cujos resultados mostram que as crianças podem, desde cedo, ser conduzidas no desenvolvimento das suas competências inferenciais. Por exemplo, Hansen (1981) e Hansen e Pearson (1983) ensinaram expressamente alunos a desenvolver as suas aptidões de inferência, discutindo e mostrando-lhes o modo como as inferências são feitas e ensinando-os a usar o conhecimento prévio e a informação do texto para elaborarem as suas respostas a questões inferenciais. Nos trabalhos de Raphael e colaboradores (Raphael & McKinnney, 1983; Raphael & Pearson, 1985; Raphael & Wonnacott, 1985) os estudantes foram solicitados a identificar e mencionar as estratégias que utilizavam para responder às questões de compreensão, especialmente questões inferenciais. Partindo daí, mostrou-se-lhes 6 Para a elaboração de sínteses existem algumas directrizes de trabalho que podem ser desenvolvidas e que, segundo Brown, Day e Jones (1983) passam, nomeadamente, pelos seguintes procedimentos: -desprezar a informação irrelevante -desprezar a informação redundante -criar designações abrangentes para séries de coisas ou acções da mesma natureza (por exemplo, a palavra alimentos em vez de pão, carne, alface, etc.) -utilizar frases-chave contidas no texto que, em si próprias, expressam ideias fundamentais -criar frases-tópico quando o texto não as contiver 169
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então que, apesar de por vezes ser necessário recorrer à informação contida no texto para responder a perguntas, há inúmeras circunstâncias em que respondemos tendo por base não o que o texto diz, mas sim o nosso conhecimento prévio. De todo o modo, e comprovando que o ensino da inferência é uma possibilidade pedagógica, em qualquer destes estudos foi assinalada uma melhoria da compreensão da leitura dos alunos intervenientes, bem como um aumento da competência para responder a questões de natureza inferencial. 7. Os bons leitores colocam questões a si próprios como orientação para o processo de ler Apesar de todos os bons leitores tenderem a auto-questionar-se de forma a orientar a leitura e a procurar no texto a resposta a essas questões, os estudos mostram que este procedimento não é muito incentivado na prática escolar. Pelo contrário, a análise do discurso e das dinâmicas da sala de aula realizada em vários países7, tem mostrado que a prática generalizada se traduz num domínio do papel do professor, deixando ao aluno um papel francamente passivo. Passando para o campo das actividades lectivas de leitura, também aí se repete a mesma situação, estando fundamentalmente reservado ao professor o papel de questionador e aos alunos o de respondentes. Ora, já o dissemos, é fundamental que a questionação seja também assumida pelo aluno, uma vez que a formulação de perguntas para orientar a compreensão do texto leva não só a níveis mais profundos de processamento da informação (André & Anderson 1979), como melhora a própria compreensão e aprendizagem. Os dados disponíveis mostram que os bons e maus leitores se distinguem entre si quanto a estes procedimentos, mas também que é possível ensinar os alunos a formular, para si próprios, questões relevantes para a compreensão. Os trabalhos de Singer e Donlan (1994) – centrados na formulação de perguntas gerais baseadas na estrutura das histórias – e de Palincsar e Brown (1984) – sobre a metodologia de ensino recíproco – são exemplo de duas pesquisas que provam a eficácia do ensino dirigido à autoquestionação.
7 Um estudo realizado no contexto escolar português por Emília Pedro (1982), revela que, de forma idêntica ao verificado nos Estados Unidos da América e na Suécia, também em Portugal, e independentemente do nível de escolaridade, é o professor quem conduz de forma dominante a aula, reservando aos alunos um papel claramente passivo e submisso às suas orientações. 170
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A concluir A concluir, e fazendo uma breve síntese do nosso ponto de vista, poderíamos dizer que: 1º- Saber ler é atingir a compreensão do texto. Logo, ensinar a ler implica igualmente ensinar a compreender; 2º- O ensino da compreensão pode hoje ser feito de forma directa e explícita pelo professor, desde que para tal se recorra às metodologias apropriadas: assim, tal como se ensina a decifrar, também se deve ensinar a compreender; 3º- O ensino da compreensão passa por levar os alunos à adopção de um conjunto de procedimentos que a pesquisa demonstrou serem típicos dos bons leitores. Nesse sentido, enunciámos um leque de competências e procedimentos básicos que traduzem a forma de ler dos leitores-peritos; 4º- A melhoria das competência leitoras dos nossos alunos, nomeadamente no que se refere ao domínio da compreensão, pressupõe, no entanto, que no processo de formação de professores estes sejam habilitados com o conhecimento específico, os fundamentos e as práticas do ensino da compreensão. Este é, pois, o desafio que aqui fica às instituições formadoras, se quisermos aproveitar os conhecimentos trazidos pela investigação para melhorar o nível de competência dos nossos alunos enquanto leitores. Bibliografia Afflerbach, P. P. (1986).The influence of prior knowledge on expert readers’ importance assignement processes. In J. A. Niles & R.V. Lalik (Eds.), Solving problems in literacy: learners, teachers and researchers (Thirty-fifth Yearbook of the National Reading Conference (pp.30-40). Rochester, NY: National Reading Conference. Afflerbach, P., Pearson, P. D., & Paris, S. G. (2008). Clarifying differences between reading skills and reading strategies. The Reading Teacher, 61, 364-373. Anderson, R. C. (1988). Role of the reader’s schema in comprehension, learning, and memory. In: Theoretical models and processes of reading (3th ed.) (pp. 372384). Newark, Delaware: International Reading Association. Anderson, R. C., Spiro, R. J., & Anderson, M. C. (1978). Schemata as scaffolding for the representation of information in connected discourse. American Educational Research Journal, 15, 433-440. Baker, L. & Brown, A. L. (1984). Metacognitive skills in reading. In P. D. Pearson (Ed.), Handbook of reading research (pp. 353-394). White Plains, NY: Longman. Bransford, J. D., Vye, N. J., & Stein, B.S. (1984). A comparision of successful and less successful learners: Can we enhance comprehension and mastery skills? 171
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A língua portuguesa em evolução: os Acordos Ortográficos
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Lola Geraldes Xavier Escola Superior de Educação de Coimbra Resumo A 16 de Maio de 2008, foi discutido e votado na Assembleia da República um protocolo modificativo ao Acordo Ortográfico que permite que entre em vigor com as ratificações de apenas três países. Neste momento, com Portugal, Brasil, Cabo Verde e São Tomé passam a ser quatro os países que já ratificaram o Acordo. O Acordo Ortográfico de que se fala é o de 1990. A polémica a favor e contra este Acordo tem sido significativa. Mas para se tomar uma posição é conveniente que se conheça as alterações que este Acordo Ortográfico propõe. Neste sentido, é nosso objectivo apresentar, aqui, uma perspectiva histórica dos Acordos Ortográficos da Língua Portuguesa e destacar, com base no texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), as alterações previstas, que já começaram a entrar em vigor no Brasil, no primeiro dia deste ano, em período de transição, até à aplicação integral, no final de 2012, prevê-se que, em Portugal, tais alterações entrem em vigor até 2014. Palavras-chave
Acordo Ortográfico; alterações ortográficas, acentuação, consoantes duplas, facultatividades.
Haverá facções contra e a favor, mas não é tanto importante como a língua se apresenta, mas o que diz, o que propõe. José Saramago
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A palavra ‘ortografia’ vem do grego, «orthós» e «graphos». «Orthós» quer dizer “correcta” e «graphos» quer dizer “escrita”, logo, quando falamos de ortografia referimo-nos à escrita correcta, ou a que ensina a escrever correctamente. A ortografia é, no entanto, artificial, convencional, imposta, ao contrário da língua oral que é natural. A escrita alfabética é uma tentativa de representação gráfica da língua falada.Como nenhuma ortografia consegue reproduzir a fala com fidelidade e logo aqui começam os problemas. A importância da língua falada para o estudo científico está principalmente no facto de ser nessa língua falada que ocorrem as mudanças e as variações que vão transformando a língua e que se não forem tidas em conta pela ortografia permite-se um fosso entre as duas vertentes: escrita e oral. Porém, nem todas as variações provocadas na língua falada podem ser tidas em conta, geralmente tem-se em consideração a norma padrão em que ocorrem e a sedimentação/ aceitação pelos falantes dessa variação. Não é, contudo, pacífica a convivência entre estas duas variáveis, sobretudo quando a etimologia perde terreno na actualização da língua falada. Passar de um sistema etimológico, de acordo com a origem das palavras, para um sistema de ortografia baseado na fonética não é consensual. É este o maior problema da redacção/aceitação de um Acordo Ortográfico, a dialéctica entre o peso da etimologia, com toda a história linguística que carrega, e o peso da actualização da língua falada no quotidiano. I. A questão dos Acordos Ortográficos de língua portuguesa não é, por isso, recente. Vejamos uma breve cronologia das reformas ortográficas efectuadas na língua portuguesa. Do século XVI até ao século XX, em Portugal e no Brasil a escrita praticada era de cariz etimológico (procurava-se a raiz latina ou grega para escrever as palavras). Em 1907, a Academia Brasileira de Letras começa a simplificar a escrita nas suas publicações. Em 1910, com a Implantação da República em Portugal, foi nomeada uma Comissão para estabelecer uma ortografia simplificada e uniforme de modo a ser usada nas publicações oficiais e no ensino. Um ano depois, dá-se a Primeira Reforma Ortográfica, com esse objecttivo de uniformizar e simplificar a escrita de algumas formas gráficas, mas que não foi extensiva ao Brasil. Em 1915, a Academia Brasileira de Letras resolve harmonizar a ortografia com a portuguesa, e em 1919 revoga a sua resolução de 1915. Em 1924, A Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras começaram a procurar uma grafia comum. No entanto, a Academia Brasileira de Letras antecipa-se e lança um novo sistema gráfico em 1929. Em 1931, foi aprovado o primeiro Acordo Ortográfico entre o Brasil e Portugal, que visava suprimir as diferenças, unificar e simplificar a língua portuguesa. No entanto não foi posto em prática. Em 1938, foram sanadas as dúvidas quanto à acentuação de palavras e em 1943 foi redigido na primeira Convenção Ortográfica entre Brasil e Portugal o Formulário Ortográfico de 1943. Finalmente, em 1945, temos um Acordo Ortográfico que se tornou lei em Portugal, 176
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mas que no Brasil não foi ratificado pelo Governo. Os brasileiros continuaram a regular-se pela ortografia anterior do Vocabulário de 1943. Só em 1971 foram promulgadas alterações no Brasil, reduzindo as divergências ortográficas com Portugal. Em Portugal, no ano de 1973, foram promulgadas alterações, reduzindo as divergências ortográficas com o Brasil, mormente ao que à acentuação diz respeito. Em 1975, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras elaboraram um novo projecto de Acordo que não foi aprovado oficialmente. Finalmente, em 1986, o presidente do Brasil, José Sarney, promoveu no Rio de Janeiro um encontro dos sete países de língua portuguesa, na altura Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Aí, foi apresentado o Memorando Sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Assistiu-se a muitas críticas e observações de linguistas e de intelectuais, no geral, e em 1990, a Academia das Ciências de Lisboa convocou novo encontro juntando uma Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Daqui resultou que as duas Academias elaboram a base do «Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa». O documento entraria em vigor (de acordo com o 3º artigo do mesmo) no dia «1 de Janeiro de 1994, após depositados todos os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo português». Em 1996, esta condição verifica-se apenas em relação a Portugal, Brasil, e Cabo Verde. Dado o impasse que se verificava, em 2004, os ministros da Educação da CPLP reuniram-se em Fortaleza, no Brasil, para propor a entrada em vigor do Acordo Ortográfico, mesmo sem a ratificação de todos os membros. Finalmente, a 16 de Maio de 2008, foi discutido e votado na Assembleia da República um protocolo modificativo ao Acordo Ortográfico que permite que ele entre em vigor com as ratificações de apenas três países e não dos actuais oito signatários. II. São várias as alterações deste Acordo. Elas centram-se sobretudo nas consoantes mudas ou não articuladas, no sistema de acentuação gráfica, especialmente das esdrúxulas, e na hifenização. Privilegiou-se o critério fonético, da pronúncia, em detrimento do critério etimológico. É com base neste critério que se justifica a maioria das facultatividades apresentadas. A supressão das consoantes mudas afecta «0,54% do vocabulário geral da língua» (ponto 4.1.), ainda que sejam vocábulos de uso frequente. O número de palavras abrangidas pela dupla grafia «é de cerca de 0,5% do vocabulário geral da língua» (ponto 4.1). Em relação às facultatividades permitidas para a acentuação, por exemplo, explica-se que se optou «por fixar a dupla acentuação gráfica como a solução menos onerosa para a unificação ortográfica da língua portuguesa» (ponto 5.2.4). Falta, no entanto, criar o Vocabulário Ortográfico Comum «tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas» para que algumas alterações previstas pelo Acordo se tornem mais claras. Os brasileiros prometem uma versão para Fevereiro de 2009. Mas este 177
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trabalho não deveria ser o resultado de uma equipa plurinacional, que englobasse elementos representativos de cada um dos países de língua portuguesa? Há, neste momento, órgãos de imprensa que começam já a usar a ortografia proposta pelo Acordo em convivência com a ortografia que tem vigorado até aqui. É, pois, inevitável, o Acordo Ortográfico de 1990 começa a entrar em vigor, independentemente das críticas1 e desconfianças que possa continuar a levantar. O nosso objectivo principal neste breve artigo é destacar as alterações previstas pelo Acordo Ortográfico de 1990, que passamos a sistematizar. 1. Alfabeto Em relação ao Alfabeto, este passa a ser constituído por 26 letras (Base I), assistindo-se à introdução de: <k>, <w> e <y>. 2. Sequências consonânticas Passam a eliminar-se várias sequências consonânticas quando são mudas «nas pronúncias cultas da língua» (Base IV, b)). É o caso de: • <cc> passa a <c>: acionar • <cç> passa a <ç>: ação, coleção, direção, objeção • <ct> passa a <t>: afetivo, ato, coletivo, diretor, exato • <pt> passa a <t>: adotar, batizar, Egito, ótimo 3. Acentuação No que diz respeito à acentuação das formas verbais (Base IX, artigo 7º), prescindese de acento circunflexo em: • Eles creem • Eles deem (conjuntivo) • Eles descreem (conjuntivo) • Eles desdeem (conjuntivo) • Eles leem • Eles preveem • Eles redeem (conjuntivo) • Eles releem • Eles reveem • Eles tresleem • Eles veem
1 O objectivo deste artigo não é enveredar pelas críticas ao Acordo Ortográfico. Já antes tivemos oportunidade de realçar algumas incoerências do Acordo – cf. Xavier, 2008. 178
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O artigo 9º, da Base IX, refere-se à acentuação das palavras paroxítonas. Assim, deixam de distinguir-se pelo acento gráfico: • para (v.) / para (prep.) • pela(s) (v.) / pela(s) (prep. + art.) • pelos (n.) / pelos (prep. + art.) • polo(s) (n.) / polo(s) (por+lo(s) pop.) No que concerne a acentuação das palavras paroxítonas, o artigo 3.º, da Base IX, explicita que não se acentuam graficamente, por exemplo: • alcaloide • Azoia • boia • heroico • introito • jiboia • paranoico Por sua vez, há igualmente formas verbais que prescindem de acento agudo (Base X, artigo 7º). É o caso dos verbos redarguir e arguir, passando a escrever-se «Auguo», «arguis» (e não «argúis»), «argui» (e não «argúi»), «arguimos», «arguis», «arguem» (e não «argúem»). 4. Hífen Em relação ao Hífen, deixa de se empregar (Base XV, artigo 6º) na locução: «fim de semana». Por sua vez, a Base XVI vem simplificar a utilização do hífen nas formações por prefixação. Pode resumir-se no quadro seguinte as alterações propostas: Não se emprega o hífen nas formações com prefixos: . aero. agro. ante. anti. arqui. auto. bio. circum. co. contra. eletro. entre. extra-
. geo. hidro. hiper. infra. inter. intra. macro. maxi. micro. mini. multi. neo-
Excepções: . pan. pluri. pós. pré. pró. proto. pseudo. retro. semi. sobre. sub. super. supra. tele. ultra-
A) Quando o segundo elemento começa por <-h>: . anti-higiénico/anti-higiênico; co-herdeiro; extra-humano; pré-história; geo-história; semi-hospitalar, etc. B) Quando o prefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento: . anti-ibérico; contra-almirante; supra-auricular; micro-onda; semi-interno, etc. Nota: nas formações com prefixo <co-> mantémse a aglutinação: coobrigação; coocupante; coordenar; cooperação, etc.
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O hífen não se emprega também quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por <-r> ou <-s> (Base XVI, artigo 2º, a)): • antirreligioso • antissemita • contrassenha • cosseno • extrarregular • infrassom • minissaia • biorritmo • biossatélite O hífen não se emprega igualmente nas formações em que o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por vogal diferente (Base XVI, artigo 2º, b)): • extraescolar • autoestrada • autoaprendizagem • agroindustrial Do mesmo modo, o hífen não se emprega com o verbo haver (Base XVII, artigo 2º) nas ligações da preposição <de> às formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver, assim: • hei de, hás de, hão de, etc. 5. Uso das minúsculas iniciais Segundo a Base XIX, artigo 1º, b) e d), passa a grafar-se com minúsculas os meses e estações do ano − outubro, primavera – bem como os usos de: fulano, sicrano, beltrano. 6. FACULTATIVIDADES a) Consoantes duplas Passa a grafar-se de forma facultativa as consoantes duplas (Base IV, artigo 1º, c)). Assim, conservam-se ou eliminam-se: • <cç>: dicção/dição • <ct>: aspecto/aspeto; cacto/cato; caracteres/carateres; facto/fato; sector/ setor • <pç>: concepção/conceção; recepção/receção • <pt>: cepto/cetro; corrupto/corruto • Do mesmo modo, permite-se a facultatividade entre consoantes duplas (Base IV, artigo1º, d)): • <mpc> /<nc>: assumpcionista/assuncionista • <mpç>/<nç>: assumpção/assunção • <mpt>/<nt>: assumptível/assuntível; peremptório/perentório; sumptuoso/ 180
A língua portuguesa em evolução: os Acordos Ortográficos
suntuoso; sumptuosidade/suntuosidade. Ainda em relação às consoantes duplas o artigo 2º, da Base IV, permite as seguintes simultaneidades: • <bd>: súbdito/súdito • <bt>: subtil/sutil • <gd>: amígdala/amídala; amídgalite/amídalite • <mn>: amnistia/anistia; indemne/indene; indemnizar/indenizar; omnipotente/ onipotente; omnisciente/onisciente. • <tm>: aritmética/arimética. b) Acentuação No que diz respeito à acentuação das palavras oxítonas, são permitidas as seguintes facultatividades (Base VIII): • bebé/bebê • bidé/bidê • canapé/canapê • caraté/caratê • croché/crochê • guiché/guichê • matiné/matinê • puré/purê • cocó/cocô • judo/judô • metro/metrô Por sua vez, a acentuação das palavras paroxítonas passa a admitir a seguinte dupla grafia (Base IX, artigo 2º): • sémen/sêmen • xénon/xênon • fémur/fêmur • Fénix/Fênix • ónix/ônix • pónei/pônei • pénis/pênis • ténis/tênis • bónus/bônus • ónus/ônus • Vénus/Vênus A acentuação das palavras proparoxítonas far-se-á, de acordo com a Base XI, artigo 3º, da seguinte forma, oscilando entre o acento agudo e o acento circunflexo: • académico/acadêmico 181
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anatómico/anatômico cénico/cênico cómodo/cômodo fenómeno/fenômeno género/gênero topónimo/topônimo Amazónia/Amazônia António/Antônio blasfémia/blasfêmia fémea/fêmea gémeo/gêmeo génio/gênio ténue/tênue
No que concerne a acentuação das formas verbais de pretérito perfeito do indicativo (Base IX, artigo 4.º), passa a ser possível: • amamos/amámos • louvamos/louvámos Ainda no que respeita à acentuação de formas verbais, o artigo 7º, da Base X, permite que se verifiquem dois paradigmas (no presente do indicativo e do conjuntivo) para as formas verbais de aguar, apaniguar, apaziguar, apropinquar, desaguar, enxaguar, obliquar, delinquir, averiguar. Assim, passa a grafar-se indistintamente: • Averiguo/averíguo, averiguas/averíguas, averigua/averígua, averiguam/ averíguam • Enxaguo/enxáguo, enxaguas/enxáguas, enxagua/ enxágua, enxaguam/ enxáguam • Averigue/averígue, averigues/averígues, averigue/averígue, averiguem/ averíguem. • Enxague/enxágue, enxagues/enxágues, enxague/ enxágue, enxaguem/ enxáguem. c) Uso de maiúsculas e minúsculas Por sua vez, também se admitem oscilações no uso das minúsculas e das maiúsculas (Base XIX, artigo 1º, f)), sobretudo no que diz respeito às formas de tratamento cortês ou indicativos de cargo e designações de nomes sagrados: • senhor doutor Joaquim da Silva • bacharel Mário Abrantes • cardeal Bembo • santa Filomena/Santa Filomena Esta facultatividade de minúsculas e maiúsculas estende-se a nomes que designam domínios do saber, cursos e disciplinas (Base XIX, artigo 1º, g)): 182
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português/Português matemática/Matemática línguas e literaturas modernas/Línguas e Literaturas Modernas.
Também a categorização de logradouros público, templos, edifícios pode ser grafada com recurso a minúsculas ou maiúsculas (Base XIX, artigo 2º, i)), é o caso de: • rua/Rua da Liberdade • largo/Largo dos Leões • igreja/Igreja do Bonfim • templo/Templo do Apostolado Positivista • palácio/Palácio da Cultura • edifício/Edifício Azevedo Cunha 7. Implicações do Acordo Ortográfico no Brasil As implicações do Acordo Ortográfico fazem-se sentir, sobretudo, em Portugal e no Brasil. A este nível faltam estudos sobre os restantes países de língua portuguesa. No que diz respeito, às implicações no português do Brasil, destaque-se a queda de acento (Base IX) nas terminações <-oo> e <-eia>, bem como nas terminações em <–eico>: • voo (artigo 1º e 8º) • enjoo(artigo 1º) • ideia (artigo 3º) • assembleia (artigo 3º) • Epopeico (artigo 8º) • Proteico (artigo 8º) Por sua vez, o trema, sinal de diérese, é inteiramente suprimido (Base XIV), à excepção dos derivados de nomes próprios estrangeiros. Assim, passa a escrever-se como no Português europeu: «arguido», «bilingue», «consequência», «exequível». Bibliografia AA. VV. (2008). Acordo ortográfico – guia prático, Porto: Porto Editora. Casteleiro, J. M. & Correia, P. D. (2008). Atual – o novo acordo ortográfico. Lisboa: Texto Editores. Castro, I. et al. (1987). A demanda da ortografia portuguesa. Lisboa: Edições João Sá da Costa. Estrela, E. (1993). A questão ortográfica — reforma e acordos da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Notícias. Janssen, M. (Org.) (2008). Ortografia em mudança. Vocabulário. As palavras que mudam com o acordo ortográfico. Lisboa: Editorial Caminho. 183
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Lima, I. P. de (2008). Em favor da revisão do acordo ortográfico: três ordens de razões “culturais”. Diário de Notícias, 2 de Junho. Moura, V. G. (2008). Acordo ortográfico: a perspectiva do desastre. Lisboa: Alêtheia Editores. Reis, C. (2008). Razões do acordo ou o destino do português. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 12 de Março. Xavier, L. G. (2008). O acordo ortográfico de língua portuguesa: entre o conservadorismo e a inovação. Estudios Portugueses. Revista de Filología Portuguesa, 2007/7, 63-72. http://www.flip.pt/AcordoOrtográfico/Introdução/tabid/514/Default.aspx http://www.portaldalinguaportuguesa.org/?action=acordo-historia http://www.portaldalinguaportuguesa.org/index.php?action=acordo
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Montserrat Bigas Departamento de Didáctica de la Lengua y la Literatura Universitat Autònoma de Barcelona Resumen El artículo toma como punto de partida los datos negativos en comprensión lectora que aparecen en algunos países en las diferentes evaluaciones internacionales e intenta reflexionar sobre la función que la escuela tiene encomendada para conseguir mejorar la competencia lectora de sus alumnos. Defiende el uso del término alfabetización inicial frente al de lectoescritura para referirse al aprendizaje en la escuela infantil y propone un cambio de perspectiva en la actuación docente, situando el conocimiento del código ce como un conocimiento necesario pero no suficiente, que debe aprenderse en el conjunto de actividades de lectura y escritura significativas y funcionales. Palabras clave
alfabetización inicial; aprendizaje de la lectura y la escritura.
1. La importancia social de la alfabetización La educación se ha convertido, en la actualidad, en una preocupación importante y creciente para los gobiernos de todos los países, singularmente del mundo desarrollado. Una gran mayoría de personas es consciente de que el progreso de la sociedad está fuertemente vinculado a la formación de los jóvenes, a los conocimientos que adquieren durante el período escolar y a la capacidad de continuar formándose a lo largo de su vida. Estamos muy lejos de las épocas en que la formación recibida en las escuelas era útil al individuo para resolver los problemas derivados de su integración en la sociedad, a lo largo de su vida. Para conseguir una formación continuada, el nivel de alfabetización1 de la población en general debe ser suficientemente alto para permitir continuar esta formación dilatada en el tiempo y, para ello, la capacidad de 1 El término está usado en un sentido equivalente a literacy, entiendiendo que una persona alfabetizada pertenece al mundo letrado y es capaz de usar la lengua escrita para la diversidad de funciones requeridas. 185
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manejarse con la lengua escrita es imprescindible. De ahí la importancia que se otorga, cada vez más, a las evaluaciones de los niveles de aprendizaje de los estudiantes. Nos referimos, concretamente, al Informe Pisa, uno de los programas de evaluación internacional más reconocido, sobre todo por el número de países a los que se aplica y por la extensa muestra con la que se trabaja. Ello permite a cada país situar el nivel de sus estudiantes con relación a los de los demás países. La última evaluación, correspondiente al año 2006, se centró principalmente en la formación científica, matemática y en la comprensión lectora de los estudiantes evaluados. La comprensión lectora es considerada un punto neurálgico, central, en la medida que es la base de la mayoría de aprendizajes. Los resultados del Informe Pisa, en España en general y en Catalunya en particular, sitúan a la población estudiada en un nivel por debajo de la media de la OCDE y muy alejada de los países en cabeza. En la siguiente tabla, se muestran los resultados de algunos países con respecto a la comprensión lectora. Se han seleccionado los que han obtenido mejores resultados en la evaluación de 2006, el que ha obtenido el peor resultado, la media de la OCDE, España, Catalunya y también Portugal. Entre paréntesis, se han consignado los resultados obtenidos en la evaluación de 2003, lo que permite ver la evolución. Puntuación media de la competencia en comprensión lectora (selección de países)
Corea
556
Finlandia
547
Media OCDE
492
Catalunya
477 (483)
Portugal
472
España
461 (497)
Kyrgyzstan
285
Fuente: Informe Pisa2006. Ministerio de Educación y Ciencia.
La media esconde diferencias acusadas entre géneros. Así, las chicas obtienen una puntuación más alta que los chicos en comprensión lectora, mientras que éstos destacan en las áreas de matemáticas y científico-técnicas. Con los años, se mantienen las diferencias, lo que preocupa a los agentes educativos y gubernamentales. Junto a las informaciones preocupantes de los niveles de comprensión lectora 186
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de nuestros estudiantes de secundaria, debemos considerar otro fenómeno: el de los iletrados –illetrisme2 en francés-, que se constata en muchos países desarrollados. Nos referimos a aquellas personas que, habiendo estado escolarizados en el período obligatorio, no son capaces de usar la lengua escrita para resolver las cuestiones más necesarias para vivir en una sociedad basada en la comunicación escrita. No pueden comprender informaciones relacionadas con la sanidad, las instrucciones de manejo de un aparato, los prospectos de los medicamentos, el plano de la ciudad, etc. etc. Y menos aún, rellenar un impreso, dejar una nota, escribir una carta, usar Internet, etc. Por no hablar de la incapacidad de comprender informaciones más complejas como artículos de opinión o leer textos literarios. Se habla también de analfabetismo funcional, concepto acuñado por la Unesco y que aparece a partir de la década de los 70 para referirse a la misma realidad. Esta es un fenómeno relativamente moderno, cuando, instaurada la escolarización obligatoria, se empieza a observar que la escuela no consigue que todos los chicos alcancen el nivel de alfabetización deseado. La categoría de iletrados emerge como un fenómeno reciente, justo cuando se consigue extender la escolarización al conjunto de la población, y se sitúa entre la población letrada y los analfabetos absolutos, aquellos que nunca han tenido acceso a la escuela. ¿Qué ha cambiado? ¿La perspectiva de muchos chicos y chicas con relación a la lectura ? ¿O las exigencias sociales con respecto al nivel de alfabetización? Seguramente ambas cosas: las exigencias sociales con respecto a la lectura y la escritura, y, a la vez, la percepción de los jóvenes sobre la función y la utilidad de la educación en general. Como explica Ferreiro3, leer y escribir son construcciones sociales y por lo tanto cobran sentido en cada momento y lugar según exigencias sociales determinadas. No hay una única manera de concebir la lectura y la escritura. Han cambiado las funciones de la lengua escrita en la sociedad actual, así como los formatos en que ésta se manifiesta: no existe simplemente “el” libro, sino que existen multiplicidad de documentos y formatos diversos que pueden o deben leerse. Y la irrupción de la informática y de internet ha supuesto un cambio en el soporte y en el acceso a lo escrito. ¿Cómo responde la escuela a estos cambios? ¿De qué forma se ha adaptado a la nueva realidad? Parece, en algunos centros, que nada ha cambiado, que la situación sea la misma que hace décadas, y los maestros siguen preocupándose de cuestiones muy técnicas, formales y externas sin apercibirse de las necesidades sociales y de los intereses reales de la población joven. Frente a los datos del informe Pisa y a la constatación de que existe un porcentaje nada despreciable de iletrados y de analfabetos funcionales, todas las alarmas se 2 El término aparece por primera vez en Francia, en 1977, usado por la ATD Quart Monde (Aide à toute détresse), i divulgado gracias al informe Des illetrés en France, de Pierre Mauroy. 3 Ferreiro, E (2001:13) 187
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encienden y empieza la carrera para buscar “culpables”. La escuela como institución, los maestros y los métodos para enseñar a leer y escribir aparecen, rápidamente, como las causas más evidentes del fracaso. Como si situaciones y hechos complejos pudieran atribuirse a causas simples y fáciles de determinar. El proceso de alfabetización de la personas y de la sociedad en su conjunto es un proceso muy complejo influido por múltiples y diversos factores. El éxito o fracaso personal o colectivo no es atribuible a una única causa y, en consecuencia, cuando se detectan problemas de tipo general, hay que analizarlos en profundidad y buscar intervenciones desde ámbitos distintos. Por ello acostumbra a ser injusto y a la vez inútil –por ineficaz- atribuir las causas del fracaso en comprensión lectora exclusivamente a la escuela y, concretamente, a los maestros y al método que utilizan. Es una explicación fácil, que tranquiliza algunas conciencias, pero impide hacer un análisis general, amplio y seguramente más real, de la situación. En realidad, en el éxito o fracaso en el nivel de alfabetización intervienen factores de tipo social, escolar y pedagógico, y personales. Los tres están íntimamente relacionados. Así, los intereses del niño están condicionados por la actividad pedagógica de la escuela, pero también por su entorno social más inmediato, la familia, y además por las corrientes sociales que valoran, o no, la educación y la cultura. A su vez, la actividad pedagógica viene condicionada por la formación de los maestros, aspecto que tiene que ver con las decisiones políticas que se toman o se han tomado en períodos precedentes, la asignación presupuestaria, etc. La influencia de la familia como agente alfabetizador aparece en algunos datos del Informe PISA 20064 y en las conclusiones y las recomendaciones que acompañan a estos datos. Según el estudio, buena parte de la variación del rendimiento es debida a las características socioeconómicas y culturales del entorno familiar del alumnado. PISA indica que los resultados están condicionados por aspectos del entorno socioeconómico y cultural de las familias, como el prestigio ocupacional y el nivel educativo del padre y/o de la madre, el capital cultural de las familias y los recursos educativos de los que disponen. El informe explica también –y ello es muy importante- que el buen funcionamiento de los centros actúa positivamente en el rendimiento del alumnado. Los aspectos de tipo actitudinal se asocian también con el rendimiento. Pero las actitudes están condicionadas también por el entorno familiar y por la consideración social de la cultura; por la percepción que los aprendices tienen de los beneficios de saber leer y escribir. Con ello sólo quiero subrayar que las cuestiones relacionadas con los procesos de alfabetización, como todas las que están relacionadas con la educación en general, son complejas y habría que analizarlas en su complejidad, huyendo de simplificaciones fáciles. 4
Informe Pisa 2006. Ministerio de Educación y Ciencia. Instituto de evaluación 188
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2. La función de la escuela en el proceso de alfabetización de los niños y las niñas En lo concerniente al tema que nos ocupa, reflexionaremos sobre la relación que los programas de alfabetización inicial pudieran tener con las dificultades en comprensión lectora que muestran los estudios para un porcentaje nada desdeñable de la población española –aunque el fenómeno es mucho más extenso que solamente el estado español. Hemos hablado, unas líneas más arriba, de los factores sociales que influyen en el proceso de alfabetización de los niños y las niñas: un entorno cultural positivo influye seguramente en el interés de los sujetos hacia el aprendizaje en general y la lectura en particular. El consumo en familia de bienes culturales: libros, música, periódicos, explicación de cuentos; el interés de la familia hacia la educación y la institución escolar; todo ello son aspectos que fomentan y refuerzan el interés de los niños hacia el aprendizaje. Sin embargo, como maestros, educadores, profesores, podemos y debemos hacer algunas reflexiones sobre la enseñanza de la lengua escrita y nuestro trabajo en las aulas. Consideraremos algunas nociones relacionadas con el aprendizaje inicial de la lengua escrita. 2.1 El término alfabetización La palabra más frecuentemente usada para referirse al aprendizaje inicial de la lengua escrita es la de lectoescritura. Desde nuestro punto de vista, preferimos la utilización de alfabetización porque alienta la idea que, desde un principio, las actividades escolares tienen como objetivo inserir a los niños en la sociedad letrada, haciéndoles partícipes de las manifestaciones expresadas a través de la lengua escrita. La palabra lectoescritura, por el contrario, tiene connotaciones de técnica y nos aleja de los objetivos finales del aprendizaje de la lectura y la escritura. La palabra alfabetización incorpora en su significado no sólo las habilidades de leer y escribir sino también las posibilidades que saber leer y escribir aporta a las personas en las sociedades desarrolladas. Utilizar esta palabra en la escuela, y en la escuela infantil, tiene el valor de considerar que, desde los inicios, nos planteamos la enseñanza de la lengua escrita como un conocimiento esencial en el desarrollo de los niños y las niñas que va más allá del conocimiento de la técnica de la lectura y la escritura. Combate la idea limitativa que leer y escribir son aprendizajes que se realizan entre los 5 y los 7 años, aproximadamente y que, a partir de este momento los niños ya saben leer y en consecuencia podrán comprender los enunciados de los 189
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problemas, las causas de la Revolución francesa o por qué se producen los huracanes, simplemente leyendo los libros escolares. Y podrán hacer síntesis de libros, realizar un esquema o escribir un relato. Y también se supone que, ya fuera de la escuela, podrán usar la lengua escrita para desarrollar su vida profesional con plenitud. La experiencia permite afirmar que no existe una relación directa entre el conocimiento del código y la capacidad de comprensión de un texto, y que debemos enseñar a leer-comprender lo escrito y enseñar a producir textos diversos; este aprendizaje no tiene un punto final. 2.2. Enseñar a leer y escribir Ciertamente se han producido cambios en la escuela con relación al concepto de leer y escribir. Actualmente no es difícil encontrar maestras que afirmen que leer es comprender lo escrito y escribir, ser capaz de comunicar informaciones, pensamientos o ideas, etc. pero, en realidad, estas afirmaciones asumidas no se han traducido en cambios en la práctica educativa. Los inicios de la alfabetización suelen estar centrados en el conocimiento del sistema de escritura: las letras, las correspondencias fónicas, etc. En la escritura, el trazo, la direccionalidad, etc.; a lo sumo, se han introducido algunas prácticas de lectura o escritura funcional, basadas en el conocimiento del nombre propio, prácticas que a su vez se han convertido en actividades rutinarias y poco motivadoras, como si de ejercicios se tratara. Es decir, se continúa centrando la enseñanza de la lengua escrita en el dominio de los aspectos técnicos del sistema. La finalidad de la lectura: ser capaz de comprender un mensaje escrito es vista como un segundo paso, posterior y dependiente de este conocimiento “técnico”. Y de la misma manera, la posibilidad de escribir un texto con sentido no se contempla hasta que los niños son capaces de escribir con corrección. La habilidad gráfica y la corrección ortográfica son las finalidades que se contemplan. Difícilmente se asume que aprender –a leer y escribir- es un proceso que conlleva acercamientos graduales al objeto de aprendizaje, reelaboraciones, errores, avances y retrocesos, subprocesos necesarios en todo aprendizaje. Centraremos este apartado en dos aspectos que consideramos importantes con relación al aprendizaje de la lengua escrita desde la escuela infantil. a. El conocimiento del código y de los procesos de codificación y descodificación. ¿Qué función tiene este conocimiento en la comprensión de un texto? ¿Es imprescindible conocer el sistema de escritura como conocimiento previo a otras actividades de lectura y escritura? ¿Cómo hay que empezar a enseñar a leer y escribir a los niños: enseñando las unidades mínimas no significativas: letras o sonidos; o partiendo de unidades superiores significativas: las palabras o, incluso, las frases, como en la tradición de metodologías globales? ¿A partir de qué edad hay que enseñar las letras y las correspondencias con los sonidos? ¿De qué manera, con qué método hay que hacerlo? Etc. Habría aún más cuestiones pero dedicaremos un espacio a tratar 190
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sólo algunas. Tradicionalmente, en las escuelas, el método para enseñar a leer ha sido frecuentemente un método de base sintética, por llamarlo de alguna manera. Ello significa que se presenta, a los niños, las letras –o los fonemas, según la tradición- o las sílabas, de forma ordenada y jerárquica, y poco a poco se van buscando palabras en las que las letras o sílabas estudiadas aparezcan para, de esta manera, conseguir el conocimiento de estas unidades mínimas no significativas. Detrás de esta actuación subyacen algunas creencias, aunque no siempre se sustenten en datos. Podríamos caracterizar estas creencias en los puntos siguientes: • Como nuestro sistema de escritura es de base alfabética, hay que empezar enseñando la base del sistema: las letras y las correspondencias con los sonidos. • Las letras son unidades simples y por lo tanto son más fáciles de aprender que unidades complejas como las palabras o las frases. • Enseñamos en primer lugar las letras más sencillas –es decir, las vocalespara continuar con algunas consonantes hasta que llegamos a las más difíciles: las últimas del alfabeto. En realidad, no es que sean más fáciles, sino más frecuentes. • Aprender a leer es un proceso que va de lo más simple a lo más complejo: partimos de las letras, confeccionamos sílabas, palabras y finalmente llegamos a la frase y al texto. Para ello es imprescindible un método –método que se asocia al uso de un libro o de un material editorial. • Este razonamiento convence porque parece muy claro y además permite comprobar de manera fácil las adquisiciones de los niños; sus progresos. María ya es capaz de reconocer tantas letras, ya puede darles un sonido, aún no conoce la y, etc. Sin embargo está fundamentado en medias verdades y no tiene en consideración aspectos fundamentales del aprendizaje. Analicemos algunas debilidades de este planteamiento: • En primer lugar, no es cierto que las letras o los sonidos sean más fáciles de aprender que las palabras por el hecho de ser elementos simples. Lo simple no siempre es fácil. O a lo mejor sí es cierto que es fácil aprender a reconocer las letras en un papel, pero ello no puede hacernos pensar que este conocimiento se relacione directamente con la actividad de leer; podemos obtener una respuesta mecánica de los niños enfrentados a la tarea de marcar con un círculo todas las letras a de cuatro o cinco palabras propuestas, sin que ello suponga que los niños están elaborando algún conocimiento sobre la actividad de leer. • Desaprovechamos el contexto lingüístico, textual y situacional que son elementos que ayudan a la comprensión del mensaje, para centrarnos exclusivamente en el código. Se menosprecian la ilustración o foto, los formatos de documentos que los niños conocen por su experiencia cotidiana, el propio contenido del documento, etc. • Mostramos la actividad de leer como una actividad mecánica de la que no surge ninguna información ni tiene ninguna función social aparente: las palabras sólo sirven para ser leídas. Y, por extensión, transmitimos la idea de que aprender es algo 191
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poco significativo, un proceso mecánico, poco relacionado con las actividades del mundo real. Parecería, con esta explicación, que estamos negando la enseñanza del código y de las correspondencias grafema-fonema, y que defendemos las metodologías de tipo global o natural, simplemente. No se trata de eso; no se trata de elegir un método5, sino de comprender las actividades de leer y escribir, reflexionar sobre las funciones de la lectura y la escritura, mostrar los beneficios futuros, y pensar sobre las actividades que podemos planificar proponer en clase para conseguir estos objetivos. Cómo poder insertar los actos de lectura y de escritura en actividades de aula interesantes para los cuales sea necesario escribir y leer. Cómo conseguir que el imprescindible conocimiento del código se produzca durante actividades de aprendizaje significativo, El conocimiento del sistema de escritura es quizás el único requisito exclusivo de la capacidad de leer y escribir. Conocer los grafemas (letras o conjuntos de letras) y su correspondencia con los fonemas es un conocimiento completamente imprescindible para poder afirmar que una persona sabe leer y escribir. Pero, aunque imprescindible, no es suficiente; ni tiene que ser previo a cualquier acto de lectura y de escritura que los niños puedan presenciar o en los cuales puedan participar. Hay investigaciones que destacan que los niños que conocen bien las correspondencias grafofónicas son mejores lectores (Habría que precisar el significado de “mejores lectores”)6 o que cuando más precoz es el aprendizaje de las letras y sus valores fónicos, mejor. El conocimiento del código debe ser enseñado; es difícil pensar que un niño pueda aprenderlo por si solo, con actividades de tipo holístico, sin reflexión o sistematización posterior. Pero ello habla de qué pero no del cómo ni del cuándo. Sin embargo: • no debería desvincularse la enseñanza del código de otras enseñanzas relacionadas con la actividad de leer y escribir documentos reales con funciones concretas. • no es necesario presentar las letras de forma escalonada y jerárquica: las letras aparecen con relación a palabras que tienen algún significado y función. Por ejemplo, los nombres propios de los niños, etc. • no deberíamos hacerles leer frases o textos sin sentido. • es importante hacer actividades de práctica fonológica: poesía, trabalenguas, y todas aquellas que despierten la conciencia fonológica. • la actividad cotidiana del aula, la vida, la organización, los juegos, los proyectos de trabajo, son momentos en los que aparece la lengua escrita y que facilitan
5 Véanse las aportaciones de Lino Barrio & G. Dominguez (1997) acerca de los métodos. 6 Singularmente, en el ámbito francófono, Jean Émile Gombert, Jacques Fijalkow o Michel Fayol destacan la necesidad de este conocimiento. El informe elaborado por l’ONL (Observatoire Nationa pour la Lecture) es una muestra de ello. 192
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la reflexión sobre las letras y los sonidos. b. La concepción de los procesos de leer y escribir como actividades sociales y cognitivas El otro aspecto sobre el que nos detendremos es en relación con los conceptos de leer y escribir considerándolas actividades cognitivas que ponen en funcionamiento habilidades de distinto orden, con la finalidad de comprender la información escrita o para conseguir expresar el pensamiento. ¿Qué significado otorgamos a la palabra comprender? Elaborar significado a partir de las informaciones que recibimos a través de la vista -en el caso de la lectura, por ejemplo. Es una construcción de significado, propia, que cada sujeto hace a partir de las informaciones del texto o documento escrito, de sus conocimientos previos y de sus objetivos de lectura. No es la “extracción” de un significado que reside en el texto y está codificado en la escritura. En este proceso intervienen los conocimientos de las personas sobre aspectos relacionados con el lenguaje: el sistema de escritura, de los textos, etc., y en gran manera sobre el tema tratado en el escrito o el contexto en el que aparece. Ello explica por qué un lector competente puede no comprender un texto sobre física cuántica si no es conocedor del tema. Su competencia lectora no es suficiente para elaborar ningún significado. O, al contrario, explica por qué un niño o niña, lector incipiente, podrá comprender un cuento que ya conoce de antemano. Este conocimiento le permitirá suplir su todavía baja competencia lectora. En la comprensión de un texto escrito contribuyen, pués, conocimientos e informaciones de diversa índole, gestionados por actividades cognitivas que tienen por objetivo comprender. El siguiente cuadro puede ser un ejemplo de lo que decimos. De un modo parecido, escribir no es, simplemente, ser capaz de trazar correctamente las letras, de no cometer faltas de ortografía, de copiar correctamente un texto o de reproducir una frase al dictado. Escribir es tener algo qué decir, pensar en un receptor de la información, tener un motivo y un objetivo que nos impulse a ello, ser capaz de seleccionar y organizar las ideas o informaciones y, evidentemente, construir este escrito de la forma más correcta posible. En definitiva, lo que sugerimos con estas reflexiones es que, en educación infantil no deberíamos limitarnos a enseñar los aspectos más superficiales del lenguaje escrito. Desde un principio debemos mostrar los objetivos finales de la lectura y la escritura, y los educadores constituyen el andamiaje necesario e imprescindible en este camino; la intervención oral de los maestros –las sugerencias, las preguntas, las dudas, las valoraciones, las informaciones nuevas, las instrucciones, etc.- es el instrumento que permite mediar y complementar el nivel de conocimiento que los niños tienen en un momento concreto de su aprendizaje. 193
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¿Qué idea sobre la lectura se forma un niño frente una ficha –hoja en blanco- en la que aparecen escritas cuatro palabras que lo único que tienen en común es que empiezan por la letra p?
patata
pie
pala
pipa
¿Y si les hacemos marcar la letra p? ¿Qué interés tiene para ellos la lectura de la siguiente frase, desprovista de un contexto o situación? Pablo pinta la pared ¿Las palabras forman un texto? No. ¿Hay alguna información que comprender? No. ¿Hay algún soporte, ayuda gráfica o tipográfica, que permita activar conocimientos previos y establecer relaciones con ellos? No. En definitiva, nada para comprender, puesto que no es un texto, no tiene imágenes, ni el formato da idea del tipo de documento. ¿En qué deben basarse únicamente los niños?: en la descodificación de las letras para obtener una palabra.¿Qué idea se transmite al aprendiz? Se trata de poder decir en voz alta lo que está escrito aun cuando no signifique nada. Con estas prácticas, ¿de qué forma aprovechamos los conocimientos que los niños han construido con relación a las actividades de lectura –también de escritura, aunque en menor grado- en la experiencia de la vida diaria? ¿De qué forma favorecemos el impulso natural de los niños hacia el conocimiento, hacia sus ganas de saber? Los niños de nuestras escuelas, que viven en una sociedad urbana desarrollada, saben, aunque de forma inconsciente, que no van a encontrar un cuento en el libro de recetas de cocina que tenemos en casa, que la información en el autobús que llega se refiere al recorrido y no a otra cosa, que el periódico da noticias, que las recetas del médico explican los medicamentos que hay que tomar, etc. Saben qué quiere saber su padre o su madre cuando lee el periódico, o con qué finalidad lee una novela, o qué clase de información busca en la factura de la luz. Ellos han construido estos conocimientos con la experiencia de la vida cotidiana y estos deberían servir de apoyo para los inicios del proceso de aprendizaje de la lengua escrita. Ciertamente, existen grandes diferencias entre los niños en sus experiencias vitales, sin embargo no debiéramos considerar estas diferencias como algo insalvable, sino ver cómo es posible actuar de forma compensatoria, trabajando conjuntamente con la familia. No se debe nunca considerar una relación determinista entre el entorno social y los resultados académicos, porque, en este caso, la labor del docente carecería de sentido para un grupo más o menos numeroso de niños. Y sabemos que ello no es así.
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Consideraciones acerca de la enseñanza de la lengua (escrita) en la educación infantil
Podemos imaginar las objeciones que muchos maestros van a poner a nuestras palabras: • no todos los niños tienen un entorno rico en experiencias literarias, o simplemente lectoras. • esta forma de trabajar no es un método y sería difícil de programar la enseñanza de la lectura y la escritura de una forma tan poco planificada. • sería errático y no conseguiríamos evaluar los progresos de los niños. • la clase se convierte en un caos, los niños no siguen todos las mismas actividades, hablan demasiado, • etc. Nadie dirá que otra forma de trabajar en el aula vaya a ser fácil, pero hay numerosas experiencias7 que muestran la posibilidad y el éxito de plantear actuaciones distintas con relación a la lectura y la escritura, más atrevidas, que respondan de forma clara y contundente al reto de introducir a los lectores incipientes en el mundo letrado. 3. Algunas propuestas para la escuela infantil Finalmente, sugerimos algunas ideas para el aula de infantil, que respondan al planteamiento que se ha desarrollado a lo largo del texto. • Proponer el aprendizaje de la lengua escrita en el conjunto de actividades de aprendizaje y de desarrollo de la vida del aula: trabajar con el nombre propio, los días de la semana, los meses, los rótulos necesarios para clasificar el material, la lista de canciones / poemas que hemos aprendido, los pies de las fotos con las que hemos realizado un mural después de una excursión o colonias, la frase al pie del dibujo después de haber asistido a un concierto, etc. • Fomentar las situaciones funcionales de lectura y escritura de documentos reales necesarios para la vida del aula: pasar lista de los niños de la clase, leer/hojear/ explorar un libro de conocimientos sobre las jirafas, elaborar conjuntamente, de forma oral, la nota a los padres para informarles de que se realizará una salida de la escuela para visitar el mercado, leer una carta o postal que se ha recibido, leer/explicar/hablar de un cuento que una niña ha traído a la clase porque se lo han regalado, escribir los acuerdos que la clase toma, en asamblea, después que se ha discutido sobre un problema surgido, etc. • Considerar lo escrito desde una perspectiva lingüística general en la que no se separe la lectura de la escritura, y en la que la lengua oral sirva para pensar y elaborar lo escrito. • Introducir el aprendizaje del código y de los procesos de codificación y descodificación con relación a estas actividades, favoreciendo la reflexión sobre las letras y los sonidos, y sobre todos los elementos lingüísticos. • Considerar que la función de la maestra o el maestro es la de estimular las ganas de leer y escribir, favorecer la reflexión sobre el código con preguntas o planteando dudas, ayudar a solventar los problemas que los niños aún no pueden 7 Entre otras publicaciones, el libro de M. Fons (2003) constituye una aportación utilísima por su planteamiento innovador. 195
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solucionar por si mismos, animarles y darles una visión positiva mostrándoles los progresos realizados, facilitar la interacción entre todos: maestro-niño; niño-niño. • Organizar el aula para que ello sea posible: rincones diferenciados, mesas de cuatro o cinco niños para que puedan trabajar en colaboración, material en las paredes, sobre todo, el que es fruto de su actividad de aprendizaje, etc., libros diversos y toda clase de documentos escritos necesarios para el desarrollo de los proyectos del aula. • Considerar el aprendizaje de la lengua escrita como un proceso, y poder otorgar significado a los pasos que los niños siguen durante el proceso, en lugar de analizarlos simplemente como faltas. Estas líneas sólo pretenden ser una aportación más a la reflexión sobre una cuestión fundamental en el futuro de las personas y de los países: sólo un nivel de alfabetización excelente de la población va a garantizar el desarrollo de las sociedades y de la libertad individual, en la medida en que el conocimiento acrecienta el espíritu critico de las personas. Bibliografia Barrio, J. L. & G. Dominguez. G. (1997). Los primeros pasos hacia el lenguaje escrito: una mirada al aula. Madrid: La Muralla. Barrio, J. L. (1999). Les discussions sobre els mètodes. Perspectiva escolar, 239, 19. Besse, J.-M. (1995). L’écrit, l’école et l’illetrisme. Paris: Magnard. Bigas, M. & Correig, M. (2000). Didáctica de la lengua escrita en la educación infantil. Madrid: Síntesis. Ferreiro, E. (2001). Pasado y presente de los verbos leer y escribir. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. Fijalkow, J. & Fijalkow, E. (2003). La lecture. Paris: Le cavalier bleu. Fons, M. (2003). Leer y escribir para vivir: alfabetización inicial y uso real de la lengua escrita en el aula. Barcelona: Graó. Generalitat de Catalunya, Departament d’educació (2007). Estudi Pisa 2006. Avançament de resultats. Quaderns d’Avaluació, 9, Desembre. Gombert, J.-E. (2003). Compétences et procès mobilisés par l’apprentissage de la lecture. www.bienlire.education.fr. Ministerio de Educación y Ciencia (2007). Informe PISA 2006. Tolchinsky, L. (1990). Lo práctico, lo científico y lo literario: tres componentes en la noción de alfabetismo. CL&E, 6, 53-62 Tolchinsky, L. & Teberosky, A. (1992). Más allá de la alfabetización. Infancia y Aprendizaje, 58, 5-14
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Alunos Surdos: Aquisição da Língua Gestual e Ensino da Língua Portuguesa
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Maria Madalena Belo da Silveira Baptista Escola Superior de Educação de Coimbra Palavras chave
Surdez - Educação Bilingue – Língua Gestual Portuguesa
Resumo A comunicação apresentada visa realçar a importância da exposição precoce da criança surda Portuguesa à Língua Gestual Portuguesa (sua língua natural), e evidenciar metodologias específicas para o ensino da Língua Portuguesa na sua vertente oral e escrita. Para o efeito, começaremos por explicitar os princípios da educação bilingue no que respeita à criança surda e só depois passaremos a fazer referência à Língua Gestual Portuguesa (LGP) e ao ensino da Língua Portuguesa. No primeiro ponto desta comunicação, denominado de surdez e bilinguismo, explicitamos os pressupostos de uma educação bilingue. No ponto imediatamente a seguir, falamos do processo de aquisição da LGP em crianças surdas e tentamos desmistificar alguns mitos que ainda persistem em relação a esta língua de modalidade visuo-manual. Finalizamos, fazendo referência à aprendizagem da Língua Portuguesa por parte da criança surda e interligando os aspectos da oralidade com questões de leitura e escrita. Para o efeito, propomos cinco finalidades essenciais e enquadramos objectivos e actividades correspondentes a cada uma dessas finalidades.
Introdução A linguagem permite à criança aprender o que não é imediatamente evidente e desempenha um papel central no pensamento e no conhecimento. No caso da surdez a consequência imediata para a criança será o comprometimento a nível da aquisição espontânea da linguagem oral uma vez que não recebe, ou tem dificuldade em receber o feed back auditivo.
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Durante cerca de um século, desde o célebre congresso de Milão em 1880 até à década de 1980, que as metodologias de intervenção linguística oralistas1 se sobrepuseram aos métodos gestuais. Esta opção educativa fez com que as crianças surdas fossem consideradas deficientes devido à sua incapacidade para ouvir e à necessidade de educação especial e serviços sociais para minimizarem e corrigir essas deficiências. De facto, embora a surdez não prive os surdos2 da faculdade da linguagem, pode criar situações atípicas no processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem oral, utilizada pelos cidadãos ouvintes que constituem a maioria na nossa sociedade. No entanto, hoje em dia argumenta-se que as suas dificuldades linguísticas são consideradas como tendo origem em questões culturais e educacionais em vez de ser algo patológico, uma vez que toda a criança surda tem a capacidade humana e o potencial para assimilar e desenvolver as complexas regras da linguagem e da comunicação. Para que isto aconteça, basta que a informação linguística usada seja visuo-manual, isto é, basta que os surdos tenham acesso à sua própria língua natural – a língua gestual. Posteriormente, será a língua gestual a providenciar à criança surda uma base para a aprendizagem de uma segunda língua (L2), que será a língua oficial do país onde vive. 1. Surdez e Bilinguismo O termo bilingue significa que, na educação da criança surda, se vão utilizar duas línguas diferentes. Por um lado, a língua gestual, com as suas características próprias, sendo o sistema comunicativo preferencial atendendo aos valores da comunidade surda e à sua própria cultura; por outro, a língua oral da comunidade ouvinte onde a criança vive com vista à sua integração social, acesso à língua escrita e, se possível, falada. O bilinguismo tem como ideia básica que o surdo deve ter como língua materna a língua gestual, considerada a língua natural dos surdos, e, como segunda língua, a língua oficial do seu país. A língua gestual providenciará ao surdo uma base para a aprendizagem de uma segunda língua que pode ser escrita ou oral. Os defensores do bilinguismo apoiam-se sobretudo em dois argumentos: (i) as crianças surdas, postas num ambiente de língua gestual, aprendem esta língua de forma espontânea, natural e similar ao modo como as crianças ouvintes aprendem a sua língua materna oral; e (ii) os gestos da língua gestual constituem um código linguístico específico tão útil, rico e complexo como qualquer língua oral. Para que o ambicionado bilinguismo possa ser implementado, a criança surda deverá ser posta em contacto com a língua gestual através de interlocutores surdos, ou 1 Estas metodologias defendiam a utilização da leitura labial e da expressão oral e dos resíduos auditivos. Consideravam que a integração social do surdo e o acesso à cultura dependiam do domínio da linguagem oral e que qualquer outro sistema ou método iria prejudicar a sua aprendizagem. 2 Quando utilizamos a terminologia surdez ou surdo, estamos a referir-nos às situações de surdez severa e profunda em que as trocas verbais com as crianças não podem ser mediadas pela informação áudio-linguística. 198
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ouvintes que sejam proficientes nessa modalidade linguística. A língua oral ou escrita será trabalhada segundo os princípios da aprendizagem de uma segunda língua. Assim, as línguas gestuais são o objectivo e o meio facilitador da aprendizagem em geral. As línguas gestuais são ainda línguas naturais e de modalidade visuo-gestual e, como tal, apresentam especificidades próprias. Além da função comunicativa, as línguas naturais têm outra importante função: o suporte linguístico para a estruturação do pensamento. O princípio fundamental do bilinguismo é oferecer à criança um ambiente linguístico em que os interlocutores comuniquem com ela de uma forma natural, tal como é feito com a criança ouvinte através da língua oral. Assim, a criança não terá apenas assegurada a aquisição e o desenvolvimento da linguagem como, também, a integração de um auto-conceito positivo. O surdo não necessita de ter uma vida semelhante à do ouvinte, podendo aceitar e assumir a sua surdez. Isto não significa que a aprendizagem da língua oral não seja importante para o surdo. Pelo contrário, esta aprendizagem é desejada, mas não é o único objectivo educacional do surdo nem a única possibilidade de reduzir as diferenças causadas pela surdez. O bilinguismo dá à criança surda a oportunidade de se assumir à “semelhança de” e não à “impossibilidade de ser” 2. Aquisição da Língua Gestual Portuguesa Reconhecendo e aceitando que a LGP é a língua natural da criança surda Portuguesa e que é uma língua tão rica e complexa como qualquer outra língua oral, o contexto deve providenciar à criança surda a oportunidade da mesma estar exposta o mais precocemente possível à LG. No entanto, a maioria das crianças surdas, cerca de 90% a 95%, é filha de pais ouvintes sem qualquer conhecimento da LG, pelo que a criança deverá ser posta em contacto com a LG através de interlocutores surdos ou ouvintes que sejam proficientes nesta língua e, sempre que aconselhável3, inserida em contextos escolares onde existam formadores, professores e intérpretes de LGP. Dada a importância que as LG’s assumem no processo de aquisição da linguagem por parte da criança surda, interessa desmistificar algumas falsas crenças relativamente às mesmas: 1. As LG’s não são uma mistura de pantomina e gesticulação, incapazes de expressar conceitos abstractos. As LG’s são línguas de modalidade visuo-espacial que, sob o ponto de vista linguístico, são completas, complexas e possuem uma estruturação abstracta nos diversos níveis de análise. Apresentam uma riqueza de expressividade diferente das línguas orais, incorporando tais elementos na estrutura 3 Hoje em dia debate-se muito se a criança surda com implante coclear deverá estar incluída nesta filosofia da educação bilingue ou não. Trata-se de um assunto que tem causado uma grande polémica e que de momento ultrapassa o âmbito desta comunicação. 199
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dos gestos através de relações espaciais, estabelecidas pelo movimento ou outros recursos linguísticos 2. A estrutura das línguas gestuais não é modelada na sintaxe e morfologia das línguas orais, possuiu uma gramática própria, rica e complexa. As línguas gestuais são independentes das línguas faladas; 3. A ideia de que as LG’s são uma representação icónica dos seus referentes é errada. Os aspectos icónicos ou pictográficos de gestos individuais não são o aspecto mais significativo da sua estrutura e do seu uso. A maior parte dos gestos são arbitrários, ou seja, não representam associações ou semelhanças visuais com o referente. Forças linguísticas e sóciolinguísticas tendem a inibir a natureza icónica dos gestos, tornando-os mais arbitrários com o passar do tempo. Além disso, processos gramaticais regulares tendem a suprir relações icónicas. 4. As LG’s não são universais. Cada país possui a sua própria LG. Uma língua gestual estrangeira não é transparente para um surdo que use outra LG. As mesmas razões que explicam a diversidade das línguas faladas aplicam-se à diversidade das línguas de sinais. Cada país apresenta a sua respectiva LG. Factores geográficos e culturais são influentes e determinantes na mudança histórica do gesto; 5. As LG’s não são realizadas através da soletração. Existe um gesto para cada conceito. O alfabeto gestual é um sistema manual distinto da LG que consiste na soletração com a mão no ar, e em distintas configurações, do abcedário. Tem por finalidade fazer a ponte com a língua oral em situações específicas, como, por exemplo, a gestualização de palavras para as quais ainda não existe um gesto específico. Cada país possui o seu próprio alfabeto. Estando esclarecido o estatuto linguístico das diferentes línguas gestuais, e muito concretamente no caso português, o estatuto da LGP, reconhecido desde 1997 na constituição portuguesa, importa agora voltar a referir que as crianças surdas, postas num ambiente onde o input em língua gestual é fornecido em quantidade suficiente e com a qualidade esperada, adquirem esta língua de forma espontânea, natural e similar ao modo como as crianças ouvintes adquirem a sua língua materna oral. Assim, sendo dada a oportunidade às crianças de gestualizarem e verem os gestos em movimento, isto é, falarem e “ouvirem” falar em LG elas irão adquirir e desenvolver a linguagem, obedecendo aos mesmos parâmetros linguísticos de evolução de qualquer criança que adquire uma língua oral. 3 - O Ensino do Português como Segunda Língua A língua oral ou escrita será trabalhada segundo os princípios da aprendizagem de uma segunda língua. Assim, a LG é o objectivo e o meio facilitador da aprendizagem em geral, providenciando ao surdo uma base para a aprendizagem de uma segunda língua. Os resultados de alguns estudos, incidindo maioritariamente em crianças surdas filhas de pais surdos e inseridas em experiências educativas bilingues (língua de 200
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sinais e língua oral falada maioritariamente pela comunidade ouvinte), evidenciam que a utilização precoce da língua gestual serve, em muitos casos, para que estas crianças adquiram todo um conjunto de habilidades linguísticas e metalinguísticas que proporcionam um melhor acesso à linguagem escrita, favorecendo, por outro lado, a aprendizagem da língua oral da comunidade ouvinte a que pertencem. Para além disso, a LG facilita experiências prévias com livros, histórias e contos, partilhados através da interacção que se estabelece entre a criança surda e os adultos utilizadores de uma LG. Através da LG, a criança pode dispor de uma quantidade e variedade de experiências, possuir um conhecimento dos diferentes tipos de texto, descobrir a potencialidade da linguagem e o seu poder para criar mundos possíveis ou imaginários. Desta forma, mesmo sem saber ainda ler, percebe a funcionalidade da leitura e da linguagem escrita. Como tal, a LG pode ser muito útil nas actividades de motivação e aprendizagem significativa da leitura, proporcionando ainda um suporte semântico e conceptual. Por sua vez, a linguagem escrita é um elemento essencial no desenvolvimento linguístico oral do surdo havendo deste modo uma influência recíproca a este nível. As crianças aprendem novas estruturas e funções da língua escrita que transpõem para a fala. Daí a interacção que existe entre ambos os processos, apesar dos aspectos específicos que caracterizam cada um deles. Mas, operacionalizar filosofias educativas no que respeita ao ensino das crianças e dos jovens surdos é uma tarefa complexa, não deixando por esse motivo de ser um desafio interessante, sendo um campo com muitas frentes de exploração ainda em aberto. O primeiro passo para tornar crianças surdas em crianças leitoras é ter a certeza que dominam uma língua. No entanto, para que se tornem crianças leitoras, as crianças necessitam de fazer a ligação entre a língua que conhecem e as letras impressas. As crianças necessitam de ser ensinadas a ler. A leitura não acontece naturalmente, necessita de ser ensinada. Para que tal aconteça torna-se necessária perspectivar algumas estratégias e actividades que os educadores e professores poderão e deverão desenvolver nos primeiros anos de escolaridade da criança Apresentam-se cinco finalidades que são essenciais quando se pretende atingir níveis de literacia desejáveis nos primeiros anos de escolaridade, seguidas dos respectivos objectivos e actividades/estratégias a serem implementadas em contexto educativo Finalidade 1: Descoberta da natureza da língua escrita Objectivo: desenvolver actividades que levem a criança surda a perceber que a escrita contém informação que se destina a ser lida, que essa informação é imutável e que aparece em diferentes suportes (no papel, na 201
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televisão, nas paredes...) ACTIVIDADES/ESTRATÉGIAS • Ler histórias, traduzindo a leitura para a LGP ; • Antecipar a leitura através do diálogo, também em LGP. • Após a leitura, promover a discussão, uma vez mais em LGP. • Fazer o registo escrito de situações vivenciadas. • Utilizar calendários ou tabelas de simples ou dupla entrada sobre o tempo, a organização das actividades, tabelas onde as crianças tenham que identificar o seu nome e o dos colegas... • Rotular e etiquetar os objectos circundantes. • Explorar a estrutura do livro (capa, título, nome do autor, onde se começa a ler...).
Finalidade 2: Descoberta da existência de palavras Objectivo: Acesso à noção de correspondência de significado, à identificação de fronteira de palavra e, simultaneamente, à constatação de que cadeias gráficas iguais possuem o mesmo significado e a mesma representação (gestual e gráfica) ACTIVIDADES/ESTRATÉGIAS • Identificação em LGP de unidades significativas (principalmente nomes) • Utilização de lotos de imagens e palavras (desenhos de imagens, gestos e palavras). • Construção de um “lexicário” de imagens onde apareça o sinal representado, a imagem e a palavra escrita Nota: A ligação entre a palavra escrita e o respectivo significado, não podendo passar pela representação fonológica, poderá ser efectuada pela via motora (gestual) se o item em causa já fizer parte do léxico da criança. A apresentação simultânea da cadeia gráfica (escrita), da gravura e do gesto favorece a associação ao significado e pode servir posteriormente como auxiliar de memória.
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Finalidade 3: Descoberta da existência de letras Objectivos: Levar a criança a perceber que as letras são representações gráficas de entidades motoras. Ensinar de forma sistematizada a decifrar, isto é, a transformar sequências de letras em significados ACTIVIDADES/ESTRATÉGIAS • Utilizar o alfabeto manual associando-o à letra correspondente de forma natural e contextualizada • Fazer exercícios de discriminação visual das características gráficas das letras (semelhanças e diferenças) • Fazer exercícios de consciencialização dos movimentos articulatórios que estão na base de determinado som (leitura labial)1 • Fazer exercícios de decifração visual, isto é, transformar sequências de letras em significados. Nota: O domínio do alfabeto manual e a acesso rápido à correspondência gesto/letra tem para a criança surda a mesma importância que a automatização da correspondência letra/som tem para a criança ouvinte. Enquanto o processo de decifração não estiver automatizado, a compreensão textual estará fortemente comprometida, pois é a rapidez de acesso ao significado da palavra escrita que permite o processamento da frase em que a palavra se insere.
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Finalidade 4: Compreensão de estruturas gramaticais simples e complexas dentro de um texto Objectivo: Tomar consciência que a realidade pode ser representada através do código escrito, nomeadamente, através de estruturas frásicas simples e complexas. ACTIVIDADES/ESTRATÉGIAS • Introduzir frases simples afirmativas e negativas (sujeito-verbo e atributo). • Introduzir as regras de concordância género/número. • Explicitar regras gramaticais simples. • Introduzir estruturas gramaticais mais complexas (sujeito-verbo-atributo e complementos (não necessariamente nesta ordem). • Introduzir o significado de pronomes interrogativos mais frequentes: Quem, como, onde, o quê, quando, quantos, porquê?... • Introduzir textos que contenham as estruturas anteriormente trabalhadas. Nota: Devem ser utilizadas metodologias do ensino do Português onde se tenha em atenção: a contextualização das situações e da informação 1 - a utilização de frases que respeitem as qualidades exigíveis na construção de uma frase correcta: unidade, clareza e concisão 2 - a importância do desenvolvimento vocabular numa aprendizagem harmoniosa cuja sequência vá do concreto ao abstracto 3 - a importância dos materiais de apoio, em particular textos correctamente construídos, que respeitem na íntegra os factores da textualidade, nomeadamente a adequação a cada nível etário, tendo em vista a aceitabilidade que decorre da quantidade, qualidade, pertinência e modo 4 - a importância de se utilizar com rigor, em contexto escolar, o texto explicativo, objectivo, em que os diversos componentes e as suas ligações lógicas estejam claramente explicitados. Os processos didácticos a utilizar deverão ser semelhantes aos de ensino de uma língua segunda (L2) para os alunos ouvintes. A LG e a língua escrita devem ser trabalhadas de modo a pôr em evidência as semelhanças e as diferenças estruturais de ambas.
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Finalidade 5: Compreensão de textos Objectivo: Activar os conhecimentos que os alunos surdos possuem através do uso da LGP na compreensão dos registos escritos ACTIVIDADES/ESTRATÈGIAS Textos informativos: • Explorar o título e a gravura do texto • Trabalhar as palavras desconhecidas • Identificar e organizar as ideias principais • Resumir o texto • Associar diferentes palavras à palavra chave • Seleccionar e reorganizar as palavras associadas a cada uma das palavras chave, levando a criança a justificar as suas opções em LS. Textos narrativos: • Elaborar esquemas da história • Recontar o texto em LGP • Ilustrar a história • Traduzir a história recontada para a língua escrita novamente. Nota: A compreensão de um texto escrito é dificultada quando não existem conhecimentos que possam ser relacionados com os novos dados fornecidos pelo texto. As dificuldades que os alunos surdos apresentam ao nível da compreensão de textos devem-se ao facto da língua escrita funcionar como uma segunda língua para eles
Se o professor tiver presente estas cinco finalidades, objectivos e actividades e souber trabalhar em equipa com formadores, professores de LGP e intérpretes estará a contribuir para que a criança surda atinja níveis de oralidade e literacia que lhe permitirão ter acesso à educação, à igualdade de oportunidade, contribuindo para que a criança surda alcance níveis de escolaridade e de literacia cada vez mais elevados.
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Reflexões finais Ao longo da comunicação pretendemos expor a filosofia da educação bilingue da criança surda e como a mesma poderá e deverá ser implementada. Esta filosofia só será viável em contextos onde haja pessoas que utilizem a LGP, contextos escolares onde existam educadores e professores especializados, professores de LGP e Intérpretes de LGP. A LGP é uma área relativamente recente, tornando-se necessário que se realizem estudos psicolinguísticos e linguísticos cada vez mais diversificado e aprofundados para que deste modo se possa contribuir para uma didáctica do ensino da LGP com bases sólidas. Embora advogando a filosofia de educação bilingue, reconhecemos que a sociedade é maioritariamente ouvinte e desconhecedora da LGP, que nem sempre é possível comunicar em todos os contextos utilizando apenas a escrita e que existem situações onde o professor de LGP e o intérprete de LGP não estão presentes, pelo que estratégias como a leitura labial4 e o treino auditivo devem continuar a fazer parte dos planos de estimulação linguística da criança surda. É extremamente importante que o adulto tenha presente a necessidade de falar com a criança ao mesmo nível, de forma a facilitar todo o processo de leitura labial. A leitura labial exige um esforço muito grande, tanto ao nível de atenção e concentração, como de actividade mental para reconstruir as mensagens. Não é possível pedir a um aluno surdo que siga indicações expositivas durante muito tempo, sem outros apoios visuais para além da cara do educador/professor. A fim de facilitar o processo de leitura labial, o professor deverá ter a preocupação de explicar o significado de novas palavras, escrevendo a palavra e tendo o cuidado de estar virado para a criança quando está a ler ou a falar sobre o que escreveu no quadro. Deverá recorrer a estratégias visuais (posters, textos, esquemas, desenhos), preocupar-se com as condições de visibilidade e colocar a criança perto de si. O professor deve ter sempre presente a ideia que se a criança não estiver a olhar para quem fala não irá ter acesso à informação uma vez que a sua forma de apreensão da língua oral se processa essencialmente através do canal visual. O treino auditivo pode ajudar a criança a discriminar e percepcionar alguns sons do meio ambiente que podem servir de alerta e constituir uma maior segurança para a criança que, apesar de surda, possui alguns resíduos auditivos.
4 Actividade que está integrada na filosofia de educação bilingue mas que nem sempre é muito valorizada. 206
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Bibliografia Baptista, M. (1999). Alguns aspectos lexicais e morfo-sintácticos da língua gestual portuguesa. Tese de mestrado em psicolinguística, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa. Baptista, M. (2005). Desenvolvimento da linguagem oral em crianças surdas prélinguísticas com implantes cocleares. Tese de doutoramento em ciências da educação, Universidade Católica de Lisboa, Lisboa. Lourenço, L. (2005). A aprendizagem da compreensão de leitura. In I. Sim-Sim (Org.), .A criança surda: contributos para a sua educação, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. Sim-Sim, I. (2005). O ensino do português escrito aos alunos surdos na escolaridade básica. In I. Sim-Sim (Org.), A criança surda: contributos para a sua educação, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. Sim-Sim, I. (2005). A aprendizagem da linguagem escrita pela criança surda. In I. Sim-Sim (Org.), A criança surda: contributos para a sua educação, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
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O manual escolar de Língua Portuguesa e o seu papel na promoção da leitura e da literacia
Maria da Esperança de Oliveira Martins Cristina Manuela Branco Fernandes de Sá Universidade de Aveiro CIDTFF – Centro de Investigação Didáctica e Tecnologia na Formação de Formadores LEIP – Laboratório de Investigação em Educação em Português Palavras-chave
Compreensão na leitura, Literacia, Manuais Escolares de Língua Portuguesa.
Resumo Numa Sociedade do Conhecimento como a nossa, espera-se que haja uma aposta inequívoca no desenvolvimento das competências de comunicação verbal, para assegurar um melhor processamento da informação. Os graves problemas que afectam a realidade educativa portuguesa têm sido sucessivamente diagnosticados através de avaliações do desempenho em literacia, nacionais e internacionais, que situam Portugal na cauda dos países da OCDE. No que se refere especificamente à compreensão na leitura, reconhecemos que é importante trabalhar a capacidade de extrair informação relevante dos textos escritos, para que esta se converta num poderoso instrumento de obtenção e tratamento de informação, de aprendizagem transversal e de inserção social e não se reduza a uma mera aprendizagem escolar. Assim, urge abordar a compreensão na leitura reforçando a sua importância transdisciplinar e extra-escolar. Por serem um dos recursos educativos mais utilizados nas escolas, pretendemos trazer os manuais escolares de Língua Portuguesa para o cerne da discussão, esperando contribuir para a elaboração de manuais mais adequados à aquisição e desenvolvimento de competências de compreensão na leitura. Para melhor compreender a forma como estes manuais promovem a leitura, concebem o processo de compreensão a ela associado e permitem a aquisição e desenvolvimento de competências transversais de compreensão na leitura, decidimos proceder à sua análise, tendo em vista objectivos como: i) determinar em que medida 209
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o manual de Língua Portuguesa define um perfil de leitor que tem em conta as actuais necessidades em termos de sucesso escolar e de integração social e ii) questionar a forma como aborda a compreensão na leitura orientado para o desenvolvimento de competências transversais neste domínio. São ainda muitas as fragilidades dos manuais, no que respeita à promoção da leitura e ao desenvolvimento da compreensão leitora. Através desta comunicação, pretendemos apresentar alguns dos resultados do estudo piloto de um projecto que estamos a desenvolver. Introdução O presente trabalho tem como objectivo reflectir sobre a importância de adquirir e desenvolver competências transversais, particularmente no que à compreensão na leitura diz respeito, para uma adequada integração na sociedade actual e para se poder usufruir dos vários recursos que esta põe à nossa disposição. Face à participação de Portugal em vários estudos internacionais e nacionais sobre literacia, particularmente literacia em leitura, e à má imagem da população portuguesa revelada pelos mesmos, nota-se um compromisso crescente com a necessidade de melhorar os níveis de literacia nacionais. Neste contexto, consideramos que pode haver uma relação positiva entre o desenvolvimento de competências associadas à compreensão na leitura e os manuais da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa. Sendo assim, é nosso objectivo repensar o contributo que estes manuais poderão dar para a aquisição e desenvolvimento das competências acima referidas. Deste modo, enveredamos por um trabalho de reflexão em profundidade, que visa determinar se o manual de Língua Portuguesa define um perfil de leitor adequado às actuais necessidades em termos de sucesso escolar e de integração social e questionar a forma como este concebe a compreensão na leitura e o processo de ensino/ aprendizagem a ela associado. A fim de cumprir os objectivos traçados para este projecto e melhor evidenciar os problemas de (i)literacia da população portuguesa, concentraremos agora a nossa atenção na participação de Portugal em vários estudos sobre literacia em leitura, internacionais e nacionais.
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O manual escolar de Língua Portuguesa e o seu papel na promoção da leitura e da literacia
1. Os estudos sobre literacia em leitura: breve enquadramento Entendemos literacia como a capacidade para compreender e utilizar informação escrita presente em materiais impressos vários (textos, documentos, gráficos) na vida quotidiana (social, profissional e pessoal), com vista a atingir objectivos pessoais e alargar conhecimentos e capacidades (OECD, 2001). 1.1. Visão internacional Tomando como ponto de partida três estudos internacionais sobre literacia em leitura em que Portugal participou – IEA (em 1991), IALS (em 1998) e PISA (em 2000) –, procuraremos traçar o perfil dos nossos leitores e alertaremos para a necessidade de introduzir alterações no modo como o processo de ensino/aprendizagem da leitura é abordado nas escolas portuguesas nos diferentes ciclos do Ensino Básico. O estudo Reading literacy, organizado pela Internacional Association for the Evaluation of Educational Achievement (IEA), em 1991, foi o primeiro estudo sobre literacia em contexto de leitura no qual Portugal participou. Abrangeu 32 países e contemplou alunos que frequentavam o 4º e o 9º Anos de escolaridade. Em comparação com os colegas dos restantes países, o desempenho médio dos alunos portugueses do 4º Ano de escolaridade foi bastante fraco, tendo Portugal ficado na vigésima terceira posição entre os 27 países cujos dados foram analisados (Elly, 1992). Verificando o desempenho de acordo com o tipo de textos de suporte, notamos que, embora as diferenças não sejam abissais, os nossos alunos obtiveram melhores pontuações nos itens referentes a textos narrativos e expositivos e piores nos itens referentes a documentos. Relativamente aos alunos de 9º Ano, entre os 32 países que participaram no estudo, Portugal ocupou o 14º lugar, com uma média de desempenho ligeiramente superior à média obtida para todos os países participantes e idêntica para os três tipos de texto utilizados no estudo. É importante referir que, segundo Inês Sim-Sim e Glória Ramalho (1993), é a baixa percentagem de jovens que frequentavam o 9º Ano de escolaridade, em 1991 (53% contra os 100% que frequentavam o 1º Ciclo do Ensino Básico), que ajuda a explicar a diferença de posição destes alunos comparativamente à dos seus colegas mais novos. Pressupõe-se que o facto de haver menos alunos a frequentar o 3º Ciclo do Ensino Básico se deve a uma maior selecção dos mesmos. Posteriormente, Portugal participou no Estudo IALS (1999), organizado pela OCDE em cooperação com o Ministério da Indústria do Canadá. Este estudo avaliou 211
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os níveis de literacia dos indivíduos entre os 16 os 65 anos, de 20 países, e incidiu sobre três domínios: literacia em prosa (que compreende a informação normal de um jornal, por exemplo), literacia documental (que compreende documentos tais como cheques ou mapas) e literacia quantitativa (que compreende a leitura de montantes, percentagens, entre outros) Neste estudo, à semelhança do anterior, a literacia foi encarada como a capacidade de leitura e escrita que os adultos utilizam na sua vida quotidiana, no trabalho e na colectividade para atingirem os seus objectivos e desenvolverem os seus conhecimentos e potencial. Como se pode verificar pelo quadro abaixo apresentado, os resultados relativos à população portuguesa situaram-se nos níveis mais baixos em todos os domínios. Literacia Prosa Documental Quantitativa
Nível 1
48.0% 49.1% 41.6%
Nível 2
Nível 3
18.5% 16.6% 23.0%
29.0% 31.0% 30.2%
Níveis 4 e 5 4.4% 3.2% 5.2%
Quadro 1: Percentagens da população entre os 16 e os 65 anos, nos vários níveis e tipos de literacia (Fonte OECD and Ministry of Industry of Canada, 2000)
Analisando o desempenho nacional no contexto dos 20 países, constatámos que a posição ocupada por Portugal corresponde ao 19º lugar, nos três domínios (OECD e MIC, 2000). Mais tarde, no âmbito do PISA (Programme for the International Student Assessment), foi realizado um outro estudo, também da responsabilidade da OCDE, cujo primeiro ciclo, consagrado à literacia em leitura, decorreu em 2000 e abarcou estudantes de 15 anos de 32 países industrializados, entre os quais se contava Portugal. Dos estudantes portugueses que participaram no estudo, 25% ficaram no primeiro nível de literacia ou não o atingiram sequer, sendo apenas capazes de realizar tarefas de leitura menos complexas, tais como a localização de uma única peça de informação, a identificação do tema principal de um texto ou a simples relação com o conhecimento do quotidiano. A média de alunos nesta situação no espaço da OCDE era de 18%. A partir da análise do desempenho dos alunos portugueses em relação aos seus colegas dos restantes países, tendo presentes as médias obtidas na escala global de literacia em contexto de leitura, constatámos que a média portuguesa se situa abaixo da média da OCDE e muito aquém dos países que obtiveram melhores classificações médias. Ocupámos o 26º lugar no conjunto dos 31 países cujos dados foram divulgados. Outra conclusão deste estudo diz respeito ao tipo de textos de suporte. Verificaram212
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se melhores resultados na compreensão dos textos narrativos e piores na compreensão dos documentos. 1.2. Visão nacional A par dos estudos internacionais sobre literacia em leitura, realizou-se, a nível nacional, um estudo centrado nesta temática: o Estudo Nacional de Literacia. Foi levado a cabo por uma equipa coordenada por Ana Benavente, da qual faziam também parte Alexandre Rosa, António Firmino da Costa e Patrícia Ávila, e visou uma população constituída por indivíduos de idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos. Deu origem ao livro A Literacia em Portugal. Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica (Benavente et al., 1996). Metodologicamente e à semelhança dos estudos internacionais nesta área, procedeuse à avaliação directa das competências de leitura, através da construção de uma prova nacional constituída por um conjunto de tarefas remetendo para os domínios pessoal, social e profissional. Assim, o Estudo Nacional de Literacia desenvolveu de raiz um teste de literacia. Este teste foi construído tendo em conta não só a especificidade do contexto sociocultural da realidade portuguesa, mas, sobretudo, a necessidade de avaliar competências de literacia transversais às sociedades contemporâneas. Tendo presente o desempenho dos 2449 indivíduos que participaram neste estudo, a maior parte situou-se em níveis de literacia baixos ou muito baixos, sendo bastante reduzidas as percentagens correspondentes aos níveis superiores. No Nível 0, situamse 10,3% dos inquiridos, cujo posicionamento revela a incapacidade de resolver correctamente qualquer das tarefas. Os Níveis 1 e 2 englobam as maiores percentagens (37,0% e 32,1%, respectivamente). Finalmente, no Nível 3, encontra-se 12,7% da população e, no Nível 4, surge apenas 7,9%. Posteriormente, a partir das provas de aferição de Língua Portuguesa, para o 4º Ano de escolaridade (a partir de 2000), o 6º Ano (a partir de 2001) e o 9º Ano (a partir de 2002), foram recolhidos e analisados dados que também permitiram chegar a algumas conclusões sobre o nível de literacia em leitura da população portuguesa a frequentar o Ensino Básico. A Prova de Aferição de Língua Portuguesa para o 1º Ciclo, em 2000, contemplou, ao nível da compreensão na leitura, as seguintes componentes: compreensão da ideia principal de um texto, identificação da informação necessária à resposta que se encontra no texto, exactamente com as mesmas palavras, identificação da informação explícita no texto e resposta por palavras diferentes, também expressas no texto, e construção de inferências. A análise de dados feita permite concluir que o desempenho ao nível da identificação 213
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da informação necessária à resposta que se encontrava no texto, exactamente com as mesmas palavras, foi excelente. Em contrapartida, os alunos avaliados manifestaram muitas dificuldades nas restantes componentes referidas e, em particular, na construção de inferências. (Ministério da Educação, 2000) Relativamente à Prova de Aferição de Língua Portuguesa do 1º Ciclo, em 2001, e às Provas de Aferição de Língua Portuguesa do 2º Ciclo e 3º Ciclo, segundo os relatórios elaborados pelo Departamento da Educação Básica, o desempenho dos alunos foi bom, uma vez que a maioria obteve níveis máximos nas competências em estudo. No entanto, continuaram a revelar muitas dificuldades na construção de inferências. Estes resultados exigem uma reflexão profunda por parte dos responsáveis educativos e dos investigadores da área. Num contexto de renovada preocupação educativa, no que diz respeito à compreensão na leitura e aos níveis de literacia, torna-se fundamental conceber, implementar e avaliar experiências de aprendizagem que: • promovam o enriquecimento da competência comunicativa dos alunos, em termos semânticos, lexicais, morfológicos, sintácticos e pragmáticos (Costa, 1998); • desenvolvam estratégias promotoras da activação e aprofundamento dos conhecimentos prévios dos alunos (Carreira, 2001; Carreira e Sá, 2004); • contribuam para a aquisição/desenvolvimento de estratégias que permitam explorar a compreensão dos textos escritos a diferentes níveis [microestrutura, macroestrutura e superestrutura] (Giasson, 1993, 2004; Sá, 2004; Sim-Sim, 2006; Sim-Sim, 2007); • favoreçam o envolvimento dos alunos em situações de leitura diversificadas, que tornem possível a realização de diferentes tipos de leitura, quer numa vertente informativa, quer numa vertente lúdica (Balula, 2007; Bentolila et al., 1991; Sobrino, 2000); • fomentem a abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa, envolvendo a área curricular disciplinar do mesmo nome e, tanto quanto possível, as restantes áreas curriculares, disciplinares e não disciplinares (Sá, 2004; Sá e Martins, 2008); • de um modo geral, expandam o universo de leitura dos nossos alunos. É neste contexto que passaremos a analisar o papel que o manual escolar de Língua Portuguesa poderá desempenhar na promoção da leitura e no desenvolvimento de competências em compreensão na leitura por parte dos alunos.
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2. Papel do manual de Língua Portuguesa na promoção da leitura e da literacia No processo de ensino/aprendizagem em geral, o manual escolar tem-se assumido como um elemento regulador das práticas pedagógicas, quando deveria ser um instrumento orientador. Como afirma Brito (1999: 142), “sabemos que, algumas vezes, infelizmente não é o programa que determina a prática lectiva e conduz o professor a definir os objectivos do ensino, porque é o manual escolar transformado num instrumento todo poderoso, que influencia e determina a prática pedagógica, às vezes, tomado por uns, como uma “bíblia”, cujo conteúdo é totalmente assumido como única verdade”. No caso específico da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, o manual escolar tem como uma das suas finalidades essenciais ajudar a formar leitores competentes, nos termos acima referidos (Morais, 2006). Assim sendo, importa reflectir sobre o papel a desempenhar pelos manuais escolares de Língua Portuguesa do Ensino Básico na promoção da leitura e da literacia, a fim de dotar os alunos de instrumentos indispensáveis à participação activa e crítica na sociedade em que se inserem, tanto mais que há pouca informação disponível sobre esta temática no que se refere à área de Didáctica do Português Língua Materna. Estas motivações levaram-nos à concepção de um projecto intitulado Os manuais e a transversalidade da língua portuguesa na compreensão na leitura. Um estudo no Ensino Básico. 1 Para este projecto, definimos três objectivos. O primeiro objectivo consiste em caracterizar o perfil de leitor a desenvolver, tendo em conta as actuais necessidades em termos de sucesso escolar e de integração social. Para a sua consecução, é necessário determinar as linhas gerais de um ensino da Língua Portuguesa que favoreça o desenvolvimento de competências transversais em compreensão na leitura, tendo por base a literatura da especialidade, e relacionar essas linhas gerais com as directrizes propostas pela política educativa portuguesa para este domínio. O segundo objectivo implica analisar a adequação dos manuais de Língua Portuguesa para o Ensino Básico ao desenvolvimento de competências transversais associadas à compreensão na leitura. Para isso, torna-se necessário caracterizar a forma como a compreensão na leitura é abordada nos manuais de Língua Portuguesa dos vários ciclos do Ensino Básico e comparar o perfil traçado com os princípios definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela política educativa portuguesa para este domínio. 1
Com o financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 215
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O terceiro e último objectivo é contribuir para a definição de princípios que promovam a elaboração de manuais mais adequados ao desenvolvimento de competências transversais associadas à compreensão na leitura. Somos de opinião de que os manuais devem potenciar diferentes situações de leitura com vista à promoção da mesma, bem como da literacia, e à formação de leitores. Deverão também sugerir caminhos para a abordagem da leitura como um acto sociocultural, princípio esse que implica a capacidade de adaptar as suas estratégias de leitura aos contornos específicos de cada situação desta natureza. É ainda importante que os manuais se mobilizem para ajudar a escola a despertar no aluno o gosto pela leitura e a desenvolver nele hábitos a ela associados. 2.1. Linhas gerais da metodologia adoptada neste estudo O estudo decorrente deste projecto e que dá corpo a esta reflexão deverá conduzir à produção de um documento contendo princípios que possam apoiar a elaboração de propostas didácticas efectivamente orientadas para o desenvolvimento de competências transversais associadas à compreensão na leitura. Pretendemos que este documento seja de interesse não só para os autores de manuais e para as editoras responsáveis pela sua concepção, mas também para os professores, podendo ajudá-los a seleccionar os manuais de uma forma mais criteriosa e a fazer um uso mais crítico dos mesmos. Para construir princípios que promovam a elaboração de manuais mais adequados ao desenvolvimento de competências transversais associadas à compreensão na leitura e dar resposta às questões que subjazem aos nossos objectivos de investigação atrás referidos, definimos para este trabalho várias etapas. Antes de mais, encetámos uma ampla pesquisa bibliográfica, com a finalidade de conduzir a uma revisão da literatura que tornasse possível determinar as linhas gerais de um ensino da Língua Portuguesa que favoreça o desenvolvimento de competências transversais no domínio da compreensão na leitura. Ao mesmo tempo, pretendemos relacionar esses princípios com as linhas directrizes da actual política educativa para o ensino/aprendizagem da língua portuguesa. Tendo em conta os objectivos e as questões de investigação formulados para o nosso estudo, recorreremos, particularmente, às metodologias qualitativas: mais concretamente, à análise documental, aplicada a um corpus constituído por nove manuais de Língua Portuguesa destinados aos anos terminais dos três ciclos que constituem o Ensino Básico. Procedemos à selecção dos manuais a analisar, tendo em conta os seguintes critérios: 216
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os ciclos de ensino e os anos de escolaridade a que se destinam, a provável amplitude da sua influência (tendo em conta o número de escolas em que foram adoptados) e a sua representatividade em termos de tendências editoriais (pressupondo que sejam analisados manuais de editoras diferentes). Para orientar a análise dos manuais, elaborámos uma grelha, que deverá tornar possível a recolha de dados significativos e a sua análise e interpretação, em função dos objectivos formulados, assim como contribuir para a obtenção de respostas para as questões de investigação levantadas por este projecto. Antes de dar início à análise de manuais, procedemos à validação da nossa grelha. Servimo-nos de duas formas de validação. Por um lado, a consulta de um painel de especialistas e, por outro, a análise piloto de um manual de Língua Portuguesa que não fazia parte da amostra permitiram colmatar algumas fragilidades que a grelha inicial comportava. A partir de uma primeira análise dos manuais que fazem parte do corpus do nosso estudo e do estudo piloto que realizámos, exporemos de seguida algumas fragilidades que já é possível atribuir aos manuais de Língua Portuguesa do Ensino Básico 3. Algumas observações decorrentes do estudo em curso O trabalho já realizado permitiu-nos construir algumas ideias importantes, que estão na base da análise de manuais de Língua Portuguesa para os três ciclos do Ensino Básico que estamos a realizar. Antes de mais, confirmámos a ideia de que os manuais escolares ocupam uma posição de destaque no quotidiano da sala de aula e na orientação das práticas pedagógicas. Esta centralidade excessiva dada ao manual escolar no processo de ensino/ aprendizagem da língua portuguesa prejudica o desenvolvimento de competências a ele associadas por parte dos alunos. Pensamos que o manual deve apresentar-se não como um regulador do processo de ensino/aprendizagem, mas sim como um orientador deste, o que não acontece no contexto actual do sistema educativo português. Para cumprir esta função, o manual necessita de se constituir num aliado do professor, permitindo-lhe recorrer a práticas pedagógicas orientadas para o desenvolvimento de competências por parte do aluno. Isso implica um ensino que atribua um papel activo ao aluno, convertendo o professor num orientador e facilitador da aprendizagem. Segundo alguns estudos (cf., por exemplo Alarcão et al., 2004), verifica-se um 217
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desfasamento entre o discurso didáctico teórico e a qualidade dos manuais e materiais de ensino. Reconhece-se aos programas, de um modo geral, níveis de qualidade reconhecidos. No entanto, os manuais são alvo de duras críticas e, a avaliar pela influência que exercem sobre a acção pedagógica, será de admitir uma relação entre a qualidade do seu discurso regulador e as práticas vigentes na sala de aula, que apresentam grandes fragilidades. Desta forma, é tempo de nos interrogarmos sobre a resposta que estamos a dar a este problema, por acharmos que pode residir aí um contributo para a inovação das concepções e práticas. No caso específico do ensino/aprendizagem da compreensão na leitura, o manual de Língua Portuguesa deverá ajudar o docente a fomentar o desenvolvimento de competências neste domínio por parte dos alunos, contribuindo para a promoção da leitura e da literacia nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Básico, que, em Portugal, corresponde ainda à escolaridade obrigatória. Neste contexto, várias são as questões que se colocam. De que forma o manual promove junto das crianças e jovens o gosto pela leitura? Quando promove e incentiva esse gosto, sabendo-se hoje que é através do gosto pela leitura que se adquirem competências que farão dessas crianças e jovens cidadãos socialmente mais integrados e culturalmente mais ricos? Em diferentes etapas da vida, crianças, adolescentes e adultos estão receptivos a diferentes tipos de promoção da leitura. Parece-nos, pois, que é importante questionar a forma como os manuais aproveitam essa abertura. As medidas que apresentam são apropriadas ou revelar-se-iam mais eficazes noutras etapas? Que importância conferem à leitura nos vários graus de ensino? Será que definem o que devem ler os alunos em cada grau de ensino? Quais as medidas de promoção da leitura preferidas pelos manuais e quais as que sabemos resultarem? Estas são algumas das questões que serviram de ponto de partida à nossa reflexão e às quais os manuais nem sempre dão resposta. Apesar de não ser o esperado, o que muitas vezes chega aos professores e aos alunos, sob a forma de manuais, são imagens pálidas, simplificadas e, por vezes, arrevesadas, porque decorrentes de interpretações subjectivas, de professores ou de pequenos grupos de professores, dos princípios e das opções curriculares e didácticas determinantes do processo de ensino e de aprendizagem. Partindo de alguns resultados do estudo piloto que realizámos e de uma primeira análise dos nove manuais que fazem parte do corpus do nosso estudo, estamos em condições de afirmar que os manuais de Língua Portuguesa do Ensino Básico nem sempre contemplam dimensões como: as concepções de leitura e do seu ensino; a aquisição e desenvolvimento de estratégias de compreensão e de interpretação 218
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textuais; o contacto com textos de natureza diversificada; a promoção da pesquisa, tratamento, selecção e organização de informação recolhida através da leitura; e, por último, a motivação para a leitura. Na maioria dos manuais de Língua Portuguesa para o Ensino Básico, a leitura apresenta características pouco compatíveis com os objectivos que este domínio parece visar, no Currículo Nacional para o Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001). O manual de Língua Portuguesa continua a não privilegiar práticas de compreensão dos textos que conduzam a leituras plurais, capazes de formar sujeitos-leitores que possuam competências de leitura que ultrapassam a mera descodificação dos textos e que participem activamente na construção dos sentidos desses mesmos textos. Estudos realizados sobre manuais de Língua Portuguesa validam as fragilidades dos manuais por nós detectadas (cf., por exemplo: Castro, Rodrigues, Silva e Sousa, 1999; Dionísio, 2000; Vieira, 2005). Enunciamos agora algumas das características dos manuais que consideramos que interferem negativamente na formação de leitores motivados, competentes e críticos: a) As leituras e os leitores são “formatados” – o manual fixa a interpretação dos textos que deve ser feita, tomando-a como a única válida e a ser tida em conta nas leituras efectuadas. b) Veiculam sentidos “prontos-a-usar” – os autores de manuais, quer ao descreverem o que observam, quer ao tirar conclusões sobre o que leram, quer ainda ao avaliar o texto, delineiam o seu envolvimento com o mesmo, dando-o a ler aos alunos à semelhança da leitura já por si realizada. Desta forma, o processo de leitura é encarado com um processo de reprodução de sentido em detrimento da construção de sentido que seria de esperar tendo em conta a singularidade e os conhecimentos de cada leitor. c) As leituras são impostas e realizadas sob controlo – decorrentes das características anteriores. Face aos textos apresentados pelo manual, o leitor vê-se confrontado com limitações várias à sua intervenção sobre os mesmos e sente-se coagido a responder dentro de um determinado quadro, já definido pelas actividades que lhe são apresentadas. d) As operações de leitura predominantes centram-se ao nível da leitura como descodificação, já que a identificação e a confirmação são as operações de leitura que dominam a leitura dos textos dos manuais. Desta forma, o leitor está perante um contexto de movimentos de leitura muito pouco diversificado, onde só muito raramente realiza a leitura compreensão. As operações de leitura aceites pela investigação neste domínio e divulgadas em vários estudos sobre manuais escolares e interacção verbal na sala de aula (cf., por exemplo, Dionísio, 2000 e Vieira, 2005) são: identificação, reorganização, inferência, avaliação, apreciação, mobilização, justificação, classificação e decodificação. 219
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Achamos que os manuais devem proporcionar aos alunos a possibilidade de realizar na leitura da sala de aula e fora todas as operações referidas. Só desta forma se estará a criar condições para que possam desenvolver a sua capacidade para compreender, usar textos escritos e reflectir sobre eles, de modo a atingir os seus objectivos, a desenvolver os seus próprios conhecimentos e potencialidades e a participar activamente na sociedade. Em todos os estudos sobre literacia em leitura, a população portuguesa revelou muitas dificuldades ao nível da construção de inferências. Apesar de ser pela inferência que o aluno confronta o seu objecto de leitura – o texto – com a sua própria visão de mundo, assim construindo o significado daquilo que está a ler, estamos em condições de afirmar que ela é pouco valorizada no trabalho com os textos que os manuais apresentam. e) Predomínio de “textos transparentes” – textos esses que claramente evidenciam os sentidos que o leitor deles deve extrair, logo, que não possibilitam leituras várias, exercendo assim um forte controlo sobre a actividade interpretativa do aluno, que vê desvalorizado o seu papel como leitor. Desta forma, os manuais de Língua Portuguesa têm vindo a apresentar-se como uma entidade pedagógica, que tende a anular qualquer leitura pessoal dos textos propostos, impondo verdades tidas como universais e indiscutíveis. Nesta perspectiva, o manual não só anula a autonomia do leitor no acto interpretativo, como também vinca claramente as estratégias pedagógicas a utilizar para o estudo desses mesmos textos, procedimentos que se tornam ainda mais evidentes nos textos pertencentes à esfera literária. De um modo geral, os manuais concebem a leitura como um produto e não como um processo. Neste contexto, o papel de leitor é passivo e muito desvalorizado. Tendo presente o Currículo Nacional do Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001), todas as características agora apontadas aos manuais devem ser sujeitas a uma profunda discussão, sendo fundamental interpelá-los quanto à forma como vão sendo construídos os degraus que sustentam saberes e competências. Temos também de superar a abordagem centrada na mera transmissão de conteúdos que ainda prevalece nos manuais e nas práticas pedagógicas, focalizando o processo de ensino/aprendizagem no desenvolvimento de competências. Outros aspectos igualmente negativos e que precisam de ser ultrapassados dizem respeito à detecção de erros científicos e de linguagem, à utilização de vocabulário desadequado à idade dos alunos, à não contemplação dos objectivos definidos no programa, às imprecisões conceptuais, ao aprofundamento excessivo de uns temas e inclusão de outros não exigíveis, em detrimento de outros pouco ou mal abordados. Os manuais devem ainda permitir que os alunos utilizem as diferentes fases do 220
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contacto com o texto escrito – pré-leitura, leitura compreensiva e questionamento –, o que acontece com pouca frequência. Como afirmámos anteriormente (Martins e Sá, 2008: 243, 244), “O manual escolar, como promotor da compreensão leitora, deve permitir criar uma atmosfera propícia à leitura, apresentando finalidades, objectivos a atingir e competências a desenvolver aquando da prática de leitura. Deve também disponibilizar aos alunos e ao professor todos os conteúdos do currículo e materiais de leitura diversificados que os permitam trabalhar, possibilitando a variação das experiências de leitura dos alunos, para os motivar para a mesma.” Deste modo, há todo um trabalho a fazer para adequar o manual de Língua Portuguesa às suas funções e às exigências de uma sociedade pós-moderna, onde o indivíduo é avaliado pela sua capacidade de compreender o que o rodeia e agir criticamente em função dela.
4. Considerações finais Conscientes da importância que a leitura tem em toda a vida do indivíduo – no seu desenvolvimento pessoal e social, no sucesso educativo, na formação da personalidade, na autonomia, na sua forma de estar e compreender o seu espaço de inserção –, torna-se necessário reflectir sobre as situações de aprendizagem da leitura vividas no universo escolar e sobre a aquisição de instrumentos essenciais e estruturantes dos mecanismos necessários às competências básicas de leitura. Os manuais escolares constituem um auxiliar relevante entre os instrumentos de suporte do processo de ensino/aprendizagem e que favorecem o processo educativo. Eles desempenham um papel determinante no contexto escolar, fornecem elementos de leitura e descodificação real, esclarecem objectivos de aprendizagem e transmitem valores, configurando significativamente as práticas pedagógicas. Desta reflexão podemos concluir ainda que o manual, para além de constituir o principal determinante do trabalho desenvolvido na sala de aula, exerce uma influência significativa no processo de ensino-aprendizagem da leitura, na aquisição e desenvolvimento de competências de compreensão na leitura e na promoção de hábitos de leitura. No seguimento deste estudo, continuaremos à procura de respostas possíveis para as questões-chave da promoção da leitura e das competências literácitas, apresentadas ao longo desta reflexão. Terminamos afirmando que o manual é um auxiliar precioso no apoio à leccionação da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, pelo que deve haver, por parte dos 221
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autores, um cuidado especial na sua concepção e, por parte dos professores, um cuidado especial na sua escolha e utilização, de modo a que ele se constitua, efectivamente, como um bom instrumento de trabalho e contribua para a qualidade de ensino. Este determina, em grande parte, a forma como os professores ensinam a língua portuguesa e a forma como os alunos a aprendem. Partilhamos da opinião de alguns autores (Dionísio, 2000; Castro, Rodrigues, Silva, et al., 1999; Cabral, 2005), quando argumentam que o manual escolar muitas vezes dita o currículo de Língua Portuguesa a que são submetidos os alunos e, dessa forma, torna-se na principal fonte de conhecimento para a maioria deles. Bibliografia: Alarcão, I. (coord.) (2004). Percursos de consolidação da didáctica de línguas em Portugal. Investigar em Educação. Revista da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, 3, 235-302. Balula, J. P. R. (2007). Estratégias de leitura funcional no ensino-aprendizagem do português. Tese de doutoramento não publicada. Universidade de Aveiro, Aveiro. Benavente, A. (coord.) (1996). A literacia em Portugal: resultados de uma pesquisa extensiva e monográgica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian /Conselho Nacional de Educação Bentolila, A., Chevalier, B. & Falcoz-Vigne, D. (1991). La lecture. Apprentissage, évaluation, perfectionnement. Paris: Nathan. Brito, A. (1999). A problemática da adopção dos manuais escolares. Critérios de reflexão. In R. V. Castro, A. Rodrigues, J. L. Silva et al. (orgs.), Manuais escolares: estatuto, funções, história (pp. 139-148). Braga: Universidade do Minho. Cabral, M. (2005). Como analisar manuais escolares. Lisboa: Texto Editores. Carreira, J. S. (2001). O papel do conhecimento prévio na compreensão na leitura: estratégias de activação e desenvolvimento. Tese de mestrado não publicada. Universidade de Aveiro, Aveiro. Carreira, J. S. & Sá, C. M. (2004). O papel do conhecimento prévio na compreensão na leitura: estratégias de activação e desenvolvimento. In M. H. A. e Sá, M. H. Ançã & A. Moreira (Coord.), Transversalidades em Didáctica das Línguas (pp. 73-82). Aveiro: Universidade de Aveiro. Castro, R. V. et al. (orgs.) (1999). Manuais escolares: estatuto, funções, história. Braga: Universidade do Minho. Costa, M. A. (1998). Saber ler e saber ensinar a ler do Básico ao Secundário. In R. V. Castro & M. L. Sousa (orgs.), Linguística e Educação (pp. 69-82). Lisboa: Edições Colibri/Associação Portuguesa de Linguística. Dionísio, M. L. (2000). A construção escolar de comunidades de leitores. Coimbra: Livraria Almedina. 222
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Motivar para Aprender – O que fazer?
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Helena Oliveira, Paula Costa Agrupamento de Escolas Finisterra - Febres Pós-graduada em Educação Especial, Agrupamento de Escolas da Carapinheira Mestre em Ciências de Educação
Palavras-chave
linguagem, comunicação; motivação; prática pedagógica
Ao longo do nosso percurso profissional, trabalhamos frequentemente com crianças que possuem um fraco desenvolvimento linguístico, condicionando desde logo o desejo e a motivação para aprenderem, revelando dificuldades de aprendizagem sobretudo na área da Língua Materna, repercutindo-se em todas as outras áreas. Daí a nossa opção em trazer este tema para a nossa comunicação que não pretende, de forma alguma, tratar da temática de uma forma exaustiva, dada a amplitude da mesma, mas apenas expor algumas noções e identificar algumas situações observáveis na sala de aula, visto que um bom domínio da linguagem oral é um factor de primordial importância para o desenvolvimento integral da criança e para a iniciação à leitura e à escrita. A questão central é “Como é que as crianças aprendem a falar?” Para aprender a falar, a criança necessita de ouvir os outros a fazê-lo, a ser ouvida, a ter oportunidades para imitar sons e palavras num ambiente estimulante, com reacções ajustadas às suas respostas que reforcem a necessidade de comunicar. Daí que a comunicação verbal se realize através da linguagem. Os adultos não falam à criança da mesma forma que falam entre si, fazem algumas modificações nos traços paralinguísticos sintácticos no discurso. Estas modificações têm por objectivo facilitar à criança a compreensão e o uso da linguagem, é aquilo a que chamamos o maternalês, que poderá ter como objectivo facilitar a comunicação e a expressão da criança ou uma componente afectiva que se relaciona com a transmissão de sentimentos de ternura com a criança, situação perfeitamente natural até à entrada 225
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da criança no Pré-escolar, mas que se transforma num obstáculo ao desenvolvimento da expressão oral e escrita, quando este tipo de discurso é prolongado pelos adultos e as crianças já a frequentarem o 1º ciclo. Desde o choro, à mestria linguística a criança tem de passar por todas as fases naturais (como o palrar, a lalação e a holofrase) especialmente no seio da família. Se à primeira tentativa, não intencional da criança (balbuciar, palrar) se suceder qualquer resposta do adulto ou se pelo contrário à comunicação do adulto, se seguir um palrar da criança, está iniciado o princípio da comunicação que despido de intenção, passou a ser intencional, por imitação. Porém, muitas vezes a criança não precisa de imitar, pois cedo se apercebe implicitamente do funcionamento da língua, começando então a fazer generalizações, muitas vezes abusivas. Aparecem os erros porque na língua há excepções de que ainda não havia tomado consciência. À medida que vai exercitando essas generalizações vai tomando consciência dessas excepções e adquirindo, deste modo, a consciência linguística. Comunicar para crescer, na língua materna, parece ser a finalidade prosseguida pelas crianças e os adultos que as rodeiam e é comunicando através da linguagem oral que estes agentes interagem. À primeira vista a aquisição da linguagem parece ser um tema simples, dado que em cada minuto da nossa vida estamos a usar a linguagem: em casa com a família, com os amigos, na rua, no local de trabalho, frente a frente ou através de um meio de comunicação. Digamos que durante o tempo em que nos mantemos acordados, raro é o momento das nossas vidas em que a linguagem não é utilizada por nós e até mesmo durante o sono ela entra no mundo dos nossos sonhos. A linguagem oral é uma capacidade especificamente humana, possível devido às características biológicas que possuímos, e a criança ao aprender a linguagem toma como referente a sua língua materna, isto é, a linguagem verbal materializa-se na produção dos sons que constituem essa língua e que lhes permitem comunicar entre si. Ora, todo este processo tem um percurso longo e complexo, entrando em jogo factores intrínsecos e extrínsecos à criança que interactuam das mais diversificadas formas desencadeando mecanismos que nem sempre serão fáceis de identificar e de compreender. Apesar de não estar completamente esclarecido o grau de eficácia com que a linguagem é adquirida, sabe-se que as crianças de diferentes culturas parecem seguir o mesmo percurso global no desenvolvimento da linguagem. Ainda antes de nascer iniciam a aprendizagem dos sons da sua língua nativa e desde os primeiros meses distinguem-na de línguas estrangeiras, motivo pelo qual a linguagem seja muitas vezes vista como a “janela do conhecimento humano” e que haja um interesse crescente no 226
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estudo do processo de apropriação da linguagem pela criança. Muito antes de começar a falar, a criança está habilitada a usar o olhar, expressão facial e o gesto para comunicar com os outros. Tem também capacidade para discriminar precocemente os sons da fala. A aprendizagem do código linguístico baseia-se no conhecimento que vai adquirindo acerca dos objectos, acções, locais, propriedades, e afirma-se de acordo com a progressão do desenvolvimento psicomotor resultando da interacção complexa entre capacidades biológicas inatas e a estimulação ambiental. É pelo recurso à linguagem que a criança vai estruturando o seu intelecto e a sua personalidade e, ao mesmo tempo, descobrindo as regras da própria linguagem. Esta fase de construção deverá ser vivenciada com experiências ricas em trocas comunicativas extensivas, sendo a família o lugar privilegiado para criar essa oportunidade, estando atentos às várias fases por que passa o seu desenvolvimento. Os pais são os primeiros professores! Eles oferecem um excelente recurso verbal à criança. Há, em muitas famílias, a preocupação em articular com clareza, usar frases curtas e simples, um vocabulário novo e referenciar diferenças entre objectos que rodeiam o espaço da criança, fornecendo-lhe, assim, o feed-back verbal específico e imediato, proporcionando-lhe, num ambiente lúdico, motivação para diversas situações de aprendizagem linguística. Não podemos perder de vista que é pela linguagem que a criança, mais tarde adulto, se irá integrar, ou não, numa sociedade competitiva em que a exigência de uma competência linguística é cada vez maior, pressupondo a necessidade de possuir um sistema de signos através dos quais se faça entender relacionando-os com os objectos que a cercam e que seja capaz de os utilizar correctamente em situações de comunicação quando pretende transmitir as suas mensagens. Embora os resultados das investigações sejam contraditórios e haja bastantes excepções, a criança oriunda de famílias de nível sócio-cultural mais elevado, normalmente é encorajada a desenvolver uma linguagem mais elaborada, instrumento de descrição do mundo exterior e dos seus próprios sentimentos. Neste contexto familiar e social é-lhe fornecido um modelo elaborado, mais rico e variado que, cultivado desde a mais tenra idade servirá de suporte para a sua instrução, sendo o tipo de linguagem que mais tarde irá encontrar no meio escolar. Ao invés, a criança de um nível sócio-cultural mais baixo, que viva num meio com um universo menos estruturado e menos estimulante tem como modelo um código restrito, dispõe assim de uma linguagem essencialmente limitada à comunicação concreta imediata, um código que virá a mostrar-se desajustado para as exigências do contexto escolar, originando, por vezes, a desmotivação pela leitura e pela escrita. A diferenciação entre os dois códigos far-se-á notar através da maior ou menor expressão, complexidade e correcção sintáctica dos enunciados, usos das conjugações, adjectivos e dos advérbios (mais ou menos estereotipado dentro do código restrito, rico e variado dentro do código elaborado), isto é no nível de complexidade lógico – verbal. 227
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Conhecendo como se exprimem as crianças, a linguagem que utilizam, os motivos e os factores que intervêm no seu modo de comunicar, o professor terá à sua disposição diversas estratégias para levar as crianças até ao sucesso linguístico. Quando nos deparamos com crianças que revelam dificuldades de linguagem interrogamo-nos sobre as suas causas, sintomas e manifestações. Se muitos desses problemas, por vezes, são passageiros e facilmente ultrapassáveis com estratégias adequadas, outros apresentam-se mais complicados e exigem o recurso a técnicos especializados. Daí considerarmos que, à entrada do 1ºano de escolaridade, é absolutamente prioritário as crianças terem um bom domínio da linguagem oral, o sistema linguístico estar consolidado para uma motivação crescente para o aprender e o consequente desenvolvimento das competências específicas no domínio do modo oral (compreensão e expressão oral), do modo escrito (leitura e expressão escrita) e do conhecimento explícito da língua. Sendo o Homem eminentemente social, temos o dever de elaborar formas de comunicação e de promover o domínio da Língua Materna, instrumento básico da nossa identidade nacional e cultural, com o intuito de motivar as crianças a aprender a gostar sobretudo de ler! Numa altura em que todos nós, professores, nos sentimos cada vez mais desmotivados, pode parecer um pouco irónico, à priori, abordar este tema. Contudo, é exactamente por esse motivo que o considerámos oportuno. Para motivar é preciso acreditar e, apesar das contrariedades do sistema, parecenos verdade que, felizmente, a grande maioria dos professores, lá bem no fundo, ainda acredita que é possível ajudar crianças a aprender. É certo que é cada vez mais difícil motivarmos os nossos alunos, sendo certo também, que já não há muito mais a inventar relativamente à motivação na sala de aula. Mas como podemos definir Motivação? Vamos pensar em Motivação, como um estado interior que estimula, dirige e mantém o comportamento, ou seja, centralizar esforços que nos permitam alcançar determinados objectivos. Assim sendo, os impulsos, necessidades, incentivos, interesse, pressão social, valores, expectativas, entre outros factores, é que nos fazem sentir motivados para uma determinada acção. Dependendo dos factores em causa, estaremos diante de 2 tipos de motivação: intrínseca ou extrínseca. Entenda-se por motivação intrínseca a tendência natural de procurar e vencer desafios, tendo por base os nossos próprios interesses e aptidões, que não carecem de recompensa, visto serem do foro pessoal de cada indivíduo, constituindo por si só um prazer. 228
Motivar para Aprender – O que fazer?
A motivação extrínseca é o que nos leva a fazer algo com o intuito de sermos recompensados ou de não sermos prejudicados. Se focalizarmos o nosso interesse apenas no comportamento, será difícil distinguir estes dois tipos de motivação, sendo a diferença, basicamente, o motivo que leva a pessoa a agir. Quando falamos em educação, ambas as motivações são relevantes, pois ao estimular a curiosidade dos alunos estamos a potenciar a sua motivação intrínseca, porém não devemos menosprezar a importância da recompensa em determinados contextos, ou seja a motivação extrínseca. O facto de um aluno querer aprender, não é por si só, razão suficiente para realizar com êxito uma actividade. A motivação do querer aprender reside na planificação, na consciência do que se quer e de como se quer aprender e ainda na procura de novas informações. Também o orgulho, a satisfação, o facto de não ter medo de falhar e ser capaz de interpretar eficazmente o feed-back, são factores relevantes de todo este processo. Obviamente, que não podemos esquecer a qualidade do esforço mental do aluno. Posto isto, cabe então ao professor, promover a motivação para aprender, fazendo com que os alunos se envolvam nas actividades propostas, levando-os posteriormente a reflectir sobre as aprendizagens realizadas. Por esse motivo, é importante reflectirmos um pouco acerca da nossa prática diária e centrarmos os nossos esforços na realização de tarefas aprazíveis, quer para o professor, quer para o aluno. Podemos então concluir, que o gostar de aprender é um processo que se desenvolve ao longo da vida, que para além das potencialidades inatas a cada indivíduo, implica a ajuda de outras pessoas na criação das condições necessárias para que esse processo não pare. O que pressupõe a continuidade no estímulo do prazer de adquirir e vivenciar novas experiências ou aprendizagens, não esquecendo que cada criança tem um ritmo de aprendizagem próprio. Bibliografia Aimard, P. (1986). A linguagem da criança. Porto Alegre: Artes Médicas. Bernstein, D. K. & Tiegerman, E. (1985). Language and communication disorders in children. Columbus: Merrill Publishing. Bruner, J. (1988). Accion pensamiento y language. Madrid: Alianza. Chomsky, N. (1968). Linguagem e pensamento. Petrópolis: Editora Vozes. Cró, M. L. (1990). Actividades na educação pré-escolar e activação do desenvolvimento psicológico: contributo para a formação inicial e 229
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contínua dos educadores e professores do ensino básico do 1º ciclo. Tese de doutoramento em Psicologia da Educação. Universidade de Aveiro, Aveiro. Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura (23 vols.) (1967). Lisboa: Verbo. Menyuk, P. (1975). Aquisição e desenvolvimento da linguagem. São Paulo: Pioneira. Ministério da Educação (1970). Falar contigo. Lisboa: M.E.- DGEB, Divisão Pré-Escolar. Piaget, J. (1977). A linguagem e o pensamento da criança. Lisboa: Moraes Editores. Richelle, M. (1976). A aquisição da linguagem. Lisboa: Sociocultur. Sequeira, J. & Sim-Sim, I. (1989). Maturidade linguística e aprendizagem da leitura. Braga: Universidade do Minho. Sim-Sim, I. (1998). Desenvolvimento da linguagem. Lisboa: Universidade Aberta. Vigotsky, J. L. (1987). Pensamento e linguagem. S. Paulo: Martins Fontes.
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Balanceio - Uma experiência de recriação textual no 1.º ciclo e no ensino pré-escolar
Balanceio - Uma experiência de recriação textual no 1.º ciclo e no ensino pré-escolar
Paula Silva e Artur Abreu
O objectivo desta comunicação consistiu em dar a conhecer um trabalho/projecto que resultou num exemplo feliz do ensino do Português, nomeadamente nos domínios da leitura e da produção textual, com alunos do 1.º ciclo e do ensino pré-escolar. Esse projecto foi desenvolvido no Agrupamento de Escolas da Cordinha por uma turma do 2.º ano de escolaridade e três turmas do ensino pré-escolar, durante o mês de Fevereiro de 2008, e possibilitou o desenvolvimento de diversas actividades,
designadamente: leitura e apropriação do texto literário pelos alunos, trabalho de pesquisa ao nível de rimas e antónimos, escrita criativa e apresentação do trabalho 231
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realizado à comunidade. Todas as actividades desenvolvidas tiveram como ponto de partida o poema “Balancé”, de Patrícia Joyce: Patrícia Joyce: Tesouros Poéticos da Literatura Portuguesa para Crianças
O poema começou por ser trabalhado pela turma do 2.º ano de escolaridade numa aula de Língua Portuguesa. A escolha do texto pela professora titular de turma teve como objectivos a motivação dos alunos para a leitura (a turma tinha vários alunos com dificuldades neste domínio, que referiam não gostar de ler, mas que entretanto tinham começado a manifestar algum prazer na leitura de pequenos textos poéticos), a descoberta do ritmo ao nível da leitura (dando continuidade ao trabalho realizado nas aulas de Expressão Musical sobre as figuras rítmicas e a pausa de semínima - a semínima associada à sílaba do nome “Zé” e as colcheias associadas às sílabas da palavra “Chi-co”, “Sara”, “Pedro”…) e a experimentação de percursos pedagógicos que proporcionassem o prazer da escrita. O trabalho planificado para essa aula teve resultados muito positivos. Após a leitura expressiva feita pela professora, os alunos leram o poema com prazer. Seguidamente fizeram a exploração do texto (identificação do n.º de estrofes; contagem das sílabas que formam os versos; descoberta do ritmo através do levantamento das expressões que sugerem o movimento do balancé e dos sinais de pontuação; repetição de palavras e de sons; referência dos antónimos; procura de sentidos do texto, com substituição de algumas expressões por uma só palavra ). Por fim, formaram-se grupos de dois elementos aos quais foi proposta a construção de um dístico tomando como primeiro o verso “Sim, não, sim, não”, de modo a criar um novo poema. A tarefa foi executada por todos os alunos com entusiasmo e sem dificuldades. Numa sessão posterior o trabalho teve continuidade com a sugestão aos alunos de que, em grande grupo, construíssem um terceto que aludisse ao parar do balancé. Foi possível verificar que os alunos conseguiram negociar e conciliar diferentes pontos de vista e, sem intervenção da professora, chegaram à conclusão de que se repetissem o verso “Sim, não, sim, não” no final e se alterassem a pontuação para “Sim não sim não”, “mostra-se melhor que o balancé já está mesmo parado depois da menina saltar!” (como explicava uma das alunas). O poema recriado pelos alunos resultou assim: Balancé Sim, não, sim, não Caneta de plástico, dossiê de cartão. Sim, não, sim, não Chora o esfomeado, sorri o papão. 232
Balanceio - Uma experiência de recriação textual no 1.º ciclo e no ensino pré-escolar
Sim, não, sim, não Dentro da garrafa, fora do garrafão. Sim, não, sim, não Limpa a irmã, suja o irmão
Sim, não, sim, não Partem as pessoas, as casas ficarão. Sim, não, sim, não Mia o gato, ladra o cão. Sim, não, sim, não Anda a Joana, pára o João Sim, não, sim, não Ponho o pé na terra, salto para o chão Sim não sim… não. Inês, Filipa, André, Afonso, Sandra, Rafael, Sara Costa, Marisa, Carolina, Matilde, João, Joana, Sara Brito, Luís
Concluída esta etapa do trabalho, a turma leu os dois textos aos alunos do ensino pré-escolar que, semanalmente, se deslocavam à biblioteca da escola-sede do Agrupamento. A adesão das crianças à leitura dos colegas mais velhos foi surpreendente, especialmente quando ouviram ler o poema recriado. Espontaneamente, vários alunos levantaram-se do lugar onde se encontravam sentados e começaram a mimar o texto que ouviam. A turma repetiu a leitura do seu poema, a pedido dos colegas mais novos e, no final, várias crianças do pré-escolar recitaram a última estrofe de forma entusiasta. A cada turma dos Jardins-de-infância presentes foi entregue uma cópia dos dois poemas e, na semana seguinte, cada grupo mostrou à turma do 2.º ano o trabalho que havia realizado com o poema recriado (este foi escolhido por todos para realizar uma nova actividade): os alunos do Jardim-de-Infância de Ervedal da Beira ilustraram, individualmente, o texto; a turma de Seixas “desmontou” o poema e elaborou um cartaz ilustrado a partir das estrofes que o compõem; a turma de Vila Franca da Beira decalcou o trabalho dos colegas do 2.º ano, construindo novas rimas e criando um novo poema. Este grupo, com materiais diversos, construiu um enorme baloiço com uma menina nele sentada para ilustrar o poema dos colegas e teve oportunidade de recitar o seu próprio texto poético, perante os pais e a comunidade escolar, no âmbito de uma actividade do seu projecto curricular de turma denominada “Livros Andarilhos”. Concluindo, consideramos que este trabalho foi um dos principais estímulos que 233
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permitiu manter a turma do 2.º ano motivada e activa na leitura e na escrita espontânea, ao longo do ano lectivo. Mesmo na última semana de aulas, muitos alunos escolheram como trabalho autónomo a leitura e a escrita de textos, trabalhando a pares ou em pequeno grupo, mostrando que, na verdade, eles tinham descoberto na escrita a “nova forma de comunicação/onde se gera a ciência/de criar na palavra a emoção.”
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O novo Programa de Português para o 1º Ciclo do Ensino Básico: Orientações e Perspectivas
O novo Programa de Português para o 1º Ciclo do Ensino Básico: Orientações e Perspectivas
Pedro Balaus Custódio Escola Superior de Educação de Coimbra Palavras-chave
Currículo; Programa, Iº Ciclo do Ensino Básico
I - Do Currículo ao Programa O desenho curricular e a definição de objectivos e de finalidades de ensino fazem parte de uma área de estudos directamente relacionada com as grandes matrizes educativas de carácter macroestrutural, social e político. Assim, o conceito de currículo deve ser entendido enquanto instrumento de escolarização gizado em função de um determinado sistema educativo. Numa acepção alargada, partilhada por Pacheco (1999:6), “desenvolvimento curricular” define-se “como um processo dinâmico e contínuo que engloba diferentes fases, desde a justificação do currículo até à sua avaliação passando, necessariamente, pelos momentos de concepção-elaboração e implementação.” De forma mais restrita - refere o mesmo autor - ele é “a construção (isto é, desenvolvimento) do plano curricular, tendo presente o contexto e justificação que o suportam, bem como as condições da sua execução”. Se adoptarmos a perspectiva de definição mais ampla, concluiremos que qualquer currículo está, pois, em permanente desenvolvimento, dado tratar-se de um processo de reconstruções sucessivas que o enriquecem e complementam. As várias definições de “currículo” derivam, pois, da diversidade de concepções de educação e das suas finalidades, bem como dos posicionamentos ideológicos, políticos ou socioeconómicos2 que sobre ela incidem. Alguns autores como Salvador (1986:139) consideram que o conceito descreve “a explicitação de um projecto, das intenções e do plano de acção, que presidem às actividades escolares”; outros, como D´Hainaut (1979) consideram-no mais globalizante, vendo nele um “projecto educativo que define: a) os fins, os alvos e os 235
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objectivos de uma acção educativa; b) as vias, os meios e as actividades utilizados para atingir esses alvos; c) os métodos e os instrumentos para avaliar em que medida a acção resultou.” Entre os vários tipos de organização curricular, os mais divulgados são os que podem ser centrados nos conteúdos, nos alunos, na sociedade e no currículo oculto. A maior parte das definições, entre as quais se contam as de Tyler (1950) ou de D’Hainaut (1980) concebe o currículo como um produto previamente planificado, conferindo-lhe uma perspectiva formal. Deste modo, entendemos o desenho curricular como um conceito mais global que origina os programas de diferentes disciplinas. Essa construção decorre dos movimentos de adaptação da Escola à realidade cultural, social, política e histórica. Esse efeito de reajustamento é fundamental porque explica uma parte significativa das dinâmicas de renovação curricular. De acordo com este enquadramento, podemos entender “currículo” como um conjunto de experiências educativas que engloba todas as actividades de ensinoaprendizagem proporcionadas na escola, “quer elas resultem de intenções ou propósitos explícitos quer decorram da própria organização e ingredientes da vida escolar na sua multiplicidade,” como sublinha Ribeiro (1990:14). Assim, a reelaboração de um discurso pedagógico oficial, nomeadamente através da edição de programas, resulta da necessidade de renovação das orientações educativas, ainda que qualquer dialéctica de reforma pressuponha a manutenção de grandes eixos orientadores. Em termos educativos não é comum assistirmos a cisões violentas que provoquem descontinuidades na disposição dos sistemas de ensino. Será essa, aliás, a orientação que pautará a revisão dos programas de 2009, que não perde de vista a lei de Bases do Sistema Educativo. A propósito desta transformação, Apple (1994:131) refere que “O currículo nunca é simplesmente um conjunto neutro de conhecimento, aparecendo de certa forma nos textos e salas de aula de uma nação. É sempre parte de uma tradição selectiva, de selecção de alguém, da visão de um grupo do conhecimento legítimo.” Factores como a tradição ou como a motivação social, política ou cultural são sempre determinantes quando ponderamos qualquer aspecto respeitante à reconstrução de um currículo. Um relatório da OCDE sobre a “A Reforma dos programas Escolares”, datado de 1990, afirma que “(...) na sua quase totalidade, os problemas do ensino público actualmente analisados fazem parte de um vasto e complexo conjunto sociocultural, estreitamente ligado a preocupações económicas, políticas e estratégicas dos paísesmembros”. O “currículo” é, pois, uma proposta que exprime um projecto coerente e que, para além de uma fundamentação sociopolítica e económica, se traduz numa sugestão de 236
O novo Programa de Português para o 1º Ciclo do Ensino Básico: Orientações e Perspectivas
modelo cultural cuja aplicação se destina a um contexto regional específico. É este, aliás, o entendimento de Stenhouse (1991:30) quando afirma que “un curriculo es el medio com el qual se hace publicamente disponible la experiencia consistente en intentar poner en prática una propuesta educativa. Implica no sólo contenido sino también método y, en su realización en las instituciones del sistema educativo.” Relativamente ao conceito de “programa”, Zabalza (1992:12) define-o como “o documento oficial de carácter nacional (...) em que é indicado o conjunto de conteúdos, objectivos, etc., a considerar em um determinado nível. (...) Assim, o Programa é o conjunto de prescrições oficiais, relativamente ao ensino, emanado do Poder Central.” Ora, são precisamente estes documentos programáticos – enquanto parte integrante do complexo desenho curricular – que recontextualizam o discurso oficial e o modulam para um registo pedagógico. Esses textos oficiais, estruturados de acordo com princípios orientadores pré-definidos, assumem a função reguladora e prescritiva como salienta Custódio (2004), não apenas dos conteúdos a leccionar mas, ainda, dos objectivos gerais e específicos que se devem atingir num determinado nível de escolaridade. Para além disso, espera-se que a estrutura de um programa forneça, ainda, um conjunto preciso e coerente de princípios metodológicos capazes de configurar as práticas docentes. Ou seja, um programa não indica apenas as metas que se pretendem alcançar mas deve apontar, também, as vias mais directas para as atingir.3 Só dessa forma se pode entender a componente prescritiva dos programas, na medida em que implica uma correlação directa entre as finalidades e os métodos para as alcançar. Um plano traduz, assim, “o que em cada momento cultural e social, é definido como o conjunto de conhecimentos, habilidades, valores e experiências comuns”. Essa tarefa deve ser cumprida “em termos prescritivos.” Ainda de acordo com Zabalza, (1992:13) deveremos entender o conceito de “programa” como um documento que operacionaliza um vasto conjunto de prioridades que nele devem estar inscritas, pois no acto de programação “adoptam-se determinados tipos de decisões relativamente a conteúdos, métodos, prioridades, recursos, etc.” Por conseguinte, os programas devem contemplar um conjunto de interacções não apenas pedagógicas mas também didácticas e devem propor e definir quais as actividades de ensino-aprendizagem mais capazes de alcançar os objectivos previamente estipulados para o contexto educativo a que se destinam. Algumas correntes de desenvolvimento curricular consideram que o Programa deve conter uma “planificação bastante pormenorizada dos métodos, actividades e materiais de ensino-aprendizagem”, como nos lembra Ribeiro (1990:148). O mesmo autor preconiza ainda que devem ser respeitadas as seguintes dimensões na feitura dos programas: a) princípios pedagógicos que orientam e estruturam as acções do professor e as correspondentes actividades dos alunos no sentido de alcançar os 237
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objectivos visados e que se descrevem sob a forma de modelos de ensino; b) métodos pedagógico-didácticos gerais; (...) d) materiais de ensino-aprendizagem para uso de professores e/ou de alunos.”
Como é consabido, está em curso uma revisão de alguns planos curriculares do Ensino Básico, entre os quais se contam os de Língua Portuguesa. De que modo devem ser delineadas estas novas orientações e que perspectivas se poderão adoptar? Será necessário reformular o actual programa em profundidade e extensão, alterando a sua estrutura, ou bastarão determinadas alterações pontuais para desenhar novas linhas de orientação? Qualquer que seja a opção metodológica, o currículo de Português para o Ensino Básico deverá ser entendido como um conjunto orgânico de orientações muito precisas, capazes de disponibilizarem aos professores dos três níveis de ensino uma visão programática de conjunto, fundamentada e coesa, dotada de um resistente fio condutor entre os três ciclos. Esse documento deverá possibilitar, também, uma leitura ágil aos professores, pois ele constituirá um instrumento de trabalho, de consulta eficaz e de orientação rigorosa na prática quotidiana. O propósito nuclear desta sucinta reflexão é, por conseguinte, enumerar certos aspectos cruciais relacionados com o desenho curricular em curso e, muito em particular, avançar algumas sugestões quer genéricas, quer específicas acerca do currículo do 1º Ciclo, tarefa primordial que me está atribuída e em função da qual integro a equipa da comissão de revisão. O texto curricular em causa terá de ser concluído em 2009, de modo a, após o período para auscultação e homologação, entrar em vigor no ano lectivo 2010/11, substituindo o actual, datado de 1991, e que foi, por sua vez, objecto de alterações operadas em 1998. Ora, este movimento de renovação curricular, iniciado já há alguns anos, abrange todo o ensino básico e surge no seguimento de uma alteração curricular no Ensino Secundário, consubstanciada no Programa de 2004. Os trabalhos preparatórios desta revisão têm sido liderados por equipas nomeadas pela DGIDC. Elas têm produzido análises e recomendações várias acerca do modo como os programas se devem articular, quais as áreas que devem conter e quais as necessidades a que devem responder.4 A quem se destina, pois, este novo Programa? Aos alunos? Aos professores? Aos pais? Aos editores de livros escolares? A resposta é: a todos, ainda que, entre estes agentes, o programa deva ser elaborado especificamente para uma faixa profissional que o deve eleger como instrumento de trabalho: os docentes. 238
O novo Programa de Português para o 1º Ciclo do Ensino Básico: Orientações e Perspectivas
Qual é, pois, a configuração desse instrumento de trabalho que o professor usa diariamente, que consulta amiúde, que lhe serve de base à programação, que o orienta na prossecução as actividades de ensino-aprendizagem, que o rege na estruturação das unidades didácticas e em todas as tarefas de ensino? Qualquer professor a quem seja colocada esta questão responderá, de imediato, que ele deve ser objectivo, claro, conciso, de fácil leitura e manuseamento e, sobretudo, que contenha, de modo inequívoco, linhas de orientação muito precisas, capazes de estear o seu trabalho porque – e não percamos de vista este aspecto – um programa é um dispositivo de trabalho diário, que deve revelar-se funcional e prático. Enquanto documento de consulta obriga-se a uma clara disciplina de organização interna e de transparência. Na realidade, qualquer programa é, antes de mais, um instrumento de navegação didáctica devendo, pois, obedecer a regras de clareza que permitam a qualquer professor rastrear a informação pretendida. Como sabemos, é por vezes frequente os professores, perante a complexidade de um currículo pouco explícito e rarefeito, refugiarem-se nos manuais escolares, colocando-os a montante do próprio programa. Assim, destacaria de seguida alguns aspectos específicos que deverão ser levados em linha de conta na reformulação do plano curricular destinado ao 1º Ciclo. II. O Programa de Português do 1º Ciclo do Ensino Básico: algumas orientações sobre a forma e conteúdo Atendendo às especificidades destes quatro anos iniciais que correspondem a um modelo globalizante de ensino, a cargo de um professor único, e onde se privilegia um desenvolvimento integrado de actividades e áreas de saber, é necessário que a arquitectura curricular seja suficientemente nítida, de forma a que o professor se possa orientar, com facilidade, fazendo deste instrumento curricular um recurso capital na sua prática pedagógica. O desígnio maior neste ciclo passa por estimular o nível de exigência no domínio da língua portuguesa, numa perspectiva de reforço de um core curriculum, pelo que julgo conveniente, também, aumentar o número de horas reservadas para as actividades e ela respeitantes, sem que isso represente um acréscimo de conteúdos. Uma solução desejável, que será sempre de equilíbrio, poderá passar pela redistribuição das horas de trabalho adstritas às actividades de leitura e de escrita em contexto lectivo, com a supervisão e apoio do docente, à semelhança do que têm sido as experiências levadas a cabo em países europeus, como em França, por exemplo. Na construção deste currículo continuará a ser relevante contemplar princípios orientadores, objectivos gerais e específicos e blocos de aprendizagem subordinados às actividades de ouvir/falar, ler/escrever, adoptando-se uma perspectiva transversal sobre o conhecimento da língua. 239
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Essa orientação não invalida, porém, que sejam indicados, de modo preciso, todos os conteúdos de funcionamento da língua que se julgam ser necessários compreender e aplicar contextualmente, ao longo de cada um dos anos que compõem este ciclo de ensino. Estou em crer que uma das chaves desta revisão deve abrir o conhecimento explícito da língua, iniciando precocemente um trabalho de consolidação que, no actual modelo curricular, é substancialmente diferido para o 2º ciclo. Considero ainda ser importante distinguir conteúdos para os primeiros dois anos de escolaridade. Esta opção permitirá oferecer ao professor a possibilidade de configurar, de modo mais eficaz, o seu trabalho de planificação das actividades. Também por este motivo, será relevante considerar, quer para efeitos de definição de conteúdos, quer de competências, os dois primeiros anos de escolaridade como um todo, assim como os 3º e 4º, seguindo uma lógica de complementaridade, em que os dois primeiros anos incidem maioritariamente sobre o ensino da decifração e os dois últimos sobre a compreensão e interpretação.5 Outro passo importante no incentivo à leitura que convém estender aos níveis de ensino subsequentes, é a apresentação de um número alargado de livros de Literatura para a Infância, trabalho que deverá partir do acervo do Plano Nacional de Leitura. À semelhança de qualquer processo de reformulação curricular, uma das prioridades iniciais para este programa consiste em aplicar, de modo inequívoco, uma estrutura de grande legibilidade que o configure como um todo, apresentando-o aos professores como um programa único para os três ciclos e com elevado grau de estabilidade entre anos lectivos e ciclos. É por essa razão que considero ser prioritário adoptar um modelo com uma formulação simples e prática e contendo nítidas indicações de progressão de nível. Em nome da legilibilidade e do fácil manuseamento é, pois, recomendável que o desenho curricular contemple, entre outros itens: lista de conteúdos; elenco de competências essenciais e, ainda, aspectos relacionados com a avaliação. Para que estes curricula não se tornem inutilmente extensos é fundamental adaptálos às actuais realidades lectivas e às tendências curriculares, segundo as quais “o Professor é o gestor do currículo.” Esta opção deixa nas mãos do docente, de modo legítimo, as decisões de operacionalização do currículo e à sua realidade educativa e contextual da sala de aula. É imperioso também que este texto mantenha uma forte articulação, coesão e coerência com os ciclos seguintes, evitando repetições, ainda que continue a adoptar o conceito de “currículo espiralado” (Bruner:1966) – opção que nos parece ser a mais consentânea com a progressão destes planos e mais uniforme, relativamente a todo o currículo do Ensino Básico. Os 2º e 3º Ciclos deverão seguir, igualmente, orientações gerais semelhantes e outras que, de modo mais específico, respondem às exigências próprias dos seus 240
O novo Programa de Português para o 1º Ciclo do Ensino Básico: Orientações e Perspectivas
tecidos programáticos e dos seus destinatários. Para além destes aspectos gerais, destacaria ainda, de modo mais específico mas breve, algumas linhas e opções que considero fundamentais adoptar, como por exemplo: • uniformização do nome da disciplina para Português, à semelhança dos restantes planos de língua no Ensino Secundário; • maior ligação entre as capacidades e os conhecimentos dos alunos, alargando o conceito de competência; • melhoria da estruturação de conteúdos e a demarcação nítida das fronteiras e das etapas nucleares de ensino; • clarificação dos referenciais de desempenho dos alunos; • imbricamento permanente entre as actividades de escrita e de leitura que são, neste nível de ensino, complementares e indissociáveis; • definição rigorosa de competências discursivas e textuais variadas, onde devem pontificar o trabalho sobre os usos e registos de língua mais elaborados; • integração crescente das TIC nas aprendizagens de Português; • atenção particular a aspectos de gestão interna do programa, nomeadamente à inclusão de notações sobre a avaliação, às estratégias de ensino e às actividades de aprendizagem mais produtivas; • inclusão de um glossário terminológico capaz de permitir aos professores uma acentuada estabilidade e harmonização metalínguistica em torno dos conceitos-chave utilizados; • reforço assinalável do Conhecimento Explícito da Língua enquanto área de saber, e a necessidade de sistematização desses conhecimentos ao longo do ciclo, privilegiando as progressões incisivas e devidamente articuladas dos conteúdos, sobretudo com os ciclos seguintes; • privilégio de dinâmicas curriculares assentes na progressão, sistematização e no reforço de experiências significativas de aprendizagem. Estou em crer que a alteração destes aspectos poderá contribuir para a legibilidade do novo programa, para a sua aceitação pelos professores como instrumento de trabalho e de programação das actividades lectivas quotidianas e, muito justamente, para reposicionar este instrumento como primordial utensílio pedagógico no sistema educativo.
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O novo Programa de Português para o 1º Ciclo do Ensino Básico: Orientações e Perspectivas
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1
Este artigo foi redigido em Abril de 2008 e apresentado publicamente a 29 de Junho do mesmo ano, no I Encontro Internacional de Ensino da Língua Portuguesa, na Escola Superior de Educação de Coimbra. À data, o autor integrava a comissão de revisão dos Programas do Ensino Básico. Todavia, e por motivos pessoais, abandonou o referido grupo de trabalho. Assim, as opiniões aqui expressas e as linhas de orientação enumeradas reflectem os contributos pessoais produzidos no subgrupo de trabalho do 1º CEB nesse momento, bem como algumas das conclusões genéricas que, nessa altura, tinham sido já produzidas pela referida comissão.
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Vd. “A origem do currículo como campo de estudo e investigação não é fruto de um interesse meramente académico, mas de uma preocupação social e política por tratar de resolver as necessidades e problemas educativos de um país, é uma conveniência administrativa, não uma necessidade intelectual.” in Contreras, José (1990:182) Enseñanza, currículum y profesorado. Madrid: Akal. Efectivamente, as motivações actuais da área de desenvolvimento curricular são, cada vez mais, desencadeadas pelas necessidades e pelas preocupações sociopolíticas e pelas exigências de um determinado sistema educativo. O seu relacionamento baseia-se, pois, na necessidade de obter respostas a problemas específicos sobre os rumos educativos de uma sociedade.
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Cf. ”Quando não são claros, públicos e inequívocos os objectivos gerais da educação a que se submete; quando não é nítida a correlação com os outros programas das outras disciplinas; quando não é nítida a elucidação das metodologias preferenciais e comprovadamente melhor produtivas (...) o programa é uma peça sem significado”. Texto divulgado pela Direcção Geral do Ensino Básico, “Encontro sobre Interdisciplinaridade”, 1982; cit. in Lopes, António (org.) (1988) Desenvolvimento Curricular. Instituto Politécnico de Setúbal-Escola Superior de Educação. Estas afirmações (produzidas num momento-chave do desenvolvimento curricular que antecedeu a edição dos programas de 1991) atestam a importância 243
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conferida aos planos de estudo como instrumentos de definição dos objectivos de um sistema de ensino mas, também, como utensílio regulador das práticas e das actividades escolares. 4
Entre outros, destaco os seguintes documentos: • Ensino Básico – Organização Curricular e Programas, — 1º Ciclo (1991), Lisboa, M.E – DGEBS; • Ensino Básico – Organização Curricular e Programas, volume I, — 2º Ciclo (1991), Lisboa, M.E – DGEBS; • Ensino Básico – Organização Curricular e Programas, volume I, — 3º Ciclo (1991), Lisboa, M.E – DGEBS; • Ensino Básico – Organização Curricular e Programas, volume II, — 1º Ciclo (1991), Lisboa, M.E – DGEBS; • Ensino Básico – Organização Curricular e Programas, volume II, — 2º Ciclo (1991), Lisboa, M.E – DGEBS; • Ensino Básico – Organização Curricular e Programas, volume II, — 3º Ciclo (1991), Lisboa, M.E – DGEBS; • A Língua Materna na Educação Básica: competências nucleares e níveis de desempenho, documento que explicita as opções do Currículo Nacional do Ensino Básico. (1997) • Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais. (2001): Lisboa, DEB- ME.
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Uma divisão semelhante, em fases, esteve em vigor no 1º CEB entre 1978 e 1990.
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Falantes Conscientes, Leitores Competentes
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Rosa Maria Lima e Cláudia Sofia Pais Tavares Ferreira Colaço ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO PAULA FRASSINETTI
Resumo A presente comunicação tem por objectivo apresentar um programa de intervenção ao nível das competências metafonológicas da criança, quer numa perspectiva de reeducação, com vista a melhorar os desempenhos em leitura e escrita de crianças em idade escolar, quer com a finalidade de prevenir perturbações específicas a esse nível, através de uma intervenção precoce no âmbito da educação pré-escolar. Constituído por um conjunto de actividades que incidem em diferentes tipos e níveis de habilidades metafonológicas, desde a segmentação à manipulação silábica e fonémica, o programa apresenta duas vertentes: a primeira visa identificar as sub-áreas do conhecimento fonológico que se encontram deficitárias na criança (fase de diagnóstico); a segunda fase, a qual remete já para a intervenção, tem por objectivo consciencializar, de forma progressiva, a criança, da sua linguagem oral, através da análise dos seus componentes – palavra, sílaba, fonema – e a sua adequada apropriação do segundo sistema simbólico da linguagem, o código escrito. O acesso ao referido programa passa, inicialmente, pela testagem articulatória dos vários fonemas e seus contextos silábicos no português europeu, a fim de orientar para uma reeducação dos mesmos, sempre que oportuno. A detecção de desvios de cariz fonológico, tais como a ocorrência de metáteses, omissão de sílabas em palavras polissilábicas, substituições de distinta natureza e ainda a possibilidade de ocorrência de harmonias consonantais, são também alvo de avaliação nesta primeira fase de pré-candidatura ao programa de reeducação metafonológica. O referido programa encontra a sua fundamentação na abordagem teórica psicolinguística das perturbações específicas de aprendizagem – leitura / escrita. Amplamente testada por estudos científicos válidos, nacionais e internacionais, esta abordagem tem vindo a tornar inequívoca a relação de causalidade existente entre dificuldades na leitura e na escrita e o fraco conhecimento fonológico da criança. Palavras-chave
Linguagem; Metafonologia; Leitura / Escrita.
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O Papel da Metafonologia na Aprendizagem da Leitura / Escrita • Metafonologia é uma vertente da metalinguagem cuja atenção consciente incide sobre o sistema fonológico de uma determinada língua. Barrera e Maluf (1997 cit. in Salgado & Capelli, 2004) definem metafonologia, como “uma capacidade cognitiva metalinguística que se desenvolve de acordo com a compreensão da linguagem oral” (Barrera e Maluf, 1997, cit. in Salgado & Capelli, 2004:181). Capovilla e Capovilla (2000, cit. in Lopes, 2004) explicam que o conhecimento fonológico se refere tanto à tomada de consciência de que a fala pode ser segmentada, quanto à capacidade de manipular tais segmentos, desenvolvendo-se à medida que a própria criança se vai desenvolvendo e criando uma consciência de que o discurso oral é composto por palavras, sílabas e fonemas, unidades identificáveis. Deste modo, a Metafonologia pode ser entendida como o conjunto de habilidades que vão desde a simples percepção global da extensão da palavra e das semelhanças fonológicas entre as palavras, até à segmentação e manipulação de sílabas e fonemas. A maioria dos estudos nesta matéria tem sido produzida em língua inglesa, embora muito recentemente se assista a uma proliferação de investigações quer em Espanhol quer em Português, sobretudo no Brasil. É a partir do final dos anos 70 que investigadores como Liberman e Vellutino começam a apresentar resultados que enfatizam a importância do processamento fonológico e da consciência fonológica para o processo de alfabetização. Actualmente, são já numerosos os estudos que se referem à importância das relações entre a oralidade e a escrita, no processo de aquisição desta última, salientando, não só as afinidades entre os dois sistemas, mas sobretudo os traços que os diferenciam (Trumbull, 1984 cit. in Villas-Boas 2000: 14). Do mesmo modo, a investigação realizada no domínio específico da aquisição da leitura tem vindo a acentuar a importância das competências de processamento fonológico para a aquisição das habilidades básicas de descodificação. Com efeito, quando falamos de competências de leitura e escrita, a base oral é inegável. No momento em que a criança inicia a sua aprendizagem escolar, traz já consigo todo um legado linguístico, de carácter oral, estruturado nas suas componentes fonético-fonológica, morfossintáctica, semântica e pragmática, específicas do seu património linguístico-cultural. No início da escolarização, a criança vai confrontarse com uma nova experiência de simbolização: tudo o que diz, pensa e sente passa a assumir contornos gráficos, que, nos seus contactos informais com a linguagem escrita, aprendeu a designar por letras e palavras. À criança é exigido que, agora de modo formal e explícito, aprenda a descodificar novos símbolos linguísticos, desta vez pela via sensorial visual. O domínio da escrita é, assim, o resultado de um longo processo de organização da capacidade de simbolizar, isto é, o resultado do desenvolvimento da linguagem e da fala. Vários são os autores que parecem reunir consenso ao defenderem que a 246
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aprendizagem da leitura e da escrita requer uma reflexão deliberada sobre a linguagem na sua expressão falada. A escrita constitui uma forma de codificação da linguagem humana, representa as unidades do oral por meio de “letras”, recriando o conjunto dos sons e das suas “regras de convivência interna” que constituem o sistema fonológico de uma língua. Enquanto a fala é adquirida e utilizada pela criança de forma natural e eficiente nas situações de comunicação do dia-a-dia, a escrita exige uma aprendizagem explícita, dada a sua natureza convencional que apenas será proporcionada através de um conhecimento fonológico. Como referem Valente e Martins (2004), ler é uma habilidade linguística, das mais complexas no âmbito da linguagem, daí que o autor considere que o melhor caminho para aprender a ler é, pois, o entendimento dos fenómenos linguísticos que subjazem ao acto de ler. Como explica o mesmo autor, a língua “ tem a sua âncora na fala”, sendo por isso imprescindível que os falantes aprendizes da leitura e da escrita estejam conscientes da relação estreita entre a oralidade e a escrita. Luria (1987, cit. in Salgado & Capelli, 2004), refere nos seus estudos que a linguagem escrita inclui a aprendizagem de uma série de processos ao nível do fonema, nomeadamente: a procura de sons isolados, sua contraposição, a codificação de sons separados em letras e a combinação de sons e letras isoladas em palavras completas. É nesta medida que Valente e Martins (2004) salienta que a escrita não é superior à fala, assim como o contrário não é verdadeiro. Trata-se antes de dois sistemas simbólicos interdependentes ainda que com especificidades próprias nos processos que mobilizam. Na opinião de Gombert (1990, cit. in Barrera & Maluf, 2003; 1992, cit in Snowling, 2004), a compreensão das diferenças entre a oralidade e a escrita exige um nível mais alto de abstracção e elaboração cognitiva, o que apenas será conseguido com uma reflexão intencional sobre os diversos aspectos da linguagem. Esse nível de conhecimento metalinguístico, irá permitir ao leitor “reconstruir as várias partes da estrutura de superfície representada por escrito” (Barrera & Maluf, 2003: 491) Vicente e Martins (2004) defendem dois pontos, na sua e nossa opinião, essenciais para o processo de alfabetização: por um lado, a aprendizagem eficiente da leitura deverá passar, obrigatoriamente, pelo que designa de alfabetização fonológica, isto é, pela escuta activa dos sons da fala para depois ingressarem na alfabetização ortográfica. Por outro lado, consideram de especial importância a formação para a consciência fonológica e o domínio de habilidades metalinguísticas para o desenvolvimento da leitura fluente. Apelam ao ensino formal e sistemático da correspondência entre letras e fonemas da língua, dado que se trata de uma correspondência não unívoca por existirem mais sons da fala do que letras para representá-los. Para os autores, o trabalho em consciência fonológica favorece o ensino da ortografia. Barrera e Maluf (2003) salientam igualmente a importância da metalinguagem para o acesso ao código escrito, na medida em que “a leitura é uma actividade complexa que requer a habilidade metalinguística de reflectir sobre a linguagem, tornando-a como objecto do conhecimento” (Barrera & Maluf, 2003: 492). 247
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No início dos anos setenta, quando os primeiros investigadores começaram a debruçar-se sobre o papel da metafonologia na aprendizagem da leitura e da escrita, o debate entre a comunidade científica revelou-se polémico, na medida em que, enquanto uns advogavam que a consciência fonológica constitui um pré-requisito para aquelas aquisições básicas, outros defendiam que era a aprendizagem inicial da leitura que iria permitir desenvolver na criança uma consciência do sistema fonológico da sua língua. Vários estudos vieram a comprovar que a relação entre as duas habilidades assenta numa reciprocidade, em que cada uma se constitui, ao mesmo tempo, como prérequisito e resultado da outra. Esta relação de reciprocidade deve-se à complexidade dos processos metafonológicos e de leitura, compostos por diversas sub-habilidades. Assim, as fases iniciais de consciência fonológica (consciência de rimas e sílabas) permitem desenvolver os estágios iniciais da leitura; por sua vez, são as habilidades elementares de leitura que permitem desenvolver habilidades metalinguísticas mais complexas como a manipulação de fonemas (Grégoire & Piérart, 1997, cit. in Capovilla, Capovilla & Soares, 2004; Barrera & Maluf (1997), cit. in Salgado & Capelli (2004). Defende-se assim actualmente que, para aprender a ler, é necessário que a criança tenha uma competência mínima na capacidade de reflectir sobre a oralidade; por outro lado, é o contacto com os símbolos gráficos que lhe irá facultar o acesso a níveis de consciência fonológica mais elaborados. Habilidades percursoras das metalinguísticas podem ser observadas em crianças já a partir dos dois e três anos de idade, como por exemplo as auto-correcções durante a fala; trata-se de habilidades que não podem ser consideradas metalinguísticas mas epilinguísticas (Gombert, 2003, cit. in Capovilla, Capovilla & Soares, 2004)1. Contudo, a análise da estrutura formal da linguagem é rara no contexto das etapas iniciais do desenvolvimento da linguagem, sendo o momento da aquisição da escrita aquele em que se verifica uma aceleração no desenvolvimento da metalinguagem. Autores como Wagner e Torgesen (1994 cit. in Lopes, 1998) distinguiram, na definição de consciência fonológica, a “sensibilidade para” e a “explícita consciência” da estrutura fonológica das palavras. A análise explícita desta estrutura pode ser efectuada ao nível das sílabas, dos fonemas e das unidades intrassilábicas (ataque / rima). A maior ou menor dificuldade em tarefas de consciência fonológica depende do grau de abstracção dos segmentos sonoros a analisar, sendo os fonemas as unidades mais abstractas da fala. Em estudos cujas amostras são constituídas também por adultos, ficou demonstrado quão difícil se torna, por vezes, a tarefa aparentemente simples de segmentar uma palavra falada nas suas componentes fonémicas. Este aspecto permitiu aos investigadores compreender que existem diferentes etapas do desenvolvimento da consciência fonológica e que, de entre as habilidades metafonológicas, umas são adquiridas mais precocemente do que outras, deixando perceber uma lógica de complexidade crescente. Podemos então afirmar que a consciência fonológica se desenvolve a diferentes níveis e em momentos cronológicos mais ou menos distintos. Remetendo também para um continuum no desenvolvimento da consciência fonológica, Sim-Sim (2006) salienta que, para 1 Gombert designa tais habilidades de epilinguísticas, diferenciando-as das metalinguísticas por ocorrerem de forma não intencional na criança, ao contrário dos comportamentos metalinguísticos que se encontram sob controlo consciente. 248
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além do factor idade como influente nos desempenhos das crianças em actividades daquele âmbito, é também o tipo de tarefas em si que condiciona a sua maior ou menor eficiência. Deste modo, a autora explica que existe uma gradação no nível de complexidade de análise nas tarefas de reconstrução, segmentação, identificação e manipulação fonológica, dentro de cada nível de consciência fonológica. Nos estágios mais elementares desta competência situam-se o nível silábico e intrassilábico. Os estudos têm revelado que as habilidades de análise de unidades supra-segmentais (rimas, aliterações) são observadas com maior frequência em crianças do pré-escolar e mesmo em adultos analfabetos, sugerindo que tais competências se adquirem de uma forma mais natural, provavelmente por factores de ordem fono-articulatória (Barrera & Maluf, 2003:491). Snowling (2004) refere que as crianças desenvolvem a sensibilidade à rima muito antes da leitura; a este propósito, alguns autores, entre os quais Goswami e Bryant (1990, cit. in Borges 2005:16) chegaram à conclusão que as habilidades de detecção de rima desempenham um papel importante na leitura e na escrita nos seus estádios iniciais de aquisição, sendo portanto percursoras de tal aprendizagem. Também desde cedo, a partir dos 4 anos, as crianças são capazes de dividir palavras em sílabas, constituindo igualmente esta capacidade um elemento antecipatório de um processo de alfabetização adequado. Os níveis mais complexos de consciência fonológica remetem para uma reflexão intencional sobre a estrutura interna das palavras ao nível fonémico, cuja competência se verifica na capacidade do indivíduo em segmentar as palavras nas unidades mínimas da fala (fonemas). Exigindo um grau de abstracção mais elevado, trata-se de uma habilidade que surge mais tarde, segundo Snowling (2004), por volta dos 6 / 7 anos. Tal situação ficará a dever-se ao facto de, para ser bem sucedida neste tipo de actividades, a criança deverá ter uma representação fonológica correcta da palavra, pois tal lhe irá permitir aceder à manipulação das unidades que a compõem. A consciência fonémica é assim, não um pré-requisito da leitura mas uma consequência desta (Morais, 1997). Para a adquirir, são necessárias instruções expressas sobre a estrutura da escrita alfabética através das quais a criança irá familiarizar-se com o mapeamento que este tipo de escrita faz dos sons da fala (Morais, 1995, cit. in Lopes 2004). Esta parece ser a razão que suporta a tese de que a consciência silábica é uma capacidade anterior à consciência fonémica (Ferreiro e Teberosky, 1986, cit. in Barrera e Maluf, 2003; Lopes, 2004). Tarefas como a eliminação de fonemas iniciais ou a transposição de fonemas - troca de sons iniciais de duas palavras (“lua cheia” / “chua leia”) são algumas das mais complexas e portanto passíveis de serem conseguidas por crianças mais velhas (Snowling, 2004). Alguns autores defendem ainda que a consciência intrassilábica parece situar-se num nível intermédio de dificuldade, entre a sílaba e o fonema (Valente e Martins, 2004). No que se refere à consciência lexical - habilidade para segmentar o discurso oral em palavras - trata-se de uma competência que, na opinião de Barrera e Maluf (2003), só é adquirida de forma sistemática por volta dos 7 anos, em leitores normais; referem que esta habilidade só acontece antes daquela idade no caso de palavras com função semântico-referencial bem definida, o que leva, na opinião dos autores, a algumas 249
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confusões quanto à aquisição desta competência metalinguística. Actualmente, a investigação nesta área incide na tentativa de compreender que tipo e níveis de consciência fonológica são importantes para que sejam adquiridos diferentes graus de aquisição do código escrito e diferentes níveis de competência de leitura. Compreender o Princípio Alfabético Os diversos sistemas de escrita, apesar de todos eles representarem, de alguma forma, a linguagem oral, diferem no nível de estrutura linguística que representam. Assim, enquanto os sistemas logográfico e silábico representam a linguagem, respectivamente, ao nível lexical (os símbolos gráficos representam palavras / morfemas) e ao nível silábico (cada símbolo representa uma sílaba), nos sistemas linguísticos alfabéticos, a linguagem oral é representada ao nível fonémico (Carreteiro, 2005). A aprendizagem da leitura e da escrita implica a descoberta de conceitos relacionados com a natureza das correspondências entre a linguagem escrita e a linguagem oral. No caso da Língua Portuguesa (e das restantes línguas alfabéticas), implica compreender que a linguagem oral é “traduzida” na escrita através do estabelecimento de correspondências entre os fonemas, unidades abstractas que representam os sons e os grafemas, símbolos gráficos convencionados para representar também os sons, mas em suporte impresso. Um potencial leitor de uma escrita alfabética terá que fazer duas aprendizagens básicas: que os símbolos impressos representam unidades da fala e que a unidade representativa da fala é o fonema (Wagner e Torgesen, 1987, cit. in Borges 2005). Silva (2004) explica que: • A complexidade do princípio alfabético requer da criança um nível de raciocínio conceptual bastante sofisticado. Requer a compreensão de que na escrita alfabética todas as palavras são representadas por combinações de um número limitado de símbolos visuais, as letras, e que estas codificam os fonemas. (Silva, 2004: 188) A consciência de que a fala apresenta uma estrutura fonémica permite à criança utilizar um sistema generativo para converter ortografia em fonologia, capacitando-a da leitura de qualquer palavra regular que envolve correspondência grafo-fonémica (Alégria e Mousty, 1996, cit. in Salgado e Capelli, 2004: 180). Vários são os estudos que apontam para uma relação entre dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita e dificuldades em estabelecer as correspondências fonemas-grafemas, isto é, uma dificuldade em compreender o princípio alfabético. 250
Falantes Conscientes, Leitores Competentes
É, pois, a compreensão do princípio alfabético que permitirá à criança tornar-se consciente da natureza fonológica da sua linguagem. Morais (1997) vai mais longe, afirmando que o patamar da consciência fonémica, geralmente não adquirida em crianças não alfabetizadas, “nunca antecede a aquisição, mesmo que parcial, do código alfabético” (Morais, 1997:169). Contudo, a compreensão da escrita alfabética não é tão evidente quanto se possa pensar, pois como refere Morais, “o fonema é uma entidade bem escondida no nosso inconsciente cognitivo”. O autor salienta: • Para achar o acesso ao código, é preciso, tal como para uma porta, encontrar a chave que se adapte à fechadura (…). A chave que pode abrir a fechadura do código alfabético é a descoberta do fonema.
(Morais, 1997:78)
Segundo Morais (1997), é nesta descoberta que reside a dificuldade na aprendizagem do código escrito, mais do que nas convenções ortográficas2. Daí que algumas teorias realcem a ideia de que a compreensão do princípio alfabético se torna mais acessível se a aprendizagem da leitura contemplar, em paralelo, uma reflexão sobre o oral e sobre o escrito. Ao questionar as razões que conduzem a uma dificuldade, por parte da criança, em tomar consciência dos fonemas, o autor em referência apela à sobreposição temporal de fonemas na cadeia falada, que surge como um continuum de co-articulações produzidas a uma grande velocidade. Como refere também, torna-se necessário “passar do fonema inconsciente à consciência do fonema” (Morais, 1997:90), e que é através do alfabeto que “o fonema deixa de ser inaudível” (idem: 91). Daí a importância da sua descoberta. O Programa de Intervenção / Reeducação Metafonológica: Princípios, Estrutura e Actividades A elaboração do Programa de Intervenção teve como premissas - base as delineadas nos chamados métodos formais / directivos. Uma vez que, para adquirir um conhecimento explícito sobre a língua que falamos é necessário reflectir sobre ela, este objectivo só será plenamente alcançado se existir uma maior directividade da criança e se a cada tarefa proposta estiver subjacente uma intencionalidade bem definida. Na construção dos materiais, foi nossa preocupação também alternar tarefas estritamente directivas, em que a criança é suposta responder unicamente o que lhe é pedido, e algumas mais espontâneas, em que haverá uma maior liberdade nas 2 Sem descurar as dificuldades que a complexidade da ortografia coloca à criança que aprende a ler, Morais fundamenta que a mesma não é razão fundamental para tais dificuldades, referindo que muitas crianças falham mesmo nas línguas que têm uma ortografia quase inteiramente regular. 251
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respostas, conferindo ao programa um carácter mais equilibrado e agradável. Subjacente também aos métodos do tipo formal encontra-se o princípio da sequencialidade na selecção e apresentação dos objectivos e materiais. Na verdade, o plano encontra-se estruturado numa lógica de dificuldade crescente, segundo a qual não podem ser adquiridas certas habilidades enquanto outras não estiverem já conseguidas, atendendo às etapas do desenvolvimento neuropsicolinguístico da criança e a toda a investigação apresentada no domínio do conhecimento fonológico. A este propósito, consideramos que, embora o objecto do nosso trabalho se centre na reeducação metafonológica, constando apenas materiais que trabalham competências desta área, será pertinente, quando se verifique essa necessidade por parte da criança, incluir duas áreas que devem ser trabalhadas anteriormente à metafonologia, em nossa opinião e na de muitos autores. Trata-se de aspectos considerados pré-metafonológicos, na medida em que o seu pleno domínio irá facilitar a aquisição de habilidades metafonológicas: o processamento auditivo (Percepção / Discriminação de sons do meio ambiente e memória auditiva - sequencial) e processamento auditivo verbal (Percepção / Discriminação de sons da Língua Portuguesa, na variação portuguesa, e memória verbal auditiva sequencial). Assim, em função do “patamar” em que se encontra a criança relativamente a estas questões, a intervenção terá início numa das “pré-competências” ou num dos níveis da reflexão sobre a oralidade. No que se refere às habilidades metafonológicas propriamente ditas, surgem dois níveis de reflexão neste Programa: o primeiro nível incide no treino da consciência silábica, pela exercitação de habilidades como a segmentação de palavras em sílabas, sua contagem e representação gráfica; identificação, discriminação e manipulação de sílabas de palavras a partir de estímulos visuais, com o correspondente sonoro; atenção auditiva e memorização auditiva sequencial de sílabas e palavras progressivamente maiores em número de sílabas. O segundo nível de reflexão corresponde às competências de consciencialização fonémica e visa as mesmas habilidades trabalhadas com a sílaba, mas desta vez, ao nível dos elementos segmentais mínimos da fala, os fonemas. Os dois objectivos máximos subjacentes a todo o Programa prendem-se com a compreensão das relações entre linguagem oral e linguagem escrita e o aumento da eficiência nos desempenhos em leitura / escrita. Dentro de cada nível existe também uma ordenação sequencial lógica dos subníveis, bem como dos objectivos / estratégias propostos para cada um. Por exemplo, a discriminação silábica precede a manipulação de sílabas, dado que esta última se reveste de um nível de exigência cognitiva superior; a segmentação silábica de dissílabos precede a mesma actividade com polissílabos, dado que o grau de dificuldade aumenta com o aumento do número de sílabas da palavra; em tarefas de manipulação, a supressão de sílabas é trabalhada anteriormente à inversão de sílabas, pela mesma lógica do critério da dificuldade crescente. 252
Falantes Conscientes, Leitores Competentes
Foi também intencional o facto de, a cada objectivo apresentado, fazer corresponder actividades diferentes entre si, oferecendo à criança o máximo de diversidade de tarefas possível. Com efeito, o reeducador deverá sempre, para cada área de intervenção, seleccionar exercícios diversos nas suas formas, com um objectivo comum. O trabalho de reeducação requer muita persistência, pelo que não se deve descurar a diversificação de estratégias e actividades pois, caso contrário, poderão tornar-se algo maçadoras para a criança. Para além deste aspecto, quanto mais ricas forem as experiências de aprendizagem vividas, maior será a estimulação e o seu desenvolvimento cerebral. Uma quarta premissa a ter presente neste tipo de intervenção é a importância de planear também os reforços a encetar com a criança, sejam materiais ou afectivos, devendo os mesmos ser adequados e reajustados sempre que necessário. Tais reforços são muito variáveis, dependendo sobretudo da idade, sensibilidade e interesses da criança em questão. A oferta dos modelos correctos deve ser um outro aspecto a privilegiar na intervenção; esta estratégia deverá ser permanente, com vista ao incremento da representação interna e de modo a estabelecer uma identidade automática entre o significado e o significante. Qualquer incorrecção será, assim, imediatamente corrigida. É igualmente importante que seja dado ênfase ao que realmente se encontra instável na criança e se pretende trabalhar, o que pode ser implementado através do reforço prosódico do aspecto visado (fonema(s), sílaba(s)…). Do mesmo modo, a selecção do material deverá ser ajustado ao contexto educativo em que decorrer a intervenção. Um outro aspecto que determinou a elaboração do Programa prende-se com o facto das actividades partirem de níveis máximos de facilitação tendo sido seleccionadas como estratégias iniciais aquelas em que a criança dá respostas gráficas e motoras a estímulos auditivos, observa imagens, associando-as a sons linguísticos. Gradualmente, tais suportes (visuais, motores) vão sendo eliminados, pois à medida que a criança vai ganhando uma maior consciência da dimensão fonológica da sua língua materna, a mesma deverá ser capaz de manipular os seus segmentos mentalmente, isto é, de forma mais abstracta. Duas últimas questões parecem-nos de grande importância para garantir o sucesso da implementação do Programa e que se prendem com as condições em que decorrerá todo o trabalho: 1) Periodicidade e duração das sessões de reeducação, recomendandose que não excedam os 45 minutos de duração; 2) Controlo da evolução da criança através do registo regular dos seus comportamentos linguísticos, em tabelas construídas para o efeito. É importante que se proceda a uma reactualização gradual dos referidos registos e se vão organizando e seriando as dificuldades detectadas, criando uma dialéctica constante entre avaliação e intervenção. 253
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Os materiais do Programa encontram-se estruturados nos dois níveis de conhecimento fonológico anteriormente referidos: o silábico / intrassilábico e o fonémico. Cada um destes níveis se encontra organizado em actividades que remetem para diferentes sub-habilidades as quais, por sua vez, surgem estruturadas de uma forma sequencial e progressiva, em graus de dificuldade crescente. Para o treino da consciência silábica (nível I do Programa), é apresentado um total de 72 actividades que percorrem as seguintes habilidades: 1. Identificação de Rimas 2. Identificação da Longitude das palavras 3. Discriminação da sílaba inicial comum 4. Discriminação da sílaba final comum 5. Discriminação da sílaba medial comum 6. Contagem de sílabas 7. Representação numérica e gráfica das sílabas 8. Segmentação e reconstrução lexical em polissílabos 9. Discriminação de sílabas iguais a partir de estímulos auditivos 10. Desdobramento lexical 11. Identificação de pares silábicos 12. Inversão de sílabas em dissílabos para formar novas palavras 13. Supressão de sílabas intermédias para formar novas palavras 14. Atenção e memorização auditiva sequencial (sílabas e palavras) Numa fase mais avançada do Programa, o trabalho sobre o conhecimento fonológico incide na unidade sonora mas pequena da Língua Portuguesa, o fonema, sugerindo-se um conjunto de 29 actividades de consciência fonémica, distribuídas pelas seguintes habilidades: 1 – Identificação do fonema inicial dos nomes a partir das respectivas imagens 2 - Discriminação de fonemas iniciais comuns 3 - Discriminação de fonemas finais comuns 4 - Discriminação de fonemas intermédios comuns 5 - Discriminação de fonemas comuns, com localização variável nas palavras 6 - Atenção / memória sequencial auditiva e visual 7 - Atenção / percepção auditiva fonémica 8 - Atenção / percepção auditiva fonémica
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Rosa Oliveira Escola Superior de Educação de Coimbra Armados de dedais, armados de cuidados, Procuraram com garfos e esperança Matá-lo com acções de alguns supermercados E, com riso e sabão, ganhar-lhe a confiança. Lewis Carroll, A Caça ao Snark, tradução de Manuel Resende
Começo com a necessária explicação do título. Do duplo título. E neste desdobramento, a referência em inglês é menos óbvia do que a ironia que a segue. To Our Children’s Children’s Children é o nome de um disco dos Moody Blues gravado entre Maio e Setembro de 1969. Foi o segundo álbum que o grupo britânico gravou nesse prolífico ano e pretendia ser uma homenagem ao acontecimento extraordinário que foi a chegada do homem à lua a 20 de Julho desse ano. O estilo, imponente e bocejante característico do rock progressivo com um ar sinfónico a piscar o olho à solenidade do facto histórico do momento, fazia jus às tendências celebratórias do rock de então. Do rock cada vez menos pop, diga-se de passagem, paradoxalmente numa época tão teoricamente igualizante social e sexualmente. Pelo menos na camada social superior. Embora não me importasse de continuar, não estou aqui para falar de música antiga e de cultura pop (tema ainda a evitar nas academias nacionais, por demais sérias). Voltemos ao disco para tocar o mesmo: apesar do sucesso do álbum, a banda considerou a maior parte das músicas como impossíveis de serem tocadas em público, devido ao luxo extremo das orquestrações e a complicados processos de dobragem e mistura só exequíveis, à época, em estúdio. Neste álbum (e a designação “álbum” também teria bom suco a ser espremido), o centro mental das músicas anda à volta de dois temas apresentados como gémeos: as viagens espaciais e as crianças, ambos envolvidos num embrulho vistoso de várias influências psicadélicas. Esta associação viagem espacial/criança não é inédita – todos nos lembramos do filme paradigmático, anacronicamente modelo inultrapassável da ficção científica durante mais de trinta anos, o consagrado 2001: Odisseia no Espaço. O filme é de 1962, antecedendo em apenas 7 anos a pegada lunar de Neil Armstrong. É curioso o efeito deformador (outros diriam relativizador) da distância temporal, como bem 257
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sabem historiadores e romancistas, ou seja, historiadores e contadores de histórias: em 1962, que nos parece ainda tão perto, 2001 que para nós hoje aconteceu ontem, era um momento mítico e longínquo! Em 62, faltavam apenas 39 anos para 2001, mas esta data representava o futuro enigmático, promissor e distante, enquanto a 2ª Guerra Mundial, terminada havia apenas17 anos, era o passado irrepetível e remoto. Prossigamos: no final do filme de Kubrick, aparece a vogar no espaço a imagem de um feto em estado de maturação quase plena, metáfora da pequenez humana, perdido e sugado pela imensidão do universo, mas incólume, dentro da sua bolsa amnioticamente alcatifada. Na realidade, trata-se da ecografia do filho do realizador, numa época em que a ecografia deveria ter ainda um uso muito restrito, dado que os primeiros usos deste meio de diagnóstico em obstetrícia é dos finais dos anos 50. A este poderíamos acrescer muitos outros exemplos da ligação infância/aventura no desconhecido. Convenhamos que a metáfora não se revela particularmente original: ligar as ideias de aventura (travessia do mar ou do espaço) ao começo de vida e à entrada no mundo é relativamente banal, ainda que a formatação da metáfora possa recorrer a traços mais ou menos singulares e epocais. Correndo embora o risco de insistir em evidências, a minha recolha deste título dos Moody Blues pretende, como já referi, ser também ela uma homenagem a esse extraordinário feito que foi a deslocação do homem para além da terra, a descoberta da ciência ao alcance do cidadão comum, a partilha do saber pelos leigos, ou, pelo menos, dos resultados mais espectaculares do saber científico. Por fim, nesta referência, envio um olhar nostálgico à minha infância: eu tinha 11 anos quando, curiosa capicua, o módulo da Apolo 11 pousou no Mar da Tranquilidade e Armstrong proferiu a célebre frase que, hoje, o meu filho tanto gosta de repetir adaptando a cada situação que lhe convém: “Um pequeno passo para um homem, um salto gigante para a humanidade.” Penso que, dos que assistiram de olhos colados à TV, nenhum de nós esqueceu mais aquelas imagens desfocadas e ténues de dois homens de branco num fato volumoso e blindado a saltarem numa superfície rugosa e cinzenta. Para crianças como nós era talvez um misto de brincadeira irreal aquele saltitar de adultos que mandavam para terra mensagens entrecortadas como se falassem numa rádio mal sintonizada. É certo que nesse ano de 69 e no anterior, 68, muitos outras acontecimentos marcantes se tinham dado, promissores uns, outros dramáticos, grande parte deles de consequências prolongadas e irreversíveis. Mas prefiro destacar este momento que lançava o homem para fora do seu habitat natural e transformava a ciência numa possibilidade de sonho projectado em direcção às gerações vindouras. Daí a escolha do título dos Moody Blues. Tudo o que disse até agora prende-se com a primeira parte do título desta comunicação. Falta referir a segunda que acima qualifiquei como irónica. A minha redescoberta da literatura para a infância, depois de acabada a juventude, depois de ver banalizada a chegada à lua e depois de tantas outras banalizações, fez-se a partir do 258
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ano de nascimento do meu filho: 1998. O ano da Expo. Conheço muitos bebés desse ano. Talvez todos os pais tendam a identificar preferencialmente os bebés nascidos no ano em que o(s) seu(s) nasceu(nasceram), mas penso não estar enganada quando afirmo ter lido a notícia de uma breve explosão demográfica em 98. Chamavamlhes até, creio, os bebés da Expo. Em vez duma explosão demográfica, tivemos uma exposição demográfica. E até agora irrepetida, de acordo com as estatísticas. O que é certo é que quem tem filhos, mais cedo ou mais tarde tem, não só cadilhos, mas esperemos que também livros. Livros para crianças. E fui-me apercebendo que a literatura da minha infância havia sido substancialmente diferente da literatura para a infância dos filhos de agora. E que, muitos de nós, acabamos por redescobrir em idade tardia. Mais ou menos tardia, consoante a idade da maternidade e da paternidade. A julgar, no entanto, pelas tendências, cada vez mais tardia. Está finalmente deslindado todo o título. Uma das observações que fiz — e poderá ser este um dado adquirido há muito entre os estudiosos da literatura para a infância, enquanto para mim veio com a prática, a famosa prática tão incensada pelos que temem mais a teoria do que a matéria tem horror ao vácuo — uma das constatações, dizia, é a de que, muito mais do que poderíamos pensar, as crianças sentem-se fortemente atraídas pelo absurdo e pelos jogos de linguagem, pelos sentidos labirínticos e pelo humor. Diz-se (e escreve-se) com frequência que as crianças são conservadoras, precisam de rotinas, estabilidade e criam rituais que, de algum modo, lhes regularizem a realidade. Numa fase de profunda estruturação, as regras e a repetição fá-las-ão sentir-se mais seguras num mundo novo, admirável, mas também assustador, no mínimo intimidante na sua multiplicidade, diferença e contradição. A aceitação destes dados factuais da psicologia infantil não invalida isto que, quando as crianças ouvem ou lêem uma história, um poema, quando vêem um filme ou descobrem imagens não se interessem pelo lado menos lógico e mais surpreendente do mundo. Creio que será o momento privilegiado para, de alguma forma, desconstruir essa necessidade de ordem e de ajuizamento constantes. Em termos filosóficos, trata-se de fazer uma epokhé. E todos precisamos de epokhés com alguma regularidade. Fenomenológicas ou cépticas, dependendo do grau de empenho ou de contemplação da existência, o certo é que carecemos de epokhés em qualquer idade: é uma questão de sobrevivência. Tenho verificado que muitas das noções básicas de narratologia, teoria e história literárias podem ser encontradas nos textos que mais atraem o público infantil. É o caso do surrealismo e de algumas das suas técnicas frequentes que se volvem tecido e suporte de textos para os mais novos. Ou terá sido o surrealismo que saltou da infância? A par da consabida influência da psicanálise, facilmente se percebe vir da infância uma outra raiz profunda deste movimento artístico. De resto, a psicanálise, também ela, nasce na infância do ser e retorna à infância de cada ser em análise. Naquela época, antes de o homem chegar à lua e quando Portugal começava a 259
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marchar «Para Angola, rapidamente e em força», quantos de nós teríamos livros antes de entrar na escola? Livros nossos, quero dizer. Da minha infância mais recuada, não recordo muitos livros significativos, com excepção de um livro de histórias mitológicas cujo texto cerrado não me inibia o interesse pelas densas intrigas lendárias, da ajuizada Anita com furiosa vocação para dona-de-casa sem desespero possível e da pragmática, sisuda Enid Blyton que nos punha a sonhar com betinhos dentro da lei e longos lanches feitos por mães eternamente fadas do lar. Não confiem, no entanto, neste meu tom mordaz: continuo a gostar de Enid Blyton ainda que a desmontagem dos seus textos seja terreno para largo manancial teórico. Ou talvez por isso mesmo. Mais tarde, já no começo da adolescência, descortinei outro mundo, outra lógica de vida, pela mão dos maravilhosos e transgressores filhos de Mark Twain — Tom Sawyer e, sobretudo, Huckleberry Finn. Muitos destes livros iam sendo descobertos nessa que foi tábua de salvação colectiva para os desocupados e intermináveis dias de férias grandes nos verões de pasmaceira: as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian. No final da 4ª classe, ritual de passagem para um novo ciclo de vida que desconhecíamos chamar-se pré-adolescência, recebi um relógio de pulso e levei com a obra completa de Júlio Dinis, o que aliás não me fez mal nenhum (qualquer dos dois factos: relógio analógico e idealismo da paz social). Era esta a concepção de literatura para os jovens, pelo menos para as meninas: regionalismo nortenho, virtudes da família e boa vontade entre os povos. O que fui descobrindo 30 anos mais tarde com o meu filho mostrou-se bem divergente destes impressionismos literários à antigo regime. Tentarei agora dar uma ideia do que se me foi revelando. Julgo perceber nas crianças quererem algo mais e diferente das histórias com esquemas rígidos tais que o estruturalismo nos propunha como sendo a descoberta da pólvora crítica. Como infelizmente muitos de nós recordamos, essa magra ossatura esquemática era aplicável, quase exclusivamente, a algumas histórias tradicionais, normalmente mais rígidas e enformadas nas suas possibilidades narrativas e mais limitadas nas técnicas usadas. Por isso mesmo são tradicionais, ainda que a tradição possa, eventualmente, ser infractora. Uma sequência do tipo estado inicial/perturbação/ transformação e resolução final é pobre e repetitiva. Satisfaz durante algum tempo, mas rapidamente satura. E aqui ganham as tendências desconstrucionistas (pelo menos por enquanto), pois a miudagem aprecia desmontar o que está à vista e que, curiosamente, vai descobrindo no e pelo mesmo acto em que destrói. Aquele impulso irresistível de desmontar o brinquedo para ver como é por dentro. Mesmo que depois não se saiba montar de novo.
1. Passemos a alguns exemplos: 1.1. Uma qualidade pode materializar-se e dar lugar à animização da realidade. 260
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Deixando em repouso a poesia onde tal procedimento é corrente, e sem procurar delongadamente, ocorrem de imediato títulos que, só por si, indicam o carácter de presenficação de forças animizadoras da natureza. Retiro da estante, ao acaso, um livro como Prosas Bárbaras de Eça de Queirós e deparo com textos como “Memórias.de uma Forca” e “O Lume” (autobiografia do fogo). E poderia prosseguir por Machado de Assis, Teixeira Gomes, António Patrício, para só referir um cantinho da estante. Da do meu filho, recolho A Rainha das Cores de Jutta Bauer (a cobra laranja, 1998)
A resposta só podia ser, dentro da lógica de materialização indicada, a que se segue e que vai percorrer e fundar toda a história.
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Depois do azul, virão outras cores e, com elas, variegadas disposições de espírito, estados de alma em tudo semelhantes às sinestesias de Mário de Sá-Carneiro ou ao associativismo do célebre soneto “Voyelles” de Rimbaud. 2. Charadas e adivinhas de lógica detectivesca: 2.1. No livro Ovos Cozidos (OQO Editora, 2007) de Marisa Nuñez (a partir de um conto tradicional), com magníficas ilustrações de Teresa Lima, podemos apreciar a dedução e as possibilidades interpretativas levadas a ponto de se expor o raciocínio desmontado, retirando as hipóteses menos óbvias detrás dos bastidores da fachada (i)logica. A charada funciona como teste de uma lógica escondida e quase privada que aparentemente não encontra justificação fora de si. Estamos perante uma linguagem de rosto iniciático, que se revela, afinal, da maior simplicidade quando desconstruída e posta a nu. Ou seja, uma forma de nos fazer olhar de modo inovador para o quotidiano, de nos ensinar a observar e a dizer “de outra maneira” aquilo que sempre vimos e dissemos de modo trivial. Reproduzo a página, onde a imagem animada da árvore parece estar a olhar para nós, de molde a orientar-nos para a resposta.
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Será a filha mais nova de um pobre carvoeiro, conhecida pela sua inteligência e que “conseguia perceber as palavras mais arrevesadas e resolver complicadíssimos enigmas” que dará ao pai a solução do enigma.
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Tal como na pergunta enigmática e fatal da Esfinge, a resposta é simples e está debaixo dos nossos olhos. Esteve sempre ali ao nosso alcance. Se, para Édipo, a solução só podia ser o Homem, para esta singela e tímida filha do descamisado carvoeiro, a resposta reside no tempo, no seu modo de contagem, aqui na versão do calendário gregoriano. O tempo e o Homem como medidas de todas as coisas. Habilmente, a imagem da árvore espreitadora da primeira página reproduzida ganha agora, nesta página, braços e mãos que espalham as folhas como se de um Outono cronológico se tratasse. E o texto prossegue com outras incógnitas a resolver, numa disputa constante entre as inteligências e capacidades hermenêuticas do rei e as da filha do carvoeiro. Está em jogo a demonstração da premissa de que o insight e engenho não escolhem classes sociais e educação — desse ponto de vista, muitas histórias tradicionais e/ ou para a infância são quase deseducativas ao fazerem o elogio dos que, não tendo instrução formal, facilmente competem com os privilegiados por nascimento e sorte, supostamente mais cultos. Por outro lado, esta deseducação ganhadora é uma forma mais ou menos subliminar de figuração da desordem social, se quisermos em termos marxistas, de representar a luta de classes. Por vezes, a argúcia não corresponde exactamente ao QI, mas a uma esperteza e rapidez de visão conferidas pela vida, pela dureza da condição social e os descasos da existência, aproximando o percurso destes deserdados das histórias infantis (tradicionais ou não) do destino agitado de heróis e anti-heróis dos romances e novelas picarescos. Retomando o texto de Ovos Cozidos: o ping-pong heurístico entre a filha do carvoeiro e o rei acaba por resultar no inevitável casamento entre ambos. Mas, contrariamente ao habitual, a história não termina nas bodas douradas e interclassistas. Para lá da lua-de-mel, há ainda história. Na verdade, aí é que a história se complica. É interessante este prolongamento atravessando o final costumeiro, pois as crianças sabem bem que os casamentos não são apenas paz e concórdia, mas sim palco de uma disputa permanente do poder. Neste caso, do saber, o que, geralmente, vem a dar no mesmo. O final é muito curioso e, inevitavelmente, moral. De uma moral compensadora das desigualdades de género. De uma moral que repõe uma ordem que nunca existiu. De facto, perante um caso judicial que a ex-carvoeira e actual rainha considera mal sentenciado pelo rei e marido, temos uma querela forense e um conflito de interesses entre os dois esposos. Instruído pela rainha, um queixoso anónimo recorre da sentença e ganha, graças à defesa preparada pela monarca. Perante o revés, o rei não admite a superioridade da mulher, aprisionando-a. Mas ela, inteligentemente, arranja ainda forma de o derrotar por meio de uma cilada lógica que é, simultaneamente, uma declaração de amor. O rei acaba por reconhecer a sua desrazão e arrogância e, dali em diante, mais humilde, passa a respeitar e ouvir a mulher avisada. É de novo, a vitória do saber e do amor sobre o poder meramente autoritário. Mas, desta vez, o saber/ poder mudou de mãos, passou do homem para a mulher, ainda que ela tenha tido que 264
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demonstrar bom senso, amor e algum maternalismo na sua superioridade racional. Pelo meio, tivemos uma prática sequencial de close reading, o que é sempre, enfim, quase sempre, um desafio estimulante. 3.1. A partir de quadras ao sabor tradicional constroem-se hipóteses mirabolantes e imagens surrealistas. “Se tu visses o que eu vi nunca mais te esquecias uma mosca a escrever poemas e um lobo a pescar enguias.” Se tu visses o que eu vi de António Mota, ilustrações de Elsa Navarro (Gailivro, 2002).
3.2. Ou o elogio do caos: “Numa casa muito estranha toda feita de chocolate vivia uma bruxa castanha que adorava o disparate. Punha os copos no fogão as panelas na banheira os sapatos nas gavetas as meias na frigideira; escrevia com fios de água dormia sempre de pé cozinhava numa cama e comia num bidé. Varria a casa com garfos limpava o pó com farinha deitava cem gatos na sala e dormia na cozinha.”
(idem) 3.3. Ou ainda o efeito surpresa da enumeração desconexa: “Semeei no meu quintal sementes de manjerico nasceram dois sabonetes uma toalha e um penico.”
(idem) 3. 4. Bem como jogos de linguagem, aliterações, trava-línguas, verdadeiros exercícios de dicção: “Chove chuva chuva chove. 265
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Chove chuva Chove cá. Já choveu Uma chuvada Numa chávena de chá.” (idem)
4. Enumeração, amálgama, alteração da ordem do mundo: No texto delicioso da escritora brasileira Ana Maria Machado Doroteia, a centopeia assistimos aos contratempos e angústias decorrentes do crescimento e da transformação do corpo… de uma simpática centopeia. Não partilho da comum repugnância por insectos, aversão que dedico em exclusivo e com veemência a alguns rastejantes, roedores e mamíferos hematófagos voadores (nem posso dizer os nomes vulgares, a tal ponto é a fobia e, sim, bem sei que poucos são hematófagos, mas essa é só a versão oficial). Compreendo, no entanto, que um quilópode predador de cento e tal patas possa criar temor e pouca piedade na sua tentacularidade móbil, pelo que a escolha de uma centopeia como protagonista é um desafio irónico. Queixa-se esta graciosa centopeia de fortes dores nos pés que lhe tolhem os movimentos dantes tão ágeis e baléticos. Logo os amigos se reúnem e descobrem a causa: Doroteia calçava os sapatos de sempre e, com o natural desenvolvimento do corpo, os cem pés sofriam horrores de apertamento e asfixia. A história progride de forma divertida até se descortinar solução para, após uma recolha de fundos, haver meios de recalçar Doroteia. Nasce, entretanto, problema adicional: não tem a sapataria cinquenta pares de sapatos iguais e do mesmo tamanho. Pelo que o resultado será o que vemos na imagem, inaugurando moda ousada e alternativa: tudo serviu para calçar Doroteia — botas, botinhas, chinelos, alpargatas, tamancos, galochas, sandálias, sapatos de todo o tipo. Ágatha Ruiz de la Prada não teria feito melhor…
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Doroteia, a centopeia, Ana Maria Machado, ilustrações de Helena Martinez, (Everest Editora, 2002).
Ao longo do texto, as técnicas de enumeração e de amálgama são usadas de forma a expandir o mundo microscópico do canteiro do jardim (cenário da acção) por meio da referência ao superpovoamento e à actividade frenética de seres que, fora do alcance da nossa vista, vivem, sofrem, amam e desamam, criam e lutam: o texto de Ana Maria Machado, de 1994, parece anunciar o excelente filme de animação da Pixar A Bug’s Life, de 1998. Pela via mista da amplificação e da acumulação, a enumeração acentua a actividade múltipla e sobreposta, como camadas de terra, de insectos e rastejantes: “Muitos insectos, barulhentos e quietos. Formigas, abelhas, besourinhos, borboletas, grilos, num corre-corre, num pula-pula, num voa-voa, para cá, para lá. [...] Formigas carregavam folhas, abelhas faziam mel, aranhas teciam teias, minhocas cavavam túneis.” A enumeração funciona também como descrição das maleitas de Doroteia “Topadas com os pés da frente dos dois lados. Unha encravada no pé número 18 do lado esquerdo e no 27 do lado direito. Calos nuns 35 pés do lado direito e nuns 42 do outro lado.” Nesta história, torna-se patente que a enumeração pode ser um amontoado e não uma especificação. Toca, assim, a amálgama, processo tão recorrente nos textos satíricos e, sobretudo, nos textos de teor invectivo das vanguardas. Se a amálgama não possui aqui, na aventura da centopeia, um propósito declaradamente grotesco, usa ainda a deformação como alternativa à norma. Se não é mais a injunção lançada a um 267
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inimigo que se reduz e amassa num único, persiste como técnica de indiferenciação e, portanto, como rarefação do real. E, se pensarmos que o real é aqui o real humano sub specie animalis, desembocamos numa animalização do humano e numa aceitação da diferença, digamos, por via insectívora. 5. Perspectivas da narrativa Um dos aspectos mais complexos da narratologia, muito dado a reflexões teóricas e elocubrações mais ou menos delirantes, é o da perspectiva da narrativa. Sabermos de há muito que o ponto de vista é uma ficção, que quem diz eu diz diferente e que, de algum modo, o ponto de vista FAZ a coisa. A perspectiva da narrativa configurase assim como noção epistemológica que questiona não apenas o objecto em si, mas recoloca a dúvida na própria existência deste: haverá factos?, haverá objecto em si? Esta vacilação decorre do modo como o sujeito cognoscente concebe a realidade e, simultaneamente, da imagem que se faz de si mesmo enquanto sujeito. Universo de indeterminação este que se prende com aspectos ideológicos da narrativa e da própria crítica, com o individualismo, a coexistência de valores contraditórios e a influência do relativismo nas artes. No entanto, se é pertinente rejeitar-se a ilusão empirista, torna-se igualmente necessária a limitação do relativismo subjectivo que, no limite, estilhiçaria qualquer tipo de narratividade e de sobrevivência do referente. Estas questões, muito controversas e experimentadas na narrativa do final do século XIX e ao longo do século XX, estão, hoje em dia, relativamente pacificadas e sobrevivem de forma metacrítica e metanarrativa nalguns jogos de construção narrativa e na cumplicidade com o leitor, se não com o leitor ideal, pelo menos com o leitor visado. Um exemplo desta prática é o uso de uma visão esteroscópica, isto é, um olhar que acumula diferentes pontos de vista sobre um mesmo acontecimento. É o que sucede no livro de Marisa López Soria, ilustrado por Katarzyna Rogowicz, Os retratos de Renato, (Everest Editora, 2005) onde esta visão esteroscópica dá vida à história, sendo mesmo o seu motor. Ficamos a conhecer Renato através de tantas e tão divergentes perspectivas que, no final, quedamos sem resposta: afinal como é o Renato? Para uns um herói, para outros um malandro, para nós, olhando de fora, parece ser um normal menino travesso. Mas onde está o verdadeiro Renato? Não falta um auto-retrato, bem como a apreciação da professora que nos traça um retratosíntese do menino. Não será sempre assim? De acordo com a subjectividade de quem vê e relata, vão surgindo tonalidades contraditórias de personagens e acontecimentos, como num palimpsesto mal rasurado. Todavia, não querendo denegar a realidade por pura atomização dos factos, o texto oferece-nos, em síntese final, uma versão soft da omnisciente educadora rematando a galeria de retratos do Renato. Eis, em seguida, quatro retratos díspares do artista enquanto jovem heróidelinquente: 268
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6. Histórias que me contaste tu de Manuel António Pina, ilustrações de João Botelho (Assírio e Alvim, 1999). Este é um livro muito especial. Penso que qualquer pessoa, crescida ou mais nova, qualquer um que o leia, não poderá ser insensível quer ao texto, quer às magníficas ilustrações de João Botelho. A análise deste livro daria uma tese, mas não resisto a uma só beliscadela, mais com propósito de divulgação do que como contributo justo que ele pede. Escolho algumas passagens, como 6.1. A História Do Contador De Histórias “«Uma vez, de manhãzinha (contou-me o Escaravelho) a Sara e a Ana iam de mãos dadas para a escola. Ou talvez não fosse de manhã. Talvez fosse depois do almoço, já não me lembro. Aliás, talvez (o Escaravelho Contador de Histórias hesitou um pouco) não fossem a Sara e a Ana, talvez fossem, afinal, o Rui e a Ana, indo de mãos dadas para a escola.... ou talvez a Sara e a Inês... Ou o Rui e a Márcia... Já não tenho a certeza absoluta. Pensando bem, nem sequer estou seguro de que fossem para a escola. Se calhar iam brincar para o jardim... O que eu sei é que, uma vez, de manhãzinha (ou então depois do almoço...), duas meninas, ou dois meninos, ou uma menina e um menino — já foi há tanto tempo, como é que hei-de lembrar-me?... —, iam para um sitio qualquer (também não estou certo se iam de mãos dadas ou não, mas acho que iam de mãos dadas...) Ou era apenas um menino? Ou apenas uma menina? Ou não iam para parte nenhuma, e estavam parados no passeio, diante da janela de um rés-do-chão, vendo, numa sala iluminada (talvez, afinal, fosse à noite, depois do jantar), muitas pessoas sentadas a ver televisão, e um gato amarelo a dormir enrolado em cima da televisão? E as pessoas?, estariam a ver televisão ou a ver o gato amarelo enrolado em cima da televisão? Também já não tenho a certeza... Não há dúvida que eu não sei contar esta história. Deve ser outra pessoa quem a sabe... como é que posso contar uma história que eu não sei? Vou ver se me lembro de alguma que eu saiba...»” (pp.12/13) Esta desconstrução de uma história que não avança além da primeira frase, colocando-nos, desde o início hipóteses sucessivas, qual delas a mais incerta, numa espécie de máquina de produzir dúvidas e de emaranhar as frases precedentes, numa cadeia de volta-atrás-e-retoca, altera profunda e constantemente o texto, deixando intactas apenas as três míticas primeiras palavras das histórias: o ERA UMA VEZ. Convencional ponto de partida para a história, o ERA UMA VEZ é o momento de concentração de energias narrativas, após o qual estas irão disparar em alguma direcção. Porém, aqui o rumo é incerto ou é múltiplo, a partida é falsa e recomeça para, de novo, se revelar errónea. Por fim, chega-se ao âmago da questão: eu, que estou a contar a história, afinal não a sei contar. O que nos remete, novamente, para a 271
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questão da perspectiva da narrativa. Leio aqui uma crítica implícita ao romance que começa sem direcção certa e progride encantado com o seu dizer, em total desrespeito pelo leitor que tem que seguir às cegas um narrador todo poderoso. Se foi pertinente a crítica à omnisciência do narrador levada a cabo por romancistas e teóricos do início do século XX, a subsequente ditadura da indefinição de seja o que for na narrativa, (desde as personagens, cenário, tempo, quem fala e quem pensa, de que sexo, idade ou cor são os intervenientes na história, quem olha, quem no-la conta e porquê, que direcção está esta a tomar, e por aí fora até ao infinito), o massacre usando todos os jogos possíveis com a generosa paciência do leitor submisso acabou por levar a denúncias como a manifestada na exclamação do Escaravelho quando conclui “Não há dúvida que eu não sei contar esta história”. Geralmente, é melhor começar por aí: contar algo que se saiba contar. Infelizmente, nem sempre acontece. Infelizmente, há quem pense que isso é um pormenor. Digo infelizmente, pelas consequências que tal desprezo por uma inteligibilidade narrativa básica tem tido no afastamento dos leitores da literatura. 6.2. Nouveau Roman e legado de Lewis Carroll Os extractos que se seguem pretendem dar uma ideia de duas importantes referências deste livro: o experimentalismo do nouveau roman com ramificações às aventuras textuais do grupo OuLiPo e o legado ímpar da obra de Lewis Carroll. 6.2.1. A Extraordinária História Em Que Não Acontecia Nada “« Era uma vez (continuou o Escaravelho sem se deter) uma história em que não acontecia nada de extraordinário que valesse a pena ser contado. Nem sequer nada de não extraordinário, era uma história em que não acontecia absolutamente nada. Por isso, porque não havia nada para contar, ninguém a contava. E a história sentia-se só e triste. Eu...(sempre que dizia « eu », o Escaravelho parava um pouco e endireitava-se, como se gostasse especialmente de dizer a palavra «eu») eu ia a passar, reparei nela e, para a animar, disse-lhe: —Tu és uma história que merece, mais do que qualquer outra, ser contada. Nas histórias acontecem sempre coisas extraordinárias, uma história em que acontecem coisas extraordinárias não é nada de extraordinário. Uma história como tu, em que não acontece nada, é que é realmente uma história extraordinária! Ela — pareceu-me — não percebeu bem, mas ficou muito contente. Agarrou-me com toda a força pelo braço e disse: — Achas? Achas que eu sou mesmo uma história extraordinária? — Acho. — Então conta-me!” (pp. 16/17) “A história em que não acontecia nada” é a história de grande parte dos romances 272
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modernistas onde, factualmente acontece muito pouco, mas subjectivamente acontece imenso. O nouveau roman levou esta premissa ao extremo, como se sabe. O modo como Manuel António Pina aqui homenageia e brinca, desmonta e recicla esse legado seria tema para mergulho bem mais profundo. Assinalo apenas uma outra alusão na ironia da última deixa. No “[Então] conta-me!”, o imperativo lembra-nos de imediato os recados para Alice — “Bebe-me”, “Come-me”. Mas para além desta referência clássica, o “conta-me” contém uma ambiguidade dado que pode ser passivo ou activo e, portanto, significar “conta-me uma história” (a mim) ou “conta-me aos outros, já que sou uma história”. Como nesta história nada se passava, o pedido acaba por ser duplo: ao ser contada, a história vai ser e ver-se exposta. Mostrada ao mundo, também ela passará a existir aos seus olhos próprios como num filme a que ela também pode assistir. E não será assim com todas as histórias? 6.2.2. Uma História Que Começa Pelo Fim “— Esta história começa pelo fim. Mas não acaba no princípio. Acaba também no fim... embora noutro sitio do fim... — Disse o Escaravelho Contador de Histórias, respirando fundo e prosseguindo, como se estivesse cheio de pressa para contar todas as historias que sabia (e, pelos vistos, também as que não sabia...), e voltar a ir-se embora. Tinha sempre imensas coisas para fazer, nunca consegui perceber o quê. « Eram uma vez um príncipe e uma princesa que se casaram e foram felizes para sempre.»” (pp. 19/20) 6.2.3. A História Que se Conta Com a Boca Fechada “Contaram-me uma vez uma história que se conta com a boca fechada. É assim, durante, digamos, mais ou menos, dois minutos (e o Escaravelho fechou a boca): Mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm mmmmmmmmmmmmmmm... Há gente que acha uma história muito interessante. A mim, para dizer a verdade, parece um pouco monótona. Ainda por cima tem tendência a sair pelo nariz. E isso torna-se incómodo se, por exemplo, estivermos constipados.” (p. 28)
6.2.4. Uma História Chamada George “ — Porque é que puseste o nome de George à história do sábio? O Escarevelho encolheu os ombros: —Sei lá! Pus-lhe o nome antes de a ter inventado...Pareceu-me um nome bonito para por a uma história...“(p. 36) Estes três últimos extractos são exemplos de histórias viradas ao contrário, 273
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histórias mudas, histórias com nomes aleatórios, ou seja, histórias em que os jogos de desmontagem da estrutura, lógica ou forma de transmissão habituais são minados e substituídos por outros que são a sua imagem do outro lado do espelho, ou o corpo autofágico, ou o arbitrário da linguagem. Enfim, histórias inteligentes, divertidas e subversivas para gente de vários tamanhos. 7. Influência da escrita experimental, grupo Oulipo Não quero terminar sem uma rápida referência a um livro interessante que é mais um exemplo de processos sumariamente já apontados acima para o livro de Manuel António Pina. Refiro-me a Os Brincalhões de Roddy Doyle com ilustrações de Brian Ajhar, editado em Portugal pela Presença em 2000. A acção deste livro é reduzida ao mínimo: um senhor está prestes a cair na partida dos brincalhões, espécie de pequenos gremlins que espalham cocó no chão, destinado à passagem de adultos pouco carinhosos com as crianças. Todo o livro (com 96 páginas e cerca de 34 capítulos, número este aproximado por razões que veremos adiante) conta a marcha do senhor Mack a caminho do emprego, num avanço irreversível em direcção a uma enorme bosta colocada estrategicamente de modo a que o sapato dele a não possa evitar e a esborrache impiedosa e nojentamente. Só há um tema neste livro: cocó. Só há uma dúvida: quando vai ser ele pisado pelo senhor Mack. O tema joga, obviamente, com os instintos de repugnância e atracção pelas fezes e pela sujidade. Logo no final do Capítulo Um, deparamos com o seguinte aviso que interrompe bruscamente a apresentação do protagonista:
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Esta referência ao não existente no texto é uma predicação verdadeira, mas inútil e aleatória — há muitos outros não existentes que poderiam ser nomeados. No entanto, a partir do momento em que o não existente é referido, a sua não existência salta para dentro do texto e passa a existir no seu interior com a marca da ausência que lhe confere a mais valia da diferenciação. Ou seja, o facto de não haver dinossauros na história e de se colocar um aviso a indicar tal inexistência, faz aparecer estes répteis gigantes no texto, destaca-os de tudo o resto que não está presente e é não evocado no texto. Esta deriva momentânea é mais uma piscadela de olho às crianças admiradoras de dinossauros e é um aviso de que a narração da história não será canónica. E, na verdade, poucas páginas adiante começa a descontagem de capítulos como, do outro lado do espelho, Alice descobre haver dias de desaniversário.
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Como não acontece nada neste capítulo, a história não avança, mas, existindo oficialmente, o capítulo tem de ser numerado o que vai baralhar, a partir daqui, toda a contabilidade de apresentação da história. E, assim, o seis deveria ser cinco ou até quatro, se excluirmos os capítulos em que não acontece nada – facto tão comum na literatura séria e adulta, como já referi. CAPÍTULO SEIS QUE SE CALHAR DEVIA CHAMAR-SE CAPÍTULO CINCO PORQUE É MAIS UM DAQUELES CAPÍTULOS EM QUE NÃO ACONTECE QUASE NADA, A NÃO SER UMA COISA MUITO EMPOLGANTE, MAS SÓ NO FINAL
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Os atropelos matemáticos sucedem-se a ponto de já se ter perdido a conta no meio do entusiasmo de contar a história: CAPÍTULO QUALQUER COISA Ou de se localizar o capítulo apenas por referência ao mais próximo, no sentido precedente (analepse): O CAPÍTULO QUE VEM A SEGUIR AO CAPÍTULO ANTERIOR Ou no sentido sequente (prolepse): O CAPÍTULO ANTERIOR AO QUE VEM A SEGUIR Ou ainda usando o título do capítulo como mensagem, prática muito comum em romancistas como Camilo ou Machado de Assis, entre muitos outros escritores: ESTE CAPÍTULO TEM O NOME DA MINHA MÃE PORQUE ELA DISSE QUE EU PODIA FICAR A PÉ ATÉ TARDE SE LHE DESSE O SEU NOME CAPÍTULO MAMÃ DOYLE Ou indiferenciar por uma matemática aleatória: CAPÍTULO DOIS MILHÕES E SETE Ou ainda voltar à palavra-tema do livro e criar um título com 101 caracteres para um texto de 4, ou seja, 25 vezes mais longo do que o texto que é um numeral. Invertese pois o sentido/extensão entre titulo e texto. UM CAPÍTULO MUITO CURTO SÓ PARA DIZER A QUANTOS CENTÍMETROS É QUE O PÉ DO SENHOR MACK ESTAVA DO COCÓ Dois. Em suma, as técnicas de desmontagem, as entradas e saídas do texto principal, os comentários e intromissões de narrador e personagens que não as que estão em cena, a 277
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metalinguagem e ironia são uma constante deste texto, alastrando do corpo da história para os títulos dos capítulos, assinalando, deste modo, um facto frequentemente menosprezado – o título é texto, é parte integrante e decisiva do texto. Termino com a mensagem das bolachas Cream Cracker. O testemunho de quem não viu. Citando o coro Cream Cracker “Não é interessante?”
BIBLIOGRAFIA Bauer, J. (1998). A rainha das cores. Montemor-o-Novo: A Cobra Laranja. Doyle, R. & Ajhar, B. (il.) (2000). Os brincalhões. Lisboa: Presença. López Soria, M. & Rogowicz, K. (il.) (2005). Os retratos de Renato. Rio de Mouro: Everest Editora. Machado, A. M. & Martinez, H. (il.) (2002). Doroteia, a centopeia. Rio de Mouro: Everest Editora. Mota, A. & Navarro, E. (il.) (2002). Se tu visses o que eu vi. Vila Nova de Gaia: 278
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Gailivro. Nuñez, M. & Lima, T. (il.) (2007). Ovos cozidos. Pontevedra: OQO Editora. Pina, M. A. & Botelho, J. (il.) (1999). Histórias que me contaste tu. Lisboa: Assírio e Alvim.
ROSA OLIVEIRA, Esec Este artigo resultou do desenvolvimento da minha comunicação, com o mesmo título, proferida no dia 1 de Julho de 2008 no I Encontro Internacional do Ensino da Língua Portuguesa na ESEC. Os textos aqui analisados foram parcialmente apresentados na sessão, embora, na altura e por restrição de tempo, o tenha feito de forma menos aprofundada. Entretanto, o alongamento desta versão escrita deve-se, em grande parte, ao facto de muitas das explanações aqui descritas, quando apresentadas oralmente e em presença, terem bastado explicações e amostragem relativamente rápidas e breves. Dedico este texto ao meu filho António Pedro que me emprestou os livros de que aqui falo e que ainda hoje, aos 11 anos, prefere que eu lhe leia e destrua histórias a lê-las ele e mastigá-las ao seu ritmo. Um livro, nas nossas mãos, demora mais do que manda a lei. A lei do ‘vê-se-te-avias’. No entanto, sem alguma calma e bastante humor a vida seria um inferno. Só nos falta, às vezes, a calma.
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Textos que se cruzam – contribuindo para o ensino precoce da literatura.
Textos que se cruzam – contribuindo para o ensino precoce da literatura.
Rui Alexandre de Medeiros Prata Escola Superior de Educação – Instituto Politécnico da Guarda Resumo Abordando a temática do ensino precoce da literatura, temos como objectivo notar que desde cedo podemos acostumar os alunos do 1º CEB a uma atitude crítica na leitura literária, apelando a dois dos vectores que contribuem para um bom nível de compreensão leitora: os conhecimentos do mundo, por um lado, e as (ainda) parcas experiências individuais de leitura, mas que conscientemente se devem desenvolver, por outro. Pretendemos mostrar um projecto de trabalho didáctico que parte, não de um texto isoladamente (prática corrente), mas de textos que se olham e cruzam em aspectos similares (estruturais, simbólicos,…) evidenciando um dos aspectos fundamentais e caracterizadores do texto literário: a intertextualidade. Associamos a este aspecto o desenvolvimento do espírito crítico que permitirá ao leitor, que vai crescendo, aprender a ler, gostar de ler, formar-se com o que lê, adquirir competências, ultrapassar níveis de complexidade e exigência de leituras, em geral, e leitura literária, em particular. Palavras-chave
Compreensão leitora, leitor crítico, ensino literatura.
1. Antes de começar… Antes de começar, permitam-me partilhar uma história que me foi contada: Quando andava no seminário dos missionários Combonianos, era costume, quando um missionário chegava das missões, partilhar o seu testemunho de vida relacionado com aqueles longínquos lugares e pessoas. Certa vez, um padre vindo de uma missão de um país africano, contou que, numa das suas deslocações, chegou, já atrasado, a uma cerimónia religiosa. Deparou, contudo, que a mesma decorria normalmente e era presidida por um dos anciãos da aldeia. A sua atenção, porém, focalizou-se num pormenor: embora o texto religioso estivesse a ser proferido de forma correcta, porque aparentemente lido, o missal, nas mãos do presidente da cerimónia, encontrava-se aberto, sugerindo a sua leitura, mas estava ao contrário, “de 281
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pernas para o ar”. Conclusão: o ancião não sabia ler, decorara o texto. No final da cerimónia, indagando-o perante o sucedido, isto é, se não sabia ler, porquê ter o livro nas mãos e ainda por cima ao contrário, o padre obteve a seguinte explicação: se eu não sabia que o livro estava ao contrário, muito menos eles. Compreendeu então que não podia deixar transparecer a ideia que não sabia ler, porque ler dava-lhe o poder de ali estar à frente de todos eles, de ser considerado o mais importante da aldeia. Esta pequena história, verídica, prova-nos que ler confere poder. Afinal, uma das ferramentas que temos para compreender o mundo é a leitura. Lemos para aceder à informação, para tomar decisões, para ter juízo crítico, para compreender, para aprender. Lemos também para pensar, imaginar, sorrir, chorar… Ler é uma competência básica que todos devemos adquirir para nos podermos realizar social e pessoalmente. Mas olhando para a nossa realidade, encontramos sinais que nos devem deixar preocupados porque podem contradizer a realização pessoal e social acima referida. Além dos estudos nacionais e internacionais que apontam para fracos desempenhos dos estudantes portugueses, as provas de aferição, realizadas no final do 1º ciclo, tornam evidente que a maioria das crianças faz a transição para o ciclo seguinte sem ter adquirido competências básicas, quanto à leitura, concretamente. Por isso, ultimamente temos assistido a um grande esforço por parte da Escola (refiro-me à generalidade dos intervenientes: professores, investigadores, programas e políticas educativas) em alterar este estado de coisas, a começar concretamente no 1º ciclo – é aí que se torce o pepino! Como explicava Olívia Figueiredo no Seminário sobre os (novos) Programas de Português do Ensino Básico (2007)1 a leitura deverá assumir-se como objectivo de ensino que tem por horizonte, por um lado, a educação linguística (no sentido de proporcionar agilidade à inteligência com vista a conhecimentos técnicos especializados, o que contribui para a literacidade crítica), e por outro, a educação literária que, sem se dissociar da educação linguística, vai para além dela no sentido de proporcionar ao aluno projectar-se de forma livre, mas responsável, no discurso. Sem descurar estes dois objectivos do ensino da leitura, colocamos a tónica na educação literária. A motivação para este projecto partiu (1) da nossa experiência profissional na formação inicial e contínua de professores e das dificuldades observadas quanto ao trabalho com a leitura literária e (2) das lacunas por nós notadas, e comprovadas em vários estudos (alguns bastante recentes), em manuais escolares do 4º ano do 1º CEB.
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2. A compreensão leitora e o ensino precoce da literatura A leitura é uma actividade que exige concentração, relação, reflexão, comparação e previsão; todos estes hábitos intelectuais estimulam a estruturação do pensamento. Este processo, por sua vez, estimula o raciocínio que se reconstrói de maneira contínua na mente da criança ao ritmo da leitura. É, pois, uma actividade deveras importante e o primeiro ciclo tem um papel fulcral na criação e desenvolvimento de bons leitores, de leitores críticos. Antes de mais, e em termos pedagógicos e didácticos, o professor deverá ter em atenção que um bom nível de compreensão da leitura resulta da confluência de quatro vectores (Sim-Sim et al 2007: 9): 1. automatização na identificação de palavras; 2. conhecimento da língua de escolarização (domínio lexical); 3. a experiência individual de leitura 4. as experiências e o conhecimento do Mundo por parte do leitor. Para este trabalho, centrando a atenção no desenvolvimento de uma atitude crítica quanto à leitura literária, por parte dos alunos no final do 1º CEB, focalizaremos a atenção nos dois últimos vectores. Com efeito, são os conhecimentos do mundo que as crianças/leitores apresentam e as experiências individuais de leitura (embora nesta fase da vida ainda comedidas mas que conscientemente se devem desenvolver), que permitem, com mais ou menos esforço, a partir do diálogo com o texto, levar o leitor a observar, a comparar, a discordar ou a aceitar, a opinar, criticar, perguntar, imaginar, concluir, usufruindo das linhas de leitura que a construção textual sugere, antecipando, com sucesso, informações que não são dadas como explícitas. Por outro lado, serão também estes dois vectores que promoverão, em especial, a dimensão intertextual que os textos literários, por excelência, estabelecem entre si. É a capacidade de activar e compreender a dimensão intertextual (que configura informação não totalmente explícita, explorando muitos sentidos segundos) que, de acordo com Azevedo (2006:24) distingue os comportamentos interpretativos de natureza “crítica” dos de natureza “ingénua”. É também esta dimensão, nas palavras da Professora Nelly Novaes Coelho, que permite aos alunos passar de uma leitura horizontal a uma leitura vertical (Coelho: 2000, 270-271). Assim, o aluno ao ler um texto encontra nele outros (pelos aspectos simbólicos, personagens, situações,…) e revela capacidade de interpretar aquilo que não está dito no texto, mas que pode inferir, nas entrelinhas e além das linhas. Em suma, a intertextualidade requer a participação activa do leitor, tornando-o cúmplice no jogo que o texto estabelece com as suas experiências e conhecimentos anteriores. 283
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Mas não podemos esperar que o aluno desenvolva sozinho esta interacção com os textos. Com base num trabalho constante e cada vez mais aprofundado, com o acompanhamento e orientação do professor, o aluno, até ao final do 4º ano, deverá ser progressivamente capaz de evidenciar os seguintes descritores de desempenho de leitura propostos por Sim-Sim e Viana (2007:49): • apreender o sentido global de um texto, identificar o tema central e aspectos acessórios; • relacionar a informação lida com conhecimentos exteriores ao texto; • realizar inferências, mobilizando informações textuais implícitas e explícitas e conhecimentos exteriores ao texto; • distinguir entre ficção/realidade; facto/opinião; • identificar/distinguir entre causa / efeito (problema /solução); • extrair conclusões do que foi lido; • reconhecer os objectivos do escritor,… Para que se atinjam estes desempenhos, a competência de leitura requer uma aprendizagem consciente que implica envolver, explicar, mostrar e promover estratégias para aceder à compreensão, consoante a tipologia textual. Neste momento, a nossa preocupação, como já fomos dando conta, centra-se nos textos cujo objectivo intencional se relaciona com o fruir do prazer, com a leitura recreativa que promova o desenvolvimento do imaginário, do espírito criativo e pensamento divergente. Centrase no texto literário. 2..1. O texto literário no 1º CEB: dos princípios… Como dão conta Sim-Sim et al (2007:06) na brochura sobre a Leitura realizada no âmbito do Programa Nacional de Ensino do Português no 1º CEB, a eficácia da aprendizagem da leitura depende do ensino eficiente da decifração, do ensino explícito de estratégias para a compreensão de textos e do contacto frequente com boa literatura.2 Mas, o que será boa literatura? Será que os professores são seus fruidores e incluem-na no plano de leitura dos seus alunos? Na definição de boa literatura, no contexto de 1º ciclo (e também no 2º), seguimos de perto Mercedez Manzano (1985) que considera três pilares fundamentais na explicação de bom livro/texto no âmbito da literatura para a infância e juventude: (1) simplicidade criadora; (2) audácia poética e (3) comunicação adequada. A estes podemos acrescentar o texto como objecto de prazer. Estes quatro pilares, estamos em crer, constituem critérios que os professores podem ter em conta para seleccionar textos literários de qualidade com vista ao projecto de leitura a oferecer aos alunos. Especificando: (1) A simplicidade criadora abarca a obra na sua globalidade: enredo, tema, conteúdo, estrutura e linguagem. Isto é, temos de ter em atenção o modo de ler da 284
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criança, uma vez que o texto deverá ser adequado à sua estrutura mental de modo a constituir-se como veículo para transmissão de informação sobre a realidade, levá-la a reflectir, a compreender o mundo e a dialogar com o texto. Contudo esta simplicidade não poderá servir de desculpa para a simplificação que muitos textos, ingenuamente e generosamente oferecidos às crianças, sustentam. Já todos tivemos o desprazer de nos cruzarmos com eles em muitos manuais escolares ou em livrarias, ocupando aí, pasme-se, lugares de destaque. (2) O segundo pilar, audácia poética, remete para a margem de criatividade que o texto deve imprimir através das virtualidades criativas da língua e empenho da função poética da linguagem. É este pilar que faz perceber ao leitor/criança a quebra da rotina e o desafio para novas aprendizagens linguísticas. A margem de criatividade é também possibilitada pelo recurso à imaginação, à fantasia, ao prazer lúdico muitas vezes possibilitada pela realização de novas leituras a partir das relações intertextuais e do diálogo que se estabelece entre os textos. (3) Uma autêntica comunicação é a melhor motivação para provocar o desejo de ler, para saber escolher, para querer novos desafios…É também pela comunicação adequada, pelo simbolismo e natureza ficcional que se concretiza, ou não, a resposta afectiva por parte do leitor. E o leitor que se envolve emocionalmente na leitura de um texto é forçosamente mais activo, e assim terá mais possibilidades, como aponta Giasson (1993), de compreender e de reter a informação contida no texto. (4) Por fim, o livro como objecto de prazer: a criança encontra nele, a satisfação das necessidades reais e lê-o com utilidade e prazer. É que as situações de leitura mais motivadoras são também as mais reais: isto é, aquelas em que a criança lê para se libertar, para sentir prazer de ler (Solé, 1998:91). É essa a grande utilidade que a literatura pode oferecer. Criar leitores assíduos, por um lado, e consolidar hábitos de leitura literária, por outro, é um desafio da escola, dos professores em concreto. E só se consegue se o aluno for despertado para a sensibilidade estética, para o afinamento do sentido ético e para a geração de capacidade criadora. Assim, e num projecto de ensino precoce da literatura de forma mais evidente, são de enfatizar propostas que levem os pequenos aprendizes a partilharem as emoções que a leitura provocou, as sensações experienciadas, os horizontes que a mesma abriu, ou as portas que fechou, a forma (inovadora ou não) como o tema foi tratado, as relações intertextuais que permitiu estabelecer (Azevedo, 2006:17-18). 2.2. …à realidade Mas qual será a realidade escolar ao nível dos anos finais do 1º ciclo face à leitura, em geral, e à leitura literária, em particular? 285
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Se em cima questionávamos sobre a relação dos professores com a literatura. Podemos tentar responder, agora, a esta questão olhando para os manuais escolares. É que, como nota José António Gomes3, o manual escolar desfruta de um estatuto pouco menos que intocável, de um certo poder regulador e orientador, para o professor, no que toca à planificação e apresentação de textos e conteúdos a leccionar4. Porém, como acrescenta, apresentam uma perspectiva redutora que subjaz a um número significativo das actividades de leitura propostas, logo pode constituir-se como um obstáculo sério à promoção da leitura literária. Corroborando esta ideia, um estudo recentemente vindo a público, de autoria de Regina Rocha5 que analisou doze manuais escolares do 4º ano adoptados, no conjunto, em mais de 90 por cento das escolas portuguesas, apresenta as seguintes conclusões: • Faltam propostas de actividades que levem os alunos a interpretar os textos e a identificar informação não explícita; • Há poucos textos e pouca diversidade de géneros; • A pobreza de algumas propostas de actividades e a pouca representatividade de grandes escritores contribuem para que muitos alunos não consigam, no final do 4º ano: - compreender o que lêem; - ir além do simples reconhecimento da ideia expressa no texto, - criar hábitos e desejo de leitura Quando sabemos que, chegados ao final do 1º CEB, muitas crianças não se apropriaram sequer da leitura funcional, como nos indiciam estes e outros estudos vindos a publico, é com algum embaraço que encaramos a inclusão do texto ficcional no espaço escolar. E este embaraço é evidente quando nos confrontamos com algumas propostas “manualísticas”. Na preparação desta comunicação, não querendo duvidar dos estudos atrás mencionados, analisámos alguns manuais do 4º ano, escolhidos aleatoriamente numa biblioteca escolar6. A partir deles verificámos a escolha de textos de ficção (narrativa, teatro, poesia), observámos a sua qualidade, a forma como são apresentados aos alunos, os questionários que os acompanham, as propostas de actividades ou estratégias didácticas subjacentes. Procurámos, sobretudo, perceber através dos textos apresentados, se se procura, conscientemente, contribuir para o ensino precoce da literatura. De forma bastante sucinta, apresentamos aqui algumas conclusões da nossa apreciação: 1) O texto e a imagem são duas linguagens diferentes e autónomas, mas que juntas têm importância fulcral na leitura e descodificação, dado alimentarem-se uma da outra, criando as palavras imagens e as imagens palavras. Nos manuais observados esta relação é branqueada: são muito esporádicas e ou quase inexistentes quaisquer propostas de actividades sobre a ilustração, isoladamente ou relacionada com os 286
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textos que acompanha - não se lêem, nem se cruzam com o texto que ilustra. Caso se pautasse pela qualidade, o que não acontece, poderia constituir-se como sedutora para cativar a atenção do leitor, servindo de porta de entrada para o texto literário. Afinal, literatura e ilustração são duas formas de arte com grande potencialidade de diálogo. Mas essa relação é aqui descurada! 2) Os textos, com predomínio da narrativa, são de variados autores, alguns com vasta obra no âmbito da Literatura Infanto-juvenil – Luísa Ducla Soares, Maria Alberta Menéres, Álvaro Magalhães, António Torrado, António Mota, Alice Vieira, António Simões Muller, José Jorge Letria, ou mesmo Umberto Eco, entre outros. Estão presentes também vários recolhidos da tradição popular. Não representando a totalidade, notámos a presença de bons exemplos literários. Contudo, o que consideramos negativo prende-se com a exploração proposta sobre os mesmos: • pouca variedade de estratégias na abordagem dos textos, concretamente antes e após a leitura. Não notámos qualquer explicitação para os objectivos de leitura dos textos apresentados, mesmo aparecendo agrupados em unidades7. Sobre dado tema ou situação a explorar nos textos, não se constroem propostas de activação dos conhecimentos anteriores dos alunos sobre esse tema/ situação, nem se antecipam conteúdos a partir de aspectos paratextuais para, em qualquer dos casos, confrontar os conhecimentos anteriores ou previsões com o conteúdo entretanto explorado. Poucas são também as possibilidades avançadas para a discussão dos alunos a propósito do que leram. • privilegiam-se questionários previsíveis quanto à forma e conteúdo de modo à verificação da compreensão dos textos. Na sua maioria, e de acordo, por exemplo, com a taxonomia da Compreensão Leitora de Català e colaboradores (2001), a compreensão literal é a mais evidente nos questionários. A compreensão inferencial (através da qual se activa o conhecimento prévio do leitor e se formulam antecipações ou suposições sobre o conteúdo do texto a partir dos indícios que proporciona a leitura) e a compreensão crítica (onde se processa a formação de juízos próprios, com respostas de carácter subjectivo, o que pressupõe uma interpretação pessoal) são menos recorrentes. 3) Os textos são apresentados e explorados isoladamente. Não notámos, em algum momento, a criação de redes de textos onde o diálogo de natureza intertextual, uma das características do texto literário, estivesse presente e fosse dado a ver aos alunos, pela associação daqueles partilhando uma mesma estrutura, abordagem de conteúdos, formas de expressão, situações, personagens, aspectos simbólicos afins. Também não observámos qualquer questão, ao longo dos manuais, que sugerisse esta relação intertextual, apelando ao conhecimento que os alunos pudessem ter de outras leituras literárias que é suposto já conhecerem. Pelo que observámos, o projecto de leitura literária não é explicitamente evidenciado ao aluno. Não são avivados os objectivos intencionais do texto literário 287
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(diferentes de outros textos como os informativos, os epistolares, os instrucionais,…) nem sistematizadas as suas características específicas (universo de natureza ficcional, dimensão intertextual,…). Associada ao não tratamento específico de texto literário, preocupou-nos também o pouco investimento no desenvolvimento do espírito crítico dos alunos, pois é privilegiada, como já referimos, a compreensão literal na grande maioria dos questionários apresentados. 3. Promover o leitor crítico para promover a competência literária. A formação do leitor crítico é condição essencial para a aquisição da competência de leitura no sentido da criação do leitor adulto. Cada texto, como aponta Eco (1993: 55-56), possui uma mensagem com determinada intencionalidade, que é preciso, não só saber captar, mas também saber reagir. Desta forma, reagindo ao que lê, o espírito crítico constrói-se, como aponta Moreira (2002:139) pela capacidade de aderir ou rejeitar, apresentar alternativas, formular suposições ou hipóteses, manifestar pontos de vista autónomos, relacionar com o que já sabe sobre o mundo ou comparar com o que já leu no texto ou com outros textos. É este espírito crítico que permitirá à criança, ao leitor que vai crescendo, aprender a ler, gostar de ler, formar-se com o que lê, adquirir competências, ultrapassar níveis de complexidade e exigência de leituras. (Endnotes) 1 Mas para que tal aconteça, a escola em geral, e o primeiro ciclo em particular, terá de ter um papel conscientemente activo. De certo, como em cima demos conta, não é com propostas de actividades ou questionários sobre os textos pouco exigentes e pouco motivadores que se obterá, por parte dos alunos, uma atitude crítica. Ora, no nosso projecto, esta será uma condição: o ensino precoce da literatura associada ao desenvolvimento de espírito crítico do leitor. 3.1. Um projecto de “diálogo” entre textos O projecto de leitura que aqui apresentamos tem como ponto de partida dois textos: Nau Catrineta e Bela Infanta, nas versões de Almeida Garrett. São textos de reconhecida qualidade, que integram elementos do imaginário colectivo pois reenviam-nos para um tema característico da cultura portuguesa – descobrimentos – que, nos aspectos básicos, é do conhecimento dos alunos. Por outro lado, apresentam uma estrutura textual paralela, o que facilita a comparação entre eles, e expõem uma enorme riqueza quanto a aspectos simbólicos (números, atributos, situações…) recorrentes noutras histórias/textos. São, pois, textos que permitem o diálogo, a relação entre eles, entre eles e outros textos (que integram as experiências de leitura dos alunos) e entre eles e os conhecimentos do mundo dos alunos. 3.1.1. Antes de ler 288
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O ponto de partida, ou melhor, o porto de embarque para esta aventura seria o momento antes da leitura activando os conhecimentos dos alunos a partir de palavraschave dos títulos Nau e Bela Infanta. Estes poderiam ser os indícios que remeteriam os alunos para o tempo dos descobrimentos, auxiliados por ilustrações representativas destas embarcações e personagens associadas a esse tempo (tripulantes das naus, donzelas que os aguardariam,…). Poderiam assim ser criadas expectativas de leitura, inferenciando lugares, acções, personagens, comportamentos. Neste momento prévio,os alunos também deveriam ser consciencializados para a razão de ser desta unidade: confrontação de textos e pontes de leitura para outros textos de modo a evidenciar os seus objectivos intencionais e características que os tornam obras literárias.
3.1.2. Decorrente da leitura
Durante o período de leitura do texto, ou após este, as perguntas, normalmente formuladas pelos professores, ocupam um lugar muito importante no processo da compreensão leitora. Contudo muitas das questões realizadas não contribuem para o ensino da compreensão, por um lado, ou para o desenvolvimento da atitude crítica do aluno, por outro. Se repararmos, perguntas do género Que desculpa davam as velas para a sua inactividade? ou A quem pediu ajuda o moinho?8(Monteiro, 2006:101), recorrentes nos manuais analisados, conduzem a respostas que sobre elas apenas se possa fazer um juízo de certo ou errado (perguntas de avaliação/sobre o produto), pois baseiam-se, apenas, nos elementos do conhecimento de superfície. Esta não é, de certo, a melhor forma de estimular o espírito crítico. Não existe desafio, não se sugere qualquer tipo de raciocínio. Ou seja, não se pede ao leitor/aluno que utilize a sua inteligência para tratar o conteúdo do texto, para o analisar ou criticar. Como questiona Giasson (1993:191), qual a utilidade de um leitor compreender um texto, se for incapaz de ser crítico face a esse mesmo texto? A este tipo de perguntas sobre o produto, opõem-se as perguntas sobre o processo que, a nosso ver, estimulam o espírito crítico, pois são perguntas que fazem evoluir o aluno nas suas habilidades de compreensão. As perguntas sobre o processo levam o aluno a reflectir sobre a maneira como chegou a uma resposta, dado incidirem sobre o processo utilizado pelo aluno quando este responde à pergunta (Giasson, 1993:299). Partindo dos textos em análise, poderíamos formular questões de processo que implicariam, por parte dos alunos, capacidade de aderir ou rejeitar, apresentar alternativas, formular suposições ou hipóteses, manifestar pontos de vista, realizar inferências, relacionar textos seja pela estrutura narrativa (quando se trata de narrativas) seja pelos aspectos simbólicos (personagens, números,…). São obviamente operações que exigem que se ultrapasse a compreensão literal. Por exemplo: (1) O que é que nos faz dizer que os tripulantes da nau estavam em sérias dificuldades? (2) Como é 289
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que podes saber quem é que o “gageiro” representa? (3) O que é que te faz dizer que o texto apresenta aspectos imaginários/ficcionais (não reais)? (4) Que sentimentos poderão estar associados às personagens ao longo dos textos? (4.1.) Como podes dar conta dessa evolução? (5) Como avalias o comportamento do capitão no texto “Bela Infanta”? (5.1.) Como provas que o capitão e a Bela Infanta eram casados? (6) O que leva a supor que o “capitão”, personagem da “Nau Catrineta”, é o mesmo da “Bela Infanta”? (Ou o inverso); (7) O que te faz gostar mais de um texto do que doutro? (8) Porque é que foram escolhidos estes títulos? (8.1) Qual escolherias em alternativa? ... Com base nestas ou noutras questões, o estudo dos textos seria feito em momentos diferentes, de forma progressiva. Num primeiro momento a tónica a colocar seria na relação/comparação entre os dois textos em causa, procedendo à apropriação da sua estrutura narrativa e relação de sentido entre as várias partes e entre os vários intervenientes. Num segundo momento, a tónica no diálogo intertextual com outros textos a partir de linhas de leitura associadas a aspectos simbólicos, por um lado, e estabelecimento de paralelos com a realidade decorrente dos conhecimentos dos alunos, por outro. 3.1.2.1. Nau Catrineta vs Bela Infanta: dialogando entre si Relacionando os dois textos, o objectivo passaria pela apropriação do objecto nuclear das narrativas, identificando e relacionando os seus esquemas narrativos, com apoio da sua representação gráfica/ esquemática, o que, acreditamos, facilitaria a compreensão. A tónica devia ser colocada na (1) identificação das ideias importantes e relação entre as mesmas; (2) delimitação das sequências e ordem narrativas; (3) localização das acções no tempo e espaço, estabelecendo a relação entre elas (de tempo, causa-efeito, problema /solução,…). Consideremos pois o seguinte esquema como proposta de trabalho a desenvolver entre professor e alunos:
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Esquema da análise feita aos textos em paralelo Quadro 1 (fonte própria)
Este tipo de esquema pode ser trabalhado em conjunto (turma e professor), mas à medida que cada aluno for construindo o seu próprio esquema (decorrente de um ou da comparação de vários textos), envolvendo-se mais activamente na actividade, ajudá-lo-á a reter informação importante e a reflectir sobre a sua leitura e a estabelecer relações entre diversos elementos do texto. Para elaborar um esquema, o aluno tem de identificar as ideias importantes e as secundárias; deve decidir que informação incluir no gráfico, agrupar certas ideias e mostrar as relações que há entre elas. Trata-se, pois de uma actividade de tratamento de texto em profundidade (Giasson, 1993:168), logo promotora de uma atitude crítica por parte do leitor.
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A par da compreensão da estrutura narrativa dos textos, do seu esqueleto, os alunos contactariam com outros aspectos importantes na construção dos textos, distinguindo a realidade/ficção, identificando universos de referência, inferindo características/sentimentos de personagens, características de espaços, do tempo. A título de exemplo, face às personagens de maior relevo, os alunos poderiam inferir os seus sentimentos em alturas diferentes da narração: do Capitão - quando lhe cabe a má sorte, no diálogo/negociação com o gageiro, quando é salvo pelo anjo. Da Bela Infanta - na situação inicial, quando recebe a má nova do capitão, na negociação com o capitão, na situação final. 3.1.2.2. Nau Catrineta e Bela Infanta: dialogando com outros textos Um dos aspectos que levou à escolha destes textos prende-se com a riqueza que apresentam. Nestes encontrarem-se situações, simbolismos recorrentes em muitos outros textos susceptíveis de fazerem parte das experiências de leitura dos alunos e integrarem conhecimentos que se enquadram na competência enciclopédica dos mesmos (Azevedo,2006:23). Assim, e envolvidos neste projecto que compreende a relação dos textos base com aspectos da realidade ou com outros textos, os alunos, participariam no levantamento de aspectos (objectos, situações, seres) susceptíveis de possuírem carga simbólica por si reconhecida. Desta forma, objectos como o anel (casamento, união), o ouro, o dinheiro (riqueza), o cavalo branco (importância social), a espada (ligada à força, valentia) podiam ser, com maior ou menor dificuldade, reconhecidos. Por outro lado, podia o professor despoletar algumas associações intertextuais ou com a realidade dos alunos para as quais ainda não estariam despertos. Por exemplo, face à reiteração do numero três (de forma mais evidente: 3 filhas, 3 moinhos; ou mais escondida: 3 ofertas feitas pela Bela Infanta ao Capitão) e do número sete (anel com 7 pedras, 7 espadas nuas) os alunos poderiam ser confrontados com a importância destes números tanto: (1) em situações/aspectos do dia-a-dia, associados a certas áreas do saber ou ligados à própria natureza (alguns exemplos): (I) os sete dias da semana (II) as sete cores do arco-íris (III) as sete notas musicais (IV) as sete maravilhas do mundo (V) três voltas/vezes … número mágico (VI) aspectos associados à cultura cristã (sete pecados/sacramentos; três mentiras, ressuscitar ao terceiro dia,…) (VII)os três lugares do pódio (ouro, prata e bronze) expressões várias: Três, a conta que deus fez 292
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(2) na sua reiteração em muitas histórias/textos (a título de exemplo): (I) os sete cabritinhos (II) os sete7 irmãos /irmãs (III) Bota das sete léguas (IV) os três porquinhos (V) as três irmãs (Cinderela, …) O cruzamento com outros textos poderia também partir de expressões/situações que ocorrem nos dois textos base: • - a situação descrita logo na situação inicial da Bela Infanta: “Pentear o cabelo”. Este costume podemos encontrá-lo, talvez com maior ênfase, em contos como Rapunzel, As Três Cidras do Amor, A Bela Adormecida, onde esta acção vai, de certo modo, condicionar o desenrolar dessas narrativas. • - A expressão “a mais formosa de todas”, presente em ambos os textos, e associada à terceira filha, é empregue, no mesmo contexto, em contos como A Cinderela, A Bela e o Monstro, entre muitos outros. Estas são, apenas, algumas das pistas que poderiam ser tomadas para se constituir um terreno de diálogo com, e entre, os alunos. O exercício intertextual, aqui ensaiado e progressivamente aperfeiçoado a partir do 1º ciclo, cremos, é fundamental, pois reclama a participação do aluno/leitor, fazendo-o cúmplice, como aponta Azevedo (2006:24), no jogo que o texto estabelece com o seu conhecimento do mundo e suas experiências de leitura. Para concluir, mas deixando em aberto o diálogo que os textos realizam entre si, o professor, enquanto modelo de leitor de literatura (como deve ser encarado pelos alunos) poderia apresentar à turma, mostrando ou apenas falando um pouco deles, livros que se relacionem tematicamente com os textos analisados. A título de exemplo, associado aos descobrimentos, onde se nota a presença do mar, as dificuldades inerentes, entre outros aspectos, poderiam entrar na aula livros /textos como Naus de Verde Pinho, de Manuel Alegre, o Episódio de Pero Dias, relatado n’O Cavaleiro da Dinamarca ou Ulisses de Maria Alberta Manéres. Esta seria uma forma de despertar para a curiosidade de outros textos, sobre os quais já teriam universos de referência e que implicam níveis de complexidade e exigência de leituras mais refinadas. Afinal, só desta forma poderão os leitores crescer! 4. Concluindo Com esta comunicação quisemos notar que, desde cedo, podemos promover o ensino da literatura através de uma atitude crítica, apelando aos conhecimentos do mundo dos alunos e aos seus (ainda) parcos conhecimentos literários, mas que conscientemente se deve desenvolver. Por isso, a tónica na promoção de uma atitude mais séria, mais exigente e desafiadora em relação à leitura em geral e à leitura literária em particular. 293
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O que observámos em alguns manuais do 4º ano preocupou-nos, porque, sabemos, acaba por reflectir muitas das práticas da sala de aula. Pede-se, maioritariamente, simples reconhecimento da informação já devidamente expressa no texto. São muito poucas as actividades que propõem a interpretação, tornando claro o sentido de…, explicando, comentando, fazendo juízos a respeito de… ou seja, são poucas as actividades que levem ao confronto da informação com a sua (dos alunos) experiência de leitor e conhecimento do mundo. Colocámos a ênfase do ensino precoce da literatura no desenvolvimento do espírito crítico pela relação entre textos. É este processo que, treinado consecutivamente, facilitará a compreensão, a prática da intertextualidade (presença de uma obra anterior, noutra obra posterior, que a cita, copia, reelabora, parodia através de situações afins, alusões mais ou menos explícitas, personagens, espaços próximos ou comuns, utilização de aspectos simbólicos,…). E é também essa prática, associada a uma atitude crítica por parte do leitor, que reclama a participação activa do leitor, que o torna cúmplice no jogo que o texto estabelece com o seu saber. Ler confere autonomia e poder, tal como apontávamos no início. Mas mais poder terá aquele que melhor souber relacionar textos, compreender as fontes, ler entre linhas e além das linhas: só assim poderá compreender o alcance de algumas mensagens, ironias… só assim compreenderá efectivamente os textos. Bibliografia Amor, E. (2004). Littera - escrita, reescita, avaliação. Um projecto integrado de ensino e aprendizagem do português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Azevedo, F. (2006). Literatura infantil. Recepção leitora e competência literária. In F. Azevedo, (Coord.) Língua materna e literatura infantil. Lisboa: Lidel. Català, G., Català, M., Molina, E. & Monclús, R. (2001). Evaluación de la comprensión lectora. PL (1º-6º de primária). Barcelona: Graó. Coelho, N. N. (2000). Literatura infantil. Teoria, análise, didáctica. São Paulo: Moderna. Debus, E. (2006). Explorando as potencialidades da língua e da literatura infantil e juvenil. In F. Azevedo (Coord.) Língua materna e literatura infantil. Lisboa: Lidel. Duarte, I., Ferraz, M. J. & Sim-Sim, I. (1997). A língua materna na educação básica. Lisboa: ME-DEB. Eco U. (1993). Leitura do texto literário: a cooperação interpretativa dos textos literários. Lisboa: Presença. Figueiredo, O. (2007). Da metalinguagem ao conhecimento metalinguístico. Ou de como o aluno constrói o saber gramatical. In http://sitio. dgidc.min-edu.pt/linguaportuguesa/Documents/Seminario_PPEB/ Praticasdoensinodalingua_OliviaFigueiredo.pdf 294
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Giasson, J. (1993). A compreensão na leitura. Porto: Edições Asa. Manzano, M. (1985). El niño y los libros: como despertar una afición. Madrid: SM Monteiro, A. (2006). Língua portuguesa 4º ano ensino básico. Coimbra: Livraria Arnado. Moreira, L. (2002). Histórias infantis e desenvolvimento do espírito crítico da criança. In F. L. Viana (Coord.), Leitura, literatura infantil, ilustração, investigação e prática docente. Braga: Berzzerra Editora. Mota, A. (2006). Eu e a Mariana – língua portuguesa 4º ano. Vila Nova de Gaia: Gailivro Pereira, C., Borges, I., Rodrigues, A. & Azevedo, L. (2006). Pasta Mágica - língua portuguesa 4º ano ensino básico. Lisboa: Areal Editores Reis, C. & Figueiredo, V. (1995). O conhecimento da literatura – introdução aos estudos literários. Lisboa: Universidade Aberta. Rosa. Mª C. (2006). Vá de roda 4. Maia: Edições Nova Gaia. Sim-Sim, I. (Coord.) (2006). Ler e ensinar a ler. Lisboa: Edições Asa. Sim-Sim, I. & Viana, L. (2007). Para a avaliação do desempenho de leitura. Lisboa: GEPE. Sim-Sim, I., Duarte, C. & Micaela, M. (2007). O ensino da leitura: a compreensão de textos. Lisboa: ME-DGIDC. Solé, I. (1998). Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed. Notas de fim: Consulta http://sitio.dgidc.min-edu.pt/linguaportuguesa/Documents/Seminario_PPEB/ Praticasdoensinodalingua_ OliviaFigueiredo.pdf, em 28.04.08, pp 5-6. 2 Destaque nosso. 3 http://www.alcultur.org/2005/intervencoes/Jose%20Antonio%20Gomes.pdf consulta feita em 15.01.08 4 Face à polémica das escolhas dos manuais, não nos podemos esquecer que os alunos são obrigados a comprá-los e, por isso, têm de ser utilizados. Como dar a volta a esta situação?! 5 http://sic.sapo.pt/online/noticias/vida/20080105Manuais+de+leitura+com+falhas. htm, consulta feita em 15.01.08 6 Manuais analisados: Monteiro, António (2006) Língua Portuguesa 4º ano Ensino Básico. Coimbra: Livraria Arnado; Mota, António (2006) Eu e a Mariana – Língua Portuguesa 4º ano. Vila Nova de Gaia: Gailivro; Pereira, Cláudia, Borges, Isabel, Rodrigues, Angelina e Azevedo, Luísa (2006) Pasta Mágica -Língua Portuguesa 4º ano Ensino Básico. Lisboa; Areal Editores; Rosa. Mª Carolina (2006) Vá de Roda 4. Maia: Edições Nova Gaia 7 As unidades nas quais os textos são agrupados privilegiam a “arrumação” cronológica – por períodos, por meses, por festividades de calendário. Não será redutor? 8 A propósito do texto “o Velho Moinho” de Maria Alberta Menéres. As resposta estão à superfície do texto: desculpas para a inactividade: porque não há vento. Quem ajuda: areias do ar, andorinhas e ventos do norte e do sul.
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Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
Susana Margarida Nunes Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do IPL Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada (FLUC) Introdução No âmbito do projecto Competências Básicas em Tecnologias da Informação e Comunicação nas Escolas do 1.º Ciclo do Ensino Básico (CBTic), subsidiado pela Equipa de Missão Computadores, Redes e Internet na Escola do Ministério da Educação (CRIE), desenvolveu-se, no segundo semestre do ano lectivo de 2005/2006, na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Leiria, o projecto Liter@ net, que pretendeu fomentar a utilização das TIC aplicadas ao ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa no 1.º Ciclo do Ensino Básico. É objectivo desta comunicação dar a conhecer os pressupostos basilares deste projecto, demonstrando, através de algumas actividades então realizadas, que o processo de ensino-aprendizagem da gramática da Língua Portuguesa no 1.º Ciclo poderá ser mais profícuo se concebido com base numa perspectiva interactiva, aliando-se a construção e aplicabilidade do conhecimento adquirido às componentes da ludicidade, da diversão e da competitividade. Esta comunicação dividir-se-á em três partes distintas, onde faremos (1) a apresentação do projecto, (2) a apresentação de algumas actividades desenvolvidas e pressupostos subjacentes à sua concepção e (3) a apresentação, com base nos resultados dos inquéritos distribuídos aos participantes no final do projecto, das suas repercussões na prática docente e no processo de ensino-aprendizagem dos alunos. 1. Apresentação do projecto Na altura da sua concepção, o objectivo primordial do Liter@net era o de propiciar, mediante a utilização das tecnologias de comunicação e informação, o desenvolvimento de competências em Língua Portuguesa nos alunos do 1.º ciclo do Ensino Básico, motivando-os para uma aprendizagem activa da gramática da Língua Portuguesa. Com esta finalidade, o Liter@net foi concebido enquanto jogo interactivo 297
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em formato de concurso, com inscrição prévia por parte dos alunos que pretendessem participar. Após o período de inscrições, começou o concurso propriamente dito. Os alunos tiveram então acesso, todas as semanas e via on-line, a um desafio relacionado com um conteúdo do conhecimento explícito do programa de Língua Portuguesa do 1.º Ciclo. Esse desafio foi sempre colocado na plataforma logo no início da semana (à segunda-feira) e os alunos participantes enviaram a sua resposta até ao final da semana (sexta-feira). Cada resposta foi corrigida e pontuada. Na segunda-feira da semana seguinte, os alunos tiveram acesso ao novo desafio, assim como à correcção do exercício da semana anterior e à tabela de classificação (actualizada) dos alunos/ equipas participantes. O procedimento repetiu-se todas as semanas até ao final do ano lectivo. Por cada participação, os alunos acumularam pontos e, no final do semestre, foram apuradas as pontuações de todos os alunos participantes. No fim, houve entrega de prémios simbólicos às equipas vencedoras. 2. Apresentação de algumas actividades desenvolvidas e pressupostos subjacentes à sua concepção Perspectivando propiciar a utilização das tecnologias de comunicação e informação na dinamização de actividades educativas relacionadas com a Língua Portuguesa, procurou-se sempre que os desafios propostos fossem ao encontro das necessidades educativas dos alunos do 1.º ciclo do Ensino Básico. Para tal, na consecução dos desafios disponibilizados semanalmente na plataforma, foram consideradas algumas premissas basilares de que destacamos (i) o programa de Língua Portuguesa, (ii) as orientações curriculares do 1.º ciclo do Ensino Básico, (iii) as efemérides/acontecimentos que motivaram o uso devidamente contextualizado da Língua Portuguesa e (iv) o grafismo (adequado à faixa etária do público- -alvo, possibilitando assim a identificação dos alunos com os desafios, de forma a estimular a sua participação). Estes foram os princípios subjacentes à concepção dos exercícios disponibilizados semanalmente. Cimentámos o nosso trabalho ancorados sempre no programa de Língua Portuguesa e nas orientações curriculares do 1.º ciclo do Ensino Básico, inspirámo-nos em efemérides ou acontecimentos significativos que propiciaram uma utilização efectivamente contextualizada da Língua Portuguesa e procurámos sempre adequar o grafismo dos desafios ao tema proposto e à idade dos nossos participantes de modo a estimular a sua participação. Veja-se, a título de exemplo, alguns dos desafios lançados, cuja concepção foi norteada por uma efeméride/acontecimento relevante, como por exemplo, o Carnaval (fig. 1), o início da Primavera (fig. 2), o dia da árvore (fig. 3), o dia do ambiente (fig. 4), o dia do livro (fig. 5), o dia do animal (fig. 6), o dia da mulher (fig. 7) ou o dia das telecomunicações (fig. 8).
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Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
fig. 1
fig. 3
fig. 2
fig. 4
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fig. 5
fig. 6
fig. 7
fig. 8
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Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
Além disso, e atendendo às idades do nosso público-alvo, procurámos, nos desafios que construímos, nortear as nossas concepções atendendo às premissas basilares de um fenómeno que «tem guiado os destinos do mundo» (Barbeiro 1998), assumindo um papel preponderante «na organização das estruturas vivas e no comportamento social dos seres humanos» (Barbeiro 1998): referimo-nos ao jogo considerado fenómeno libertador, onde o contributo do acaso, da incerteza e das regras propiciam, pela competição e pela cooperação, a consecução de determinados objectivos. Considerando o importante papel que o jogo desempenha desde a primeira infância e ao longo de todas as idades da vida, inspirámo-nos nas suas características (a existência de competição, de empenho, de cooperação, de autonomia, de metas/objectivos bem definidos e de um termo) para, através dele, propiciar prazer e divertimento aliados, neste contexto, à exercitação de conteúdos de Língua Portuguesa. Deste modo, procurámos conceber desafios que, por indução ou por descoberta, fomentaram não só a activação mas também (e por vezes) a sistematização de conhecimentos concernentes à Língua Portuguesa. Para isso, construímos desafios de diversos tipos de que destacamos: . jogos de ordenação alfabética (“O Alfabeto” e “Dia das Telecomunicações”);
fig. 9
fig. 10
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. construção de puzzles (“Puzzle do Carnaval” e “Dia do Livro”);
fig. 11
fig. 12
. jogos mais tradicionais como o dominó (“Dia do Enfermeiro” e “Dominó dos Animais”);
fig. 13
fig. 14
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Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
. jogos de associação (“As Mulheres na Língua Portuguesa” e “Dia do Trabalhador”);
fig. 15
fig. 16
. jogos de caça ao intruso (“A Pétala Intrusa” e “O Tripulante Intruso”);
fig. 17
fig. 18
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Procurámos, deste modo, diversificar os desafios propostos perspectivando, ao longo deles e sempre que possível com ancoragem directa em algum acontecimento ou efeméride relevante, trabalhar conteúdos diversos relacionados com a Língua Portuguesa, mais especificamente no que concerne a: . o alfabeto (“O Alfabeto “ e “Dia das Telecomunicações”);
fig. 19
fig. 20
. as classes de palavras (“A Pétala Intrusa” e “A Semana do Ambiente”);
fig. 21
fig. 22 304
Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
. a acentuação (“O Dominó da Acentuação” e “Acentuação”);
fig. 23
fig. 24
. a formação do feminino (“As Mulheres na Língua Portuguesa” e “Amigos”);
fig. 25
fig. 26
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. a formação de palavras (“A Árvore das palavras”);
fig. 27
. os tempos verbais (“Dia do Estudante”);
fig. 28
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Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
. a divisão silábica (“Dia do Enfermeiro” e “Dominó dos Animais”).
fig. 29
fig. 30
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3. Apresentação das repercussões do projecto na prática docente e no processo de ensino-aprendizagem dos alunos O Liter@net lançou o seu primeiro desafio a 13 de Fevereiro de 2006 e contabilizou, até Junho de 2006 (final do ano lectivo), cerca de 450 participações, com uma média de 40 participações por semana.
Literanet : contabilização de participações
Literanet : contabilização de participações
60 60
50 50
40 40
30 30
20 20
10 10
12-Jun 12-Jun
05-Jun 05-Jun
29-Mai 29-Mai
23-Mai 23-Mai
15-Mai 15-Mai
09-Mai 09-Mai
02-Mai 02-Mai
24-Abr 24-Abr
18-Abr 18-Abr
27-Mar 27-Mar
20-Mar 20-Mar
13-Mar 13-Mar
06-Mar 06-Mar
26-Fev 26-Fev
13-Fev 13-Fev
0
20-Fev 20-Fev
0
G1
Inicialmente algo titubeantes, as participações no Liter@net atingiram o seu auge a partir do momento em que começou a fase do concurso (13 de Março). Uma vez mais, confirma-se que factores como a competição e cooperação, aliadas ao empenho e à existência de metas a atingir em determinados limites temporais motivam e estimulam a participação dos alunos neste tipo de iniciativas. Pela curva de participações (cf. G1), e considerando também a natureza dos exercícios realizados, verificamos igualmente que são vários os factores desencadeadores de uma maior ou menor participação. Sublinhamos, a este propósito, que: • o grau de dificuldade do exercício influencia, compreensivelmente, o número de participações: quanto mais fácil for o exercício, maior o número de participações (cf. jogo 1 “Alfabeto”, jogo 7 “Dia do Estudante” ou jogo 12 “Dia das Telecomunicações”); 308
Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
• a necessidade de impressão do desafio afigurou-se como factor inibidor da participação (cf. puzzles: jogo 2 “O Puzzle do Carnaval” e jogo 9 “Dia do Livro”; cf. dominós: jogo 3 “Dominó da Acentuação”); • quanto maior for o factor descoberta (isto é, quanto menos direccionarmos o exercício propiciando uma maior descoberta e liberdade no que respeita à solução), mais elevada a participação dos alunos (cf. jogo 6 “A Árvore das Palavras” e jogo 8 “Amigos”); • quanto maior for a necessidade de sistematização de conteúdos (exigência de uma maior consciência linguística), menor a participação (cf. jogo 4 “As Mulheres da Língua Portuguesa”); • a existência de datas festivas (feriados) e a exigência de mais tempo para a realização do desafio (implicando, por exemplo, a impressão ou o recortar de peças) pode minorar o número de participações. Esta nossa preocupação e curiosidade em saber o que motivou ou desmotivou a participação no Liter@net levou-nos a inquirir aqueles que são a razão da existência do projecto: os alunos e respectivos professores do 1.º ciclo do Ensino Básico. Procurámos então aferir os factores desencadeadores da maior ou menor participação nos desafios lançados pelo Liter@net e para isso inquirimos alguns dos participantes no projecto. Começando pelos alunos participantes (cf. G2), estes estão distribuídos por sexo de forma praticamente equitativa (53% do sexo masculino e 47% do sexo feminino) e têm, maioritariamente, 9 e 10 anos (cf. G3), frequentando por isso, na sua maioria, o 4º ano de escolaridade (cf. G4).
Participação por idades
Participação por sexos 2% 1% 1% 3% Masculino
47%
53%
40% 43%
Feminino
10%
6 anos 7 anos 8 anos 9 anos 10 anos 11 anos 12 anos
G2
G3
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Participação por anos de escolaridade
1% 5% 17% 1.º ano 2.º ano 3.º ano 4.º ano
77%
G4
Os alunos participaram maioritariamente (cf. G5) (45% de ocorrências) nos desafios lançados pelo Liter@net e, quando não participaram (cf. G6) tal deveu-se predominantemente a três razões distintas: o professor não tinha disponibilidade (43%), o computador/impressora da escola não funcionava (38%) ou o exercício proposto era muito difícil (14%), o que vem corroborar as nossas afirmações anteriores acerca da elevada ou diminuta participação no Liter@net. Participaste nos desafios do liter@net...
5% 26%
23%
todas as semanas
46%
quase sempre algumas vezes nunca
G5
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Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
Quando não participaste no liter@net, foi porque...
2% 1%
2%
os exercícios eram muito difíceis o computador/impressora da escola não funcionava
14% 43%
o teu professor não tinha disponibilidade para participar
38%
não tinhas vontade em participar a tua equipa não queria participar te esqueceste
G6
Relativamente à opinião que têm sobre os exercícios do Liter@net (cf. G7), para 47% dos alunos os exercícios do Liter@net foram muito interessantes e úteis, para 30% genericamente interessantes (tendo contudo havido alguns muito difíceis), havendo 18% dos alunos a considerar que os exercícios foram engraçados. Qual a tua opinião sobre os exercícios do liter@net? 1%
Muito interessantes e úteis
0% 30%
Genericamente interessantes, mas houve alguns muito difíceis
47%
18%
Interessantes, mas a linguagem utilizada é complicada Engraçados Um importante apoio para aprender língua portuguesa
1% 3%
Sem grande interesse Pouco adequados ao teu nível
G7
Já os professores (G8), vêem nos exercícios do Liter@net um importante apoio na Língua Portuguesa (42%), considerando-os muito interessantes e úteis (41%) ou genericamente interessantes, havendo contudo alguns muito difíceis (17%).
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Genericamente, qual a sua opinião relativamente aos exercícios do liter@net? Muito interessantes e úteis
0% 0%
Genericamente interessantes, havendo contudo alguns exercícios excessivamente difíceis Interessantes, mas com uma linguagem pouco acessível
41% 42%
Um importante apoio na língua portuguesa
0%
17%
Sem grande interesse Pouco adequados ao nível dos alunos
G8
Segundo os professores (G9), e no que concerne a participação dos alunos no Liter@net, estes mostraram-se maioritariamente muito interessados, empenhados e motivados (50%) ou genericamente interessados (42%)
De uma forma geral, os alunos que participaram mostraram-se... 0%
0%
8% 42%
Muito interessados, empenhados e motivados Genericamente interessados
50%
Interessados somente em alumas semanas Indiferentes Completamente desinteressados
G9
Como balanço geral (G10 e G11), é considerado por 78% dos alunos inquiridos que o Liter@net provocou uma melhoria no seu desempenho em Língua Portuguesa, tendo 90% afirmado que considera importante a continuação do lançamento de desafios pelo Liter@net.
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Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
Achas que o liter@net fez com que melhorasses em Língua Portuguesa? Sim
20%
2%
78%
Não Não tenho opinião
G10
Para ti é importante que o liter@net continue a lançar desafios no próximo ano lectivo?
0%
Sim
10%
Não
90%
Não tenho opinião
G11
No mesmo sentido, e relativamente aos professores, 92% considera que o Liter@ net propiciou uma melhoria do desempenho dos alunos em Língua Portuguesa, sendo para estes mesmos 92% importante e pertinente que o projecto continue no próximo ano lectivo (G12 e G13).
Considera que o liter@net propiciou uma melhoria do desempenho dos alunos em Língua Portuguesa ? 0%
Sim
8%
92%
Não Não tenho opinião
G12
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Considera importante e pertinente a continuação do projecto no próximo ano lectivo?
0%
8%
Sim Não
92%
Não tenho opinião
G13
Finalmente, e no que concerne aos comentários/sugestões dos discentes, a par do seu carácter bastante elogioso, sublinhamos a pertinência de algumas sugestões, nomeadamente as que dizem respeito ao grau de dificuldade dos exercícios e as relativas à diversidade de conteúdos a exercitar (“deviam lançar mais desafios também sobre outras matérias: estudo do meio, matemática, expressão plástica”) e à forma de os exercitar (solicitando “exercícios com mais mistérios”). Os professores, não obstante considerarem as virtualidades do projecto, sugeriram a realização de exercícios para níveis de escolaridade específicos (exercícios por níveis) e também a inclusão de, a par das efemérides, tópicos relacionados com os interesses dos alunos (séries televisivas e grupos musicais). Conclusão Com base no anteriormente exposto, parece-nos que o Liter@net atingiu os objectivos a que se propôs: fomentou, através da utilização das TIC, um melhor conhecimento da Língua Portuguesa, desenvolvendo, pela descoberta e pela indução, o gosto e conhecimento dos alunos do 1.º ciclo do Ensino Básico relativamente a esta área do saber, tão importante para o seu futuro. Contudo, estes dados, não obstante sublinharem as virtualidades do projecto e o grau de satisfação dos seus intervenientes mais directos, chamam também a atenção para algumas insuficiências, como o não funcionamento dos materiais da escola (impressora ou mesmo computador) e a disponibilidade, muitas vezes compreensivelmente bastante limitada, dos docentes. Apesar destas vicissitudes, próprias, a nosso ver, de um período experimental como foi este em que decorreu o Liter@net, consideramos que, genericamente, este projecto atingiu os seus objectivos. De facto, não obstante ser a primeira vez que está em funcionamento, tivemos cerca de 450 participações em apenas 4 meses, participações essas só possíveis através do uso das TIC (objectivo basilar do projecto). Além disso, propiciámos, segundo alunos, professores e monitores, uma melhoria no desempenho 314
Diversão e ludicidade no ensino da gramática no 1.º Ciclo: relato de uma experiência realizada com alunos do 1.º Ciclo do distrito de Leiria
dos alunos do 1.º ciclo do Ensino Básico na disciplina de Língua Portuguesa, o que por si só justificaria, seguramente, a continuação do Liter@net em anos subsequentes. O Liter@net é pois a prova viva de que é possível (e proveitoso) aliar diversão e aprendizagem ou, como disse um dos participantes do nosso projecto, é possível “aprender português a brincar!” Bibliografia Amor, E. (1993). Didáctica do português. Lisboa: Texto Editora. Barbeiro, L. (1998). O jogo no ensino-aprendizagem da língua. Leiria: Legenda. Barbeiro, L. (1999a) Os alunos e a expressão escrita: consciência metalinguística e expressão escrita. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Barbeiro, L. (1999b). Funcionamento da língua: o jogo da criação. Aprender, 22, 8492. Barbeiro, L. (1999c). Jogos de escrita. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional. Barbeiro, L. (2001). Lengalíngua. Leiria: Legenda. Duarte, I. (2001). Língua portuguesa: instrumentos de análise. Lisboa: Universidade Aberta. Ministério da Educação (2001).Currículo Nacional do Ensino Básico: competências essenciais. Lisboa: ME-DEB. Ministério da Educação (1990). Programa do 1.º Ciclo. Lisboa: ME-DEB. SIM-SIM, Inês et al. (1997). A língua materna na educação básica: competências nucleares e níveis de desempenho. Lisboa: ME-DEB. Sim-Sim, I. (1998) Desenvolvimento da linguagem. Lisboa: Universidade Aberta.
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