O EXPRESSO ENTRE AS CAPITAIS
Cruzar os 516 quilômetros que separam as duas maiores cidades do País no Trem de Prata, reserva uma noite de glamour onde o pretexto do viajante é espantar o estresse dos centros urbanos — durante 9 horas de viagem
Por Chico Freitas • Fotos Israel Teixeira
Desde 1994, paulistas e cariocas que viajam constantemente entre suas cidades estão experimentando outro meio de transporte para chegar a um de seus destinos. Trocaram os 40 minutos da Ponte Aérea ou cinco horas de ônibus expresso por 9 horas dentro de um trem com estrutura de hotel e velocidade média de 60 quilômetros/hora. O preço da viagem é semelhante ao do bilhete aéreo. Tecnicamente, perde-se mais tempo e se gasta o mesmo que no avião. Mas a procura pelo Trem de Prata vem aumentando seja para fechar negócios, viajar ou simplesmente passear. Uma explicação plausível é a vontade de viajar de trem em um país continental com poucas ferrovias para o turismo. Mesmo assim, foi preciso trabalhar a resistência dos passageiros nos primeiros momentos. “As pessoas confundiam o Trem de Prata com o trem de subúrbio. Investimos muito em mídia para mudar a mentalidade e conquistar clientes”, explica Jerônimo Gil, 58 anos, 41 de turismo, superintendente da Trem de Prata Hotéis e Turismo Ltda. “Agora, que estamos há três anos e meio no negócio, a imagem está mudando”, comemora o superintendente, que apesar de nomear seu produto como um hotel sobre trilhos, entrega que não consegue adormecer no trem, que parte diariamente às 20h30 e tem horário previsto para chegar em um de seus destino, 6 horas da manhã. Os números comprovam o interesse. No primeiro ano de atividades, a viagem prateada era feita com apenas uma composição que ia e voltava para o Rio ou São Paulo em dias alternados. Hoje, tamanha a procura dos passageiros, que as atividades dobraram. Diariamente, duas composições: uma partindo da Paulicéia e outra da cidade maravilhosa garante o Trem de Prata todos os dias pontualmente às 20h30 no terminal Barra Funda, em SP, e na estação Barão de Mauá, no Rio.
Jerônimo Gil, superin-tendente da Trem de Prata Hotéis e Turismo Ltda
Para atender a atual capacidade de 124 passageiros, o trem adicionou mais dois carros-dormitórios em cada uma de suas composições. Segundo a empresa a taxa de ocupação mensal chega a 75%. O Trem de Prata é o porto-seguro para quem morre de medo de avião e os que pretendem se poupar de uma viagem aérea quando algum acidente acontece nos domínios do espaço aéreo brasileiro. Nesses dias é batata que o trem saia lotado com pelo menos 95% de sua ocupação. “Por mais que se goste de avião, a Ponte Aérea é uma viagem estressante. Do jeito que está caindo avião aí... , defende sua escolha pelo Trem, a empresária carioca de moda, Sandra Regina Rocha, 42 anos, acom-panhada da filha Hettiene Rocha de Oliveira, 19. Sandra e a filha viajam semanalmente a negócios para São Paulo, atrás de novidades do mundo fashion para sua loja e confecção que ficam no Rio. A mãe tem pavor de avião. “Prefiro ficar mais relaxada e viajar como se estivesse dormindo, só no
trem consigo isso.” Não bastasse o medo de avião, Sandra passou por um momento de tensão em uma de suas viagens no Prata. Durante o jantar, o trem ainda atravessa o Estado do Rio de Janeiro, quando um tiro atingiu a janela da mesa que ocupava. Assustada, pelo ocorrido inusitado, foi informada que o que a salvou foram as janelas blindadas (do bar e do restaurante) com vidros de policarbonato à prova de balas de 6 a 9 milímetros. Apontada como habituè , Sandra é cumprimentada pelos funcionários do Trem e faz novas amizades todas as vezes que viaja. O ambiente propício para conhecer as pessoas é o bar do trem. Na sextas feiras, dia de maior movimento da semana, os freqüentadores encarnam um ar de confraria íntima, reunindo-se nas mesas e no balcão do american bar. Eles conversam, paqueram, usam o celular, jogam cartas, bebem e votam no filme que querem assistir a partir das 22 horas. O clima reinante é a descontração total.
Sandra Regina Rocha acompanhada da filha Hettiene Rocha de Oliveira
Davi Sampaio Fonseca, empresário e Taís Antunes, estudante de administração
O casal paulista Davi Sampaio Fonseca, 23 anos, empresário, e Taís Antunes, 21, estudante de administração, escapou para o Rio rumo a uma exposição de artes plásticas. “Se você tem esse tempo, o programa é bem romântico”, avalia Fonseca. “A diferença entre a Ponte Aérea e aqui é o tempo. No trem dá para curtir mais a viagem. O tratamento é ótimo”, confirma Taís. “A refeição é excelente, incomparável”, derrete-se. Mesmo ocupando uma cabina dupla, com camas beliches, o casal cogita voltar de trem. “Estamos estudando se vamos voltar de trem para São Paulo. Nosso tempo é pouco, mas se depender de nós voltamos. É mais relaxante”, diz Fonseca. Dois irmãos de Curitiba incluíram o trem em sua viagem de negócios para São Paulo. O representante comercial, Mário Maingue, 42 anos, e seu irmão, Marco Maingue, 37, diretor comercial. Ambos trabalham numa empresa fornecedora de papel no Estado do Paraná. A escolha pela viagem tenta confirmar a tese de que ela ajuda a enfrentar um dia de negócios. “Aqui eu janto, durmo e no outro dia acordo cedo, tomo banho e saio para trabalhar muito mais disposto”, acredita Mário. O irmão faz um aparte. “Se você vem para o Rio a
Mário Maingue e seu irmão Marco Maingue, diretor comercial
turismo. Acho melhor vir de avião. Você perde muito tempo no Trem. Agora, se você vem a trabalho, acho que vale a pena. Só não sei se vou conseguir dormir...”, desconfia. “Tome umas seis cervejas para ver se você não dorme”, desafia o irmão Mário. A explicação para o sucesso do Trem de Prata entre paulistas, cariocas, paranaenses e todos que se aventuram a ficar quase a metade de uma noite viajando sobre trilhos vem de uma observação inocente de Mário Maingue. “Eu acredito que as pessoas que viajam sempre no Trem de Prata façam novos amigos. A gente sentou aqui e começou a conversar com as pessoas naturalmente.” Talvez este seja o segredo da jornada de 9 horas, no reinício das atividades de um trem de turismo no Sudeste. O tempo é suficiente para ficar à vontade para abordar e conhecer quem está ao lado. Cada trem tem onze vagões; destes, seis são de dormitórios. Estes carros são compostos por sete cabinas duplas, uma single e duas suítes mobiliadas como nos hotéis, com cama de casal, escrivaninha e frigobar. Todas as cabinas possuem banheiro privativo, com água quente e fria e ducha móvel. O ar-condicionado é central. Nas áreas comuns, há um carro-restaurante onde são servidos o café da manhã self-service e o jantar, baseado em pratos da tradicional cozinha francesa. O ambiente lembra um restaurante de primeira linha com maîtres, garçons e chefes trabalhando num ritmo frenético pelo corredor do vagão-restaurante para servir os passageiros em dois horários para a última refeição da noite às 20h30 ou 22h, incluindo aí entrada, o prato principal e sobremesa. Bebidas à parte. Ainda há o carro-bar com música-ambiente e vídeo, onde são servidos drinques e aperitivos. Este vagão se transforma em sala de vídeo a partir das 22h, onde há um clima de paquera entre os freqüentadores. “Esse clima nunca proporcionou que um casal que se conhece aqui tivesse um romance dentro do Trem”, afirma Gilberto Roma, 42 anos, gerente geral da composição. “Há dois anos e meio que estou aqui, e o máximo que vi entre solteiros é troca de cartões”, desconversa o gerente, cioso de sua clientela compostos por casais, famílias e solteiros. É realmente difícil supor que alguma aventura possa acontecer no trem. Cada vagão, batizados com nomes inspiradores como Angra dos Reis, Mauá, Búzios... é vigiado por um cabineiro que abre e fecha as cabinas (pelo lado de fora) somente a pedido de seus titulares. A rotina de Roma como autoridade máxima na composição, inclui ainda outros afazeres cuja natureza é, digamos, diplomáticos. Um deles é fazer sala para passageiros notívagos, que preferem permanecer acordados no bar durante toda a viagem, abrindo mão do conforto das camas e do balançar terapêutico da vibração dos trilhos. “Temos que ficar no bar até o último
Gilberto Roma gerente geral da composição
cliente. Na última viagem, teve um que se recolheu às 5h15 da manhã. E ele está voltando hoje”, resigna-se. A aceitação do trem impulsionou em volta dele dois movimentos. Além de transportar passageiros, não é raro topar com equipes de emissoras de tevê, vídeo e cinema ambientando cenários para o enredo de suas produções. Outro movimento, este previsto e estimulado, claro, é a facilidade como se encontra em agências de turismo, pacotes com o Trem na ida e a Ponte Aérea na volta e toda a sorte de combinação com carro alugado, hotel reservado, Citi Tour pelas metrópoles. Uma pesquisa realizada pela empresa apurou que 98% dos viajantes aceitam muito bem o produto. É ver para crer. Nem tudo são rosas. Para quem vai a negócios para uma das capitais, um alerta: é prudente agendar os horários dos compromissos com cuidado. Nem sempre o trem chega pontualmente às seis da manhã. A operadora do Trem de Prata garante que em qualquer eventualidade fornece ônibus para conduzir os passageiros. Não há falta de energia, pois o trem é movido a óleo diesel. Contudo, há paradas por motivo de sinalização. Uma das explicações dadas pela empresa para esta falha são as reformas empreendidas pela Rede Ferroviária Federal S/A, RFFSA, na linha. A Rede está trocando os dormentes apodrecidos pelo tempo em todo o trecho de 516 quilômetros. Depois desses reparos, espera-se que os atrasos diminuam e a estabilidade dos carros nos trilhos melhore muito. O trem balança bem, mas os novatos vão acostumando, aos poucos, a fazer tudo com o solo se movendo pra lá e pra cá e aprendem, na prática, o conceito físico da inércia, ao resistir com o seu corpo à modificação de seu estado de movimento. A sensação é indescritível, só experimentando.
Empresa já investiu US$ 6 milhões A oportunidade da Trem de Prata em explorar o trecho ferroviário entre São Paulo e o Rio surgiu da paralisação do Trem Santa Cruz, operado com prejuízo pela RFFSA até 1991. Com esta desativação, abriu-se o caminho para parcerias com a iniciativa privada. Na atual joint venture , a Rede cede os carros, as estações, a via férrea, a locomotiva e os maquinistas por oito anos, com direito a renovação pelo mesmo tempo. Segundo a empresa que opera o Trem de Prata, a receita prevista para a Rede é de US$ 500 mil ao ano, com o aluguel de equipamentos e pessoal. Para a concretização do projeto, o consórcio que está no negócio afirma ter investido US$ 4 milhões, na primeira etapa, para remodelação dos carros, reforma dos terminais e revitalização da decoração dos interiores do trem. Na segunda etapa, mais US$ 2 milhões de dólares foram injetados com o aumento das composições em mais quatro carrosdormitórios. Em relação ao faturamento, a empresa se esquiva num solene “ está acima das expectativas”.
“50 em 5” descartou ferrovias No meio ferroviário corre a versão de que as ferrovias foram trocadas pelas rodovias na elaboração e na execução do Plano Nacional de Desenvolvimento no governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956 — 1961), o chamado “Plano de Metas”, que promoveu a industrialização do País. Apoiado no slogan “50 anos em 5”, o governo JK, entre outras coisas, instalou a indústria automobilística brasileira, ergueu Brasília, investiu na agricultura e internacionalizou a economia nacional. Na área cultural, deu esteio à Bossa Nova e ao Cinema Novo. A ferrovia grande ainda tentou voltar nesse século, por intermédio do controvertido projeto “Ferrovia Norte — Sul”, concebido durante o mandato do presidente José Sarney (1985 — 1990). O plano previa uma estrada de ferro cortando o país de ponta a ponta. Os opositores, que eram muitos, criticaram
Sarney, afirmando que aquela estrada de ferro ligava nada a lugar nenhum. Numa segunda etapa, seu ministro dos transportes, previa também a instalação de um trem-bala ligando as cidades de Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. A Norte— Sul teve sua pá de cal, depois que o colunista Jânio de Freitas, do Jornal Folha de São Paulo, numa série de artigos investigativos e um anúncio classificado cifrado, antecipou os ganhadores da concorrência para a construção da via, provando que a licitação era um jogo de cartas marcadas. Foi nesse ambiente de lobbies, denúncias, escândalos e recuos que a ferrovia brasileira deu seu último suspiro na tentativa de crescer. Agora só no próximo milênio.