12 Signos com Susana Duarte

Page 1


Os reflexos do céu na Terra são limitados e imperfeitos, como as incompletas existências que a habitam. Se não fosse assim, invejariam os anjos a vida na Terra. Almeida Garrett

É vã toda a obra humana que não começa no céu. Pietro Metastásio

2


Índice

Carneiro – Sou o primeiro, logo existo ................................................................................................................ 4 Touro – Eu tenho, logo existo ............................................................................................................................. 5 Gémeos – Eu penso, logo existo ......................................................................................................................... 6 Caranguejo – Eu cuido, logo existo ...................................................................................................................... 7 Leão – Eu brilho, logo existo ................................................................................................................................ 8 Virgem – Eu critico, logo existo ........................................................................................................................... 9 Balança – Nós somos, logo existo ........................................................................................................................ 10 Escorpião – Eu controlo, logo existo .................................................................................................................... 11 Sagitário – Eu sei, logo existo ............................................................................................................................... 12 Capricórnio – Eu reprimo, logo existo .................................................................................................................. 13 Aquário – Eu desapego, logo existo ..................................................................................................................... 14 Peixes –Eu sinto, logo existo ................................................................................................................................ 15

3


Carneiro – Sou o primeiro, logo existo São 4 da manhã e ainda não pregou olho. Tem de entregar a proposta antes do Marcos, ou a venda não se faz. Perder está fora de questão, nem que tenha de lhe furar um pneu. Às 7 estava pronto para sair. - Porra, este pessoal que não anda!! Buzinar não ajudava, mas a pressa era maior. Entrou na autoestrada e viu uma pista à sua frente. Qual Senna, fez a A3 em 20 minutos. Ao chegar ao escritório sentiu a irritação a chegar. Vermelho era tudo o que via, e era a cor da sua cara neste momento. Aquela vontade quase incontrolável de coçar a cara que o deixava doido... Era a eczema a aparecer. Viu-a na recepção e acalmou instantaneamente. Não percebia este efeito que ela tinha sobre ele, mas queria-a por perto. Se o acalmava de longe sem saber, de perto seria ainda melhor para ele. Ia tratar disso mais logo, mas deixava já a semente na cabeça dela. - Bom dia Isabel! - Bom dia Dr. Francisco! É para o Dr. Ricardo? - Sim. - Ele já o manda subir. Quer um café enquanto espera? - Com certeza, obrigado. Em três minutos tinha o número de telefone dela e o café combinado. Não há tempo a perder. - Pode subir, o Dr. Ricardo está à sua espera. Ao entrar no hall nem acreditou no que estava a ver. O sacana tinha chegado primeiro. E entrou a matar: - Então? Adormeceste e caíste da cama hoje, foi? Tentou ir buscar toda a calma dos anos de artes marciais, mas de pouco lhe valia. Já sabia como isto ia acabar. - A tua mãe é tão gorda que não cabia e empurrou-me da cama, sim. Diz-lhe olá logo quando a vires... A porta abriu-se no momento exacto. Sorriu e fez-lhe um gesto feio com o dedo ao passar para o gabinete. Não era habitual o cliente falar dos pormenores de propostas concorrentes, mas este negócio em particular não tinha nada de normal. Quando ouviu as condições nem queria acreditar no jogo baixo do filho da mãe. Olhou através do vidro e o idiota acenou-lhe, sorrindo. Sentiu a cólera subir-lhe às têmporas, já via tudo vermelho. A raiva que sentia neste momento dava para disparar um foguetão em direcção a Marte. - E então, que me diz Dr. Francisco? Consegue fazer melhor? Já não via nem ouvia. Levantou-se e saiu disparado em direcção ao hall. O outro nem teve tempo de reagir. Quando deu conta estava no chão com o nariz partido. Voltou ao gabinete e declarou que igualava as condições. O Dr. Ricardo pareceu bastante divertido com a situação. Closed deal. Ao sair, passou pelo concorrente que ainda se recompunha no sofá. - Eu disse-te que cheguei primeiro, idiota. Diz olá à tua mãe por mim.

4


Touro – Eu tenho, logo existo Uma vida inteira a acumular riqueza. A riqueza dos pais era a prova última do seu valor. A forma de lhe dizerem “Eu amo-te”. Já adulto, fazer crescer a fortuna era a sua forma de procurar incessantemente esse “Eu amo-te” que nunca chegou. Ter mais que suficiente nunca era suficiente. Esteve sempre lá para os amigos. Nascer rico deu-lhe a schadenfreude do seu próprio conforto mas a culpa humanizava-lhe a consciência. Assim, mesmo que o montante nunca fosse devolvido, a amizade continuava a ser. Jurou a si próprio que não faria o mesmo que os seus pais, mas algo falhou pelo caminho. Numa dessas manhãs preguiçosas que convidam ao brunch no melhor hotel da cidade, conheceu-a quando se debruçaram ambos sobre a última fatia de bolo de chocolate. Ele apaixonou-se pelo seu ar de afrodite. Ela amou o ar sólido, a teimosia e a barriguinha dele. O amor pelas coisas boas da vida uniu-os e casaram pouco depois. Vénus, qual Deusa generosa, distribuía as suas graças numa vida luxuosa, feliz e abundante. Uma noite, depois de mais um serão na mansão dos pais, deixou de conseguir engolir. Perdeu a voz. Quando se sentiu sufocar não teve outro remédio senão correr para o consultório do médico. E o prognóstico não era bom. O da segunda opinião também não. E o do melhor especialista também não. Quando ela entrou no quarto, a luz que invadia a janela tornava-o da mesma cor do lençol. O marido, a cama e a parede eram um só... todo o quarto envolto numa claridade cadavérica que cegava. Tudo aquilo que nunca pôde dizer estava a matá-lo: quantas vezes lhe apeteceu gritar que preferia ter nascido pobre mas ter sentido um abraço, o colo, o mimo? Teimoso, enterrou sempre a mágoa. Teimoso, deixou esmagar o amor próprio pela ingratidão dos que o viam como o seu banco. Teimoso, o corpo a dizer-lhe que era mais do que quanto tinha. E ele, teimoso, não aceitava, não engolia, porque não sabia quem era sem a sua segurança. Tinha passado tanto tempo que já não queria descobrir se o amariam na mesma caso não tivesse nada. E a pior suspeita de todas: amá-lo-ia ela se o networth dele fosse como o dos comuns mortais? Ela acariciou-lhe a face, e leu-lhe a dúvida nos olhos. Suspeitou da suspeita dele, não sabia se era dela que duvidava. Decidiu sossegá-lo. Tomou-o nos braços, beijou-lhe os lábios de leve e sussurrou-lhe: “Vou amar-te sempre.” Vénus continuava linda, generosa. Atravessou o túnel de encontro à luz que ia crescendo. Deixou-se envolver e sentiu-se leve, feliz. Levou a mão à garganta: era saudável de novo. Tinha voltado ao estado puro de quando tinha deixado este lugar há 35 anos atrás para reencarnar. Um aroma familiar invadiu-lhe o olfacto e não conseguiu deixar de sorrir. Olhou em volta e viu a Terra que tanto amava. A Terra... o verde, a tranquilidade, as colinas. Vislumbrou um bloco negro, ali ao lado. Olhou melhor: era um Touro. Ostentava uma grande cicatriz no pescoço e tinha um pendente de quartzo rosa na coleira. Olharam-se profundamente: percebeu que as suas dores eram as dele. “Bem vindo a casa”. Cá em baixo, ela sentiu-lhe o último suspiro. Sorriu e largou o peso morto do cadáver que caiu sobre a cama do hospital. Finalmente era multimilionária. 5


Gémeos – Eu penso, logo existo 09h00 Tenho de acabar a crónica para depois de amanhã. Não sei sobre o que hei-de escrever... Talvez sobre mulheres que não querem ser mães? Era um tema polémico... Merda, vem aí o chefe. - Janine, não te esqueças da crónica para amanhã, ainda precisas de mandar à edição. Não quero que deixes para a última como.... Será que o Paulo Garcia vai estar na festa de Verão? É pouco provável, no ano passado só vieram dois chefões de Lisboa. Era giro que viesse. E que entrássemos juntos na festa! Deixa de ser parva Janine, ele nem sabe que existes! Além disso, achas mesmo que ele assumia o que quer que fosse contigo se te conhecesse? O homem tem uma carreira a manter! Ia lá agora sujeitar-se a acharem que partilhava informação confidencial contigo! Aquela barba com laivos de ruivo... - Quero isso pronto hoje até ao final do dia. Se fosses morrer longe, mas é... Infeliz do caraças. Ok, vamos lá a isto. Deixa-me ver o que se anda a passar no país e no mundo a ver se algo me surge. O dia da mãe, Eurovisão, Porto campeão... Ha! Vamos lá abanar consciências e desmascarar o dia da mãe... - Estou? Sim mãe... Sim, diz. Não, não tirei nada para o jantar. Está bem. Por volta das 19h00. Tá, até logo, beijinhos. 09h15 Porra, que este tempo está esquizofrénico... Onde já se viu este calor em Maio? 27ºC? Aquele termómetro antigo já não deve estar bom... Ou isso ou estou cansada, que me pareceu ver o Mercúrio subir.... A sério? Emails destes a esta hora? Só podes estar a gozar. O que é que devo vestir para a Summer Party? Não pode ser nada muito óbvio nem pouco profissional, mas também nada muito sério. Precisas de te meter no ginásio ontem Janine, estás o mais gorda que estiveste nos últimos anos. Está abafado aqui, preciso de Ar. Deixa-me abrir esta janela... Assim está melhor. Caramba, está mesmo calor, parece que me sinto febril. Será que o Paulo Garcia tem namorada? Ou namorado? Esta crónica em Maio vai cair que nem uma bomba. 12h00 - Desde que idade é que fuma? - Desde os 12. - Já tem idade para começar a pensar em deixar. Os seus pulmões não aguentam muito mais tempo assim e o coração vai perdendo capacidade de bombear... Idiota. Eu fumo quando o mundo não me deixa respirar. Tenho de acabar a crónica para amanhã. Espero que a minha mãe não faça peixe para o jantar. Dói-me tudo, estou a começar a deixar de ter movimento nos braços por causa dos pulmões. Isto está mau. Será que o Paulo me sorriu por se lembrar de mim ou por estar treinado para sorrir ao pessoal por causa da posição que tem? 19h00 Parece que me cheira a peixe... Argh. - Como anda o trabalho, filha? Se tu soubesses... - Tudo bem, mãe. - Ainda bem filha. Já Mudaste tantas vezes que a gente a preocupa-se e gostava de te ver um bocadinho mais segura... Se falasses menos não te despediam tantas vezes. - Eu estou bem mãe, não falta trabalho na minha área. Se te realizasses e parasses de projectar em mim dava jeito. Porra, outra vez? Onde é que está a minha bomba? Não, o que é que se passa? Não... não... não, não, não, não, não... Nãão! Por que é que ficou tudo escuro? Mãe? Ao acordar do outro lado respirou o mais fundo que alguma vez conseguiu. Abriu os olhos e viu-a ao longe: igual a si, excepto o colar de Ágata ao pescoço. Frente a frente, olhos nos olhos ouviu na sua cabeça: sou a tua mente. - Bem vinda a casa. Respira. Obrigada por finalmente me deixares sossegar. Na Terra, o Mercúrio chegou aos 29ºC. 6


Caranguejo – Eu cuido, logo existo. Olá filha, como estão as coisas por aí? Espero que esteja tudo bem com os meninos, a Lili andava a comer tão mal quando estivemos aí da última vez... Se calhar devias levá-la ao médico, ela tem estado muito esquisita a comer e estava tão magrinha quando cheguei! Eu sei que tu andas sempre a correr filha, eu sei como é a vida, mas olha por ti! Não tem jeito nenhum andares sempre a correr, um dia destes até te dá qualquer coisa, filha... Essa vida não tem jeito nenhum, eu sei que o dinheiro faz falta mas o dinheiro não é tudo. Por cá vai andando tudo na mesma, o teu pai continua a só pensar nele e só sabe beber. O médico já lhe disse como é mas ele não quer saber. A medicação já mal faz efeito e ele só me envergonha com as coisas dele. Já lhe disse que aqui no lugar as pessoas até se riem dele com as bricolas que faz e depois anda a dar às pessoas. Mas sabes como é, ele só pensa nele. Sabes filha, a gente nunca pensa que chega a esta idade e vive assim uma vida... Dantes chocava-me muito quando ouvia as pessoas dizer que se separavam ao fim de tantos anos de casamento, e agora que podiam estar reformados... Agora não me choca nada, eu percebo e apoio! A gente vive 40 anos com uma pessoa e não sabe quem tem ao lado, olha o que eu te digo... Mas também já lhe disse, ele é uma pessoa que eu tenho aqui em casa. Ele escolheu o vinho, eu escolho o meu sossego. E pronto, vamos vivendo assim os dias, aqui fechados em casa, que ele não me leva a lado nenhum. A gente está aqui fechada um dia atrás doutro, um dia atrás doutro... e esta minha cabeça anda como a Lua, umas vezes cheia de luz e pensamentos bons, outras vezes anda aqui mais escondida e não quer ver nem falar com ninguém. É uma pena, podíamos estar tão bem agora que estamos os dois reformados, podíamos gozar um bocadinho, fazer umas férias como deve ser... E é uma guerra aqui em casa todos os dias. Olha filha, é uma vida, sabes? É verdade, aqui a Tia Sameira tem uma empregada que vem aqui todos os dias, sabes? Foi a Olívia que está na França que arranjou. A mulher agora já não vem todos os dias, mas ao início vinha, porque sabes como é aquela casa. Levou muito tempo até limpar o esterco todo. Ela bem que me falava, mas eu já trabalhei muito e agora não posso. Eu nem a minha casa limpo, quanto mais a dos outros... Isso já foram tempos, de fazer tudo por toda a gente neste lugar e cozinhar pra casamentos e baptizados, olhar pelos doentes e vestir os mortos. Agora não posso, fui ao médico no outro dia e ele proibiu-me de fazer esforços. O cancro desapareceu mas se reaparecer não me conseguem salvar o peito desta vez. E eu não queria passar por aquilo tudo outra vez, isso não. Por isso vou vigiando eu e fazendo exame em casa quando me lembro, que a gente também não pode viver a pensar nisto... Eu costumo dizer que o meu peito já serviu o propósito que tinha, que foi alimentar-vos, a ti e à tua irmã. Agora se ficar sem ele também não é o fim do mundo. A gente Muda com o passar do tempo, e há coisas que já não têm tanta importância. E como estão os meninos na escola? No outro dia quando me contaste do acidente do Luís nem fiquei boa, filha. Eu nesse dia parecia que não estava bem em lado nenhum e ele não me saía da ideia. Estive pra te ligar mas eu sei como é a tua vida e não quis incomodar. Como é que ele tem estado? Penso tanto em vocês agora que vão mudar de casa... Tu olha bem por eles, se quiseres que eu me meta num avião e passe aí uma temporada pra te dar uma ajuda, tu diz que eu vou. Eles estão tão lindos mas agora com a mudança de escola podem ir abaixo outra vez e cada vez que a gente aí vai custa cada vez mais a gente despedir-se deles. O Luís já é um homenzinho, mas a Lili vai-se muito abaixo. Eu deixei-te umas sopinhas e umas coisinhas caseiras congeladas pra ser mais fácil pra ti no dia a dia e assim já lhes dás uma corinha, que eles precisam. Olha e tu, filha, e o teu trabalho? Penso na tua vida todos os dias e nem durmo, deste um passo tão grande... A gente está aqui para te ajudar no que puder, já disse à tua irmã que agora vamos juntar algum pra te ajudar a ti agora, que já a ajudamos a ela. Olha filha tenho de ir, estão a bater à porta, deve ser o tio João que quer falar do que se passa lá em cima com a casa e a herança. Ou é ele ou a dona Conceição que quer desabafar. Eu sei que as pessoas não fazem por mal mas às vezes cansam-me. Eu estou aqui para toda a a gente, tenho sempre uma boa palavra, mas às vezes também gostava de ter quem me ouvisse a mim, sabes? Tenho de ir, um beijinho para vocês e para os meninos, da tua mãe cheia de saudades. Amo-vos muito. 7


Leão – Eu brilho, logo existo São 21h30 e o calor deslocado parece querer confundir-nos a estadia. A cidade dos Arcebispos deu-nos o seu melhor Verão, empurrando-nos até Esposende durante a tarde, onde a palavra “nortada” ganha todo um novo significado. À noite as gentes de Braga espalham-se pela cidade, que parece aumentar de tamanho só para conseguir acolher a todos. E os que conseguiram bilhetes para esta estreia sabem que se trata de algo especial. Os grupos entreolham-se, como que reconhecendo um privilégio a que apenas os próprios tiveram acesso hoje. Se a entrada não é propriamente memorável, todo o trabalho de recuperação de Theatro Circo é digno de aplauso por si só assim que subimos ao primeiro andar. Tal como a cidade, não é gigante mas tem o tamanho certo para acolher os seus e o visitante ocasional que se deixe encantar. Tem personalidade própria e é talvez por isso que a sua beleza é tão particular: não é um Coliseu, e nem quer ser. E essa dignidade estende-se à cidade: Braga não é Porto, nem Lisboa nem Coimbra, e nem quer ser. Começa a viagem pela rota do Desejo. Reinventar uma peça encenada vezes sem conta não foi um desafio encarado de ânimo leve, como o demonstra logo o primeiro acto. Um cenário algo despojado reflecte a ideologia do encenador Ricardo Pais: há uma modernidade desconcertante a pairar que nos agarra desde o primeiro minuto. O inteligente jogo de luzes no cenário é prova disso mesmo. Que não restem dúvidas sobre o brilhantismo do elenco. Sara Montez mostra-nos um lado ingénuo de Blanche DuBois como nunca víramos antes. O contraste entre a ilusão e a arrogância da personagem são desmascarados pela linguagem corporal de Sara, que assim nos presenteia com uma performance arrancada das entranhas e nos deixa sem saber bem o que pensar sobre Blanche. De salientar a cena-choque que nos mostra o envolvimento de Blanche com o estudante de 17 anos, uma das razões para o seu afastamento do trabalho: sem um único diálogo suspende-nos na cadeira, quase nos faz esquecer de respirar. Há quem ache a cena desnecessária, no entanto creio que é esta a cena que nos mostra a verdadeira psique de Blanche. A maior surpresa da noite estaria ainda para chegar, pois não seria possível escrever sobre esta performance sem mencionar o brilhantismo de Carlos Leão. Trazer semelhante nobreza a um personagem cru e animalesco como Stanley Kowalski seria tarefa impossível, não fosse Leão a encarná-lo. É o tipo de actuação que nos cospe na cara o cru, a finesse, o animal, e uma certa realeza de peito cheio que hipnotiza, que rouba o palco, mesmo sem querer. É impossível tirar os olhos deste Stanley Kowalski quando está em palco; e se a saída mais fácil seria deixar que a actuação dependesse da química entre Stanley e Stella, Leão elevou a personagem muito para lá do que nos habituamos a ver nas diferentes versões e encenações de Um Eléctrico Chamado Desejo. Há algo de Solar e de positivo neste Stanley e que é quase impossível de colocar em palavras. Longe das efabulações de um Christian Grey dos nossos dias, personagem pobre e psiquicamente despida ao fim da primeira frase, Kowalski é mais complexo. O coração de Leão torna-o humano, tão humano que nos repudia e atrai ao mesmo tempo. Kowalski quer ser o dono do palco, e não se coíbe de o tomar todo para si, qual Leão que reclama a presa que sabe que é sua por direito. Fixo... aquele olhar fixo ora no público, ora em Stella é tudo o que basta para que ambos se rendam a si. Que me perdoem todos os que acordaram para as parangonas medonhas de hoje e ainda estão em negação sobre o sucedido, mas não creio que o desfecho trágico da peça tenha sido coincidência. Por todo o pessimismo que habitualmente me assola, algo mo transforma em realismo, infelizmente. Temos o privilégio de assistir a actuações destas uma vez na vida, e o coração de Leão dificilmente aguentaria semelhante entrega quase diária. O seu coração certamente sentiu algo de errado, as suas entranhas certamente lhe gritaram algo que não sabia o que era mas que discerniu mal pisou o palco, e Carlos trouxe à cena a dignidade de um Leão que sabe que é realeza e o palco é todo seu. Reclamouo nobremente, sem vergonhas nem falsos pudores, e por todo o ego que nos mostrou, presenteou-nos com a actuação de uma vida. Assumamos então que Carlos Leão deixou este mundo da forma mais nobre e apropriada: no palco da vida, sob uma ovação de pé. Há lá forma mais apropriada de saudar um Leão que deixa este mundo? P.S. – A Companhia de Teatro Bracarense ainda não emitiu qualquer comunicado sobre o futuro da peça após a morte de Carlos Leão.

8


Virgem – eu critico, logo existo Será que desliguei as luzes? Deixa-me voltar. Um, dois, três... Ok, agora sim, vamos lá. Uma, duas, três voltas, porta fechada. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Um dia destes o fecho central do carro ainda avaria. Ok, estamos a chegar... Ugh, não ficou dentro da linha, tenho de o endireitar... Ok, assim está melhor. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Um dia destes o fecho central do carro ainda avaria. Preciso de lavar as mãos. Esta gente sempre a falar aos gritos, credo. Aquele vestido da Sandra, por favor, isto não é a esquina do engate... Até o perfume é rasca. Tenho que ir lavar as mãos. Esta secretária parece uma pocilga! Deve ter sido a empregada outra vez. Tenho de pôr isto por ordem. Melhor ir ligando o PC. Preto, cinza, castanho, roxo, azul escuro, azul claro, verde, amarelo, laranja, vermelho, rosa. Régua em cima, todos alinhados à mesma altura... Perfeito. Vou lavar as mãos. Não entendo como ainda existem os secadores de mãos, aquilo só espalha germes. Deixa-me ver onde estão as toalhitas para passar no teclado... Muito melhor. Não tem jeito nenhum, vou escrever a office management e pedir-lhes que retirem os secadores de mãos. Só tenho de encontrar um estudo que comprove os germes que aquilo espalha. - Carla, queres vir tomar café? Café? Como se o meu transtorno não fosse já hiperactivo que chegue... Sete. Sete. Sete. - Obrigada, tomei em casa, prefiro adiantar já trabalho. Vocês deviam fazer o mesmo em vez de perder tempo em conversas de corredor! - Hahaha, acordaste com os pés de fora hoje! Vou andando, até já! Se é às 09h00 que começam a pagar-me para estar aqui a trabalhar, não está certo perder tempo a tomar café. Como é que estas pessoas não vêm isso? Sete. Sete. Sete. Este email todo mal formatado, quem é que envia uma coisa destas sem verificar antes? Não percebo este descuido... Está aqui um erro nos cálculos caramba, mas esta gente não vê o que está a fazer? Eram bem despedidos todos. Sete. Sete. Sete. Será que desliguei as luzes de casa? Calma. Acalma-te Carla. Tenho de ir ao wc, mas não consigo ir aqui. Mas também não posso ir a casa. Calma, Carla. Acalma-te. Sete. Sete. Sete. - Carla, bom dia. Hoje tens a visita do Sr. Nuno Pedro às 15h00. Nuno Pedro? Quem é que comete uma barbaridade dessas? A ordem certa do nome é Pedro Nuno! Sete. Sete. Sete. - Está tudo bem? Estás a transpirar imenso. Queres meter o dia, que eu peço à Sandra para ficar com a visita? A Sandra? Nem morta, ela é uma descuidada! - Não, está tudo bem, acho que só preciso de ir a casa tomar um duche rápido e voltar. E ver se desliguei as luzes. E ir ao wc antes que tenha um acidente aqui. Sete. Sete. Sete. - Ok, se não te sentires melhor liga-me e diz que eu ponho a Sandra de sobreaviso. - Ok, até já. Sete. Sete. Sete. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Um dia destes o fecho central do carro ainda avaria. Uma, duas, três voltas... aberta. Wc, wc, wc.... Espera, o interruptor! Um, dois, três. Ligada. Ok, wc, wc, wc..... Banho, já. Estás toda suja. Banho, banho, banho, banho... Tenho de tirar esta Terra nojenta de cima de mim. Não posso dar apertos de mão às visitas (sete, sete, sete.) não posso deixar que me toquem. Tenho de passar álcool no corpo depois do banho, o gel está cheio de químicos. Sete. Sete. Sete. Interruptor... um, dois, três, apagado. Roupa lavada... branco... branco é limpo. Porra, está aqui um vinco. Sete, sete, sete. Será que desliguei as luzes? Deixa-me voltar. Um, dois, três... Ok, agora sim, vamos lá. Uma, duas, três voltas, porta fechada. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Um dia destes o fecho central do carro ainda avaria.

9


Balança – nós somos, logo existo - Vamos jantar? - Boa ideia, vamos! - Onde queres ir? - Não sei, decide tu. - Italiano? - Hmm... Se calhar estava mais numa de sushi. - Por mim pode ser. Conheces algum por aqui? - Por acaso não... 1 hora depois, já no restaurante... - O que é que achaste do caso que a Raquel defendeu hoje? Era complicado aquilo.... Pára uns segundos para pensar: - Eu percebo a posição do cliente dela, mas também entendo o outro lado... Quer dizer, posso não concordar, mas percebo o que querem dizer, os dois. Mas não era um caso fácil, não. Como é que ficou, o que é que o juiz decidiu? - Decidiu a favor do cliente da Raquel porque... - Porque não quis abrir um precedente, pois. - Olha, tenho um casamento no próximo mês e a Ana está a insistir que eu leve gravata a condizer com o vestido dela... Tu que percebes de moda, isso ainda se usa? - Ai credo, não! Coisa foleira!! Diz à Ana que se deixe disso, que os anos 90 já passaram há muito!! O azul fica-te bem e é sempre uma cor sóbria para casamentos. - Juro que nunca vi ninguém com uma pontaria tão acertada para o que vestir em cada situação como tu! Olha pra esse anel! Só tu é que consegues usar uma safira todos os dias e não parecer que queres encarnar a rainha de inglaterra! Deve ser por isso que o pessoal não se chateia contigo, estás sempre impecável e concordas com toda a gente!! - Ahahah! Nem sempre concordo, mas não vejo grande vantagem em discutir! Cada pessoa pensa de maneira diferente, não preciso de convencer ninguém das minhas ideias... - É uma forma inteligente de estar, realmente. E tu, quando é que assentas? O João perguntou-me no outro dia se tinhas alguém. - O João? - O do marketing, cabeça no Ar! - Ah! - Já lhes perdeste a conta! - É difícil ser simpática sem que achem que há mais qualquer coisa, o pessoal baralha tudo. - Nah, tu gostas de manter a prateleira bem recheada, diz lá... - O que eu prefiro mesmo é ter alguém com quem partilhar a vida, não gosto de estar sozinha. - Pois, mas com tantos amigos, há pessoal que fica com medo de se aproximar. - Não entendo porquê. Ser sociável não é o mesmo que flirtar com tudo o que mexe. Vamos tomar café? - Vamos, onde queres ir? - Não sei, decide tu. 10


Escorpião – Eu controlo, logo existo És tão bonito, pequeno... Foste demasiado cedo. - O da gaveta 5 é para embalsamar, Joana. O funeral é amanhã. - Os pais já o vieram reconhecer? - Já. - Ok. Causa da morte? - De certeza que queres saber? O olhar que nem pestanejou lembrou ao colega que a Joana só pergunta as coisas uma vez. - Hemorragia interna generalizada, hemorragia cerebral por pancada forte na cabeça. Septicemia. Viu-lhe os olhos perdidos no pequeno, já não estava ali. Mas insistiu: - De certeza que queres ficar com este? Se quiseres eu... O gelo que cuspiu dos olhos foi quanto bastou para que o colega virasse costas e fosse embora. Ao olhar para o pequeno cadáver sentiu-lhe a vida que ficou para trás. A alegria de brincar com os irmãos, o amor dos pais, o colo dos avós. Flashbacks de momentos felizes, como se o pequeno lhe quisesse dizer “não tenhas pena de mim, fui tão feliz!”. Nem precisou de olhar para a etiqueta no pé. Pedro... o pequeno chamava-se Pedro. Ignorou o nó na garganta e começou a trabalhar. Por mais anos que levasse nisto, as crianças são diferentes, não pertencem à morgue. Transformou a tristeza em amor e começou a lavá-lo, com todo o carinho e respeito. Ao passar por cada nódoa negra, cada ferida, viveu o momento com ele. Sentiu cada pancada, cada murro, cada golpe. O pensamento disparou, a pulsação acelerou e viu-se mergulhada na sequência incontrolável de “Como? Porquê? Quem? Onde é que esse filho da p*** está agora? Será que está a fazê-lo agora?”. Tudo à velocidade da luz. Um momento... Um momento é quanto lhe basta para percorrer mil porquês. Dão-te sempre as crianças porque és durona. Põe-no bonito para os pais; não é assim que têm de o recordar. Prostrou-se de repente, mesmo sem querer. A dor da mãe. Algo que jamais vai conseguir pôr em palavras. Recompôe-te, não é a primeira vez. Se era assim que ela o via, é assim que o vai recordar. Vamos a isso. Tentou que a Água lavasse o terror dos ultimos momentos daquele pequeno. Ao esticar-lhe os dedos algo caiu na marquesa. Era uma pedra, meia iridescente. Era uma Opal. Decidiu guardá-la, ainda que a sua intuição lhe dissesse que ia guardar o bom e o mau com ela. Encheu-se de coragem para drená-lo. Visualizou o resultado final e, decidida, lançou mãos à obra. Tampões no nariz, nos olhos, nos ouvidos. Convém que não se vejam... Desculpa. Eu sei que é capaz de doer... Já está, já passou. Sorriu e acariciou-lhe o rosto, num afago de amor. Vamos lá vestir-te. O azul escuro fica-te bem. Quanto muda quando há tecido a cobrir as áreas negras e inchadas... Camisa branca, blazer azul. Por mais anos que levasse nisto... Há algo de sinistramente parecido com o vestir uma criança que de manhã não quer vestir-se e ir para a escola. Fixou-lhe o rosto, ia ser difícil apagar aquela nódoa negra que apanhava o maxilar do lado direito. Fixou-lhe o crânio depois de drenar o excesso de fluidos do cérebro, secou-lhe o cabelo e foi buscar o estojo. Era a sua parte favorita. Dar aos que ficam o privilégio de verem os seus pela última vez conforme os viram em vida. Jamais maquilhar alguém implicou tanto amor. Com algum esforço e retoques inspirados, a zona negra desapareceu. O maxilar ficou no sítio e a cor voltou ao rosto do pequeno Pedro. O retoque final que muda tudo... tornar o cinzento azulado dos lábios num tom rosado saudável. Quase como se estivesse vivo... Quase. Era por esta altura que o éter começava a enjoá-la. O pequeno Pedro estava pronto, e estava na hora de ir embora. Ajudou a funerária a colocá-lo no caixão e o técnico não conseguiu deixar de dizer: “nunca deixa de me surpreender o que consegues com os pequenos, Joana.” Calada, contemplou o pequeno Pedro uma última vez e quando fecharam o caixão, virou costas e foi embora. Uma cara que não quebra, nem perante os maiores horrores, que muitas vezes lhe cabem corrigir. Auto-controlo, sobrehumano, quase. Um auto-controlo que só se perdia no amor por estes pequenos. Calada, sempre. O silêncio é tudo. Precisava de encontrar em casa a Água que lava a alma, que purifica e dissolve o cheiro da morte e do éter Quase conseguia ver a escuridão a diluir-se pelo ralo. Lavou a Opal também, numa comunhão estranha. Não sabe porque o fez, mas a intuição era soberana na sua vida. Dormiu, mas pouco e mal. Reviveu o pesadelo do pequeno Pedro vezes sem conta durante a noite. Acordou com uma nódoa negra nas costelas e outra na área genital. Mais do mesmo. Hora de levantar, há mais gente morta para cuidar.

11


Sagitário – Eu sei, logo existo - Carlos, então, como tens estado? Tudo a correr bem? - Tudo óptimo! Então, para quê a reunião? - Tenho um projecto novo para ti. É como dar um doce a uma criança: o sorriso não mente. - Conta-me! - Precisamos de dinamizar o site e gerar mais visitas.Vamos precisar de ti, do marketing, do IT, do customer service... - Finalmente! Ando a dizer há um ano que podemos fazer mais e melhor! - Pois, nem sempre as coisas acontecem tão rápido como queríamos. Olha, os números que queremos atingir são estes, e este é o prazo para lá chegarmos. Já tens aqui o feedback e as ideias do customer service e o que o marketing planeia fazer. Preciso que abras o Project Initiation e não te esqueças de dar conta das lessons learned na call semanal. - Não é a primeira vez que arranco com um projecto, Daniel. Eu sei o que tenho de fazer. - Eu sei bem que sim, e se não achasse que eras a pessoa certa não to tinha entregue. Agora, isto não é um one man show, Carlos. O que aconteceu com o Logistic Operations não pode voltar a acontecer. - Já falámos sobre isso. Se perguntam qual a minha opinião, dou-a. Se não concordam com o que Project Manager tem de fazer, eu faço! Não há paciência para gente tão mal humorada e de mal com a vida! Tens noção do que tenho de ouvir quando começo a falar com estas pessoas por essa empresa fora? Adianta-lhes muito resmungarem com a vida e com a empresa! Eu tenho mais que fazer, tenho coisas a entregar e não tenho tempo para m*rdas. - As pessoas nunca estão contentes e o teu papel enquanto Project Manager é gerar consenso suficiente para que cada equipa entregue a sua parte e nem sempre os teus palpites são bem vindos. Além disso, para não corrermos riscos, só vais começar este quando terminares o que tens em mãos actualmente. - Mas... - Não há espaço para continuares a saltitar de projecto em projecto e deixar as coisas a meio ou quase no fim. Tu és óptimo naquilo que fazes, mas dificilmente acabas o que começaste. Isso tem de mudar. Por isso, começas este quando terminares o que tens em mãos. Agradeces-me mais tarde. Quando terminares liga-me. Para Carlos, o optimismo é uma forma de estar na vida. Nem adiantava ficar a ruminar naquilo. Vou mas é acabar isto, e é já esta semana, pensou. 3 dias depois: - Estou? - Sim, Carlos? Então? - Acabei o que tinha em mãos, fechei o portfolio ontem! - Boas notícias, podemos começar com o novo então! -Já abri o Project initiation. - Sempre à frente, tu. Quando é que podemos reunir pra vermos os detalhes então? - Pá, provavelmente só daqui a 3 semanas, estou a viajar neste momento e ainda me faltam 2 países. Ontem visitei um observatório e conseguimos ver Júpiter. Amanhã vou ver um espectáculo de danças com Fogo! - Quando voltares falamos melhor. Diverte-te. Desligou a chamada e pensou que uma viagem ia fazer bem ao Daniel. Aquele mau humor era difícil de aguentar. Escusado será dizer que não precisou de regressar ao trabalho. Mas também não deprimiu quando foi despedido. Pegou numa mochila e lançou-se à aventura. 193 países para conhecer e já mais uns quantos para riscar da lista. Não há tempo a perder.

12


Capricórnio – Eu reprimo, logo existo Estes são os papéis para assinarem, aqui e aqui. O terror na cara do casal não o demoveu. Nunca percebeu porque é que um casal que ganha o salário mínimo acha que pode ter uma casa de €200.000. E isto agora era o pão nosso de cada dia ali no banco. Ser frugal está-lhe no sangue, e gastar, só em qualidade, não importa a quantia. Desde que não faça falta para mais nada. Não percebia como é que isto não era óbvio para toda a gente, mas não perdia tempo a pensar nisso. Cada um colhe o que semeia, e a irresponsabilidade tem um preço, bastante alto, por vezes. As mãos tremiam-lhes quando assinaram e entregaram os papéis. - Têm 15 dias para retirarem as coisas de casa. O que deixarem será penhorado com a casa. É um momento difícil, mas não são os únicos nesta situação. Há que recomeçar, vão ver que com certeza vos vamos poder ajudar de outra maneira. Conduziu-os à porta, polidamente, e voltou a sentar-se. As articulações já não eram as mesmas dos 20 anos. Olhou em volta do gabinete impecavelmente mobilado com madeiras, cores sóbrias e uma poltrona de pele preta. O topo era solitário, mas o conforto não tem preço. Observou os colegas do lado de lá do vidro. Era a história da sua vida: havia sempre uma barreira entre si e os outros. No trabalho não há amigos, só respeito. E ser um director respeitado sem ser temido era algo de que se orgulhava bastante. Eram horas de sair. Mas ainda havia coisas a fazer. - Estou? - Olá amor, como correu o dia hoje? - Ainda estou no banco, falamos quando chegar. - Ok, a que horas voltas? - Uma hora e meia, duas horas. Talvez leve o pc comigo. - Ok, beijo. Nem adiantava discutir. Ela sabia que a sua amante era o trabalho. Ainda hoje se pergunta como é que ela lhe conseguiu quebrar o gelo. Secretamente gostava de ser mais como ela: leve, calorosa, ama sem exigir. Mas o ar Saturnino nunca o deixa, mesmo quando está feliz. Toque de sms... Pega no telemóvel, já irritado com a interrupção. Vais precisar de uma sessão hoje, não vais? Só ela, mesmo... Quebrou num sorriso e respondeu: Sim, mestre. Não fosse ele o rei do autocontrolo e não ia conseguir acabar o trabalho que faltava. Enterrou o entusiasmo,, sacou da concentração e adiantou trabalho de uma semana. Quando chegou a casa ela estava à sua espera. Serena, formidável, escorpiónica. - Duche. Já. - Sim, senhora. A sensação de largar o controlo e abandonar-se às mãos sábias dela... Ali era livre, não precisava de pensar, de controlar, de concentrar-se. A responsabilidade e o peso de tudo o que tinha de controlar no dia a dia desvanecia-se. Ela por seu lado adorava a stamina dele. Mesmo sob domínio total, havia um poder que lhe era inato, e a sua submissão era tanto mais adorável por isso mesmo. Na manhã seguinte, os sorrisos cúmplices eram trocados com o carinho de quem sabe que aquelas marcas no corpo dele eram um segredo só deles. Usar fato todos os dias não tinha de ser uma coisa chata... Entrou no banco como um bloco de força que se move. A aura poderosa suavizava-lhe o ar pesado, hoje. Sentou-se na cadeira de pele e ligou o pc. Vamos trabalhar.

13


Aquário – Desapego, logo existo - Sabias que o João e Ana terminaram? - A sério? Mas aquilo estava a correr tão bem... Pensei que era desta que a Ana assentava! - Aquela miúda não é para assentar... Ela não é de ninguém. - É um bocado cabeça no Ar, é. Acho que é a única mulher que conheço que não gosta de comédias românticas! - Sentia-se sufocada pela relação, pelo João... - Típico dela, onde é que já ouvimos isso antes? - Mas ao mesmo tempo preocupa-a não conseguir ligar-se às pessoas próximas. Terminaram há uns dias e ela diz que não sente grande pena. Saiu-lhe o peso do mundo de cima. - Normal. Ele era demasiado sentimental para ela, eu disse isso desde o início. Ela precisa de alguém que sinta mais que ela, mas que não caia no exagero! - Ela não é dada a depressões mas deu para perceber que às vezes duvida da capacidade dela de amar. Não há muita gente que consiga amar de forma tão livre como ela... - E o João era um poço de ciúmes, ainda por cima. - E ainda se chateava porque ciúmes foi coisa que a Ana nunca teve, e ele nunca percebeu porquê. - Se os homens são de Marte, ela não é de Vénus, é de Urano!! - Quando ela aqui chegou fui eu que lhe dei treino. Juro que nunca vi ninguém aprender tão depressa. E nota-se que ela luta com a paciência que é precisa para esperar pelos outros. - Mas tem um coração de ouro. Acho que o amor que ela consegue sentir se manifesta assim, sabes? É um bem querer universal, chamemos-lhe assim. - Concordo, mas não é fácil estar por perto... Nunca és o nº1, pode sempre aparecer alguém diferente, e há mil coisas a acontecer na vida dela... E dar satisfações... nem tentes! É preciso ser alguém muito especial para conseguir estar com alguém assim! - Põe especial nisso... quem é que parte um tornozelo e decide dar uma festa em casa porque não pode sair? Só a Ana!! - Mesmo! Ficaram ambos em silêncio, a sorrir. No fim de contas, esse era o maior presente que a Ana trazia ao mundo: sempre que alguém falava dela acabava com um sorriso nos lábios, porque sentia aquela energia que abraça o mundo, a energia que aceita e ama todos. - Bora convidá-la para um café, ela deve estar a precisar! - Parece que adivinha! Acabou de me mandar mensagem! Logo às 21h00. - Ahahah! Ela não ia deixar-se ficar por casa a deprimir, pois claro! E onde vamos? - Vamos ao favorito dela, o Aquário!

14


Peixes – Eu sinto, logo existo - Tens um minuto, Isa? Precisava de falar contigo... - Claro, precisas de alguma coisa? Que se passa? São as palavras mágicas. A Vera desatou logo num pranto quando as ouviu. Vinha aí mais uma sessão daquelas... Nem precisou de ouvir mais nada. Abraçou a amiga com força, sem uma palavra. Só queria aliviar-lhe aquela dor que a sufocava. Quando recuperou o fôlego, Vera lá conseguiu articular mais uma traição do Joel. Mais do mesmo...pensou. Mas da boca sai o carinho: - Eu sei como te sentes meu anjo, mas tu vales tão mais que isso... Eu sei que dói. Anda cá. E era isto que fazia melhor: partilhar da dor dos seus, dos outros e de todos. Levou muito tempo até perceber porque é que perfeitos desconhecidos lhe despejavam segredos em cima como se tivesse Psicóloga escrito na testa. Quando se atrevia a perguntar, ouvia sempre o mesmo: Não sei porquê, sinto-me tão confortável contigo! Quando dou conta estou a contar-te tudo, mesmo sem querer! Dizer Não era difícil. Com acesso fácil a medicamentos e drogas, foi fácil emaranhar-se na cortina de fumo que alivia temporariamente. Foi preciso um esgotamento e uma quase overdose para deixar de ser o pau para toda a obra lá no hospital. E aí, quem partilhou a dor dela? Ninguém. É demasiado desconfortável encarar quem sabe os nossos segredos mais bem escondidos quando não conseguimos empatizar ao mesmo nível. Era como se houvesse no ar uma culpa colectiva por tudo o que lhe foi descarregado em cima ao longo dos anos. Eventualmente aprendeu a escudar-se e hoje é perita em ajudar sem se deixar contaminar. Mas sentir... Maior bênção e maior maldição que a fazem sintonizar-se com o choro aflitivo de um bebé no avião e começar a chorar também porque sente a dor dele! Nem pode dizer estas coisas a ninguém, ainda acham que é maluca. Pelo menos viver perto da Água limpa tudo, até a alma. - Já decidiste o que vais fazer? - Não sei, eu gosto tanto dele, Isa.... Não sei mesmo o que fazer... - O que quer que decidas eu estou aqui, ok? Do que precisares, basta dizer. Dar colo apenas, sem julgar. Não há muita gente assim. E ser uma fonte de conforto para os moribundos dava-lhe ânimo. Não era raro acabar a ronda do jantar e voltar aos quartos, um a um, para ouvir os seus doentes. Começou a perceber quando estavam prestes a partir, e muitas vezes era a presença que lhes segurava a mão. Conseguia sentir o que pensavam, mesmo que não conseguissem falar. Acalmava-os na hora de partir, e era um segredo deles, só deles. - És um anjo na Terra, Isa... Não sei o que seria de mim sem ti. Um anjo... se tivesse um cêntimo por cada vez que lhe chamaram anjo... -Tu vais ficar bem, Vera. És mais forte que isso. Já ninguém morre de amor, certo? O sorriso doce e o abraço fizeram o seu efeito e Vera ficou mais calma. - Tenho de ir, está na hora de distribuir o jantar. Ficas bem? Qualquer coisa, estou aqui, ok? E partiu, de encontro aos seus doentes. O sorriso deles quando chegava aos quartos fazia parecer que realmente tinha chegado um anjo. Reparou que o olhar da D. Lurdes estava diferente hoje. Vou morrer hoje, sentiu. Com um olhar cúmplice serviu-lhe o jantar, “disse-lhe” que sabia, e assegurou-a que voltava já. Pouco depois estava sentada com o braço à volta da moribunda. - Está tudo bem, meu anjo. Você vai ficar bem. Partiu, serenamente, envolta em amor. E foi assim mais um dia na vida de um anjo na Terra.

15


Susana Duarte Junho 2018

16


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.