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APRESENTAÇÃO A Revista Eletrônica do Curso de Direito da FACIPLAC, sob a coordenação científica do Professor Doutor Héctor Valverde Santana, destaca-se como relevante ferramenta de divulgação, por meio digital, de trabalhos científicos produzidos pela comunidade acadêmica, no âmbito da iniciação científica, pesquisa e extensão, buscando intercâmbio com outras instituições de ensino e a construção de uma rede de informações que viabilize reflexão e aprofundamento de temáticas inerentes aos campos sociais e sua interseção com o universo jurídico. A FACIPLAC vem se assomando como referência em ensino superior de qualidade, na conformidade com as avaliações do MEC e em sintonia com a trajetória da Instituição em prol da renovação de diretrizes institucionais para a qualidade, o Conselho Editorial da Revista Eletrônica do Curso de Direito da FACIPLAC conta com um Conselho Editorial e um Conselho de Pareceristas constituído por professores e profissionais de reconhecida atuação no meio jurídico e científico nacional e internacional. Cabe ressaltar que o projeto de qualidade científica da Revista se firma nos parâmetros de publicação recomendados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) Este número da Revista Eletrônica do Curso de Direito da FACIPLAC oferece ao leitor artigos avaliados pela sistemática de pares em duplo cego, sendo abordadas temáticas relevantes e atuais, conforme se vislumbra pelas respectivas ementas apresentadas nos parágrafos seguintes. O Novo Código de Processo Civil Brasileiro, lei Nº 13.1052/2015 e a busca pela eficiente prestação jurisdicional: apontamentos sobre o incentivo à conciliação e a exigência de cooperação das partes litigantes, de Paulo Márcio Reis Santos. O autor aborda a cultura da litigância excessiva brasileira e seus efeitos na entrega da prestação jurisdicional, à luz do Novo CPC e destaca as novidades trazidas no sentido de proporcionar maior celeridade e eficiência aos procedimentos judiciais, pacificação social e redução de litígios no cenário nacional. Política Criminal: estratégia de prevenção e repressão de crimes, de Geraldo Cardoso Moitinho e Natanael Araújo Bandeira. O artigo discorre sobre a finalidade da punição e o alcance da norma penal, apontando formas estratégicas de renovar e inovar sua eficácia e abrangência, para a prevenção e repressão do crime. Erro médico: responsabilidade objetiva para danos causados por tratamentos estéticos, de Yuri César Cherman. O artigo aborda o tema da responsabilidade civil do profissional médico, em face de danos causados a pacientes, com ênfase na possibilidade de responsabilização objetiva do profissional liberal de medicina, por erro em tratamento essencialmente estético, independente de aferição de culpa. Direito à educação infantil e tutela coletiva: estudo de caso sobre o recurso especial n. 440.502/SP, de João Victor Lopes Pereira Lima da Silva. O autor desenvolve estudo de caso sobre o Recurso Especial n. 440.502/SP na “Ação Civil Pública da creche”, visando a encontrar alternativas, no sentido de buscar alternativas capazes de sanar a omissão da administração pública, quanto ao direito à educação infantil, que sofre com o déficit de vagas em creches, sendo ressaltada a aplicabilidade do princípio da prioridade absoluta. Superendividamento: tratamento jurídico em face do princípio da dignidade da pessoa humana, de Carolina Barbosa Fernandes. A autora analisa o fenômeno do superendividamento no contexto atual, sob o enfoque social e jurídico, examinando modelos de regulamentação específica para a proteção do consumidor de crédito, no direito comparado, ao tempo em que examina instrumentos já existentes no Brasil para esse fim e o Projeto de Lei de atualização do Código de Defesa do Consumidor, que incentiva práticas de consumo responsável do crédito e garantia de tratamento digno ao superendividado. Superendividamento dos consumidores: análise do superendividamento decorrente de contratos de crédito ao consumo, de Gabriela Brandão Sé. O artigo aborda o superendividamento como fenômeno econômico-social e propagação na sociedade brasileira em face do aumento da oferta de crédito às pessoas físicas e da ausência de tutela legal específica para disciplinar a matéria e enfatiza a importância da atualização do Código 2
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de Defesa do Consumidor, com a inclusão de disposições que assegurem práticas mais responsáveis no uso do crédito e o tratamento das situações de superendividamento existentes. Superendividamento dos consumidores: análise do superendividamento decorrente de contratos de crédito ao consumo, de Cláudia Lima Marques. O artigo trata o endividamento como decorrente de transformações iniciadas com a globalização econômica, tornando-se verdadeiro fenômeno social. Ressalta que ainda não existe disciplina legislativa específica no Brasil para disciplinar a matéria e busca na legislação estrangeira modelos de prevenção e tratamento do superendividamento, como fontes de informações para a construção da experiência brasileira. Análise econômica do Direito do Consumidor: a eficiência da aplicação do dano moral nas relações de consumo no Superior Tribunal de Justiça, de Marcela Carvalho Bocayuva. A autora investiga a finalidade punitiva do dano moral atrelado à microeconomia, enfatizando a teoria do risco da atividade, se alicerçando em estudo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, em busca de melhores soluções para eficiência das decisões do Poder Judiciário da prevenção de danos aos consumidores. Os consumidores na condição de turistas em país estrangeiro e a influência de eventos internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, de Rafael Souza Viana. O autor, a partir da observação da experiência brasileira com a Fórmula 1 e as Copas das Confederações e do Mundo, desenvolve estudo sobre o direito dos consumidores na condição de turistas em países estrangeiros. Esta edição da Revista Eletrônica do Curso de Direito da FACIPLAC destaca dois núcleos temáticos, quatro artigos versando sobre processo civil, política criminal, erro médico e direito à educação infantil e quatro artigos dedicados ao Direito do Consumidor. Essas produções científicas representam relevantes contribuições à ciência jurídica, constituindo acervo de pesquisa e espaço de reflexões, que esperamos ser compartilhado e enriquecido com novos artigos a serem aqui publicados. Brasília, março de 2017. Edna Moreira de Lima Machado
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O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO, LEI Nº 13.1052/2015 E A BUSCA PELA EFICIENTE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: APONTAMENTOS SOBRE O INCENTIVO À CONCILIAÇÃO E A EXIGÊNCIA DE COOPERAÇÃO DAS PARTES LITIGANTES.
THE NEW CIVIL PROCEDURE CODE AND THE SEARCH FOR EFFICIENT JUDICIAL PROVISION: NOTES ON INCENTIVE TO RECONCILIATION AND COOPERATION REQUIREMENT OF LITIGANTS.
Paulo Márcio Reis Santos. Advogado. Mestre e Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor de Direito Internacional Público e de Direito Internacional Privado da Universidade FUMEC. Coordenador da Pós Pós-Graduação Lato Sensu de Direito da Universidade FUMEC. E-mail: paulo.marcio@fumec.br.
Samantha Caroline Ferreira Moreira Professora e Coordenadora Ajunta da Pós-Graduação Lato Sensu de Direito Empresarial da Universidade FUMEC. Professora da PUC MINAS. Mestra em Direito Privado. Especialista em Direito Empresarial com ênfase nas relações de mercado. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Advogada. E-mail: sthmoreira@yahoo.com.br
RESUMO A deficiência técnica na prática dos procedimentos judiciais, bem como a cultura da litigância excessiva brasileira acabam por implicar em um dos maiores obstáculos à missão do Poder Judiciário, qual seja, a tempestividade na entrega da prestação jurisdicional. Nesse contexto, o CPC/2015, enfatiza a necessidade da eficiência da prestação jurisdicional e convoca as partes, sempre que possível, a resolver seus conflitos de forma amigável, possibilitando a prévia designação de audiência de conciliação ou de mediação, antes mesmo de a parte contrária protocolar sua defesa. Para tanto, prevê a criação de centros com profissionais especializados, com a devida formação de mediadores e conciliadores. Será demonstrado que as partes terão importante papel durante a condução do processo, na medida em que, a partir da vigência do NCPC/2015, poderão convencionar, de forma ampla, em causas sobre direitos que admitam autocomposição. Ainda, o presente artigo tem por escopo estudar se as novidades trazidas nas normas gerais, bem como os dispositivos concernentes à postura das partes no processo judicial, serão benéficas e proporcionarão celeridade e eficiência aos procedimentos judiciais. A pretensão é de que a presente pesquisa seja útil à comunidade jurídica e à sociedade, a fim de contribuir para pacificação e diminuição de litígios no cenário nacional. Palavras-chave: Efetividade; Acesso à justiça; Novo Código de Processo Civil; Conciliação.
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ABSTRACT A technical failure in practice of judicial procedures and the culture of Brazilian excessive litigation ultimately result in a major obstacle to the mission of the judiciary, namely, the timeliness in the delivery of judicial services. In this context, the CPC / 2015 emphasizes the need for efficiency of adjudication and calls the parties, whenever possible, to resolve conflicts amicably, enabling the prior designation of hearing conciliation or mediation, even before the part contrary to file his defense. Therefore, it provides for the establishment of centers with specialized professionals with proper training of mediators and conciliators. It will be shown that the parties have an important role during the process of driving, to the extent that, as the term of the NCPC / 2015 may agree, broadly in causes on rights admit composition. Still, this article is scope to study whether the novelties introduced in the general rules and the provisions concerning the position of the parties in the judicial process will be beneficial and will provide speed and efficiency of judicial proceedings. The claim is that this research will be useful to the legal community and society in order to contribute to peace and decrease disputes in the national scene. Keywords: Effectiveness; Access to justice; New Civil Procedure Code; Conciliation;
1 INTRODUÇÃO A razoável e tempestiva duração do processo são formas de se alcançar um Poder Judiciário célere, anseio de toda a sociedade, inclusive dos operadores do Direito. A permanente demora das decisões judiciais e no trâmite do processo como um todo incide na verdadeira denegação ao acesso à justiça e violação dos ditames constitucionais, inclusive no que concerne à necessária segurança para a realização dos negócios jurídicos empresariais. Especificamente no art. 5º, inc. LXXVIII, da CF/88, o legislador constitucional estabelece o direito de todos terem “assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” 1 É primordial que a prestação jurisdicional e o acesso à justiça, como pressupostos constitucionais, observem a legislação, especificamente de ordem econômica, para diminuir os custos envolvidos na manutenção de um processo e minimizar a quantidade de falhas nas decisões judiciais.2 De um lado, a demora no processo representa a falibilidade do Direito na proteção das situações concretas, que sofrem deformações com o decurso do tempo. De outro, a precipitação dos chamados provimentos sumários ou medidas de cognição parcial resulta na fragilização da ampla defesa e do estabelecimento do contraditório. Nas palavras do presidente da comissão de juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto do CPC, Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Luiz Fux:
1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da
União, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 10. mai. 2016. 2 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. Revista do Curso de Direito
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O Brasil clama por um processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma célere, sensível e efetiva, as misérias e as aberrações que passam pela Ponte da Justiça. 3
O processo é um instrumento destinado à vontade da lei, devendo, na medida do possível, desenvolverse mediante um procedimento célere, a fim de que a tutela jurisdicional seja oportuna e efetiva, sendo certo que a tempestividade e a efetividade da referida tutela são elementos primordiais para se determinar o grau de eficiência dos tribunais. Em trabalho sobre o tema destacamos que4 “o sentido da palavra justiça há muitos anos é objeto de investigação jurídica e filosófica.” Na acepção do jurisconsulto Ulpiano, “a justiça consiste em dar a cada um o que é seu”. Podemos citar ainda estudos analisando a ideia de justiça em Aristóteles, Kant, Hegel e Radbruch5. No aspecto jurídico, a justiça tem por finalidade a garantia dos direitos e deveres previstos no ordenamento legal, propiciando o convívio harmônico. Destarte, o Poder Judiciário desempenha a relevante função de assegurar a efetiva aplicação da justiça, sendo que a administração judiciária eficaz é fundamental até para aquele que perde a demanda, já que, sob o enfoque psicológico e econômico, a espera demorada e desnecessária da jurisdição causa descrédito na legislação e no próprio Poder Judiciário. Desse modo, o novo diploma processual, CPC/2015, enfatiza a noção da prestação jurisdicional como serviço público adequado e eficiente, a partir da concepção de um novo formalismo, cujo objetivo é buscar a “solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”, em “prazo razoável” (art. 4º), bem como será enfatizado o importante papel das partes no curso do processo, onde será exigido o dever de lealdade, boa-fé e cooperação processual.
2 A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E ACESSO À JUSTIÇA COMO GARANTIAS CONSTITUCIONAIS O processo é um instrumento destinado à vontade da lei, devendo, na medida do possível, desenvolver-se mediante um procedimento célere, a fim de que a tutela jurisdicional seja oportuna e efetiva, sendo certo que a tempestividade e a efetividade da referida tutela são elementos primordiais para se determinar o grau de eficiência dos tribunais. A Constituição Federal em seu art. 5º, inc. XXXIV, onde se assegura o direito de petição aos Poderes Públicos, a obtenção de certidões em repartições públicas e a gratuidade das taxas judiciárias; assim como em seu inc. XXXV, onde se afirma taxativamente que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito6”, consagra o direito a jurisdição. A prestação jurisdicional7, por óbvio, não se esgota com a prolação da sentença, mas também nos
3 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Código de Processo Civil: anteprojeto. Brasília: Senado Federal, 2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/anteprojeto.pdf>. Acesso em: 3 jan. 2016. 4 SANTOS, Paulo Márcio Reis. Direito econômico processual: uma abordagem pela Análise Econômica do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. 5 Sobre o tema, ver Brych (2007) e Salgado (1986, 1996). 6 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Código de Processo Civil: anteprojeto. Brasília: Senado Federal, 2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/anteprojeto.pdf>. Acesso em: 3 jan. 2016. 7 SANTOS, Paulo Márcio Reis; MOREIRA, Samantha Caroline Ferreira. A eficiente solução de litígios: uma proposta a partir
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provimentos cautelares e antecipatórios, sendo imprescindível a condução do processo de forma eficaz pelo magistrado, haja vista o crescente número de demandas, sendo imprescindível que, ao final da demanda, esteja solucionado o conflito e não a lide. Mauro Cappelletti8 aborda a questão do acesso à justiça sob o prisma da efetividade e apontam que os obstáculos para alcançá-la são: os custos do processo, condições financeiras das partes, capacidade de suportar as delongas do processo (também relacionada às condições financeiras) e habitualidade da parte na participação em litígios9. O autor relaciona os obstáculos acima citados, dentre outros, especialmente à jurisdição estatal e apontam que os obstáculos criados por nosso sistema jurídico são mais pronunciados em pequenas causas e autores individuais, especialmente os pobres. Destarte, o acesso à justiça deve ser visto como o mais básico dos direitos em um sistema jurídico igualitário que tenha por finalidade realmente garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. Portanto, a democratização da justiça deve se dar com a efetiva aproximação do cidadão ao Judiciário. O entendimento de que a jurisdição deve atender ao cidadão de forma efetiva e tempestiva traz à tona o questionado problema da morosidade judicial. Sobre a efetividade do processo e técnica processual, José Carlos Barbosa Moreira10 listou um “programa básico em prol da efetividade”, a saber:
a) o processo deve dispor de instrumento de tutela adequados, na medida do possível, a todos os direitos contemplados no ordenamento, quer resultem de expressa previsão normativa, que se possam inferir do sistema. b) esses instrumentos devem ser utilizáveis. c) impende assegurar condições propícias à exata e completa reconstituição dos fatos relevantes, a fim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder à realidade. d) em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento. e) cumpre se possa atingir semelhante resultado com o mínimo de dispêndio de tempo e energias.
Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr11. ressaltam que a Corte Europeia dos Direitos do Homem pacificamente entendeu que: [...] respeitadas as circunstâncias de cada caso, devem ser observados três critérios para se determinar a duração razoável do processo, quais sejam: a) a complexidade do assunto; b) o comportamento dos litigantes e de seus procuradores ou da acusação e da defesa no processo; c) a atuação do órgão jurisdicional. da análise econômica do direito e dos meios alternativos de solução de conflitos. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 24., Aracaju/SE. Anais... Aracaju/SE: CONPEDI, 3 a 6 de junho de 2015. p. 86-106. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/ publicacoes/c178h0tg/6l9jk46k/Wjh892jI24G6VsA1.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2016. 8 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. 9 Relevante apontar a pesquisa realizada pela equipe de pesquisadores da PUCRS, em que foi abordado o problema do crescimento das demandas cíveis em nosso país a partir de dois planos distintos de análise: do que denominamos oferta da prestação jurisdicional e, por outro lado, da demanda por estes serviços. (TIMM; SANTOS FILHO, 2011, p. 34). 10 BARBOSA MOREIRA, José Carlos.O juiz e a cultura da transgressão. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 47, n. 267, p. 5-12, jan. 2000. 11 DIDIER, Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Revista de Processo. São Paulo: RT, vol. 236, p. 327, 2014. Revista do Curso de Direito
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A Corte Europeia adquire importância no desenvolvimento de uma jurisprudência a respeito da matéria, tendo em vista que a grande maioria das reclamações a ela submetidas refere-se à lentidão dos processos, em virtude da violação da garantia da tutela jurisdicional efetiva. Assim, Carlos Henrique Ramos12 reconhece que:
A Corte Europeia de Direitos Humanos ocupa papel primordial na proteção dos direitos humanos no continente europeu. Primeiramente, por se tratar de órgão bem aparelhado, estruturado e organizado. Além do mais, sua jurisprudência, em muitos casos, serve como mecanismo de controle, pois muitas vezes uma condenação perante a Corte pode despertar a responsabilidade dos governantes em virtude do constrangimento sofrido em face da comunidade internacional.
Destarte, o ideal é a distribuição racional do tempo do processo com efetividade do resultado e decisão tempestiva, na medida em que o julgamento tardio faz perder seu sentido reparador, por isso a Constituição Federal brasileira de 1988 assegura, em seu art. 5º, § 1º, o direito ao processo sem dilações indevidas. O “fator tempo, que permeia a noção de processo judicial, constitui, desde há muito tempo, a mola propulsora do principal motivo de crise da justiça”13, e afirma que a demora processual é fonte de “injustiça e corresponde a verdadeira denegação da justiça”, citando Elio Fazzalari ao referir-se à demora do processo como a “tormenta das tormentas”. Nessa linha, o processo, para cumprir a missão que lhe atribui o Estado Democrático de Direito14, tem que se apresentar como instrumento capaz de propiciar efetividade à garantia de “acesso à Justiça”. Superada a enorme crise político-social causada pela 2ª Guerra Mundial, as atenções dos estudiosos do Direito voltaram-se para problemas da prestação jurisdicional até então não cogitados. Nota-se que, depois de um século de extensos e profícuos estudos sobre os conceitos e as categorias fundamentais do Direito Processual Civil, os doutos atentaram para um fato muito singelo e muito significativo: a sociedade como um todo continuava ansiosa por uma prestação jurisdicional mais efetiva. Sobre o ideal de justiça, com pertinência, o processualista Humberto Theodoro Júnior15 afirma que:
Aspirava-se, cada vez mais, a uma tutela que fosse mais pronta e mais consentânea com uma justa e célere realização ou preservação dos direitos subjetivos violados ou ameaçados; por uma Justiça que fosse amoldável a todos os tipos de conflitos jurídicos e que estivesse ao alcance de todas as camadas sociais e de todos os titulares de interesses legítimos e relevantes; por uma Justiça, enfim, que assumisse, de maneira concreta e satisfatória, a função de realmente implementar a vontade da lei material, com o menor custo e a maior brevidade possíveis, tudo através de órgãos adequadamente preparados, do ponto 12 RAMOS, Carlos Henrique. Processo Civil e o princípio da duração razoável do processo. Curitiba: Juruá, 2008, p. 87. 13 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e processo: análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual, civil e penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 14 Importante apontar o conceito de Estado Democrático de Direito, do autor Sérgio Henriques Zandona Freitas que assim enfatiza: “O Estado Democrático de Direito não representa simplesmente o resultado dos elementos constitutivos do Estado de Direito e do Estado Democrático, mas uma evolução histórica que atravessou os estágios do Estado de Polícia, do Estado liberal e do Estado social, com a superação de grande parte das contradições e das deficiências dos sistemas anteriores, até atingir o modelo contemporâneo que inspira várias das atuais Constituições estrangeiras, além da brasileira de 1988. (FREITAS, 2014, p. 64-65). 15 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional. Insuficiência da reforma das leis processuais. Academia Brasileira de Processo Civil, jun. 2004. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/artigos/artigo51.htm>. Acesso em: 15 fev. 2016.
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de vista técnico, e amplamente confiáveis, do ponto de vista ético.
O fator tempo, que permeia a noção de processo judicial, constitui, desde há muito, a mola propulsora do principal motivo de crise da justiça. Além disso, tais obstáculos ocasionam a diminuição dos investimentos e da utilização do capital disponível, reduzindo, por fim, a qualidade da política econômica. A demora recorrente retira do Poder Judiciário a legitimidade que dele se espera como pacificador social por excelência. Ademais, causa na sociedade um descrédito da força normativa das leis. O Poder Judiciário, em geral, “é visto como uma alternativa pouco eficiente, dotada de uma relação custo-benefício desequilibrada, apta a ser acionada apenas em último caso, já que a Justiça é morosa, extremamente formalizada, imprevisível e, na maioria dos casos, onerosa.16” Assim, é imperiosa a ocorrência de uma mudança estrutural no Poder Judiciário, a qual também resta caracterizada pela Súmula Vinculante17, pelo necessário aumento do número de juízes e pela descentralização da Justiça através de medidas18 extrajudiciais de resoluções de conflito.
3 O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO E A BUSCA PELA EFICIÊNCIA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL Os processualistas19 sempre se preocuparam com um valor fundamental ínsito à tutela dos direitos, 16 MEDINA, José Miguel. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 17 “Súmula em sentido lato, nada mais é que o resumo do resultado dos julgamentos e resultante de teses jurídicas que demonstram o posicionamento da jurisprudência reiterada e predominante dos Tribunais. Seu principal objetivo é estabelecer as teses jurídicas que devem ser seguidas pelos membros do tribunal que a editou, para que direcione o julgamento e por consequência facilite o exercício da atividade jurisdicional, na condição de verdadeiro referencial de julgamento. No ordenamento jurídico pátrio atual, há previsão de edição de súmulas simples e das chamadas súmulas vinculantes, neste último caso de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal. A súmula vinculante surgiu com a emenda constitucional 45/2004 e acrescentou à Constituição Federal os seguintes dispositivos: Artigo 103 - A. A súmula vinculante além de evitar o acúmulo de processos, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, tem por escopo impedir que norma idêntica seja interpretada de forma distinta preservando-se assim o princípio da igualdade, pois, haja vista que não haveria necessidade de julgamento de matéria repetida, anteriormente discutida e decidida.” (MARTINS, 2012). 18 “Haja vista a diversidade e a amplitude de métodos seguem as principais formas extrajudiciais pelas quais se buscam a pacificação dos conflitos. Conciliação: é a solução de um litígio empreendida pelas próprias partes nele envolvidas. É presidida por um conciliador investido de autoridade, imparcial, com a competência de controlar as negociações, sugerir propostas e interferir na discussão, a fim de que os interesses divergentes sejam harmonizados. É o meio de solução de litígio mais eficiente, afinal ambas as partes saem satisfeitas, não correm o risco de ter a demanda julgada improcedente. Também evita o desgaste que um litígio longo causa e toda a insatisfação. Mediação: o mediador é o terceiro imparcial que auxilia o diálogo entre as partes, com o objetivo de transformar a divergência, diminuindo o espírito de competitividade, possibilitando que encontrem uma solução que as satisfaça. A mediação, assim como a conciliação, representa uma forma consensual na resolução de conflitos, onde as partes, por meio de diálogo claro e pacífico, têm a possibilidade resolverem o conflito, através de um mediador imparcial, que facilitará e conduzirá a comunicação entre elas. A grande diferença entre um mediador e um conciliador é que o primeiro leva as partes a se reencontrarem, tenta retirar o sentimento de rancor, de ódio, ou vingança, se preocupa com os sentimentos, o que diminui a chance das partes acionarem o Poder Judiciário. A arbitragem, por sua vez, é também um acordo de vontades, com o objetivo de eliminar o conflito presente, mas por meio de um ou mais árbitros. É classificada como um meio heterocompositivo, pois há a intervenção de um terceiro - árbitro - a quem será conferido pelos litigantes o poder de decidir o litígio, impondo a sua solução, tal como no Judiciário” (SANTOS; MOREIRA, 2015, p. 99-102). 19 É difícil precisar em que momento iniciou e em que fase atualmente encontra-se a reforma do processo civil brasileiro. Algumas correntes sustentam que o marco inicial foi no ano de 1985 com a introdução ao sistema de diversos instrumentos destinados a tutelar direitos de natureza coletiva (ZAVANSCKI, 1997, p. 173-178), outras afirmam que as reformas somente tiveram início Revista do Curso de Direito
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qual seja: a imprescindibilidade da efetividade do processo como instrumento de realização da justiça. A efetividade e celeridade no Novo Código de Processo Civil restam sedimentadas, conforme enfatizado no texto de apresentação do Projeto do Novo Código de Processo Civil20: É que; aqui e alhures não se calam as vozes contra a morosidade da justiça. O vaticínio tornou-se imediato: justiça retardada é justiça denegada” e com esse estigma arrastou-se o Poder Judiciário, conduzindo o seu desprestígio a índices alarmantes de insatisfação aos olhos do povo. Esse o desafio da comissão: resgatar a crença no judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere.
Fred Didier Jr. observa que o novo CPC não contém apenas normas jurídicas novas, havendo, é claro, normas antigas. Mas ressalta, especialmente, as seguintes normas: Normas jurídicas novas: além de compreender as normas que não existiam (v.g., art. 319, VII), também compreendem as normas que reforçam tendências doutrinárias e jurisprudenciais (v.g. art. 1.023, § 2º), ou corrigem as teses jurisprudenciais dominantes (v.g., art. 85, § 18, que se opõe à Súmula 453/STJ: “Os honorários sucumbenciais, quando omitidos em decisão transitada em julgado, não podem ser cobrados em execução ou em ação própria”). Pseudonovidades normativas: normas jurídicas que já estariam implícitas no sistema processual (por decorrerem de princípios constitucionais), mas que foram explicitadas no novo CPC (v.g., art. 373, § 1º). Normas simbólicas: conceito decorrente da teoria de Marcelo Neves, referindo-se às normas em que o sentido político predomina sobre o normativo jurídico (v.g., art. 3º, § 3º). Pseudonovidades normativas: normas jurídicas que já estariam implícitas no sistema processual (por decorrerem de princípios constitucionais), mas que foram explicitadas no novo CPC (v.g., art. 373, § 1º). (Didier, p. 327, 2014)
Desse modo, verifica-se que a noção da prestação jurisdicional como serviço público adequado e eficiente, a partir da concepção de um novo formalismo, cujo objetivo é a satisfação e solução dos conflitos em um prazo razoável, está amparada pela maioria dos dispositivos do novo instrumento processual.
3.1 PANORAMA DAS NOVAS NORMAS GERAIS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO Nas normas gerais do novo Código de Processo Civil Brasileiro (CPC/2015), Lei nº 13.105, de 18 de março de 2015,21 cumpre destacar, sem a pretensão de se esgotar o tema, algumas inovações que buscam eficiência da prestação jurisdicional, tais como as normas expressas no o art. 4º, onde temos a determinação de que as partes têm o direito da solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa; art. 9º o estabelecimento do reforço das garantias ao contraditório.
no ano de 1992, a partir da promulgação da Lei 8.455 que alterou os dispositivos referentes à prova pericial (WAMBIER, 2015). Independente de ser a primeira ou a segunda fase das reformas deste cenário, ao final do ano de 1994 por meio das Leis 8.950, 8.951, 8.952 e 8.953 e, novamente, no ano de 1995 com as Leis 9.099, 9.139 e 9.245 apresentam-se no país as primeiras alterações com o objetivo de aperfeiçoar e ampliar os mecanismos até então existentes no sistema processual vigente (ZAVANSCKI, 1997). 20 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 10. Maio 2016. 21 Vigência: o novo CPC passou a vigorar no dia 18 de março de 2016, isto é, um ano após sua publicação oficial.
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O art. 3º do CPC/201522 reproduz, com pequena distinção redacional, o teor do art. 5º, inc. XXXV, da CF/88, assento legal do denominado direito fundamental à jurisdição ao dispor que:
Art. 3º. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem23, na forma da lei. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Diante desse panorama, é imperioso que o Poder Judiciário não só consiga nortear as decisões dos juízes de instância inferiores e a vida social, mas também que recupere seu crédito perante a sociedade como um todo ao otimizar seu desempenho. As normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar “uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo24”. Na Parte Geral – Livro I, são previstas verdadeiras normas gerais de direito processual, destacandose: a) o direito das partes em obter a solução integral do mérito (art. 4º); b) o reforço da garantia ao contraditório (art. 8º ao 10); e c) a previsão de ordem cronológica para se proferir sentença ou acórdão (art. 12). No que se refere à Parte Geral – Livro II, são definidos e disciplinados vários mecanismos de cooperação internacional (art. 26 a 34, especialmente). A Parte Geral – Livro III, confere uma regulamentação mais minuciosa dos honorários de sucumbência inclusive com previsão de sucumbência recursal, bem como regulamenta os procedimentos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 133 a 137) e do “amicus curiae” (art. 138). Ainda, merecem destaques a possibilidade de as partes estipularem mudanças no procedimento (art. 190), inclusive com fixação de calendário processual (art. 191), a alteração da forma de contagem dos prazos, contando-se apenas os dias úteis (art. 219), reputando-se tempestivo o ato praticado antes do início do prazo (art. 218, § 4º; em oposição à Súmula 418/STJ). Já a Parte Geral – Livro V, enfatiza o “fim” do processo cautelar, com instituição da tutela de provisória, de urgência25 ou de evidência (art. 294). A Parte Geral – Livro VI - traz a previsão de que, antes de proferir decisão sem resolução de mérito, “o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício” (art. 317). 22 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 10. Maio de 2016. 23 Acerca dos tribunais arbitrais, vide Lei nº 9.307/96. 24 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 67/68. 25 Tutela de urgência exige a probabilidade do direito, o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art. 300), sendo cautelar (art. 301: antigas formas de procedimentos cautelares) ou antecipada (art. 300, § 3º: vedada se houver perigo da irreversibilidade). Tutela de evidência independe do perigo de dano ou risco ao resultado útil (art. 311). Revista do Curso de Direito
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No que concerne a Parte Especial – Livro I, adota o procedimento comum e procedimentos especiais, com extinção de alguns dos antigos procedimentos especiais (v.g., nunciação de obra nova). e estabelece a previsão da improcedência liminar (art. 332), com tratamento mais minucioso que o atual art. 285-A do antigo CPC. As principais exigências, porém, dirigem-se ao Estado-Juiz, cuja conduta deve se pautar por um novo formalismo cujo objetivo, é a busca pela solução integral de mérito. Assim, o juiz deve permitir a correção de vícios formais, determinando, v.g, o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios (art. 139, IX, CPC/2015), cabendo-lhe ainda, antes de extinguir o feito sem resolução do mérito, conceder a parte oportunidade para corrigir os vícios (art. 317, CPC/2015).
3.2 O INCIDENTE DE DEMANDAS REPETITIVAS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Não está previsto no CPC/1973, e se mostra inovador, o denominado “incidente de resolução de demandas repetitivas” (art. 976 ao 987 do CPC/2015). Segundo esse instrumento, tão logo seja verificada pelo Tribunal a presença de “litigância em massa26” para determinada questão jurídica, o Tribunal pode, desde logo (e sem que haja decisão prévia em primeira instância), estabelecer o entendimento aplicável ao caso, vinculando os demais juízes das instâncias inferiores para os casos futuros. O precedente27 é necessário quando se está diante de um ambiente de incerteza jurídica sobre qual deve ser a regra aplicável para uma situação de fato e sem resolução eficaz dos conflitos, seja porque se tem mais de uma norma jurídica que possa ser aplicável (ao que se denomina de antinomia jurídica), seja porque se tem uma omissão sobre o caso em questão (ao que se denomina de lacuna). Assim, um processo judicial será útil quando servir para contribuir para a formação de um precedente judicial que elimine (ou pelo menos, diminua) o ambiente de incerteza normativa acima descrito. Por outro lado, ele será socialmente inútil quando não servir para a formação de um precedente, uma vez que, nesse caso, consistirá apenas num custo perdido para a sociedade sem qualquer contrapartida, especialmente tendo em vista que, nesse último caso, as partes certamente tinham informações simétricas em relação ao padrão de decisão do Poder Judiciário e poderiam, assim, celebrar um acordo para prevenção de litígios28. A possibilidade do tribunal de “chamar para si” esse julgamento – seja diretamente, seja por provocação de alguma parte, do Ministério Público (MP) ou outro – certamente reduzirá bastante o tempo mediante o qual serão estabelecidos os precedentes (SILVA, 2015, p. 4). Contudo, os precedentes29 judiciais devem ser estáveis e emitidos sem demora para que possam ser 26 SILVA, Paulo Henrique Moritz Martins da. Novo CPC busca prestação jurisdicional mais rápida, eficiente e completa. Conjur, 29 mar. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-29/paulo-silva-cpc-busca-prestacao-jurisdicional-completa>. Acesso em: 5 Jan. 2016. 27 Gabriela Oliveira Freitas, esclarece que no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente após a Emenda Constitucional nº 45/2004, é reconhecido uma forte tendência à valorização dos precedentes judiciais. Isto ocorre por meio das súmulas vinculantes, repercussão geral e recursos repetitivos, súmulas impeditivas de recurso e possibilidade de não conhecimento de recursos com amparo na jurisprudência dos Tribunais. (FREITAS, 2014, p. 93). 28 FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno; MARQUES, Leonardo Albuquerque. Novo CPC deve mudar cultura de litigância excessiva. Conjur, 16 jul. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-16/codigo-processo-civil-mudar-cultura-litigancia-excessiva>. Acesso em: 5 abr. 2015. 29 O precedente é necessário quando se está diante de um ambiente de incerteza jurídica sobre qual deve ser a regra aplicável para
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compreendidos de maneira clara e precisa pelos vários atores sociais, a fim de evitar insegurança processual e dúvidas sobre quem deve ser o titular de um direito numa situação de conflito. Ademais, o incidente de demandas repetitivas busca diminuir o problema de subinvestimento, pois as pessoas poderão trabalhar com uma maior margem de segurança na tomada de decisões, uma vez que já será registrado como os juízes decidirão em determinados litígios. Não há como negar que a valorização dos precedentes contribui para a busca da eficiência processual, a fim de se evitar que o Poder Judiciário seja atravancado por uma série de demandas que possuem o mesmo objeto, como ocorre atualmente no cotidiano processual. Considera-se que CPC/2015 avança muito em tal perspectiva e amplia, sobremaneira, as possibilidades de organização do processo para uma boa decisão de mérito, e isso não se restringe à atividade probatória, porque poderá haver a explicitação e delimitação dos temas jurídicos a serem enfrentados. Ivo Teixeira Gico Junior30, sobre a litigância excessiva no Brasil, afirma que:
Subsidiar a litigância é justamente o que o Brasil vem fazendo nos últimos anos, quando (a) criou os juizados especiais de pequenas causas nos quais não é necessário um advogado e não há custas processuais; (b) criou a defensoria pública (advogados públicos pagos pelo contribuinte); (c) criou a assistência judiciária gratuita – AJG (possibilidade de alguém não ter de pagar custas processuais, mesmo na justiça comum, nem honorários de sucumbência); (d) manteve o sistema de custas processuais abaixo do custo social de cada processo; etc. Tudo isso significa que é o contribuinte quem arca com parte dos custos de cada processo e não a parte litigante, o que claramente é um subsídio ao litígio e à parte da sociedade que litiga.
Nesse contexto, é relevante apontar que Garrett Hardin31 (1968) publicou um artigo sob o título de “A Tragédia dos Comuns”, onde realizou uma criteriosa análise dos problemas que surgem sempre que é utilizado um bem comum, cujo resumo é o seguinte: “a maioria das pessoas, sempre que puder beneficiar-se de um bem comum será incentivada a fazer o mínimo de esforço para preservá-lo, ao mesmo tempo em que será tentado a extrair o máximo de vantagem desse bem”. Assim, tem se que, se o custo, em geral “baixo”, de uma demanda acaba por influenciar a motivação da instauração de um litígio, é importante registrar que os custos do Judiciário também não poderão ser exorbitantes, sob pena de impedir o acesso à justiça. O que se pretende, portanto, é enfatizar que a justiça não deve ser banalizada e utilizada para qualquer causa, deve ser idealizada especificamente em casos em que há lesão uma situação de fato e sem resolução eficaz dos conflitos, seja porque se tem mais de uma norma jurídica que possa ser aplicável (ao que se denomina de antinomia jurídica), seja porque se tem uma omissão sobre o caso em questão (ao que se denomina de lacuna). Assim, um processo judicial será útil quando servir para contribuir para a formação de um precedente judicial que elimine (ou pelo menos, diminua) o ambiente de incerteza normativa acima descrito. Por outro lado, ele será socialmente inútil quando não servir para a formação de um precedente, uma vez que, nesse caso, consistirá apenas num custo perdido para a sociedade sem qualquer contrapartida, especialmente tendo em vista que, nesse último caso, as partes certamente tinham informações simétricas em relação ao padrão de decisão do Poder Judiciário e poderiam, assim, celebrar um acordo para prevenção de litígios (FREIRE; DANTAS; MARQUES, 2013). 30 GICO JUNIOR, Ivo Teixeira. A tragédia do Judiciário: subinvestimento em capital jurídico e sobreutilização do Judiciário. 146 f. Tese (Doutorado em Economia Política) – Programa de Pós-Graduação em Economia, Departamento de Economia, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, 2012. 31 NETO, João Francisco. A Tragédia dos Comuns. Blog do ARF, 2015. Disponível em: <http://blogdoafr.com/articulistas/joao-francisco-neto/a-tragedia-dos-comuns>. Acesso em: 6 jan. 2016. Revista do Curso de Direito
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de direitos. A equipe de pesquisadores composta por juristas, economistas, sociólogos e administradores, predominantemente da PUCRS32, concluiu através de evidências empíricas que as partes litigam não apenas porque tiveram um direito violado, mas também por causa (a) dos baixos custos de acesso e baixo risco; (b) das perspectivas de ganho; e (c) do uso instrumental do Judiciário. Destarte, Medina33 afirma, é imprescindível, para adaptação e prática do CPC/2015, que a formação do operador se volte muito mais para identificação de possibilidades de composição do que para a apresentação de uma petição perante o Poder Judiciário como solução prioritária para uma situação de conflito.
4 A POSTURA PROCESSUAL DAS PARTES E O INCENTIVO À CONCILIAÇÃO NO CPC/2015 As partes terão importante papel durante a condução do processo na medida em que, a partir da vigência do NCPC/2015, poderão convencionar, de forma ampla, em causas sobre direitos que admitam autocomposição. A previsão dos deveres das partes e de seus procuradores, bem como da responsabilidade das partes por dano processual estava prevista nos arts. 14 a 18 do CPC/1973, com disposições parecidas com as do texto da nova legislação. Contudo é preciso apontar alguns acréscimos34 e avanços da redação da legislação de 2015, que procurou ampliar a abordagem da questão, bem como dar mais organicidade e coesão ao texto como um todo. Destarte, verifica-se um avanço da nova legislação quando prevê a possibilidade de responsabilização dos advogados públicos e dos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, sendo que eventual responsabilidade disciplinar deve ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará. O art. 78 também amplia a vedação de empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados para, além das partes e procuradores, os juízes, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, e a qualquer pessoa que participe do processo, o que se mostra muito coerente e razoável, uma vez que todos os participantes do processo devem manter postura de probidade e boa-fé processual em respeito ao princípio da colaboração processual35. O art. 81 do CPC/2015 tem previsão similar à do art. 18 do CPC/1973, porém se mostra mais severo quanto ao valor da multa a ser paga pelo litigante de má-fé, prevendo o percentual de 1 a 10% do valor cor32 PUCRS. Demandas Judiciais e Morosidade da Justiça Civil Relatório Final Ajustado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Porto Alegre: Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 2011. Disponível em: <http://issuu.com/cnj_oficial/docs/rel__torio_sobre_as_demandas_judici>. Acesso em: 12 mai. 2015. 33 MEDINA, José Miguel. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 34 “Necessário enfatizar que o art. 77 esclarece que existem outros deveres das partes e de seus procuradores previstos pelo novo CPC, para além dos elencados naquela seção, como é o caso do art. 5º, que prevê que “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.” O inciso V do artigo 77 trata como dever a providência prevista no artigo 39 do CPC/73 quanto à necessidade de informação e atualização do endereço residencial ou profissional para o recebimento de intimações, enaltecendo que, no caso de não observância a tal exigência, a responsabilidade será das partes ou dos procuradores, que arcarão com as respectivas consequências. O parágrafo 2º do art. 77 trata da previsão da multa por ato atentatório à dignidade da justiça, previsto anteriormente no parágrafo único do artigo 14 do CPC/73. O parágrafo 3º esclarece o procedimento cabível (inscrição em dívida ativa e execução fiscal) e a destinação do valor da multa (fundos previsto no art. 97 - fundos de modernização do Poder Judiciário), questão que não era determinada pela legislação processual de 1973” (WELSCH, 2015, p. 103). 35 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
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rigido da causa (o CPC/1973 previa “multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa”), e ainda quanto ao valor da indenização por dano processual, o qual será fixado pelo juiz ou, no caso de não ser possível mensurá-la, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum (§ 3º), nos próprios autos, mas sem limitação ao percentual de 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, conforme dispunha o § 2º do art. 18 do CPC/1973. O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Desembargador José Renato Nalini36, em reportagem concedida ao site UOL, relata que o brasileiro alimenta a cultura do processo e assim define:
[...] o processo – ciência que estuda o instrumento de realização do justo concreto – converteu-se em finalidade em si, e muito mais importante do que o direito substancial. Por isso é que, ciência sofisticada, o processo gera inúmeras respostas a uma pretensão posta em juízo, todas elas periféricas, epidérmicas, sem exame do mérito. Ou seja: o processo termina e o conflito continua, com certeza mais agravado ante a decepção de quem acreditou numa solução ditada pelo Judiciário. Essa é a situação presente. A sociedade demandista se submete à cultura do litígio.
Aponta o magistrado a necessária pacificação entre as partes através de conciliação, mediação e arbitragem ou de qualquer uma das “dezenas de estratégias já adotadas pelo direito anglo-saxão”; segundo ele, é preciso “repensar com urgência o sistema de justiça”, para que possa atingir a “funcionalidade esperada” (NALINI, 2015). No CPC/2015, a atuação das partes também interfere sobremaneira no convencimento do julgador. Como exemplo, o art. 10 dispõe que o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (BRASIL, 2015). Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (2010, p. 55-61) reconhecem que o CPC/2015 apresentou avanços, tornando as previsões mais claras e coerentes com os preceitos informadores da nova legislação quanto à celeridade, efetividade e segurança jurídica, além de contribuir para a efetivação da boa-fé e colaboração processuais. É objetivo fundamental no CPC/2015 a solução consensual dos conflitos postos à apreciação judiciária, contudo é importante que não haja prejuízo ao reconhecimento do direito ao amplo e irrestrito acesso aos tribunais a todo e qualquer jurisdicionado. No âmbito da jurisdição contenciosa, é evidente que existem interesses contrapostos; cada um dos envolvidos no trâmite processual deve comportar-se de maneira irretocável, contribuindo para que, de acordo com os valores eleitos pelo ordenamento jurídico pátrio, o Estado-Juiz possa entregar a melhor solução possível ao caso concreto . Ao analisar a postura processual das partes, Artur Torres37 afirma que o processo é um jogo: 36 NALINI, José Renato. Incapaz de resolver conflitos, brasileiro alimenta cultura do processo. UOL Notícias, 19 fev. 2015. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/02/19/incapaz-de-resolver-conflitos-brasileiro-alimenta-cultura-do-processo.htm. Acesso em: 5 nov. 2015. 37 TORRES, Artur. Anotações aos artigos 1º a 12. In: MACEDO, Elaine Harzheim; MIGLIAVACCA, Carolina Moraes (Coords.). Novo Código de Processo Civil Anotado. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Porto Alegre: OAB RS, 2015. p. 22-33. Revista do Curso de Direito
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[...] a existência do processo judicial justifica-se, in concreto, face à ocorrência de um conflito de interesses (real ou virtual). Cada qual dos contendores, bem compreendida a afirmativa, pretende ver sua posição jurídica triunfar e, como regra, por determinação legal, entrega a “defesa” dos seus interesses aos advogados, públicos ou privados. São eles, no mundo real, que conduzem os feitos. Os patronos, em tese experts, respeitados os limites éticos de seu ofício, defendem uma “bandeira”, ou seja, são parciais. O projeto de cada causídico ao assumir seu posto é, quando mais na seara não criminal, o de ver, ao fim e ao cabo, o interesse daquele que lhe confiou o patrocínio prosperar. Trata-se, gostemos ou não, de uma constatação fática, não raro transparente, como dissemos alhures, aos apontamentos doutrinários. Assim sendo, por vestirem uma “camisa” (são parciais e não imparciais), os experts do foro passam a laborar, em cada um de seus processos, no afã de ver despontar o interesse de seus clientes, “jogando o jogo”.
O “jogo só termina quando acaba!”. O processo, de um ponto de vista prático, em última análise, revelase um “jogo” em que, não raro, vence o mais eficiente (processualmente falando).
O incentivo à conciliação judicial, em detrimento da construção de uma solução estatal impositiva ao conflito, e o estímulo à utilização de técnicas alternativas de composição de conflitos (não judiciais) estão expressos no CPC/2015.
4.1 EXIGÊNCIA DE COOPERAÇÃO DAS PARTES NO CPC/2015 Em seu art. 6º, o CPC/2015 traz a ideia de cooperação das partes: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Prestígio à cooperação e ao diálogo, segurança jurídica, prestação jurisdicional mais completa e razoabilidade no tempo para a solução justa do litígio; eis o que busca o CPC/2015. Importante e objetivo é o papel atribuído às partes, que, a partir da vigência do CPC/2015, poderão convencionar, de forma ampla, em causas sobre direitos que admitam autocomposição. Nesse sentido, o entendimento de Hugo de Brito Machado38:
As raras possibilidades que a lei hoje concede para a transação processual tomam como referência, não a natureza do direito material em conflito, mas da norma processual que se almeja relativizar (CPC, art. 111). É exatamente por este motivo, que a eleição de foro somente é admissível nas hipóteses de regras de competência relativa (normas processuais desenhadas visando diretamente o interesse das partes), independentemente da natureza do litígio que, em muitos casos, pode tratar de bens absolutamente indisponíveis (e.g. direito de família, direitos da personalidade, estado das pessoas, etc.). O Projeto, diferentemente, preocupa-se em tratar da possibilidade de transação com referência no direito material, e não no processo, exigindo que a matéria ou o bem da vida em disputa possa vir a ser objeto de transação, conforme as regulações do próprio direito material.
A previsão se encontra no art. 190 do CPC/2015, sendo lícito às partes plenamente capazes estipularem mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. O parágrafo único desse artigo dispõe 38 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
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que, o juiz controlará a validade das convenções. As raras possibilidades que a lei atualmente concede para a transação processual tomam como referência não a natureza do direito material em conflito, mas também a norma processual que se almeja relativizar (CPC/1973, art. 111). É exatamente por este motivo, que a eleição de foro somente é admissível nas hipóteses de regras de competência relativa (normas processuais desenhadas visando diretamente ao interesse das partes), independentemente da natureza do litígio, que, em muitos casos, pode tratar de bens absolutamente indisponíveis (e.g. direito de família, direitos da personalidade, estado das pessoas, dentre outros). Destarte, o CPC/2015 convoca as partes, sempre que possível, a resolver seus conflitos de forma amigável, possibilitando a prévia designação de audiência de conciliação ou de mediação, antes mesmo de a parte contrária protocolar sua defesa; para tanto, prevê a criação de centros com profissionais especializados. De fato, o incentivo à conciliação judicial, em detrimento da construção de uma solução estatal impositiva ao conflito, e o estímulo à utilização de técnicas alternativas de composição de conflitos (não judiciais) estão expressos no CPC/2015. A jurisdição é, então, atividade exercida exclusivamente pelo Estado através do Poder Judiciário, contudo, além do juiz, terão importante papel na resolução dos conflitos não somente os mediadores como as próprias partes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS No que diz respeito à tempestividade e busca pela eficiência da prestação jurisdicional, é possível observar grandes avanços, fruto das reformas legislativas no âmbito do novo Código de Processo Civil Brasileiro (CPC/2015), como são exemplos o prestígio à cooperação e diálogo entre as partes como requisitos fundamentais do processo, e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Registra-se, contudo, que os precedentes judiciais devem ser emitidos sem demora para que possam ser compreendidos de maneira clara e precisa e atenda seu escopo principal, qual seja, a busca pela celeridade processual. As partes litigantes deverão cooperar e agir sempre com lealdade e boa-fé processual, sendo lícito estipularem mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, antes ou durante o processo, tudo com a fiscalização e controle judicial. Em suma, não sobejam dúvidas que o CPC/2015 enfatiza a noção da prestação jurisdicional como serviço público eficiente, e busca a concepção de um novo formalismo, exigindo para tanto que o magistrado, determine o, suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios procedimentais, a fim de se buscar a solução integral do mérito.
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POLÍTICA CRIMINAL. ESTRATÉGIA DE PREVENÇÃO E REPRESSÃO DE CRIMES.
Geraldo Cardoso Moitinho39 Natanael Araújo Bandeira40
RESUMO Em meio a prática do crime e o que se busca com a punição e alcance da norma penal, visa-se renovar e inovar de forma correta e eficaz sua abrangência, para a prevenção e repressão do crime. No intenso combate à criminalidade, além da investigação e da solução para a proteção dos bens jurídicos tutelados, como a vida, a liberdade, há a inquirição dos métodos adotados e sua crítica para posterior adequação e atualização. Cabe à política criminal, portanto, eleger interesses e ideias diretivas do tratamento reservado à enfermidade social que é o crime, elaborar as estratégias para o seu combate, bem como incrementar a execução dessas estratégias. Logo se questiona, as pessoas quando saem do sistema prisional, qual é a chance, incentivo e oportunidade que essas pessoas terão para o não cometimento de novos crimes, o papel do Estado Democrático de Direito em proporcionar a ressocialização e inserção no mercado de trabalho é essencial e um dever.
Palavras-chaves: Criminologia. Direito. Política Criminal. Prevenção. Repreensão.
1 INTRODUÇÃO A sociedade de maneira em geral necessita de regras para que o ser humano conviva harmoniosamente entre si, e, neste caso, surgem diversas variáveis que facilitam ou dificultam o convívio harmônico entre os indivíduos em sociedade. Para o a solução das dificuldades ou pontos de conflitos que convergem para o judiciário, principalmente, no campo do Direito Penal, surge a necessidade do conhecimento da política criminal, pois, quando não existem possibilidades de solução da controvérsia ou conflito, recorre-se a última instância do Direito, o Direito Penal. Neste arcabouço entre conflito, vítima e réu, é fundamental estreitar o conceito de Política Criminal, pois não há como separar a punibilidade ou sanções para aqueles que cometam algum deslize com relação as regras sociais estipuladas pelo grupo. Infelizmente, a comunidade que tem como sua salvaguarda a política criminal, deve fazer um caminho de volta, pois, o natural, não é o caminho residual, mas o de diálogo, a compreensão e o ajuste entre as partes, entre o indivíduo e sociedade ou entre sociedade e grupos sociais. É papel do criminólogo partir desses pressupostos para enxergar qual é a melhor solução às partes. 39 1 Moitinho, Geraldo Cardoso Graduando em Bacharel em Direito pela Faciplac. E-mail: geraldo.moitinho@gmail.com 40 Natanael Araújo Bandeira, Graduando em Bacharel em Direito pela Faciplac. E-mail. natanaelaraujodf@gmail.com Revista do Curso de Direito
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O criminólogo estuda o fenômeno criminoso, fornecendo dados que a política criminal transforma, às vezes, em reivindicações de alteração ou mesmo de elaboração da legislação penal; a ciência do Direito Penal normatiza essas reivindicações que passam a ter valor jurídico coativo; o processualista cuida da aplicação do ius puniendi de acordo com o devido processo legal; na fase executiva torna-se realidade a ameaça penal. Mesmo com a concepção mais humanista da política criminal, não há de se mencionar regime fechado, penas mais severas, transformação de alguns tipos penais em crimes hediondos, ou até mesmo, a perda de alguns benefícios que podem encurtar a pena. A exclusão do perdão judicial ou extinção de algumas penas em virtude da superlotação de cadeias. Apesar de pregar pelo esvaziamento das prisões, admitia a necessidade da permanência de alguns cárceres para indivíduos especiais. Ressalta-se, que o status quo nas cadeias atualmente é deprimente, além do que as prisões são universidades do crime, que não ressocializa o detento, mas pelo contrário, potencializa o ser humano criminoso. Deve-se discutir em audiências públicas tão fenômeno social, pois, a população carcerária cresce anualmente, e, inversamente proporcional crescem as medidas estatais para recolocar os presos ao convívio social. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3, nova população carcerária brasileira é de 711.463 presos, dados apresentados em junho de 2015. Os números apresentados a representantes dos Tribunais de Justiça brasileiros, levam em conta as 147.937 pessoas em prisão domiciliar. Para realizar o levantamento inédito, o CNJ consultou os juízes responsáveis pelo monitoramento do sistema carcerário dos 26 Estados e do Distrito Federal. De acordo com os dados anteriores do CNJ, que não contabilizavam prisões domiciliares, em maio de 2015 a população carcerária era de 563.526.
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41 3 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Cidadania nos Presídios. 2015.
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Segundo, o Ministério da Justiça (MJ,2014)42 o Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, conforme tabela apresentada neste estudo, o Brasil vem atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Mas, se considerarmos a populações destes países proporcionalmente, o Brasil ficaria em segundo lugar. Os dados foram informados pelo Ministério da Justiça. Mais um ponto para que a Política Criminal brasileira avance em sentidos de ser proativas que retardem estes números ou encontrem meios para que os egressos não retornem ao sistema e em última instância, a sociedade disponibilize mecanismos de absorção dos detentos a oportunidades como trabalho, cursos, estudos em universidades, participação de grupos religiosos ou federações esportivas. Pode-se, então, entender que políticas criminais ou política criminal, como “o conjunto de procedimentos por meio dos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal”, o que em outras palavras significa que Política Criminal nada mais é do que uma forma de resposta ao crime, criada pela sociedade com o intuito de punir de maneira adequada o indivíduo que infringe as leis. Sua caracterização permeia teoria e prática das diferentes formas do controle social, o que significa que atua e estuda inúmeras maneiras de controlar o fenômeno criminal que ocorre na sociedade, o que faz dela uma disciplina independente, que difere da Criminologia e da Sociologia Criminal, pois a Política Criminal é sim uma pesquisa principalmente jurídica, voltada para encontrar a fórmula de erradicação do crime na sociedade, porém ela não se limita apenas do Direito Penal, e seus estudos abrangem muitas outras formas de controle social. Entende-se política, em seu sentido lato, como a ciência ou a arte de governar. Por analogia, política criminal compreende a política relacionada ao fenômeno criminal, sendo considerada a arte ou a ciência de governo, com respeito ao fenômeno criminal (ZAFFARONI, 2011)43. Sendo parte integrante da política em geral, a política criminal, pode ser definida como a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos. Ainda, (ZAFFARONI, 2011)44 entende que a política criminal pode ser considerada com o conjunto de princípios e recomendações destinados à reforma da legislação penal e transformação dos órgãos encarregados de sua aplicação. Tais princípios conforme elucida (BATISTA, 2007)5 são:
[...] obtidos por meio das constantes mudanças sociais, das análises dos sistemas penais passados e aqueles ainda vigentes, com revelações empíricas das instituições penais, corroborando os avanços e descobertas da criminologia.
Segundo (DOTTI, 1999)45 conceitua Política Criminal de forma adequada e clara. Segundo suas lições, 42 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. SEDH/DCA. Infopen (levantamento nacional de informações penitenciárias).Brasília: MJ. 2015. 43 ZAFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro. v. 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 44 ZAFARONI, Eugenio Raul. DOTTI, R. A. A Crise do Sistema Penal. Revista dos Tribunais, nº 768, ut.1999. v. 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 45 DOTTI, R. A. A Crise do Sistema Penal. Revista dos Tribunais, nº 768, ut.1999. Revista do Curso de Direito
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a política criminal é o conjunto sistemático de princípios e regras através dos quais o Estado promove a luta de prevenção e repressão das infrações penais. Em sentido amplo, compreende também os meios e métodos aplicados na execução das penas e das medidas de segurança, visando o interesse social e a reinserção do infrator. Em síntese, pode-se afirmar que a Política Criminal é a sabedoria legislativa do Estado na luta contra as infrações penais. Ela deve ser concebida e executada dentro de uma realidade humana e social vigente, daí porque se fala na necessidade de se conjugar os seus objetivos, meios e métodos com uma dogmática realista. Esta deve ser considerada como um núcleo característico da ciência penal que deve partir de suas normas e de seus institutos, ajustando-os, porém, às exigências da coletividade e ao reconhecimento da condição humana de seus membros. Podemos perceber, segundo o conceito exposto acima, que a política criminal possui estreita ligação com o bem jurídico, já que, é através da política criminal que o Estado externa a sua “sabedoria legislativa” no combate e repressão às infrações penais – e, portanto, elucida através dessas normas quais os bens jurídicos que merecem a guarida do Direito Penal. Também é através da política criminal que o Estado realiza a aplicação da lei penal, em momento que deve ater-se aos limites e orientações que podem ser extraídas do bem jurídico. Funciona, pois, como uma via de mão dupla: primeiramente o Estado “revela” através de sua atividade legislativa os bens jurídicos penalmente relevantes e depois, ao aplicar a lei penal, restringe-se aos limites da própria norma – situação típica dos Estados de Direito.
1. FINALIDADE Em nosso sistema, o desempenho da atividade legislativa do Estado é realizado na forma de uma democracia representativa, situação em que os membros dos órgãos legislativos são representantes do povo, eleitos por este periodicamente. Como exposto na conceituação de bem jurídico, o Estado deve tutelar penalmente os pressupostos imprescindíveis para a convivência humana em comunidade. O problema surge então, a partir do momento em que o Estado, no exercício da Política Criminal, elege, por via da atividade legislativa, a proteção a interesses estatais que não representam os interesses da sociedade. O bem jurídico constitui uma realidade válida em si mesma, cujo conteúdo valorativo não depende do legislador, por ser um dado social preexistente. O bem jurídico não é um conceito exclusivamente jurídico, uma criação do legislador contida na norma, mas uma criação da vida e como tal um interesse vital do indivíduo ou da comunidade, que a proteção do Direito lhe dá a categoria de bem jurídico; a norma não cria o bem jurídico, mas o encontra dentro da realidade social.
2. VISÃO ESTATAL É bastante frequente estabelecerem-se confusões entre Política Criminal e Criminologia ou mesmo entre elas e o Direito Penal (principalmente no que diz respeito à Dogmática jurídico-penal), por isto, o Estado delimita o assunto, mesmo que seja converso, injusto ou principalmente, confuso, pois, parece aos olhos da 24 Faciplac
sociedade, que o bandido tem mais direito que o cidadão de bem. A Criminologia possui uma dimensão e uma estrutura científicas próprias, informadoras das estratégias que a Política Criminal estabelece para o controle, o combate da criminalidade. Por outro lado, as ameaças constantes de convulsão social levam o Estado a ficar reféns de organizações criminosas, que levam consigo o aparelhamento do Estado a calamidade pública, quer seja do ponto de vista social, político ou de segurança pública. Importante ressaltar, desde logo, que o ramo repressivo do Direito não é o único meio recomendado pela Política Criminal para a diminuição da violência. Inúmeras outras medidas de cunho político podem ser adotadas a partir das conclusões da Política Criminal. Investimentos em programas como o Escola Aberta, por exemplo, podem ser utilizados, eficazmente, nessa difícil tarefa. A política criminal serve – ou deveria servir – de alicerce para a criação normativa penal brasileira, e não como meio de viabilização de tipificação de condutas desamparadas de bem jurídico, até porque não é tipificar, moldurar os delitos e penas, mas sim, agir de forma pedagógica na aplicação das penas, bem como enfatizar que o crime, realmente não compensa. Não é raro vermos o Direito Penal abarcar desde as pequenas infrações contravencionais às mais diversas formas de ilícitos em matéria comercial, ambiental, administrativa, que na verdade deveriam outros tipos de sanções: civis, administrativas, disciplinares ou políticas. Em igual pensamento, Sánchez sustenta que:
[...] a criação de novos bens jurídicos - penais, a ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, a flexibilização das regras de imputação e a relativização dos princípios político-criminais de garantia seriam aspectos desta tendência dominante em todas as legislações, a qual o autor refere-se como “expansão do Direito Penal.
A sanção penal destaca-se cada vez mais como a única forma de sanção e técnica de responsabilização dotada de eficácia e de efetividade, causando a inflação dos interesses penalmente protegidos e dificultando a conceituação da figura de bem jurídico. E como já visto, condutas desamparadas de Bem Jurídico no preceito punitivo fazem com que o Direito Penal faleça de sentido como uma ordem de direito, resultando num injusto penal material, ético-socialmente intolerável. Aí reside, portanto, a extrema relevância da noção de bem jurídico – não podendo o direito penal renunciar o primordial conceito que lhe permite a crítica do direito positivo. Também não é difícil vermos o próprio Poder Judiciário olvidar a observância de tal conceito no exercício de sua competência, ao decidir observando apenas argumentos político-econômicos, acabando por “ratificar” leis penais que não amparam bens jurídicos, mas apenas interesses do Estado que deveriam ser tutelados através de sanções administrativas e civis. Tal modo de atuação acaba por ferir o próprio ordenamento, desvirtuando sua natureza jurisdicional e tornando o Poder Judiciário um apêndice político, viabilizador de uma política criminal inadequada. Afasta o próprio Estado da sujeição à lei, desconfigurando o Estado de Direito. No atual momento em que a sociedade necessita de uma reforma complexa no sistema penal, encontra Revista do Curso de Direito
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barreiras ainda intransponíveis, passando por entraves políticos e pelo costume já sedimentado de que punição e pena é somente aquela relacionada à privação de liberdade. As penas alternativas ao encarceramento, que possibilitam a punição do delinquente mesmo que em liberdade, ainda são vistas como uma forma de impunidade. Uma verdadeira reforma penal só será possível quando as forças sociais e políticas se unirem um uníssono na busca de formas mais humanas e eficazes de aplicação da sanção penal.
3. BENEFICIADOS X SISTEMA No Brasil, a aplicação da justiça criminal nos campos da segurança pública e do sistema prisional é afetada negativamente pelo choque entre os valores democráticos inscritos na Constituição Federal de 1988 e estatutos de direitos (igualdade de gênero, racial, direitos da criança e adolescente, idosos etc.), que de um lado, e, de outro, a arraigada tradição hierárquica e autoritária da sociedade brasileira em geral e do poder público em particular. Problema esse agravado pela insistência de alguns setores em sustentar o mito de que a sociedade brasileira se formou de maneira pacífica e que continua a ser harmoniosa e unida. Na verdade, há um longo caminho a percorrer na busca da consolidação da democracia pátria, fato que se evidencia na existência de dois eixos em torno dos quais a sociedade se move: o eixo formal, referido ao ordenamento jurídico e às instituições oficiais, e um eixo informal, material, referido à tradição, a arranjos relacionais e configurações sociais à “margem”, um eixo prevalecendo sobre o outro em função do contexto e das pessoas e grupos envolvidos. Nesse modelo de duas vias, vai importar muito mais às camadas populares o eixo informal, pois o outro é percebido quase sempre como lhes sendo distante ou prejudicial. Já as elites e camadas mais altas têm facilidade de se mover com a utilização de um ou de outro, ou dos dois. Com isso, abrem-se duas possibilidades de abordagem da questão da segurança e da criminalidade: uma de cunho técnico-jurídico, e outra de cunho sociopolítico. O presente artigo é um esforço de aproximar essas duas visões. Parte-se da premissa de que a política criminal brasileira, na raiz, é marcada por uma concepção autoritária, discriminatória e elitista, premissa essa que poderá ser refutada por quem tem como referência os dispositivos constitucionais relativos aos direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, da CF/88 e outros diplomas legais, sobretudo no que diz respeito ao princípio da “igualdade de todos perante a lei”, e mesmo diretrizes democratizantes do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A reflexão buscada, no entanto, não é o enunciado de direitos e diretrizes administrativas, e sim a garantia do desfrute dos direitos, in concreto, sobretudo no que concerne às camadas populares. E também de uma consideração sobre o sistema penal (ou sistema de justiça criminal), cuja estruturação e funcionamento, em qualquer sociedade, refletem a concepção que orienta, de forma clara ou recôndita, a política criminal. Podemos afirmar que a política criminal brasileira se distancia de forma acentuada dos mandamentos da Constituição. Lopez-Rey, citado na nota acima, propôs que:
[...] a distinção entre o que chamou de “formulação da política criminal” e a “formulação do sistema penal”, ou seja, a seleção e o ordenamento dos meios para atingir metas próprias como parte do esforço geral da sociedade para atingir os fins da política criminal.
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Assim, se, numa sociedade que se declara democrática, os poderes públicos se orientam, na realidade, por concepções autoritárias e discriminatórias, o sistema penal será estruturado segundo essas concepções e as refletirá na prática dos seus operadores. Se orienta realmente por ideais democráticos, formal e materialmente, ocorrerá o inverso, em proveito do exercício da cidadania. Numa ditadura, é de toda coerência que o governo exercite o autoritarismo, o que é da sua essência; porém, num estado democrático de direito, como é o caso do Brasil, trata-se de contradição incontornável, contradição essa representada pelo enraizamento, na ordem jurídica, da visão autoritária e elitista que norteou a edição da legislação penal e processual vigente no ordenamento pátrio. Isto se considerarmos que a política criminal em sentido estrito, in concreto, é ditada principalmente pelo Código de Processo Penal - CPP, “outorgado” pelo Estado Novo. A Lei de Execução Penal - LEP, embora de caráter mais democrático, volta-se tão somente para o “condenado e o internado”, mesmo assim encontrando as velhas barreiras da tradição para a sua efetivação. Tramita no Congresso o Projeto de Lei do Senado nº 513/2013, que visa a alterar a atual Lei de Execução, coerentemente, as alterações se voltam para os colhidos pelo sistema, sem grandes novidades. Considerando que o CPP, apenas em abstrato, se dirige a todos os cidadãos, é como se a legislação penal pudesse dar conta da segurança e da tranquilidade da população.
4. VISÃO DO LEGISLADOR O legislador observa a lei e os seus atos visam respeitar os direitos fundamentais, constitucionalmente reconhecidos, para a interpretação de todo fenômeno jurídico, assim como realizar uma correta aplicação da política criminal. O legislador não tem vedado a possibilidade de elaborar leis que limitem direitos fundamentais presentes no texto constitucional, desde o momento em que a mesma Constituição resulte possível fazer tal limitação da norma. Como não poderia ser diferente, a política criminal é mais que simplesmente legislar, é a busca de medidas e critérios de caráter jurídico, social, educativo, econômico e de índole similar, estabelecidas pelos poderes públicos para prevenir e reagir frente ao fenômeno criminal, com o fim de manter sob controle tolerável os índices de criminalidade numa determinada sociedade. A política criminal ostenta o poder de definir o processo dentro da sociedade, e, portanto, de dirigir e organizar o sistema social em relação à matéria criminal. Em verdade, surge, também, a necessidade da valorização e cumprimento quanto ao princípio de proporcionalidade no momento de elaboração legislativa das normas penais, precisamente observadas tanto pelo legislador penal, como pelo intérprete constitucional. No entanto, a importância do princípio de proporcionalidade é inclusive mais que isto, pois não constitui exclusivamente um mero orientador político criminal, é uma maneira de exercer o controle por parte do Tribunal Constitucional.
5. FORMAS DE POLÍTICA CRIMINAL Os movimentos de política criminal consistem nas diversas formas de se interpretar e solucionar a problemática criminal. Podem ser divididos em três grandes grupos, sendo eles: movimento da lei e ordem, Revista do Curso de Direito
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movimento da novíssima defesa social, e movimento da política criminal alternativa.
6. MOVIMENTO DA LEI E ORDEM Com a recente reiteração de fatos criminosos cruéis e bárbaros ocorridos nos mais diversos setores da sociedade uma explicação que recebe confiabilidade por muitos é a de que esses acontecimentos são frutos de leis penais muito benignas e de um ordenamento jurídico brando, que traz como consequência o clima de insegurança com que inúmeras pessoas convivem. Esse movimento entende que a sociedade é dividida em seres humanos bons e maus. Para manter a pacificação social e controlar os homens maus, ele defende a utilização de leis severas, com aplicação de penas privativas de liberdade caracterizadas pela longevidade. Destaca-se o caráter repressor da solução que é visto como única forma de diminuição da criminalidade. A aludida severidade das penas serviria como consolo e sentimento de justiça às vítimas, acrescentando-se a neutralização e intimidação dos seres criminosos. É por isso que os gastos com penitenciárias de segurança máxima são justificados. Os crimes mais graves merecem ser respondidos à altura e o regime de rigor e dureza como o anterior seria a resposta perfeita. Nesse contexto, ainda é defendido a diminuição da competência dos Juízes das Varas das Execuções Criminais e uma maior concessão de poder aos diretores das penitenciárias, como ocorre por exemplo, em vários estados dos Estados Unidos. Nas décadas de 80 e 90 houve uma explosão de ocorrências de crimes como roubos, sequestros e estupros, praticados com emprego de massiva violência e, devido a isto, a sociedade passou a exigir maior rigor do tratamento dispensado àqueles que praticavam tais delitos. A solução legislativa encontrada foi a criação da Lei 8.072 de 25 de julho de 199046, destinada a enrijecer o tratamento destinado à ocorrência de tais crimes violentos. A tal lei foi dada o nome de “Lei de Crimes Hediondos”.
7. MOVIMENTO DA NOVÍSSIMA DEFESA SOCIAL É o segundo grande grupo dos movimentos de política criminal. Sua criação se deve a Filippo Gramatica, professor italiano. O momento histórico de sua aparição é atribuído à década de 1940, logo após a segunda guerra mundial. Em 1945, Gramatica cria o Centro de Estudos de Defesa Social, vindo posteriormente, também a ocorrer o 1º e 2º Congresso Internacional de Defesa Social. Com a publicidade dos eventos e o aumento dos adeptos nasce a Sociedade Internacional de Defesa Social e mais à frente as bases do movimento de política criminal tido como a nova defesa social. Esse movimento, de cunho universal e multidisciplinar, passa a defender a reforma estatal com a revisão de suas estruturas sociais juntamente com a de suas instituições e órgãos jurídico-penais. Sob influência humanista, argumenta que a prevenção é a melhor solução para a criminalidade e que a função punitiva retributiva do Direito Penal deva ser extinta. 46 BRASIL, Lei N. 8.072, de 25 de julho de 1990. Lei dos crimes hediondos.
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8. MOVIMENTO DA POLÍTICA ALTERNATIVA Parte de um pressuposto fático para desenvolver suas aspirações. Preliminarmente, ressalta a divisão econômica social da sociedade em classes. Nesse contexto considera o sistema punitivo como forma de proteção dos interesses e conceitos daqueles que compõe a classe dominante. O Direito Penal pouco é aplicado para as classes que detém os meios de sua produção, tendo como finalidade regular os atos e modos de vida das outras classes que só podem oferecer sua força de trabalho para sobreviver. É caracterizado, portanto, como seletivo e elitista, atuando somente em favor daqueles que compõe as classes consideradas nobres e, ao mesmo tempo, buscando manter pacíficos e dóceis, através de seu rigor, os componentes das outras classes. As medidas propostas por esse movimento, conforme (Shecaira e Corrêa Junior, 2002)47, são as seguintes:
[...] defende-se a abolição da pena privativa de liberdade, sendo este o carro-chefe dos defensores desta Escola. Afirma-se que a prisão é inútil seja como instrumento de controle, seja como meio de promover a reinserção social; enquanto não houver a abolição do sistema penal, deve-se descriminalizar, despenalizar, desjudicializar; paralelamente a essa redução da atividade punitiva do Estado recomenda-se a criminalização de comportamentos que importem danos ao interesse das maiorias: criminalidade econômica, ecológica, crimes contra a saúde pública, segurança do trabalho etc.; todo este trabalho deverá ser feito com apoio maciço da propaganda, não só para denunciar as desigualdades do sistema vigente, como também para obter apoio popular aos métodos e à ideologia da política criminal alternativa.
Por meio da conjunção dessas ações é que se chegaria a diminuição dos índices criminais e se manteria a hegemonia das classes dominantes. No contraponto, não deve legislar para minorias, mas para sociedade. O crime, vítima e pena devem ser estudados como todo, não em partes, pelo pensamento mecanicista, mas perceber qual a melhor maneira de ajustar as desigualdades em geração de oportunidades e sociedade mais justa e humana.
9. A POLÍTICA CRIMINAL NA SOCIEDADE ATUAL A investigação científica provoca uma sensação de punição aos criminosos e sentimento de justiça feita. Mas, não é isto que sociedade almeja, mas sim a liberdade de ir e vir e poder transitar de carro à meia noite ou simplesmente atender ao celular em grandes centros. A política criminal não pode estar centrada no crime ou no criminoso, mas nas razões que levam ao aumento de violência ou estar focada, por exemplo, quais os fatores que aumentam os homicídios. Segundo Liszt apud (D’Avila, 2009)48 a política criminal é:
[...] a reunião ordenada de princípios, segundo os quais deve ser conduzida a luta da ordem jurídica contra o crime, ou o conjunto sistemático de princípios baseados na investigação científica das causas 47 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 476 p. 48 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Revista do Curso de Direito
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do crime e consequências da pena, segundo as quais o Estado, por meio da pena ou mecanismos a ela análogos, deve conduzir a luta contra o crime.
Ocorre que as políticas criminais na atualidade são fundamentadas com base nas pesquisas acadêmicas que são levantas nas universidades de vários países. Dentre elas se destacam a tese do abolicionismo, do direito penal máximo e do direito penal mínimo. Edmundo Oliveira apud (GRECO, 2009)49 assevera que “ainda prevalece a crença, no seio da coletividade, de que a prisão representa melhor resposta para as inquietações engendradas pelos comportamentos delinquentes”, o que reforça a tese abolicionista de que a construção de uma sociedade melhor e mais justa só será possível com o fim do sistema penal, pois já está ou sempre esteve, maculado pela ofensa à dignidade do ser humano. Por sua vez, em contraponto à tese abolicionista, o direito penal máximo tem ganhado força, principalmente nos países vítimas do terrorismo islâmico. Sua principal materialização se faz por meio do movimento lei e ordem que tem como discurso a efetividade da ação repressiva em matéria criminal. O movimento lei e ordem, surgido nos Estados Unidos, por volta da década de 60, prega um discurso que o direito penal deve ser máximo e eficaz, nesse sentindo (Greco, 2009) explica que:
[...] faz a sociedade acreditar ser o Direito Penal a solução de todos os males que a afligem. E ainda, o convencimento é feito por intermédio do sensacionalismo, da transmissão de imagens chocantes, que causa revolta e repulsa no meio social. Não se pode tratar a sociedade pelos efeitos, os crimes, mas sim pelas causas que provocam o crime.
Seu resultado é a edição de leis cada vez mais severas, como aconteceu no Brasil na década de 90, com a publicação da lei dos crimes hediondos, após a forte pressão da sociedade, com o incansável apoio da mídia. No mesmo sentido é a teoria da Janelas quebradas ou tolerância zero, que afirma (CARVALHO, 2005)50 ser perceptível:
[...] uma nítida simetria entre as propostas político-criminais propugnadas pelos defensores da “Tolerância Zero”, baseadas no incremento da repressão penal. Todavia, enquanto estes primam pela repressão à criminalidade de rua e pequenos crimes de menor potencial ofensivo, entendendo a intolerância como o único mecanismo de prevenção do caos e da desordem social, aqueles reivindicam alta punibilidade às ofensas dos bens jurídicos interindividuais, sobretudo os delitos contra a pessoa e o patrimônio.
Entretanto, elevada repressão, por si só, não é capaz de combater a criminalidade e garantir a ordem social, apenas apresenta uma aparente tranquilidade, conforme preconiza (ZAFFARONI, 2011)51 que: 49 GRECO, ROGÉRIO. Curso de Direito Penal - Parte Geral - Vol. 1 - 11ª Ed. 2009. 50 Alexande; CARVALHO, Salo de (orgs.). Novos diálogos sobre Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. 51 ZAFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro. v. 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
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[...] vende-se a ilusão de que sancionando leis que reprimam desmesuradamente aos poucos vulneráveis e marginados que se individualizam, e aumentando a arbitrariedade policial, ao legitimar, direta ou indiretamente, todo gênero de violências, inclusive contra quem objeta o discurso publicitário, obter-se-á maior segurança urbana contra o delito comum.
Outra corrente que tem se destacado é a do Direito Penal do Inimigo, que se aproveita do momento de fragilidade pelo qual passa a sociedade, ante os altos índices de criminalidade e crescimento da violência. Tem como precursor o alemão GUNTHER JAKOBS52 e parte do pressuposto de que aquele que persiste em infringir a norma penal, violando o bom convívio social, deve ser considerado inimigo e ser afastado definitivamente do meio social. Segundo sua teoria (JAKOBS, 2005)53:
[...] seria aplicado o direito penal clássico (do cidadão) unicamente às pessoas que não persistem em delinquir. Por outro lado, o direito penal do inimigo seria aplicado aos reincidentes, pois segundo ele, “o Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma [prevenção geral e negativa], e o Direito Penal do Inimigo combate o perigo.
Para essa teoria, a sociedade se encontra em guerra, sendo os bons contra os maus, devendo o Estado agir preventivamente a fim de prevenir o caos eliminando os inimigos da sociedade, antes que eles a dominam. Assim, o Estado seria capaz, por meio da segregação entre bons e ruins, de atuar antes da conduta delitiva, aplicando ao “inimigo” o tratamento mais drástico possível, pois este não merece qualquer garantia constitucional ou legal, pois por ser inimigo não é um sujeito de direitos. Importa ainda, que sua teoria elucida que (JAKOBS, 2005)15: [...] Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.
Fica, portanto, evidente, que tal teoria afasta o Direito Penal da regra que objetiva a tutela de um bem jurídico, pois para esta corrente não importa o ato ou a ação, mas o autor, suas características pessoais e sua personalidade. Zaffaroni apud (CANTERJI, 2008)54, em crítica a tal teoria, afirma que: 52 JAKOBS, Gunther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Trad. De André Luís Callegari e Nereu José Giancomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 53 JAKOBS, Gunther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Trad. De André Luís Callegari e Nereu José Giancomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 54 CANTERJI, Rafael Braude. Política criminal e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. Revista do Curso de Direito
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[...] está se trata de uma corrupção do Direito Penal, a qual deve reconhecer e respeitar a autonomia moral da pessoa, jamais tendo legitimidade para punir o ser, mas somente o seu agir, já que o Direito Penal regula as condutas humanas.
Em contrapartida ao direito penal máximo, está lançado a teoria do Direito Penal Mínimo que apregoa ser a finalidade do Direito Penal a proteção de bens jurídicos necessários e vitais ao convívio em sociedade, ou seja, aqueles cuja importância, não são capazes de ser protegido pelos demais ramos do direito. Nas palavras de (Greco, 2009)55:
[...] O Direito Penal do Equilíbrio tem como ponto central, orientador de todos os outros que o informa, o princípio da dignidade da pessoa humana. O Homem aqui, deve ocupar o centro das atenções do Estado, que, para a manutenção da paz social, deverá somente proibir os comportamentos intoleráveis, lesivos, socialmente danosos, que atinjam os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade.
Quem traça um paralelo entre Direito Penal Máximo e Mínimo ao finalizar com maestria é (Ferrajoli, 2002)56, que destaca que:
[...] a certeza perseguida pelo direito penal máximo está em que nenhum culpado fique impune à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune.
Isso demonstra que as teorias, desenvolvidas em regra, nas academias, devem ser analisadas com responsabilidade, para que seja aplicada à finco a toda sociedade, como instrumento prático de efetivação do Direito Penal. Contudo, o que se vê é a desenfreada disseminação de correntes radicais, como a do Direito Penal Máximo, que tem sido veementemente aplicado neste século, sem, porém, ter passado por um aprofundamento, além da academia. Daí surge a preocupação deste trabalho, qual os riscos destas modernas tendências de políticas criminais e os riscos de violação aos Direitos Humanos. Qual a influência do clamor social e qual a reação por parte do legislador, que tende a editar leis cada vez mais severas. O que leva à utilização do aparato estatal da força policial repressiva e a utilização do Direito Penal como instrumento de combate e repressão à criminalidade, a fim de se obter uma possível solução para os problemas sociais, o que incorre em grande exagero na intensidade de aplicação da força estatal. Será o excesso de leis e a intensidade da repressão adotada pelo Estado, capaz de garantir a paz social, 55 GRECO, ROGÉRIO. Curso de Direito Penal - Parte Geral - Vol. 1 - 11ª Ed. 2009. 56 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes,. 2002.
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sem que viole os Direitos Humanos?
CONSIDERAÇÕES FINAIS Mediante os esclarecimentos pelo presente trabalho é perceptível que o Estado brasileiro tem passado por certas dificuldades, no que tange a estabelecer uma política criminal responsável, pautada pelos direitos humanos e com garantia da ordem pública. Pouco se tem debatido sobre política criminal e direitos humanos, pouco se tem preocupado o legislador com a situação dos cárceres e quais os fatores que levam à delinquência e reincidência. Quando se debate no Brasil sobre a pena de morte é possível se apurar que grande parte da população é favorável, inclusive no meio acadêmico da área jurídica, o que demonstra que a população em geral, assim como o legislador tem se deixado levar pela emoção, escapando-se, ambos, da razão e, consequentemente, de que com a morte não há literalmente o cumprimento de pena real pelo condenado, o que gera preocupação. A pena, assim como a reclusão temporária (sem ressocialização), é uma falsa ilusão de segurança, pois o apenado voltará e nas palavras de Canterji (2008, p. 87) e “devolverá o grau de violência recebido da sociedade através do sistema penitenciário”. Munhoz Conde disciplina que (2005, p. 108)57 “educar para a liberdade em condição de ‘não liberdade’ não só é muito difícil, mas também é uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida na prisão”. Destarte, se o aumento das penas fosse por si só capaz de eliminar ou ao menos reduzir a criminalidade, já se teria no Brasil um “cidadão ideal” e um país sem criminalidade ou com um índice reduzidíssimo. Logo, é simples se apurar que o Direito Penal deve se ocupar em tutelar os bens jurídicos, não qualquer bem, mas sim aquele juridicamente relevante, como a vida, por exemplo. E suas imposições devem, além de reprimir a prática criminosa, condicionar os delinquentes a reinserção social. Ao se estabelecer o Direito Penal e Processual Penal como instrumentos de limitação do jus puniendi, têm-se um eficaz elemento de efetivação dos Direitos Humanos. A tolerância zero não deve ser pautada na reação contra a violência. E, também não se justifica como resposta no controle do crime. Tem-se a necessidade de reformas profundas na legislação penal. Porém, é relevante a aplicação de uma política de segurança pública voltada para a juventude, que é manipulada pelos narcotraficantes, pelo crime organizado, pelos políticos e empresários corruptos, que deixam transparecer que é fácil roubar, furtar e que impunidade é real no Brasil. Sabe-se que os traficantes têm o poder de cooptar um batalhão industrial de reserva. As políticas públicas para combater a corrupção nas suas variadas modalidades: preparo, salário digno e reforma das polícias; fiscalização e combate ao mercado ilegal de armas, sobretudo ao descaminho e contrabando que são praticados em nossas fronteiras; não é demais frisar que as indústrias de armas realizam vendas sem o devido controle, logo, lucram com a criminalidade; implementar políticas integradas do desarmamento com casa/ 57 MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro; Forense, 2005. Revista do Curso de Direito
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escola/comunidade; urbanizar as comunidades visando à redução do isolamento, oferecer esporte, cultura e lazer como oportunidades de minimizar o ócio e, consequentemente, gerar oportunidades e convívio social. A política criminal, por sua vez, deve ser responsável e também ser pautada em compasso com os Direitos Humanos, sob pena de ser equivocada e inútil, e de colocar em risco não só o ordenamento jurídico de um país, mas toda uma segurança social. O legislador deve preocupar-se como a política criminal, pode ser uma redutora dos crimes e como deve atuar de forma preventiva, não criando bandidos imunes ao sistema penal, não perceberem que o crime não compensa. Após este estudo, não há que se falar em propostas para política criminal. Porque a política criminal tem, pois, duas premissas: o preventivo e o repressivo. O Brasil não tem nem um nem outro. Vive-se no caos de política criminal democrática, onde o Direito Penal é vislumbrado como o tapador de buracos de uma sociedade desigual e desumana, pois, não há políticas públicas para o preventivo e repressivo. As consequências são nefastas para o funcionamento do sistema penal, para a credibilidade do sistema judiciário e, mais genericamente, para o equilíbrio e o desenvolvimento da sociedade brasileira. Buscar-se-á mecanismos que convertam preventivo em educação, saúde, distribuição de rendas e oportunidades para os brasileiros, e, concomitantemente, o repressivo, que não é a mudança da maioridade penal, mas condições necessárias para que a repressão, não seja cadeia com amontoados de criminosos, mas sim, um sistema que organize e ressocialize o ser humano que necessita de uma oportunidade como egresso do sistema carcerário com profissão e dignidade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. CANTERJI, Rafael Braude. Política criminal e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. DOTTI, R. A. A Crise do Sistema Penal. Revista dos Tribunais, nº 768, out.1999. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes,. 2002. GRECO, Rogerio. Curso de Direito Penal - Parte Geral - Vol. 1 - 11ª Ed. 2009. JAKOBS, Gunther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Trad. De André Luís Callegari e Nereu José Giancomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. SEDH/DCA. Infopen (levantamento nacional de informações penitenciárias). Brasília: MJ. 2015. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/ministro-da-justica-apresenta-documento-detalhado-sobre-prisoes>. Acesso em: 29 agos. 2016. MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro; Forense, 2005. SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 476 p. ISBN 85-2032266-2. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro. v. 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de. Novos diálogos sobre Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005.
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SUPERENDIVIDAMENTO: TRATAMENTO JURÍDICO EM FACE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (*)
OVERINDEBTEDNESS: LEGAL TREATMENT FROM THE VIEWPOINT OF THE PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY.
Carolina Barbosa Fernandes (**)
RESUMO O presente artigo analisa o fenômeno do superendividamento no contexto atual, faz apontamentos sobre o direito comparado e indica os instrumentos já existentes no Brasil acerca da prevenção dessa mazela social. Por fim, expõe alternativas trazidas pelo Projeto de Lei de atualização do Código de Defesa do Consumidor para prevenir e tratar a situação de superendividamento no país, em observância aos preceitos do consumo responsável do crédito e da garantia da dignidade da pessoa humana. PALAVRAS-CHAVE: Dignidade. Pessoa humana. Consumidor. Superendividamento. Crédito.
ABSTRACT The article seeks to analyse the overindebtedness in the current context, makes notes on comparative law and indicates the existing instruments in Brazil about the prevention of this social problem. It also presents alternatives brought by the update bill of the Consumer Protection Code to prevent and treat the indebtedness situation in the country, in compliance with the principles of responsible consumption credit and the guarantee of dignity human. KEYWORDS: Dignity. Human being. Consumer. Overindebtedness. Credit.
SUMÁRIO: Introdução - 1. A dignidade da pessoa humana - 2. O fenômeno do superendividamento: 2.1 Conceito e espécies de superendividamento; 2.2 Modelos do direito comparado; 2.3 O superendividamento no Brasil e o consumo responsável do crédito - 3. Tratamento jurídico atual e a proposta de atualização do CDC - Conclusão - Referências.
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1 INTRODUÇÃO O presente estudo versa sobre o fenômeno do superendividamento e as repercussões nas esferas individual, social e econômica. A análise tem por premissa a dignidade da pessoa humana e seus reflexos nas relações consumeristas atuais. Inicialmente, expõe-se sobre a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro e vetor de todo o ordenamento jurídico pátrio. Em seguida, é abordado o fenômeno do superendividamento, com seus pertinentes conceitos, características e implicações práticas. Mediante análises sobre o tema no direito comparado é possível identificar dois modelos distintos de tratamento a ser dado ao consumidor superendividado: o americano e o francês, que serão caracterizados oportunamente. No Brasil o superendividamento é reconhecido como um problema social, econômico e ainda carece de legislação adequada. Seu incremento está diretamente associado ao forte estímulo publicitário e governamental do consumo de crédito, a facilidade de adquirí-lo, a ausência de educação financeira da maioria da população, além de informações não muito claras e objetivas acerca dos financiamentos e serviços prestados pelos oferecedores de crédito. A oferta de crédito propicia o incremento da economia do país, pois permite a obtenção de bens e serviços para serem pagos posteriormente, ou para a abertura ou melhoria de empreendimento, sendo, portanto, considerada um mecanismo de inclusão social. Antagonicamente, é também um mecanismo de exclusão social, especialmente para a população de baixa renda, pois o aumento do consumo sem planejamento faz com que o consumidor contrate o que está além das suas condições financeiras, passe a inadimplir as obrigações e acabe por comprometer o seu mínimo existencial e de sua família. A partir dessa problemática, iniciaram-se debates e pesquisas, a fim de se chegar a um consenso acerca do tratamento a ser dispensado aos consumidores superendividados, que representam um número cada vez mais expressivo da população brasileira. A proposta legislativa de alteração do Código de Defesa do Consumidor - CDC - Lei n.8.078/1990, ocorreu em 2012, no âmbito do Senado Federal, com o Projeto de Lei n.283/2012, que dispõe especificamente sobre o aperfeiçoamento da disciplina do crédito ao consumidor e prevenção e tratamento do fenômeno do superendividamento. Por fim, foram apuradas as peculiaridades do tratamento jurídico atual do superendividamento no Brasil e as disposições do modelo que se pretende adotar com o advento do Projeto de Lei do Senado Federal n. 283/2012, embora esse Projeto ainda não tenha concluído sua regular tramitação legislativa. Procurou-se elucidar que o efetivo exercício da garantia fundamental da dignidade da pessoa humana não pode ser desconsiderado na prevenção e tratamento da mazela social do superendividamento.
1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 previa expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana, que igualmente foi mencionado na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. O art. 1º, III da Constituição Federal dispõe sobre esse princípio como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. A cláusula geral de tutela da existência digna da pessoa humana tem por escopo assegurar a observânRevista do Curso de Direito
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cia de valores existenciais imprescindíveis à sociedade e ao Estado. A dignidade da pessoa humana insere o ser humano, sua existência qualificada e a garantia de um mínimo existencial, no centro do sistema jurídico, em torno do qual gravitam os demais institutos jurídicos, sendo, portanto, o alicerce de todo o ordenamento pátrio.58 Inicialmente a dignidade da pessoa humana era uma proteção do indivíduo em face da ingerência do Estado, mas, atualmente, configura a sua base antropológica, devendo ser estendida as relações privadas, nas quais há integração pragmática dos direitos fundamentais e a eficácia horizontal destes59. Os direitos fundamentais caracterizam-se como direitos subjetivos a prestações e omissões, pois exercem dupla função, em clara dicotomia: determinam a proibição da ingerência do Poder Público na esfera jurídica individual e, simultaneamente, impõe deveres ao Estado, a fim de proteger os titulares e o exercício de determinados direitos.60 A dignidade da pessoa humana pode ser entendida sob o aspecto da função referencial que exerce, exatamente por representar a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, tanto no sentido material quanto formal. Significa entender a fundamentalidade do direito à dignidade humana, formalmente, ligada ao direito constitucional positivado, e materialmente, com a análise do conteúdo material do direito e as decorrências deste na estrutura do Estado, da sociedade e da posição ocupada pelo ser humano. Dessa forma, sua interpretação deve ser feita à luz de um critério basilar, embora não exclusivo, para a construção do conceito material dos demais direitos fundamentais.61 Acompanhando a evolução história, social e jurídica, foram desenvolvidos para o princípio da dignidade da pessoa humana, e os demais direitos fundamentais dele decorrentes, novas facetas de instrumentalização e vetores interpretativos. 62 Atualmente, existe consenso doutrinário e jurisprudencial de que os princípios fundamentais devem repercutir diretamente no trato das relações públicas e privadas, especialmente nas relações consumeristas, onde existe um polo vulnerável. O conceito de dignidade da pessoa humana ainda decorre de grande abstração e prescinde de análise do caso concreto. Importa ressaltar alguns elementos caracterizadores e funcionais desse princípio que, por ter envergadura constitucional de fundamento do Estado, considerou a pessoa humana a finalidade precípua do Estado e não simples meio de sua atividade. 63 O elemento nuclear da dignidade da pessoa humana compreende a autonomia do direito de autodeterminação do indivíduo e confere limites e tarefa aos poderes estatais. Sob o enfoque social, sendo esse princípio o vetor de todo o sistema jurídico64, é possível inferir que somente poderá ser confrontado consigo mesmo, enquanto dois ou mais indivíduos, dotados de igual dignidade, estejam em algum tipo de conflito de interesses ou necessidades. É factível analisar a dignidade da pessoa humana com base nas funções integradora e hermenêutica que exerce, sobretudo com os contornos do mínimo existencial e da reserva do possível. A fim de garantir uma vida condigna a todos, no âmbito das relações de consumo, surge a necessidade do debate e estudo aprofundado 58 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil - v.1 – Parte Geral. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p.66. 59 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed., 6.reimpr. Coimbra: Almedina, 2009. p. 248. 60 Ibid., 2009. p. 407 - 409. 61 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 281- 282. 62 Id., A Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 50. 63 Ibid., p. 98 - 102. 64 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.60.
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sobre o crescente superendividamento, pois esse fenômeno não afeta apenas a pessoa do consumidor, mas sua família, sua saúde, coloca em crise seu relacionamento familiar e social, gera efeitos danosos e patrimoniais ao credor e altos custos sociais ao Estado. Indubitavelmente, o superendividamento é uma mazela social e um grave problema de ordem econômica que atinge frontalmente a dignidade da pessoa humana. O fornecedor de crédito, como os demais fornecedores de produtos e serviços nas relações consumeristas, tem direito ao lucro e adimplemento dos contratos pactuados e interesses resguardados. Contudo, esse fornecedor tem igualmente a obrigação de atender à função social do seu empreendimento e isso implica em honrar as responsabilidades pelo risco e exercício do seu negócio. Concomitantemente, o consumidor superendividado, independente das circunstâncias fáticas que o levaram a essa condição e da obrigação de adimplir o que contratou, tem direito ao mínimo existencial para sua subsistência, com a garantia de respeito a sua dignidade humana, de sua família e dependentes econômicos.
2 O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO
2.1 CONCEITO E ESPÉCIES DE SUPERENDIVIDAMENTO O superendividamento é um problema de natureza econômica e social que atinge diretamente os objetivos do Estado e do oferecedor de crédito, na medida da responsabilidade social do seu negócio. Sendo a disponibilização de crédito uma forma de inclusão social, a sua democratização propiciou o aumento do endividamento dos consumidores, tanto nos países desenvolvidos, onde já existe um sistema maduro de falência das pessoas físicas, como em países em desenvolvimento, que carecem de disciplina normativa sob essa perspectiva.65 Alega-se que o superendividamento é decorrente do uso excessivo do crédito pelo consumidor. No entanto, há diferentes abordagens para compreender os motivos que levaram as pessoas à situação de superendividadas, sendo as principais: países que não oferecem educação e saúde pública de qualidade, obrigando as famílias a arcarem com essas despesas básicas; situações de emergências médicas, acidentes, divórcio ou desemprego, obrigando as famílias a obterem crédito para suprir suas despesas de subsistência; ausência ou insuficiência de instrução quanto ao planejamento financeiro e uma cultura de poupar não enraizada; excesso de crédito disponível, com facilidade de obtenção e concessão irresponsável pelo fornecedor. Há situações de superendividamento decorrentes do consumo compulsivo ou do impulsivo, cuja decisão é efetuada subestimando os riscos e com a certeza de poder pagar a dívida no futuro.66 O fenômeno do superendividamento refere-se à pessoa física, nos moldes da insolvência civil e consiste na situação em que o indivíduo possui um passivo maior que o ativo e passa a precisar de auxílio para reconstruir sua vida econômico-financeira.67 Atualmente é a doutrina que define e aborda os limites, causas e consequências do fenômeno do supe65 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 33. 66 Id., 2014. p.36. 67 SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, v.16 n. 26, 2009. Disponível em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/36/34>. Acesso em: 09 jul. 2015. Revista do Curso de Direito
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rendividamento, pois ainda não existe legislação pátria que o faça. Entretanto, não há consenso doutrinário e jurisprudencial sobre a quantia que define o valor a partir do qual o devedor é considerado superendividado, pois a análise do caso concreto, em atenção às necessidades do indivíduo, é imprescindível. Ressalte-se que não é possível tratar como superendividado todos os indivíduos inadimplentes, descumpridores de prestações pecuniárias, pois há casos em que o não cumprimento de uma prestação não teve sua causa na incapacidade econômica do consumidor. Na busca por um conceito legal e específico de superendividamento, o anteprojeto final apresentado pela comissão de juristas instituída no Senado Federal para atualização do CDC, em 2012, prevê no art. 104A, §1º o seguinte:
§1º Entende-se por superendividamento o comprometimento de mais de trinta por cento da renda líquida mensal do consumidor com o pagamento do conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas, excluído o financiamento para a aquisição de casa para a moradia, e desde que inexistentes bens livres e suficientes para liquidação do total do passivo.68
A emenda n. 43, substitutiva do Projeto de Lei do Senado n. 283/2012, Art. 54-A, § 1o, dispõe “Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta do consumidor, pessoa natural, de boa-fé, de pagar o conjunto de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, que comprometa seu mínimo existencial”. Para a legislação francesa o superendividamento é caracterizado “pela impossibilidade manifesta do devedor de boa-fé de enfrentar o conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas”. Para a doutrina portuguesa o superendividamento é definido como “a impossibilidade do devedor de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto de suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça seria de que não possa fazê-lo no momento em que elas se tornarem exigíveis”.69 O superendividamento é, portanto, um fenômeno mundialmente reconhecido e que pode atingir pessoas físicas de diversos países, etnias, classes sociais, profissões, raças, sexo, razão pela qual não há como definir um perfil único do consumidor superendividado. O que as pesquisas brasileiras recentes demostram são as características mais frequentes desses grupos, classificando-os pela faixa etária, faixa de renda, ou direcionando as pesquisas para identificar os principais tipos de dívidas, prazo de atraso, localidade com maior incidência do fenômeno. O fato é que essa mazela social pode afetar qualquer pessoa no decorrer da vida, seja devido à imprudência, má-fé, ou em decorrência de situações adversas. A partir dessas causas a doutrina europeia classifica o consumidor superendividado em ativo – consciente e inconsciente - e passivo. 70 Essa classificação tem sido bem vista pela doutrina brasileira, sendo sugerida a sua adoção para fins de tratamento diferenciado em uma possível situação de renegociação de dívidas e repactuação de contratos de crédito. 68 BRASIL. Projeto de Lei do Senado n. , de 2012. Altera a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I e dispor sobre o comércio eletrônico. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/codconsumidor/pdf/Anteprojetos_finais_14_mar.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015. 69 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 34. 70 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 35.
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O superendividado ativo é o consumidor que se endivida voluntariamente, como reflexo do consumo exacerbado, da ampla publicidade e oferta de crédito e do uso irresponsável deste. Esta categoria subdividese em superendividado ativo consciente e inconsciente. O superendividado ativo consciente é o consumidor que faz uso da má-fé na obtenção de crédito, pois contrai dívidas que sabe que não terá condições de pagar. A intenção do devedor, desde o momento da contratação, é de não pagar. O crédito habitualmente fornecido sem uma avaliação criteriosa quanto ao comprometimento da renda do consumidor agrava esta situação. O superendividado ativo inconsciente é o consumidor que agiu impulsivamente, de modo imprevidente, pois não verificou o seu orçamento ou subestimou seu rendimento. Este consumidor se endividou por inconsequência, mas não com dolo de enganar, efetuando compras por impulso, geralmente de supérfluos. O crédito muito facilitado é uma tentação constante. O superendividado passivo é caracterizado como aquele consumidor que se endivida em decorrência de situações externas imprevisíveis e urgentes, tais como acidentes, doença em pessoa da família, desemprego, diminuição do salário, aumento dos membros da família que dependam economicamente desse consumidor, conjuntura econômica desfavorável. São casos de inequívoco imprevisto financeiro e que acabam por comprometer o seu mínimo existencial e de sua família. Esta classificação tem utilidade prática em tribunais estrangeiros, pois interfere nas decisões quanto ao apoio ou não dos que contraíram dívidas excessivas71, podendo também ser de grande valia à jurisprudência brasileira, a fim de reafirmar a importância de institutos jurídicos, motivar fundamentadamente as decisões judiciais e nortear a interpretação de cláusulas de contratos de crédito. O amplo acesso ao crédito e à publicidade maciça, aliados a evolução da industrialização moderna e produção em massa, rotineiramente propiciam um ambiente de consumo indiscriminado, uma vez que é comum a associação da felicidade e realização pessoal ao consumo de bens e serviços. Existe uma dicotomia sobre o uso do crédito. Por um lado, a utilização do crédito disponível pode ser positiva, uma vez que permite às pessoas pagarem suas despesas utilizando rendimentos futuros e movimentando a economia do país. No entanto, os efeitos negativos do uso indiscriminado do crédito, que culmina com o superendividamento, são amplamente percebidos no dia-a-dia dos indivíduos, que tendem a ser menos produtivos, a apresentar estresse e outros problemas de saúde e sentimento de insegurança econômica, o que reflete na sua vida familiar e social, com aumento dos divórcios e até mesmo negligência na educação dos filhos. Para orientar os consumidores acerca do uso sustentável do crédito disponível no mercado e enfrentar o fenômeno social do superendividamento é necessário a mobilização da sociedade, a fim de fomentar o consumo do crédito consciente, especialmente baseado no planejamento financeiro. É indispensável buscar uma regulação efetiva e específica, que permita responsabilizar adequadamente as partes envolvidas - consumidor e fornecedor - desde a fase da pré-contratação, mediante criteriosa avaliação de risco e com publicidade ampla de informações claras e objetivas, até a fase do pagamento. E, se necessário, admitir a flexibilização das cláusulas contratuais para renegociação das dívidas, com vistas ao adimplemento da obrigação de uma maneira viável em face da nova realidade financeira do consumidor. 2.2 MODELOS DO DIREITO COMPARADO 71 SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, v.16, n. 26, p.175. 2009. Disponível em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/36/34>. Acesso em: 09 jul. 2015. Revista do Curso de Direito
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Para enfrentar o fenômeno social e jurídico do superendividamento, alguns países se viram obrigados a desenvolver uma regulamentação específica para a proteção do consumidor de crédito, atuando numa frente preventiva, mas também apoiando o consumidor já superendividado, seja na suspensão, na renegociação e, em alguns casos, até com o perdão total da dívida. A doutrina identifica basicamente dois modelos distintos. Importa frisar que a simples dicotomia entre as estratégias e seus paradigmas não é mais suficiente para distanciá-los, pois existe uma forte tendência mundial de adoção de modelos híbridos, mistos de tratamento do superendividamento. O primeiro modelo, conhecido como fresh start, é adotado nos países de tradição common law, tais como Estados Unidos da América, Inglaterra e Canadá. O segundo modelo é adotado nos países europeus, de tradição civil law, também chamado de modelo reeducativo, tem a França como seu principal e mais rígido expoente. No modelo americano o fenômeno do superendividamento é visto como uma falha do mercado e não do devedor. A principal medida concretizadora da sua filosofia é conceder ao devedor honesto o perdão imediato e incondicional de suas dívidas, na visão mais clássica, em troca de liquidação de patrimônio disponível, se houver. Pode-se afirmar que o sistema americano não privilegia o aspecto educativo e, tampouco, a força dos contratos pactuados. O rendimento do devedor assume importante função econômica, já que é incentivado a arriscar-se a fazer novos investimentos e consumir mais crédito. Não há que se falar em análise da boa-fé do devedor e das razões fáticas que o levaram a situação de superendividado, uma vez que a principal preocupação do sistema é apenas o bom funcionamento do mercado, não atento a condição da dignidade humana do devedor.72 No modelo francês existe uma orientação social, pois o superendividamento é visto como uma falha pessoal e por isso deve o devedor ser submetido a uma rigorosa responsabilização pelo pagamento das dívidas, sem deixar de ser uma reeducação de cunho solidário. Ao invés do simples perdão, o instrumento é o plano de pagamento escalonado, sendo o perdão concedido apenas como medida extrema em benefício de devedores em situação irremediável. Nesse sistema se analisa e discute a boa-fé e as razoes que levaram o devedor ao superendividamento. Inclusive, há diferenças consideráveis nos tratamentos dispensados aos consumidores superendividados, a depender do que ocasionou tal situação, do tipo de comportamento que o devedor tenha em face dos credores e da demonstração da vontade de adimplir suas dívidas e se reabilitar. O propósito dos sistemas existentes é a adoção de uma política de recomeço e reabilitação para o consumidor superendividado, a fim de evitar ao máximo as perdas pessoais, familiares, sociais e econômicas. Por conseguinte, a principal linha de atuação contemporânea de ambos os sistemas é no sentido de não excluir o consumidor da sociedade e de orientá-lo para que não gaste mais do que precisa e que pode pagar. Entretanto, ocorrendo o superendividamento, que seja concedida ao devedor uma alternativa condizente com suas possibilidades para quitar as dívidas, prevenindo situações de problemas de saúde, desajustes de ordens familiar, social e econômica, além de garantir a dignidade humana do consumidor superendividado e de sua família.
72 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 100 - 128.
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2.3 O SUPERENDIVIDAMENTO NO BRASIL E O CONSUMO RESPONSÁVEL DO CRÉDITO A expansão e democratização do crédito no Brasil não foram acompanhados com a melhoria da informação e conscientização do consumidor. Ao contrário, o consumidor é constantemente incitado a aceitar a oferta excessiva de crédito pessoal e consignado, inclusive por mensagens eletrônicas (SMS, e-mail), além de créditos específicos para financiamento de habitação, de veículos, de bens duráveis, de cartões de crédito para construção, viagens e despesas diárias. Para incrementar o consumo do crédito as instituições promovem campanhas para divulgar Programas de Recompensas no uso do Cartão de Crédito e a Portabilidade de Crédito, que consiste na possibilidade de o consumidor transferir operações de crédito - como empréstimos e financiamentos - de uma instituição financeira para a outra, com a quitação do empréstimo junto à instituição original, em busca de melhores taxas.73 Ainda que o superendividamento não se confunda com a mera inadimplência, certamente são fenômenos intimamente relacionados. Diversas instituições fazem pesquisas e acompanhamento da inadimplência, que permitem estimar a situação do superendividamento no Brasil e, para as instituições financeiras, permitem traçar novas estratégias de mercado. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) efetua mensalmente a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), coletando dados em todas as capitais dos Estados e no Distrito Federal, que alimentam indicadores como o percentual de consumidores endividados, percentual de consumidores com contas em atraso, percentual de consumidores que não terão condições de pagar suas dívidas, tempo de endividamento e nível de comprometimento da renda. É uma pesquisa que mostra o nível de comprometimento do consumidor com suas dívidas, bem como a percepção do consumidor em relação a sua capacidade de pagamento, complementando informações de outros indicadores nacionais de crédito e inadimplência.74 O Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), patrocinado pelas associações comerciais, especificamente as Câmaras de Dirigentes Lojistas, apresenta estudos relacionados à inadimplência com variações mensais e anuais, mostrando resultados relacionados à faixa etária, tempo de atraso da dívida, região, setor credor.75 A SERASA EXPERIAN, que é parte integrante do grupo Experian e líder mundial em serviços de informação, possui o Indicador de Inadimplência, acompanhado conforme variação mensal, variação anual, variação acumulada anual, variação acumulada de 12 meses. Como exemplo da análise, o estudo efetuado sobre a inadimplência por idade mostra que os inadimplentes acima de 61 anos aumentaram em relação a maio de 2014, passando de 11,8% para 12,2% em maio de 2015, sendo um dos fatores o crescimento do volume de crédito consignado concedido de 2014 para 2015.76 A Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), a principal entidade representativa do setor bancário brasileiro, mantém informações relacionadas à atividade bancária, dispondo de diversos relatórios e informes 73 BANCO CENTRAL DO BRASIL. FAQ Portabilidade. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?PORTABILIDADEFAQ>. Acesso em 16 jul. 2015. 74 CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO COMERCIO DE BENS, SERVICOS E TURISMO. Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC). Disponível em: <http://www.cnc.org.br/central-do-conhecimento/pesquisas/economia/pesquisa-nacional-de-endividamento-e-inadimplencia-do-c-7>. Acesso em 12 jul. 2015. 75 SPC BRASIL. Dívidas em atraso crescem em todas as regiões brasileiras. 23/06/2015. Disponível em: <https://www.spcbrasil.org.br/>. Acesso em 12 jul. 2015. 76 SERASA EXPERIAN. Indicador de inadimplência das pessoas físicas que sensibilizaram a base de dados da Serasa Experian. Disponível em: <HTTP://NOTICIAS.SERASAEXPERIAN.COM.BR/INDICADORES-ECONOMICOS/INADIMPLENCIA-DO-CONSUMIDOR/ Revista do Curso de Direito
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baseados no “compromisso de fortalecer o sistema financeiro e suas relações com a sociedade e contribuir para o desenvolvimento econômico, social e sustentável do País. ”77 O Banco Central do Brasil (BACEN) possui o Sistema de Informações de Crédito (SCR), que consiste num banco de dados alimentado mensalmente pelas instituições financeiras sobre operações e títulos de crédito. É um instrumento de gestão de crédito, que beneficia as instituições financeiras pela ampliação do conhecimento acerca de seus clientes, viabilizando a análise de vários aspectos na avaliação de riscos, mediante a compreensão do nível de endividamento e do perfil de pagamento dos clientes. Nota-se que existe atualmente um maior intuito das instituições e entidades em disponibilizar informações acerca do uso sustentável e responsável do crédito e, igualmente, de formas de prevenção do superendividamento. É possível encontrar em diversos sites informações, dicas, simuladores e guias voltados para a educação financeira e uso consciente do crédito, conquanto tais informações não são suficientes para a prevenção do superendividamento do consumidor brasileiro. Em dezembro 2010 foi publicado o Decreto 7.397 que instituiu a Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF): Art. 1º Fica instituída a Estratégia Nacional de Educação Financeira - ENEF com a finalidade de promover a educação financeira e previdenciária e contribuir para o fortalecimento da cidadania, a eficiência e solidez do sistema financeiro nacional e a tomada de decisões conscientes por parte dos consumidores.78
Como resultado, foi criado o Programa Educação Financeira nas Escolas, coordenado pela Associação de Educação Financeira do Brasil (AEF-Brasil), instituição sem fins lucrativos, que tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento da cultura de planejamento, prevenção, poupança, investimento e consumo consciente, promovendo o fomento da Educação Financeira no Brasil.79 A educação financeira é uma importante ação preventiva no combate ao superendividamento, na medida em que propicia a população uma melhor compreensão dos produtos financeiros disponíveis no mercado. Ademais, possibilita ao consumidor a tomada de decisões mais conscientes dos riscos, efetuando escolhas responsáveis e sustentáveis em relação à administração dos seus recursos. Mesmo quando já superendividado, é interessante que o consumidor seja financeiramente educado visando acautelar situação futura similar.
3 TRATAMENTO JURÍDICO ATUAL E A PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO DO CDC Devido às mudanças sociais e econômicas vivenciadas no país nos últimos anos, simultaneamente a massificação da produção, da distribuição e do consumo, tornou-se necessária a adequação de antigos dogmas, visando instituir a ideia de função social dos contratos no direito privado, envolvendo o reconhecimento da dignidade da pessoa humana e flexibilizando normas e princípios de Direito Civil. 77 FEBRABAN. Guia do Uso Consciente do Crédito. Disponível em: <http://www.febraban.org.br/7Rof7SWg6qmyvwJcFwF7I0aSDf9jyV/sitefebraban/Guia%20do%20Uso%20Consciente%20do%20Cr%E9dito.pdf>. Acesso em 16 jul. 2015. 78 BRASIL. Decreto Nº 7.397, de 22 de dezembro de 2010. Institui a Estratégia Nacional de Educação Financeira - ENEF, dispõe sobre a sua gestão e dá outras providências. Diário Oficial da União (DOU) de 23 de dezembro de 2010. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7397.htm>. Acesso em 16 jul.2015. 79 BRASIL. Programa de educação financeira nas escolas. Disponível em: <http://www.edufinanceiranaescola.gov.br/o-programa/>. Acesso em 15 jul.2015.
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Conexo ao supra princípio da dignidade da pessoa humana surgiu a concepção de mínimo existencial. Esse conceito originou-se no período pós Segunda Guerra e teve sua primeira elaboração dogmática feita por Otto Bachof, na Alemanha.80 O mínimo existencial simboliza uma garantia à liberdade da vida humana, aliada a um mínimo de segurança social e condições de subsistência. Seu conteúdo, amplamente adotado por doutrina e jurisprudência brasileiras, é limitado por condições socioeconômicas de espaço e tempo, implicando em ir além da mera sobrevivência física humana. Garantir o mínimo existencial significa abranger um conjunto de garantias materiais a uma vida condigna, referindo-se, simultaneamente, a uma dimensão negativa (o que não se pode subtrair do indivíduo) e outra positiva (o que se deve proteger e garantir efetivamente ao indivíduo).81 Ressalte-se que o mínimo existencial não se confunde com o núcleo essencial dos direitos sociais, mas representa um princípio orientador de ponderação e interpretação dos demais direitos fundamentais, com vistas a garantia da dignidade humana. Entretanto, a quantificação do valor adequado para garantia do mínimo existencial é passível de grande controvérsia e subjetividade. Sabe-se que valores humanos e condições materiais de subsistência abrangem o mínimo existencial, todavia, a grande dificuldade prática é encontrar o núcleo essencial dessa garantia fundamental, sem que se faça uma análise puramente casuística. Partindo da premissa de que as relações privadas, mormente as de consumo, devem igualmente respeitar e garantir tanto a dignidade da pessoa humana quanto a sua instrumentalização pelo mínimo existencial, importa analisar o tratamento jurídico dispensado ao superendividamento no Brasil e as propostas de alteração do microssistema do Código de Defesa do Consumidor acerca do tratamento e prevenção do fenômeno. O Código de Defesa do Consumidor - CDC - Lei n. 8.078/1990 é formalmente uma lei ordinária caracterizada pela extensa função social que exerce, posto que regulamenta as relações de consumo, tutelando um grupo específico de indivíduos, agentes econômicos vulneráveis, quais sejam, os consumidores. Tal microssistema tem origem constitucional e traz em seu bojo normas de direito privado, embora de ordem pública, e normas de direito público. O superendividamento no Brasil tem sido crescente e notório. As mudanças das relações de consumo fizeram com que o crédito, amplamente disponível e promovido no mercado, se tornasse a principal mercadoria nos dias atuais. Considerado um meio de inclusão social e mecanismo que possibilita movimentação na economia do país, a oferta de crédito permite à população ter acesso a mais bens e serviços. Ademais, em diferentes situações, é possível recorrer ao crédito como uma alternativa para o início ou o desenvolvimento de um negócio. Contrariamente, a oferta maciça de crédito pode se apresentar como mecanismo de exclusão social, especialmente para a população de baixa renda. Em decorrência do aumento da necessidade de consumo e da facilidade de atendimento dessa necessidade, o cidadão assume múltiplas dívidas, oriundas de diferentes naturezas. O acúmulo excessivo de dívidas, associado a pouca instrução quanto ao planejamento dos gastos e informações não muito claras quanto aos encargos daí decorrentes, acabam por comprometer o seu mínimo existencial e de sua família. 80 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina do TRF4, Porto Alegre, ed.24, 02 jul.2008. Disponível em: <http://www.revistadoutrina. trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana.html.>. Acesso em 10 jul. 2015. 81 Id.; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 575. Revista do Curso de Direito
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Embora vivenciando um período de crise financeira mundial, o consumo tem sido fortemente estimulado nos últimos anos, inclusive pelo Governo Federal, A título de exemplo é possível mencionar a diminuição de taxas de juros nos bancos estatais (CAIXA Melhor Crédito) e de impostos de eletrodomésticos e carros em passado recente. Esse estímulo também se materializa com a possibilidade de aumento do crédito no mercado, como recentemente se observou com a edição da Medida Provisória 681, de 13 de julho de 2015.82 Por intermédio dessa medida provisória, ampliou-se a margem consignável de desconto em folha para 35 %, sendo o novo limite de renda válido para empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aposentados, pensionistas e servidores públicos. O desconto é para o pagamento de empréstimos, financiamentos, cartão de crédito e operações de arrendamento mercantil (leasing), sendo que 5% desse novo limite será reservado exclusivamente para pagamento de despesas contraídas por meio de cartão de crédito, que atualmente é de onde advém a maior parcela dos casos de superendividamento. O governo interpreta que tais medidas significam uma alternativa para que o trabalhador melhor se planeje e se adapte ao ajuste da economia. O Ministério da Fazenda alega que consignar em folha os pagamentos de cartão de crédito tornaria a operação mais segura para as instituições financeiras, o que demostra claramente uma intenção de amenizar as responsabilidades do oferecedor de crédito em detrimento do consumidor, muitas vezes já superendividado. O ideal seria que o cidadão soubesse avaliar suas reais necessidades frente à forte publicidade e à facilidade de adquirir bens e serviços, fazendo uso consciente e responsável do crédito. Embora o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil vigentes disponham sobre princípios e condutas norteadores da proteção ao consumidor, tais como a boa-fé objetiva e o dever de informação, o Brasil ainda carece de legislação suficiente para o tratamento do consumidor superendividado e as relações consumeristas de crédito. Diante da preocupação doutrinária e legislativa e da necessidade social de atualização dessas normas consumeristas, em 2012 criou-se um Projeto de Lei ordinária no Senado Federal sobre atualização de vários dispositivos do CDC, com estudo aprofundado e amplo debate. O Projeto de Lei Ordinária do Senado Federal n. 283/2012, de autoria do senador José Sarney, foi apresentado originalmente em 02.08.2012. Seu escopo é alterar a Lei n. 8.078/1990 (CDC) no que tange ao aperfeiçoamento da disciplina do crédito ao consumidor e prevenção e tratamento, extrajudicial e judicial, do superendividamento. Busca-se, por intermédio de um maior detalhamento das obrigações contratuais e deveres anexos aos contratos, promover o acesso responsável ao crédito, a prevenção ao superendividamento e a garantia da proteção do consumidor superendividado e seu mínimo existencial, conforme preceitua o supra valor da dignidade da pessoa humana. Uma grande conquista social desse Projeto é a possibilidade do consumidor superendividado ter direito a uma análise global de sua situação pelo Poder Judiciário pois, anteriormente, o máximo que conseguia era a revisão individual das cláusulas do contrato de crédito. Exalta-se a importância da conciliação prévia, para facilitar uma solução mais amigável e rápida, mesmo que não impeditiva do direito de buscar uma solução perante o Poder Judiciário. Com a renegociação da dívida, a preservação da dignidade humana do consumidor superendividado, o estabelecimento do valor do mínimo existencial diante das peculiaridades concretas e contexto social em que se insere esse consumidor, a tendência é tornar o sistema de falência civil pretendido mais inclusivo e solidário. 82 BRASIL. Medida Provisória nº 681, de 10 de julho de 2015. Diário Oficial da União (DOU) de 13 de julho de 2015. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/95599956/dou-secao-1-13-07-2015-pg-1>. Acesso em 14 jul. 2015.
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O Projeto propõe, igualmente, maior responsabilidade do fornecedor de crédito, pois este passaria a ter a obrigação de não ocultar os ônus e riscos da contratação do crédito, e o dever de não estimular o endividamento excessivo e irresponsável do consumidor. No caso do consumidor já superendividado o fornecedor de crédito, apesar do interesse em receber e lucrar, deve garantir a proteção da dignidade da pessoa humana, por meio do respeito ao mínimo existencial, do direito à repactuação de dívidas, remanejamento de prazos de cobranças, juros e multas e uma modificação contratual adequada a nova realidade fática. O objetivo maior dessa atualização normativa é prevenir novos casos de superendividamento, mas, simultaneamente, encontrar formas de reinserir o consumidor superendividado no mercado de consumo, desde que de maneira mais consciente e responsável, mediante um programa de educação financeira. 83 Busca-se garantir a efetiva tutela do consumidor na prevenção e nas fases da oferta, da contratação e da conciliação, abrangendo o fenômeno do superendividamento em seus diversos aspectos e nuances, desde a publicidade até a renegociação da dívida, regulando de forma eficaz o antes, o durante e o depois da aquisição do crédito. O Projeto de Lei n. 283/2012 ainda não concluiu o percurso de tramitação legislativa. Em maio de 2015 se encontrava na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ – e contava com 44 emendas. Ressalte-se que a emenda n. 43 foi considerada o texto substitutivo ao Projeto de Lei do Senado n. 283/2012, pois a n. 44, de autoria do senador Romero Jucá, aborda apenas um dispositivo sobre ação coletiva, qual seja, o art. 104-A. Por fim, deve ser destacado que tal Projeto de Lei representa uma necessidade social urgente de reequilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores de crédito.
CONCLUSÃO A dignidade da pessoa humana é um princípio considerado vetor interpretativo de todo o ordenamento jurídico pátrio e está consagrado na Carta Magna como um fundamento do Estado Democrático de Direito. Partindo dessa premissa, é incontroverso que deve ser respeitado em todas as relações humanas, sejam públicas ou privadas. A constante evolução das relações consumeristas desencadeou a necessidade de atualização do CDC, inclusive para analisar o superendividamento crescente da sociedade brasileira e o tratamento a ser dispensado aos consumidores superendividados, igualmente merecedores da tutela da sua dignidade de pessoa humana. O superendividamento é um fenômeno social que decorre, em meio a outros fatores múltiplos e complexos, do capitalismo moderno; da excessiva publicidade e oferta de crédito; do incentivo governamental ao consumo; da pouca ou inexistente educação e planejamento financeiro da maior parte da sociedade. O superendividamento é uma vicissitude que prejudica não apenas o consumidor e a sua família, mas igualmente o credor, a economia, e a sociedade como um todo. O consumidor superendividado é levado a situação de indignidade humana, na medida em que acaba por se submeter ao pagamento perpétuo de uma dívida insolúvel, é excluído do mercado de consumo e tem seu poder de compra reduzido a ínfimas possibilidades. A compreensão desse fenômeno supõe a análise das suas causas, espécies e consequências práticas, sendo pertinente a constatação e classificação das situações de insolvência da pessoa física, ou seja, dos motivos fáticos que levaram os consumidores à situação de superendividados. 83 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.158. Revista do Curso de Direito
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Sendo um problema contemporâneo de ordem social e econômica, deve ser objeto de prevenção e, quando necessário, de tratamento pelo Estado, a fim de remediá-lo. Na busca por alternativas, no estudo de direito comparado são encontrados dois modelos para prevenção e tratamento dessa causa de desequilíbrio em que consiste o superendividamento. Conhecidos como modelo francês e modelo americano, embora partam de premissas diversas, têm por finalidade prevenir e sanear o fenômeno do superendividamento, realocando o consumidor no mercado de consumo. Na busca por uma legislação condizente com as recentes necessidades sociais, principalmente no que concerne ao consumo de crédito e situações de prevenção e tratamento do superendividamento, originou-se, no âmbito do Senado Federal, uma proposta de atualização do CDC. A finalidade precípua seria prevenir novas situações de superendividamento, fomentando a educação financeira de toda a sociedade e limitando a oferta maciça de crédito. Todavia, quando já instalado o problema, deve-se buscar a satisfação do crédito e o implemento da obrigação, com a devida apuração da responsabilidade do consumidor e do fornecedor, respeitando a condição digna de pessoa humana do consumidor superendividado e o mínimo existencial adequado a sua sobrevivência e de sua família. O Projeto de Lei n. 283/2012 do Senado Federal objetiva definir alguns conceitos e características sobre o superendividamento, contribuindo para sanear os desajustes sociais dele decorrentes. Ademais, visa ampliar o âmbito de intervenção judicial e suprir o ordenamento jurídico pátrio com alternativas para o enfrentamento do fenômeno. Inspirado nos modelos e instrumentos existentes no direito comparado e na busca por adaptá-los às necessidades brasileiras de consumo de crédito, a aprovação e sanção desse Projeto de Lei representa inegável avanço social no tratamento do superendividamento no Brasil sob a ótica da dignidade da pessoa humana.
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SUPERENDIVIDAMENTO DOS CONSUMIDORES: ANÁLISE DO SUPERENDIVIDAMENTO DECORRENTE DE CONTRATOS DE CRÉDITO AO CONSUMO. Gabriela Brandão Sé
RESUMO Este artigo aborda o superendividamento dos consumidores como um fenômeno econômico-social, que se propaga na sociedade brasileira como consequência do aumento da oferta de crédito às pessoas físicas e da ausência de tutela legal específica destinada a tratar os casos mais crônicos de endividamento. Nas palavras de Cláudia Lima Marques84, o superendividamento se caracteriza com “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, leigo e de boa-fé, pagar suas dívidas atuais e futuras de consumo”, sendo capaz de excluir o indivíduo vulnerável do mercado de consumo, abalar o seu mínimo existencial e sua dignidade. O artigo foi elaborado com metodologia de pesquisa bibliográfica, com cunho teórico. Revela-se um panorama geral de mecanismos de prevenção, proteção e tratamento do superendividamento dos consumidores, necessários para amenizar os desequilíbrios vivenciados no mercado de consumo. Constata-se a importância da atualização da Lei nº 8078/90 – Código de Defesa do Consumidor – com a inclusão de dispositivos que assegurem práticas mais responsáveis no uso do crédito, bem como o tratamento das situações de superendividamento existentes. Avalia-se a pertinência do Projeto de Lei nº 283/2012, que tramita no Congresso Nacional, com a perspectiva de inclusão de dispositivos legais que adequem o microssistema consumerista às novas demandas sociais. Palavras-chave: consumidor, crédito, superendividamento, prevenção, proteção, tratamento, normatização.
ABSTRACT This article boards the over-indebtedness of the consumers as a social-economical phenomenon, which is propagated in the Brazilian society like consequence of the increase of the offer of credit to the individual entities and of the absence of specific legal protection when the most chronic cases of debt, able to exclude the vulnerable individuals of the market of consumption, to compromise his existential minimum and to shake his dignity destined being treated. In the words of Claudia Lima Marques, the over-indebtedness is characterized with “the overall failure of the debtor individual layperson in good faith, pay your current and future debts consumption”, being able to delete the vulnerable individual consumer market, shake your existential minimum and dignity. The article was prepared having as methodology the literature, theoretical nature. There is revealed a general view of mechanisms of prevention, protection and treatment of the over-indebtedness of the consumers, necessary ones to ease the imbalances survived in the market of consumption. Notes the importance of the updating of the Law nº 8078/90 – Code of Defense of the Consumer – with the inclusion of devices that should secure more responsible practices in the use of the credit, as well as the treat
84 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 260. Revista do Curso de Direito
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ment of the existent situations of over-indebtedness. There values the relevance of the Bill nº 283/2012, which goes through the procedure in the National Congress, with the perspective of inclusion of legal devices that adapt the market of consumption to the new social demands. Key words: consumer, credit, over-indebtedness, prevention, protection, treatment, legislation. 1 INTRODUÇÃO Este artigo tem como objeto uma análise jurídica do superendividamento dos consumidores, avaliando aspectos positivos e negativos da expansão do uso do crédito e seus efeitos, os atuais instrumentos existentes para tratar a falência civil do consumidor e as propostas de atualização da legislação consumerista, com vistas a garantir o uso do crédito de forma responsável. A discussão deste tema encontra precedentes na França (surendettement), em Portugal (sobreendividamento), nos EUA, Reino Unido, Canadá (over-indebtedness) e na Alemenha (Überschuldung), por meio de legislações específicas que tratam a questão, a fim de amenizar os desequilíbrios vivenciados no mercado de consumo. O superendividamento é um fenômeno econômico-social que atinge parcela relevante da população brasileira, e necessita de contraposição normativa, definindo o instituto e seu alcance, tanto no âmbito material quanto processual. No Brasil, a abertura do mercado de crédito aos consumidores ocorreu a partir de meados da década de noventa, com a edição do plano Real e, mais acentuadamente nos últimos quinze anos, multiplicando-se as formas de concessão do crédito, as instituições que o concedem, os bens e os serviços que por meio dele podem ser adquiridos e, consequentemente, os riscos de insolvência ou superendividamento. Os reflexos da Revolução Industrial também mudaram os hábitos de consumo da sociedade, haja vista a dinâmica empresarial centrada na produção e distribuição de bens e serviços em larga escala, em substituição à anterior produção artesanal. Em resposta a este novo cenário, surgiram os contratos de adesão, instrumentos padronizados aptos a fazer frente às exigências de agilidade, segurança e praticidade, que trouxeram como uma de suas mais relevantes consequências a uniformização das negociações, onde o homem é tratado como um ser anônimo e despersonalizado. Ademais, o tempo é um elemento que alterou substancialmente o modo de avaliar as obrigações modernas, pois muitas contratações que eram realizadas de forma instantânea, passaram a se alongar no tempo (ex. aquisição de bens industriais através do leasing), o que exige um grau de informação mais elevado por parte do consumidor. Embora seja inegável que o acesso ao crédito constitui ferramenta indispensável para o desenvolvimento econômico, a grande complexidade das formas de contratação, bem como a série de riscos, custos e responsabilidades envolvidas, acaba por prejudicar a compreensão do consumidor a respeito das condições dos negócios, dificultando sua avaliação quanto a real capacidade de assumir compromissos. Nesse contexto, o endividamento que preocupa o mundo todo nas décadas mais recentes deriva do aumento dos recursos necessários para suportar as despesas corriqueiras, do crédito adiantado sob a forma de cartões de crédito ou de cheque especial, sem garantias reais, para prover a subsistência. Não são poucos que se endividam com a manutenção da vida diária ou com serviços indispensáveis que já não são providos pelo Estado ou que nunca o foram apropriadamente. 52 Faciplac
Assim, o crédito tornou-se uma mercadoria, e como tal, é anunciado e promovido em diversas modalidades, entre elas a crescente oferta de cartões de loja, chamados pelos empresários de private label (selo próprio). Quando são oferecidos à clientela, o principal argumento é a facilidade de pagamento sem juros por 8, 10, 12 meses. A maioria não informa, porém, o valor dos encargos que chegam a 22,6% ao mês ou 1.059% ao ano. Os custos aos consumidores são definidos por técnicos do Banco Central como inaceitáveis, é um quadro de abuso. Não é à toa que esses cartões estão no topo do ranking de reclamações dos órgãos de proteção do consumo. Ao lado desta crescente oferta, a publicidade é utilizada como mecanismo apto a despertar novos hábitos de consumo na sociedade, substituindo as informações sobre as características dos produtos ofertados por apelos emocionais com o intuito de incentivar sua aquisição. Tamanha é a influência das mencionadas mensagens publicitárias que, ainda que não disponha de recursos imediatos para satisfazer sua necessidade de adquirir, o consumidor encontra no crédito ao consumo – cada vez mais facilitado dentre as diversas classes sociais – o caminho para concretizar seus sonhos de consumo. Neste contexto, espera-se dissuadir o pensamento de que somente o consumidor é responsável por sua condição de superendividado, tecendo considerações sobre a influência de fatores sociológicos, éticos, políticos e econômicos no desenvolvimento das relações consumeristas. Trata-se de fenômeno que é fruto da sociedade de massas, da era do excesso, onde o consumo é cada vez mais incentivado e a pessoa humana é vista como um potencial de compra. O artigo aponta importantes princípios constantes da Lei nº 8.078/1990 - Código de Defesa do Consumidor - que contribuem para a adequação das práticas consumeristas às estimas sociais. No entanto, as disposições legais atualmente existentes não têm sido suficientes para fazer frente ao surgimento de novas situações de superendividamento, diante das particularidades concernentes ao tema em análise, exigindo medidas mais enérgicas do legislador brasileiro, a exemplo do que já ocorre nos sistemas jurídicos de outros países. Com este enfoque, será analisado o Projeto de Lei nº 283/2012, que visa a alteração da Lei nº 8.078/1990, para disciplinar a concessão de crédito ao consumidor e dispor sobre a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento, buscando a garantia do mínimo existencial e da dignidade humana.
2. SUPERENDIVIDAMENTO 2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA O consolidado modelo de economia de mercado capitalista, em face da escala mundial de produção, propiciou o encorajamento dos consumidores a se favorecerem da cultura do endividamento, diante da multiplicidade de bens e serviços ofertados incessantemente, de forma facilitada, caracterizando a atual sociedade como de consumo massificado. Essa atual fase do capitalismo, denominada de fase financeira, obteve sucesso em função de se fazer Revista do Curso de Direito
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acompanhar por uma espécie de open credit society, utilizando a concessão de crédito como um mecanismo indutor do consumo, que desvincula a aquisição de produtos ou obtenção de serviços do pronto pagamento, sendo responsável por grande parte da movimentação econômica da atualidade. O crédito85, quando fornecido com responsabilidade e utilizado conscientemente pelo consumidor, viabiliza a inclusão social da população com menos possibilidades econômicas ou, simplesmente, promove maior segurança e conforto para o consumidor nas suas compras, contribuindo para o aumento do bem-estar dos indivíduos e das famílias.86 Entretanto, o aumento do volume de operações financeiras, a extensão a todos os setores da vida econômica e os financiamentos em longo prazo conduzem, gradativamente, o consumidor leigo e vulnerável à impossibilidade de manutenção e garantia do mínimo existencial, o “reste a vivre”, indispensável à subsistência do devedor, considerando sua renda e o valor dos débitos vencidos e a vencer87. Não raro, as contratações financeiras são realizadas sob uma pluralidade de formas, simultaneamente, sem, contudo, haver uma avaliação da real capacidade de adimplemento do conjunto das obrigações contratuais pelo consumidor. Como afirma Maria Manuel Leitão Marques88, o crédito “democratiza” o acesso a certos bens, mas não aumenta os rendimentos, daí a necessidade de uma cuidadosa atenção frente à inexistência de leis consumeristas neste âmbito específico. Nas palavras de Heloísa Carpena e Rosângela Cavallazzi89, o crédito para o consumo é um motor do processo capitalista, pois financia a atividade econômica; por outro lado, é fonte de abusos por parte dos fornecedores, ensejando a elaboração de normas disciplinadoras dessa relação. Na visão de Adam Smith, seria possível uma noção econômica do homem (o homo economicus). Mas a crise de liquidez e de solvabilidade gerada pelo consumo inconsequente conduz o consumidor ao endividamento crônico, um problema social grave, espelho da exclusão social, criando uma nova espécie de morte civil, que é o falecimento do homo economicus.90 Os desejos de consumo dos indivíduos são objeto de estudo da sociologia do direito. O sociólogo alemão moderno, George Simmel91, afirmava que o ser humano é um ser dualístico por essência, o que faz com que suas ações sejam direcionadas por estes impulsos antagônicos e plurais, de integração social, que denominava “Sozialismus”, e de satisfação pessoal, que denominava “Individualismus”. É neste contexto que Gilles Lipovetsky92 desenha uma “sociedade-moda”, fundada na “cultura que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o florescimento pessoal, 85 O crédito é conceituado por De Plácido e Silva, do seguinte modo: derivado do latim creditum, de credere (confiar, emprestar dinheiro). Crédito em sua acepção econômica significa a confiança que uma pessoa deposita em outra a quem entrega coisa sua, para que, em futuro, receba dela coisa equivalente.[...] Charles Gide o considera como uma alargamento da troca, definindo-o como ‘a troca de uma riqueza presente por uma riqueza futura. [...] O crédito se constitui, na realidade comercial, sob as modalidades de vendas a prazo ou de empréstimos (SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.397). 86 MARQUES, Cláudia Lima. Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, v.18, p. 53. 87 CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 332. 88 MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 08. 89 CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.55, p. 134. 90 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007, p.35. 91 Apud BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007, p.35. 92 LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004, p. 61.
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coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do conforto e do lazer.” Este sentimento constante de sedução atua como fonte legitimadora da já identificada “sociedade do superendividamento”, vista na condição de fenômeno de massa capaz de desestabilizar a ordem política, econômica e social. A proteção do consumidor, em uma sociedade endividada, passa a representar um valor social, ensejando reflexões sobre a função social da concessão de crédito, funcionalizando os conceitos, que deixam de ser um fim em si mesmo e passam a ter uma tarefa instrumental e a servir como parâmetro de interpretação e de aplicação das diretrizes normativas. 93 Uma das funções do direito privado é a proteção da pessoa em face dos desafios da sociedade globalizada e informatizada, deslocando o foco patrimonialista e voltando-se para a pessoa e a coletividade. O reconhecimento do papel do consumidor na sociedade (art.5º, XXXII, da CF/88) e a necessidade de sua proteção no mercado (art. 170, V, da CF/88) são elementos indispensáveis no contexto das relações sociais de consumo. 2.2 CONCEITO JURÍDICO As condições da sociedade atual revelam similitudes com a sociedade feudal, na qual uma fração de trabalho já era devida antecipadamente ao senhor, ao trabalho escravo, porquanto o nosso sistema induz que a compra ocorra antes, para em seguida se resgatar o compromisso por meio do trabalho.94 Jean Baudrillard95 explica, entretanto, que na contemporaneidade, ao contrário do sistema feudal, ocorre uma cumplicidade: “o consumidor moderno integra e assume essa obrigação sem fim: comprar, a fim de que a sociedade continue a produzir, a fim de que se possa pagar aquilo que foi comprado”. Ao contrário da lógica cartesiana, em que o trabalho precede o fruto do trabalho como a causa precede o efeito, hoje, os objetos se antecipam à soma de esforços e ao trabalho que representam. Endividar-se significa contrair obrigações patrimoniais e possuir um saldo devedor, assim no ato de uma compra a prazo, por exemplo, o consumidor está se endividando. Tal situação, quando repetida em um número razoável de situações, acaba por aprisionar o consumidor, que fica envolto em uma órbita de dívidas que vão se tornando insolúveis, expondo-o a uma verdadeira ruína financeira.96 Todavia, dívidas contraídas a prazo não necessariamente terão reflexos negativos em um orçamento se puderem ser solvidas quando da data da quitação97, pois o superendividamento, conceituado por Cláudia Lima Marques98, somente se caracteriza com “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, leigo e de boa-fé, pagar suas dívidas atuais e futuras de consumo”. Não sendo computados, para fins de averiguação do superendividamento, os débitos fiscais, as dívidas provenientes de delitos ou de prestações alimentícias. 93 KIRCHNER, Felipe. Os novos fatores teóricos de imputação e concretização do tratamento do superendividamento de pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.65, 2008, p.107. 94 BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 169. 95 Op. cit., p.168. 96 MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006 p. 394. 97 MARQUES, Maria Manuel Leitão. et al. O Endividamento dos Consumidores. Lisboa: Almedina, 2000, p.02. 98 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006,p. 260. Revista do Curso de Direito
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O art. 2º, caput, da Lei nº 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, dispõe que consumidor “é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”, entretanto, no âmbito do superendividamento, o conceito de consumidor não abrange as pessoas jurídicas e os empresários, para os quais existe lei específica que versa sobre a Recuperação de Empresas e Falência, a Lei nº 11.101/2005.99 Ressalta-se que o consumidor deve ser pessoa física e que contrata a concessão de crédito, destinado à aquisição de produtos ou serviços que, por sua vez, visam a atender a uma necessidade pessoal, nunca profissional do adquirente. Além disso, o consumidor deve agir de boa-fé, esta compreendida não como um estado de ânimo do sujeito, mas como comportamento leal, cooperativo, correto, enfim, a boa-fé objetiva.
2.2.1 SUPERENDIVIDAMENTO ATIVO E PASSIVO Complementando a compreensão do fenômeno, a doutrina europeia classifica o superendividamento em ativo e passivo. Conceitua o superendividado ativo consciente como sendo o indivíduo que agiu com a intenção deliberada de não pagar, ou seja, o consumidor de má-fé; o superendividado ativo inconsciente, como o devedor que agiu impulsivamente ou que deixou de formular o cálculo correto no momento em que contraíra as dívidas, também identificado como um devedor imprevidente e sem malícia; e, por fim, o superendividado passivo, indivíduo que por motivos exteriores e imprevistos sofreu uma redução brutal dos recursos, a exemplo do desemprego, do divórcio, do acometimento de doenças, vistos como acidentes da vida.100 Estes consumidores de boa-fé representam um percentual de aproximadamente 70% da parcela dos superendividados, que contratam podendo e querendo pagar, mas sofrem “um acidente da vida”, independente de culpa, impossibilitando-os de solver as dívidas contraídas. Sob uma ou outra forma, o superendividamento é fonte geradora de tensões, um passo na direção da exclusão social do consumidor vulnerável. A vulnerabilidade, que não se confunde com a hipossuficiência101, desdobra-se em duas categorias: econômica e técnica. A primeira ocorre em virtude da diferença do poderio econômico do fornecedor, em relação ao consumidor, ou da essencialidade do serviço prestado102; a segunda é consequência de ser o consumidor um não profissional, ou seja, diz respeito à ausência de conhecimentos específicos em relação às características do produto ou serviço que pretende adquirir103. Além da vulnerabilidade técnica e fática ou socioeconômica, Cláudia Lima Marques104 subdivide-a em jurídica e informacional. Esta vincula-se à importância da informação e da transparência no mercado cada vez 99 O conceito de consumidor não se restringe apenas a essa disposição do caput do referido art. 2° do CDC, pode-se encontrar ainda mais três conceitos de consumidor, são os ditos consumidores por equiparação, disposto nos artigos 17, 29 e parágrafo segundo do art. 2° do referido diploma legal (KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa em juízo do consumidor. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 48). 100 MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p.237. O conceito de vulnerabilidade é de caráter material. Todo consumidor é vulnerável. De outra parte, a hipossuficiência é idéia vinculada ao processo civil. Cuida-se de pressuposto para inversão do ônus da prova pelo juiz, conforme previsão no artigo 6º, VIII, do CDC. Significa falta de condições econômicas ou até culturais de realizar a prova necessária à instrução do processo. Por esta razão, admite-se que a hipossuficiência é uma presunção relativa, enquanto a vulnerabilidade é presunção absoluta (KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 35 e 36). 102 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5 ed. São Paulo: RT, 2005, p. 325. 103 BESSA, Leonardo Roscoe. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor: análise crítica da relação de consumo. Brasília: Brasília Jurídica, 2007, p. 39 e 40. 104 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5 ed. São Paulo: RT, 2005, p. 322 e 323.
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mais dinâmico e competitivo; aquela seria a “falta de conhecimentos jurídicos específicos, de contabilidade ou economia”. O favor debilis pressupõe o reconhecimento de que alguns detêm posição jurídica mais forte, detêm mais informações, são experts ou profissionais, transferem mais facilmente seus custos e riscos profissionais para os outros, geralmente leigos, que não possuem informações sobre os produtos e serviços oferecidos no mercado, não conhecem as técnicas de contratação de massa, sendo, pois, mais vulneráveis a abusos.105 O critério do abuso não está apenas na intenção de causar danos, mas no desvio do direito de sua finalidade ou função social. O ato abusivo consiste na atuação antissocial, e a proteção das legítimas expectativas dos consumidores, a garantia do cumprimento do que ele espera obter de uma dada relação contratual, nada mais é do que a projeção do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana no âmbito obrigacional106. O ideal de igualdade estampado na Constituição Brasileira de 1988 é o aristotélico, onde a busca é do estabelecimento de uma igualdade real fundada no tratamento desigual aos desiguais107. O Estado assume um papel fundamental para garantir aos membros da sociedade a efetivação da isonomia, redimensionando seus objetivos e meios para atingi-los. Para superar a isonomia meramente formal, diante da presunção de vulnerabilidade do consumidor, é necessário limitar a liberdade de alguns, impor maior solidariedade no mercado de consumo e assegurar direitos imperativos aos mais fracos, tanto em relação ao conteúdo quanto às técnicas de contratação em massa.108 Além disso, os contratos de concessão de crédito são, via de regra, “contratos cativos de longa duração” , que geram relações contratuais que se prolongam no tempo. O consumidor tende a manter relações continuadas e muitas vezes permanentes.110 Acumulam-se, portanto, diversos débitos, o que contribui para um endividamento que supera sua capacidade de pagamento. 109
3 PROTEÇÃO JURÍDICA DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO 3.1 A TUTELA CONSTITUCIONAL A ordem econômica no Brasil tem como lastro inicial a valorização do trabalho e da livre iniciativa, considerados os esteios de sustentação do desenvolvimento econômico. É do trabalho da pessoa humana que se inicia o processo de crescimento de um país e, portanto, há liberdade de explorar o mercado e dele obter 105 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007, p.31. 106 CARPENA, Heloísa; CAVALLAZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 55, p.142. 107 O Código Civil de 2002 é um Código para iguais, um Código para civis em suas relações e para comerciantes ou empresários nas suas relações comerciais entre si. Não trata das relações de consumo, que são relações em princípio entre um leigo, civil, o consumidor, e um profissional, um empresário, o fornecedor. Para essas relações entre desiguais, relações mistas, o direito brasileiro, desde 1988 (art.48, ADCT), reservou uma proteção especial do consumidor e aplica-se prioritariamente o Código de Defesa do Consumidor, como lei especial (MARQUES, Cláudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financiamentos, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação? Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.43, p. 220). 108 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007, p.33 e 281. 109 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos bancários em tempos pós-modernos: primeiras reflexões. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.25, 1998, p.19-38. 110 LOPES, José Reinaldo Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento – uma problemática geral. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 17, p.58. Revista do Curso de Direito
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lucro. Contudo, deve-se exigir observância dos princípios fundamentais da soberania nacional, porquanto o desenvolvimento pessoal do empresário deve ocorrer vinculadamente ao desenvolvimento social111. A defesa do consumidor é princípio geral da atividade econômica (art. 170, V, CF/88)112, elevada, ainda, ao posto de direito fundamental113, no artigo 5º, XXXII, portanto, cláusula pétrea, impondo ao Estado o dever de agir no sentido de proteger a parte mais fraca da relação de consumo.114 O artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou que o Congresso Nacional elaborasse um Código de Defesa do Consumidor, dentro de 120 dias da promulgação da Nova Carta, de onde surgiu a Lei nº 8.078/90115, vinculante de todas as relações jurídicas estabelecidas entre fornecedor e consumidor no mercado. As instituições financeiras se opuseram à incidência de lei protetiva dos consumidores nos contratos bancários e ajuizaram, perante a Corte Suprema, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n. 2.591/DF) do artigo 3º, § 2º, do CDC, que considera serviço qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. Visavam a declaração de que não poderia o Estado intervir para tutelar os consumidores, sob o argumento de que exigiria disciplina por meio de lei complementar, nos termos do artigo 192 da CF/88. Tratou-se de um movimento na contramão da proteção do consumidor nos contratos de crédito.116 Esta ação foi ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF) e definitivamente julgada em 14 de dezembro de 2006, por nove votos a dois; o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da aplicação da Lei nº 8.078/90 às atividades desenvolvidas pelas instituições financeiras117, como delineado pelo Ministro Celso de Mello: Os agentes econômicos não têm, nos princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência, instrumentos de proteção incondicional. Esses postulados constitucionais (...) não criam em torno das instituições financeiras qualquer círculo de imunidade que os exonere dos gravíssimos encargos cuja imposição, fundada na supremacia do bem comum e do interesse social, deriva dos princípios e do texto da própria Carta da República.118 111 JUNIOR, Humberto Theodoro. O contrato e sua função social. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.33. 112 BOLSON, Simone Hegele. O princípio da dignidade da pessoa humana, relações de consumo e o dano moral ao consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 46, 2003, p. 269. 113 A doutrina constitucionalista, atualmente, classifica os direitos fundamentais em “gerações”, representativas de etapas de consolidação desses direitos, cujos conteúdos ensejariam os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Direitos de primeira geração ou de liberdade consagram as garantias individuais e os direitos políticos clássicos, a chamada liberdade pública. Visam inibir a interferência indevida do Estado na vida do cidadão. Os direitos de segunda geração ou de igualdade referem-se aos direitos sociais, econômicos e culturais, surgidos no início do século XX. Eram os direitos de caráter social. Neste caso, a interferência do Estado era desejada para garantir a igualdade material dos indivíduos. Direitos de terceira geração ou de solidariedade ou fraternidade são os da coletividade, de titularidade coletiva ou difusa. Entre eles, encontram-se os direitos à paz, ao meio ambiente equilibrado, à comunicação e à proteção do consumidor (DE LUCCA, Newton. Direito do consumidor: aspectos práticos. Bauru: Edipro, 2003, p. 426). 114 SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009, p.39. 115 KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 33. 116 MOURA,Walter José Faiad de; BESSA, Leonardo Roscoe. Impressões atuais sobre o superendividamento: sobre a 7ª Conferência Internacional de Serviços Financeiros e reflexos para a situação brasileira. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.65, 2008, p.160. 117 A decisão também enaltece a Drittwirkung, isto é, para a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas bancárias, entre consumidores, bancos, empresas financeiras, de crédito e seguradoras no Brasil. Veja mais sobre os efeitos da decisão do STF no artigo “A vitória da ADIn 2.591 e os reflexos no direito do consumidor bancário da decisão do STF pela constitucionalidade do Código de Defesa do Consumidor”. (MARQUES, Cláudia. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos bancos: ADIn 2.591. São Paulo: RT, 2006, p. 363-395). 118 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.591. Relator: Min. Eros Roberto Grau. DJU 29.09.2006, p.31. Disponível em: < http://stf.jus.br/portal/processo/pesquisarProcesso.asp>. Acesso em: 4 ago. 2016.
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Para Nelson Nery Júnior119, o aspecto central da problemática da consideração das atividades bancárias como sendo relações jurídicas de consumo reside na finalidade dos contratos realizados com os bancos. Havendo a outorga de dinheiro ou do crédito para que o devedor o utilize como destinatário final, há relação de consumo que enseja a aplicação dos dispositivos do CDC. Caso o devedor tome dinheiro ou crédito emprestado do banco para repassá-lo, não será destinatário final e, portanto não haverá relação de consumo. Como a experiência demonstra que a pessoa física que empresta dinheiro ou toma crédito de banco o faz para utilização pessoal, como destinatário final, existe aqui a presunção iuris tantum, de que se trata de relação de consumo, quer dizer, que o dinheiro (produto) será destinado ao consumo. O ônus de provar o contrário é do banco, quer porque se trata de presunção a favor do mutuário ou creditado, quer porque poderá incidir o art. 6º, VIII, do CDC, com a inversão do ônus da prova a favor do consumidor.120
2.1.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O princípio da dignidade da pessoa humana constitui a essência do sistema jurídico brasileiro121, organizado em um Estado Democrático de Direito, consoante estabelece o artigo 1º, III, da CF/88, reconhecendo expressamente que “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.122” O direito deve intervir nas situações em que a dívida diminua a pessoa, comprometa o seu mínimo existencial, pois a dignidade do homem não se limita à dimensão física da existência. O consumidor superendividado torna-se um excluído socialmente, passa a amargurar uma angústia existencial, uma impotência diante da vida, sobrevivendo abaixo de um padrão de dignidade.123 O Código de Defesa do Consumidor tem o propósito de instituir uma mudança de mentalidade no que diz respeito às relações de consumo, que tem de ser implementada por todos aqueles que se encontram envolvidos nessas relações, notadamente o fornecedor e o consumidor. Ao lado da ordem pública social e da ordem pública econômica, fala-se modernamente em ordem pública de proteção aos consumidores. 3.2 O SUBSISTEMA CONSUMERISTA 3.2.1 PRINCÍPIOS INFORMADORES A Política Nacional das Relações de Consumo, prevista no art. 4º do Código de Defesa do Consumidor, atua como norma-base, na busca do alcance e atendimento das normas-fim, que são os direitos básicos dos consumidores, tais como, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, 119 NERY JUNIOR, Nelson. A Defesa do Consumidor no Brasil. Revista de Direito Privado. São Paulo: RT, n.18. 2004, p. 253.
120 JUNIOR, Nelson Nery. A Defesa do Consumidor no Brasil. Revista de Direito Privado. São Paulo: RT, n.18. 2004, p. 253.
121 SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009, p.29. 122 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 106. 123 OLIBONI, Marcella Lopes de Carvalho Pessanha. O superendividamento do consumidor brasileiro e o papel da Defensoria Pública: criação da comissão de defesa do consumidor superendividado. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 348. Revista do Curso de Direito
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a serem respeitados na prática cotidiana, em sintonia com os princípios124 do aludido diploma consumerista. O princípio da função social, como expressão da “diretriz da socialidade”, indica um rumo a seguir oposto ao individualismo, pois, como todo meio, a liberdade de contratar não existe “em si”, mas “para algo”, isto é, está permanentemente polarizada e conformada para os fins a que se destina. O ambiente da liberdade de contratar é a comunidade, traduzindo valores que a sociedade assume como relevantes, onde imperam leis civis, ou seja, é uma liberdade situada, gerando uma nova ideia de autonomia privada solidária.125 A solidariedade possui também sentido moral, é a relação de apoio, adesão a um objetivo, plano ou interesse compartilhado. No meio do caminho entre interesse centrado em si (egoísmus) e o interesse centrado no outro (altruísmus) está a solidariedade, com o seu interesse voltado para o grupo.126 Entende-se, ainda, que diretamente associado à solidariedade está o princípio da confiança, presente em todas as relações de consumo e negociais, desde os contratos mais simples até os mais complexos e elaborados, o qual depende da boa-fé dos contratantes para vingar de forma plena. Poder-se-ia afirmar que a boa-fé objetiva é o princípio máximo orientador do Código de Defesa do Consumidor127, situada no art. 4º, inciso III e como critério de aferição de abusividade de cláusula contratual, no art. 51, inciso IV, afastando o voluntarismo extremado e situando-a como “ordem de cooperação” entre as partes, agregada a específicas funcionalidades.128 O princípio da boa-fé possui duas vertentes: uma de aspecto objetivo e outra subjetiva. A primeira domina as relações obrigacionais, sendo elevada à categoria de princípio geral dos contratos, que traz à tona a noção de um bom comportamento, como dever independente do estado anímico do agente. Por sua vez, a boa-fé subjetiva está relacionada a aspectos psicológicos que envolvem as ações das pessoas, como elemento da vontade oposto à má-fé. É comumente reconhecida a tríplice função da boa-fé objetiva, qual seja, interpretativa, como cânone hermenêutico e integrativo, dirigida ao intérprete do caso concreto, buscando a justiça interna da relação contratual. A função criadora de deveres jurídicos, a fim de garantir a satisfação dos objetivos do contrato, das expectativas justas de ambas às partes; e, por fim, a função limitadora da autonomia da vontade, direito subjetivo que não pode mais ser exercido amplamente, como o foi de forma prevalente desde a Revolução Francesa, proporcionando desequilíbrios e injustiças nos contratos de consumo.129 O Código de Defesa do Consumidor vai além dessa tríplice função, transformando a boa-fé em um 124 O microssistema do Código de Defesa do Consumidor é lei de natureza principiológica. Estabelece os fundamentos sobre os quais se erige a relação jurídica de consumo, de modo que toda e qualquer relação de consumo deve submeter-se à sua principiologia. Consequentemente, as leis esparsas setorizadas (seguros, bancos, serviços etc) devem disciplinar suas respectivas matérias em consonância e em obediência aos princípios fundamentais do CDC (NERY JUNIOR, Nelson. A defesa do consumidor no Brasil. Revista de Direito Privado: RT, 2004, n.18, p.222). 125 MARTINS-COSTA, Judith. Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. Revista Direito GV. São Paulo, v.1, n.1, p.41-45. 126 MARQUES, Claudia Lima. Solidariedade na doença e na morte. Sobre a necessidade de “ações afirmativas” em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, n. 8, 2001, p. 3-4. 127 MARQUES, Claúdia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5 ed. São Paulo: RT, 2005, p. 720. 128 MARTINS-COSTA, Judith. Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três perspectivas do Direito Privado brasileiro. Revista Forense, 2005, v.382, p. 122. 129 KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa em juízo do consumidor. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.65-80.
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princípio geral de tutela do contratante débil, com perfil funcional, utilizada como fonte de deveres anexos, de modo especial o dever de informar, presente nos artigos 4º, IV e 6º, III, do CDC.130 O direito à informação adequada é um instrumento de exercício da cidadania, indeclinável, evitando a submissão dos indivíduos aos interesses do poder econômico. A informação é indutora do consumo consciente, minimiza os riscos de danos, de frustração da expectativa legítima do consumidor, adverte sobre custos e efeitos de um contrato e oferece oportunidade de escolha. Ao fornecedor incumbe prover os meios para que a informação seja conhecida e compreendida, ou seja, a cognoscibilidade abrange o conhecimento e a compreensão.131 Os contratos de crédito ao consumo são geralmente de adesão, pois inexiste a possibilidade de discussão e elaboração das cláusulas contratuais, bastando o preenchimento de fichas, propostas e formulários já impressos pelos fornecedores, o que potencializa a litigiosidade nessas relações. A falta de informação é um vício que macula o contrato.132 Assim, essa é a primeira tarefa do princípio da confiança: sanar o deficit de informação no contrato, dando segurança ao vínculo e garantindo a bilateralidade em condições paritárias. Entretanto, assim como a falta de informações direciona a vontade e não permite vislumbrar a realidade negocial, a dose excessiva de informações também desnorteia o contratante. Assim como a escuridão, o excesso de luminosidade também cega. A informação deve ocorrer na dose certa, sem restrição ou excessividade, sintetizando o ponto de equilíbrio na expressão “informação necessária”, que pode ser entendida como aquela que é capaz de proporcionar uma efetiva transparência na relação contratual e, ao mesmo tempo, amenizar a inevitável diferença informacional dos sujeitos das relações contratuais de consumo. O art. 52 do CDC estabeleceu que o fornecedor deverá133, nos contratos que envolvam outorga de crédito ou financiamento, informar prévia e adequadamente o consumidor sobre o preço e as condições, bem como sobre a soma total a ser paga, com ou sem financiamento. Já o art. 46 do CDC determina que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. A doutrina francesa diferencia os deveres de informação e aconselhamento, apontando que aquele consiste na transmissão de conhecimentos objetivos, enquanto o dever de conselho consiste em guiar a ação do consumidor, estando a informação adaptada às necessidades e condições subjetivas do destinatário, o que demanda uma análise da situação particular do parceiro contratual. Em verdade, o dever de aconselhamento 130 MARTINS-COSTA, Judith. Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três perspectivas do Direito Privado brasileiro. Revista Forense, v.382, 2005, p. 124. 131 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2001, n. 37, p.74. 132 O dever de informação aplica-se durante todo o período da performance ou execução contratual, inclusas as fases pré-contratual, contratual e pós-contratual. Nesta última fase, descobertos os riscos posteriormente à prestação principal dos produtos e serviços, há necessidade de alerta, de informação de massa aos consumidores, com é o caso do recall, imposto pelo Código de Defesa do Consumidor (art10, §§1º e 3º). 133 Essa inversão de papéis, isto é, a imposição pelo Código de Defesa do Consumidor ao fornecedor do dever de informar sobre o produto ou serviço sobre os produtos ou serviços que oferece (suas características, seus riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que vinculará o consumidor, inverteu a regra do caveat emptor, que ordenava ao consumidor uma postura ativa, para a regra do caveat vendictot, que ordena ao vendedor que informe sobre o conteúdo dos contratos e suas limitações. Esse novo patamar de conduta, de respeito no mercado, não admite mais sequer o dolus bonus do vendedor, do atendente, do representante autônomo dos fornecedores diante do dever legal (MARQUES, Cláudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financiamentos, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.43, p. 239). Revista do Curso de Direito
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é uma personalização da informação ao consumidor134, que revela os prováveis problemas da operação de crédito em curto e longo prazo, prevenindo-o e sugerindo soluções possíveis.135
3 ENFRENTAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO 3.1 MECANISMOS DE PREVENÇÃO O enfrentamento do superendividamento, em sentido amplo, pressupõe uma etapa de observação e diagnóstico do problema, prévia à implantação de qualquer tipo de intervenção. Conhecidas as características do superendividamento do consumidor, pressupõe-se a adoção de medidas capazes de conter essa situação tanto no sentido de evitar a sua ocorrência como de possibilitar um auxílio àqueles que já se encontram superendividados, por meio de mediação ou de um processo judicial. Em busca de padrões mais responsáveis de consumo, torna-se necessário o crescimento das medidas preventivas do superendividamento, pois a crise financeira é uma demonstração de que há espaço para mudanças na política de consumo e fundamentalmente na educação do consumidor, por meio de medidas a serem fomentadas pelo Poder Público (hetero-regulatórias) e outras de iniciativa das próprias entidades (auto-regulatórias), dirigidas a modificar o comportamento dos credores e devedores, potenciais ou efetivos, de forma eficaz.136 A prevenção consiste em fazer com que o consumidor não seja levado a se comprometer em uma operação de crédito além de sua possibilidade de reembolso. Isso implica, de um lado, que todas as informações necessárias para que se possa determinar o custo real da operação visada pelo consumidor sejam precisamente transmitidas, e, de outro lado, o concedente do crédito avalie cuidadosamente a solvabilidade de seu cliente. A prevenção consiste, ainda, em não poder impor contratualmente ao consumidor encargos manifestamente desproporcionais. Deste modo, diversas legislações reprimem a usura, isto é, a prática de taxas de juros excessivas. Vários estudos demonstram que os jovens obtêm rendimento próprio cada vez mais cedo, e se inserem no mercado de serviços financeiros, tendo acesso à conta bancária e ao cartão de crédito. Trata-se de uma tendência que justifica o desenvolvimento em vários países de programas de educação para o consumo nas escolas, focando aspectos como o consumo-poupança, empréstimos, modernas técnicas de venda e de marketing, meios de pagamento etc.137 A educação em matéria de endividamento não se dedica apenas aos jovens. Outra finalidade da educação financeira é reinserir, no mercado, consumidores que já tenham enfrentado problemas com o crédito, a fim de reabilitá-los e ainda prevenir novos incidentes. A boa instrução dos consumidores é considerada uma questão central na prevenção da insolvência. 134 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: solidariedade e boa-fé. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor superendividado: superendividamento e crédito. São Paulo, RT, 2006, p.242. 135 CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.55, p. 140-1. 136 MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 194 e 299. 137 MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 197 e 201.
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No plano governamental, a educação do consumidor passa pela implementação de políticas eficientes de limitações equilibradas de acesso ao crédito, proibição de realização de créditos consignados a salários para áreas que não representem formas de suprimento de necessidades existenciais e, principalmente, pelo estabelecimento de limitações ao apelo publicitário das financeiras138. Outra possibilidade seria a criação de regras que possibilitassem ao consumidor de crédito usufruir de um prazo razoável de reflexão que lhe outorgasse a possibilidade de arrependimento. O consumidor que não reflete a sua decisão está exposto a realizar compras desnecessárias e comprometer seu rendimento futuro. O direito de arrependimento instituído no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor é um instrumento de grande importância para a proteção do consumidor, nas hipóteses em que o contrato de consumo tenha sido celebrado fora do estabelecimento comercial. Nos casos de home – banking e empréstimos à distância, o prazo de retratação pode ser aplicado. Todavia, o que se espera como medida de prevenção do superendividamento dos consumidores é a aplicação do instituto até mesmo quando a contratação é feita dentro dos estabelecimentos comerciais139. No direito francês, a faculdade de retratação integra o processo de formação do contrato de crédito. Ela se aplica em um momento em que o contrato ainda não foi formado. Retratando-se, o consumidor renuncia à conclusão de um contrato em via de formação; intervém no momento em que o princípio da força obrigatória dos contratos ainda não incide. A lei quer que a vontade do consumidor seja submetida a uma decisão “racional e estratégica”, prevalecendo o aspecto preventivo, dando à retratação o caráter de renúncia à conclusão definitiva do contrato.140 O direito de arrependimento atuaria como forma de preservação do consumidor de crédito em contratos extremamente onerosos, firmados sob os influxos de pressões externas, sem maior ponderação da situação e muitas vezes sem esclarecimentos indispensáveis por parte dos fornecedores.141 Já em relação às financeiras, a atuação esperada na concessão de crédito é a de proceder a um empréstimo responsável, acompanhado do dever de aconselhamento. O fornecedor deveria analisar detalhadamente as condições financeiras do tomador do empréstimo, consultando o registro de dados apropriados, a fim de verificar a solvabilidade do consumidor e acautelar-se sobre a possibilidade econômica deste de cumprir com as obrigações resultantes desse contrato. Esta perspectiva visa à responsabilização do fornecedor pelas repercussões que sua atividade provoca no mercado, tal como ocorre, por exemplo, com o fornecedor de produtos defeituosos ou com o publicitário que produz mensagem enganosa ou abusiva. Não se desconhecem casos em que a falência econômica do sujeito é fruto de ato de credores que extrapolam as mais basilares regras deontológicas, a fim de obterem lucros 138 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 288 e 304-5. 139 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.55, 2005, p.36. 140 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 93. 141 BOLSON, Simone Hegele. O direito de arrependimento nos contratos de crédito ao consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 64, 2007, p.190. Revista do Curso de Direito
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cada vez maiores. O superendividamento contribui para o aniquilamento social do indivíduo. Quanto mais este fenômeno aumenta, mais seu custo se eleva e a necessidade de combatê-lo se impõe. As diversas experiências legislativas mostram que as técnicas de prevenção buscam moralizar a distribuição do crédito, responsabilizando tanto os consumidores quanto os organismos concedentes.
3.2 MECANISMOS DE PROTEÇÃO Até recentemente vigorava na órbita civil o princípio da intangibilidade do conteúdo do contrato ou da obrigatoriedade do contrato, consubstanciado no pacta sunt servanda, que estabelece ser o contrato lei entre as partes. Ao longo dos anos, no contexto das relações massificadas envolvendo bens, produtos e novas formas de contratar, onde as cláusulas são impostas, na maioria das vezes, por meio de contratos de adesão, a doutrina e a jurisprudência passaram a conceber mecanismos de adaptação às mudanças sociais, destacandose a adoção da teoria da quebra da base objetiva do negócio, para permitir a revisão dos contratos, mitigando o princípio da obrigatoriedade. O Código de Defesa do Consumidor, além de reconhecer a nulidade absoluta das cláusulas abusivas (art.51) e vedar aos fornecedores práticas abusivas (art.39), definiu como direito básico do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (art. 6º, V), no sentido de restabelecer o equilíbrio contratual. Como o próprio dispositivo legal sugere, existem causas concomitantes à formação do contrato, como as cláusulas abusivas e as prestações desproporcionais, que contaminam o contrato desde o seu nascimento e traz em seu conteúdo a possibilidade de modificação por determinação judicial.142Também as causas supervenientes à formação do contrato, como a quebra da base objetiva do negócio por onerosidade excessiva, podem determinar a sua revisão. Segundo Nelson Nery Júnior143, a onerosidade excessiva pode proporcionar o enriquecimento sem causa, razão pela qual ofende o princípio da equivalência contratual, e é aferível de acordo com as circunstâncias concretas que não puderam ser previstas pelas partes quando da conclusão do contrato. Somente as circunstâncias extraordinárias é que entram no conceito de onerosidade excessiva, dele não fazendo parte os acontecimentos decorrentes da álea normal do contrato.144 O Código de Defesa do Consumidor exige que os fatos sejam supervenientes, mas não que sejam imprevisíveis. Mesmo sendo previsível o fato, a sua superveniência aliada à quase impraticabilidade da prestação, permite a revisão do contrato, para adequá-lo ao que foi definido pelas partes no momento da sua celebração. Podem ser citadas como exemplo a inflação e a variação cambial nos contratos de arrendamento mercantil, com prestação fixada em dólar, em época de economia estável e inflação próxima de zero. 142 ALMEIDA, João Batista. A revisão dos contratos no Código do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.33, p.144. 143 NERY JUNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2001, p. 139 e 140. 144 Por álea normal deve entender-se o risco previsto que o contratante deve suportar, ou, se não previsto explicitamente no contrato, de ocorrência presumida em face da peculiaridade da prestação ou do contrato.
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O juiz, reconhecendo que houve cláusula estabelecendo prestação desproporcional ao consumidor, ou que houve fatos supervenientes que tornaram as prestações excessivamente onerosas para o consumidor, deverá solicitar às partes a composição no sentido de modificar a cláusula ou rever efetivamente o contrato. Caso não haja acordo, o juiz deverá estipular nova cláusula ou novas bases do contrato revisto judicialmente, ao proferir sentença mandamental, complementando ou mudando alguns elementos da relação jurídica de consumo já constituída145. A sistemática protetiva do consumidor busca garantir a conservação do contrato, de forma que tenha condição de ser cumprido pelas partes, restabelecido o equilíbrio contratual. Caso não seja possível, apesar dos esforços de integração, permite o Código a resolução do contrato (art.51, § 2º). A jurisprudência do STJ tem sido sensível a esta necessidade subjetiva do consumidor, mesmo quando em estado de inadimplência, de conseguir rescindir os contratos de longa duração, para evitar o estrago definitivo, especialmente em contratos de compromisso de compra e venda de imóveis. A ideia é possibilitar a purga da mora pelo devedor, isto é, que de inadimplente se torne adimplente, com a cooperação do fornecedor. Ocorre, porém, que a revisão contratual é um remédio paliativo por ser instrumento processual restrito à individualidade dos contratos e perante um dos credores; logo, as dívidas são discutidas de forma fragmentada e não global. O problema do superendividamento objetiva a renegociação conjunta das dívidas, como auxílio ao consumidor que se encontra impossibilitado ou com dificuldades de adimplir suas dívidas, visando à sua reinserção socioeconômica e de seu núcleo familiar. No âmbito da conservação dos contratos, aplica-se a teoria do adimplemento substancial e o reforço de que cabe ao consumidor rescindir o contrato ou mantê-lo, cabendo ao fornecedor renegociar o ajuste ou cooperar para que o consumidor possa adimpli-lo.146 Um pequeno inadimplemento pode não ser substancial o suficiente para causar a rescisão do contrato por decisão do credor.147 Outro avanço jurisprudencial foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de impossibilitar a prisão civil por dívidas de consumo. “A estratégia jurídica para cobrar dívida sobre o corpo humano é um retrocesso ao tempo em que o corpus vilis (corpo vil) era sujeito a qualquer coisa”, disse o ministro Cezar Peluso148. Esta medida é aplicável somente ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. A relação contratual se encadeia e se desdobra no tempo em direção ao adimplemento, logo, a cooperação no desenvolvimento do contrato não atende apenas aos interesses do devedor, pois o credor também usufrui das vantagens de um contrato reequilibrado, especialmente através da maximização da possibilidade de satisfação de seu crédito, hipótese sensivelmente comprometida com a própria configuração e manutenção 145 NERY JUNIOR, Nelson. A Defesa do Consumidor no Brasil. Revista de Direito Privado. São Paulo: RT, n.18. 2004, p. 260. 146 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.25-26. 147 Assim decidiu o STJ, in REsp 272739/MG, DJ 02.04.2001, Min. Ruy Rosado de Aguiar: “Alienação fiduciária. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência de boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido de reintegração de posse.” 148 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100258 >. Acesso em: 4 ago. 2016. Revista do Curso de Direito
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do estado de superendividamento.149
3.3 MECANISMOS DE TRATAMENTO Para enfrentar o problema no Brasil, no que toca à proteção do consumidor de crédito, a experiência pioneira surgiu a partir da realização de uma pesquisa empírica no Rio Grande do Sul, com 100 casos de superendividamento de consumidores pessoas físicas. Tamanha era a dimensão do problema que a partir das proposições da referida pesquisa, inicialmente destinada a oferecer elementos ao Ministério da Justiça para a elaboração de um anteprojeto de lei acerca do tratamento das situações de superendividamento – concluiu-se pela necessidade de se buscar uma solução imediata para o problema, até que a legislação fosse efetivamente concebida. Foi justamente essa necessidade que levou à elaboração do Projeto-piloto de tratamento das situações de superendividamento, cujo objetivo consistiu em suprir a momentânea falta de previsão legal para as situações de superendividamento dos consumidores, de modo a viabilizar a reinserção social desses indivíduos e dos núcleos familiares no mercado de consumo. Tal projeto, de iniciativa das Juízas de Direito Karen Rick Danilevicz e Clarissa Costa de Lima, foi instaurado no Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul no ano de 2006. Seu objetivo foi de intermediar a renegociação das dívidas dos consumidores com seus credores, por meio da conciliação judicial ou extrajudicial, de modo a viabilizar a reinserção social do consumidor superendividado e garantir a preservação de seu mínimo vital, com inspiração no modelo jurídico francês. A primeira fase do procedimento de tratamento do consumidor superendividado seria extrajudicial. Neste momento o consumidor buscaria uma conciliação com seus credores, diante de uma comissão, que avaliaria as condições pessoais do superendividado e os requisitos formais impostos pela lei, tais como a boa-fé, para que fosse elaborado um plano de pagamento das dívidas. Havendo conciliação o acordo seria homologado pelo juiz. Além de estruturar condições em busca do pagamento das dívidas, seria necessário instituir um mínimo vital, que consiste em um rendimento fixado para que o superendividado possa sobreviver dignamente, paralelamente ao processo de sua reorganização financeira.150 Essa fase extrajudicial para conciliação do superendividamento com seus credores, por meio de uma comissão em que o Estado intervenha, pode ser mais facilmente implantada no Brasil, seja nas Defensorias Públicas, seja nos Juizados Especiais de Pequenas Causas, onde se conta com a presença de juízes. Difundido este mecanismo, certamente seria preferido às ações revisionais, que hoje abarrotam as Varas Judiciais no Brasil inteiro. Nesta comissão deve haver um juiz ou um leigo, árbitro ou mediador, um representante da Defensoria Pública, pelos consumidores, e um representante dos bancos ou financeiras, que podem ajudar nos cálculos e na elaboração do plano de recuperação e pagamento, tudo sob a supervisão do 149 KIRCHNER, Felipe. Os novos fatores teóricos de imputação e concretização do tratamento do superendividamento de pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.65, 2008, p.107. 150 CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O perfil do superendividado: referências no Brasil. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor superendividado: superendividamento e crédito. São Paulo, RT, 2006, p. 244.
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Estado, por meio de um juiz que homologa o acordo extrajudicial com a coletividade dos credores.151 Entretanto, não sendo possível a fase administrativa de conciliação, instaurar-se-ia a fase judicial que, ao contrário da fase extrajudicial, para ser realidade difundida no Brasil demanda necessariamente uma regulação específica do tema.152 Uma lei que trate de temas materiais (controle da publicidade e informação sobre o crédito, exigências de forma, direito de arrependimento nos contratos de crédito, limite às garantias pessoais, vinculação entre o pagamento, os contratos acessórios e o contrato principal de consumo) e de temas processuais ou administrativos. Tratar as situações de superendividamento é, em síntese, estabelecer um plano de recuperação que permita ao devedor regularizar sua condição financeira, resgatando sua cidadania econômica. Em última análise, é uma luta contra a exclusão social. Os interesses dos credores não são ignorados, mas são tratados de maneira subsidiária. Reencontra-se uma finalidade do direito do consumo: proteger aquele que se encontra em situação de vulnerabilidade. 4 ATUALIZAÇÃO DO MICROSSISTEMA CONSUMERISTA NA PROTEÇÃO DO SUPERENDIVIDAMENTO Tramita no Congresso Nacional o PLS nº 283/2012 que altera a Lei nº 8.078/90, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção do superendividamento, incluindo dispositivos complementares que visam a preparar o mercado e a sociedade brasileira para as novas demandas sociais, características de um País em desenvolvimento econômico. A proposta pretende ampliar o rol dos direitos básicos do consumidor, para assegurar a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira, de prevenção e tratamento das situações de superendividamento, preservando o mínimo existencial, por meio da repactuação da dívida, entre outras medidas. Além da atualização das normas já existentes, a proposta cria uma nova seção no Capítulo V do Código de Defesa do Consumidor, referente à proteção contratual. Regula-se o direito à informação adequada, a publicidade, a intermediação e a oferta de crédito aos consumidores. Garante-se a entrega de cópia do contrato e informações obrigatórias que permitam aos consumidores decidir de maneira refletida sobre a necessidade do crédito. Propõe-se também a figura do assédio de consumo, protegendo de forma especial os consumidores idosos e analfabetos, estabelecendo regras básicas para a publicidade de crédito ao proibir a referência a crédito “sem juros”, “gratuito” e semelhantes, de forma que não se oculte os ônus da contratação. Para resguardar a efetividade da tais garantias, o referido projeto reforça o vínculo de solidariedade entre os fornecedores de crédito e seus intermediários, bem como de coligação entre o contrato principal de fornecimento do produto ou serviço, e o contrato dependente, de crédito ao consumidor. Outra importante medida 151 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.55, 2005, p. 51-52. 152 CEZAR, Fernanda Moreira. O consumidor superendividado: por uma tutela jurídica à luz do direito civil-constitucional. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.63, 2007, p.160. Revista do Curso de Direito
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é a preservação de parcela da remuneração do consumidor não inferior a 70%, quando envolver débito direto em conta corrente, descontos em folha de pagamento, ou qualquer modo que restrinja parcela da remuneração. Quantos aos direitos materiais, institui-se também a possibilidade de o consumidor se arrepender do crédito consignado, sob determinadas condições, como mais um instrumento apto a evitar o superendividamento sem, contudo, ser penalizado diante desta decisão. Na parte processual, a nova legislação pretende instaurar a conciliação com todos os credores do consumidor superendividado, o que facilita a elaboração de um plano de pagamento para a quitação da dívida, com prazo máximo de 4 (quatro) anos, com a preservação de mínimo existencial, permitindo a reinclusão do consumidor no mercado, com tal circunstância anotada no banco de dados de proteção ao crédito. Cabe salientar que o processo de repactuação de dívidas é exclusivo dos consumidores de boa-fé, não sendo aplicável aos maus pagadores ou àqueles que agem conscientemente de má-fé. Há, contudo, uma reveladora constatação de que aproximadamente 70% dos consumidores superendividados encontram-se nesta situação por acidentes da vida”, caracterizando o superendividamento passivo, de vontade alheia do consumidor. Este novo projeto de lei pretende trazer, além da prevenção, o procedimento para a “reestruturação do passivo” do consumidor superendividados pessoa física de boa-fé. Seguindo a experiência da lei francesa e a do projeto piloto das magistradas Clarissa Costa de Lima e Karen Bertoncello, as pessoas físicas consumidoras poderiam requerer a regularização do conjunto de suas dívidas e obrigações através de um acordo consensual (fase conciliatória), com os credores, ou de plano judicial de pagamento (fase judicial em caso de conciliação frustrada). Na futura lei, o procedimento seria proposto perante o Poder Judiciário Estadual, a partir do preenchimento de formulário-petição, que estaria à disposição dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, na qual o devedor declararia: “a) dados pessoais socioeconômicos; b) rendimento mensal e despesas correntes; c) composição do núcleo familiar; d) relação de todos os credores e respectivos endereços; e) relação do ativo e respectivo valor, com indicação dos bens próprios e comuns; f) identificação de todas as ações e execuções contra si pendentes; g) descrição dos fatos que determinaram o aparecimento da situação de impossibilidade de satisfazer pontualmente as obrigações assumidas. Caso o devedor expresse dificuldade em fornecer os dados relativos aos créditos pelos quais é responsável, o juiz poderá requisitar as informações necessárias diretamente dos credores, bancos de dados, serviços de previdência e seguridade social, administração pública ou outras instituições competentes para tanto. Prevaleceria o acesso gratuito ao primeiro grau de jurisdição, no foro do domicílio do consumidor, que deverá comparecer pessoalmente, podendo ser assistido por advogado nas causas de até 20 (vinte) salários mínimos; nas de valor superior, a assistência é obrigatória. No momento de entrega do formulário, idealiza-se o atendimento do consumidor por profissionais da área de assistência social, da psicologia, dentre outras, assim como por integrante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor capacitado ao aconselhamento acerca da prevenção e do tratamento do superendividamento.
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A fase de conciliação seria obrigatória, entretanto, inexitosa, o devedor poderá requere no juízo competente a reestruturação do passivo através de um plano, relativo às dívidas não acordadas, caracterizada a fase judicial. O juiz procede à citação dos credores cujos créditos não integraram o acordo obtido na fase conciliatória. Após a citação, com ou sem a resposta dos credores, o juiz decide quanto à admissibilidade do procedimento de reestruturação, mediante a análise da totalidade da renda e do patrimônio disponível do consumidor. Como efeitos da decisão que admite o procedimento, importa-se: a) a vedação do ajuizamento de ação executiva contra o devedor; b) na suspenção das ações executivas pendentes; c) na suspensão dos juros e encargos contratuais. Prevê, ainda, o vencimento antecipado das dívidas contempladas no acordo ou no plano do devedor que, após a apresentação do pedido, proceder de má-fé, intencionando fraudar a estipulação judicial, como exemplo, desviando parte de seus bens ou agravando sua situação de endividamento com novos empréstimos. Em prol da execução dos planos judiciais, ainda pode ser mencionada a criação futura de um “Fundo de Negociação do Endividamento” para apoio dos Poderes Judiciários Estaduais na execução deste lei. Assim, nas infrações do Código de Defesa do Consumidor, os julgadores poderiam canalizar os recursos para o Fundo e, da mesma forma, os órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor quanto às multas advindas de Termos de Ajustamento de Conduta. Percebe-se no Brasil uma crescente preocupação quanto à situação do consumidor superendividado, muitas vezes causada por ilegalidades e abusividades dos fornecedores de crédito, conduta esta que tem merecido o rechaço do Judiciário. Neste sentido, as experiências de conciliação e renegociação de dívidas têm revelado resultados satisfatórios, reforçando a importância da normatização deste procedimento no Código de Defesa do Consumidor.
CONCLUSÃO A sociedade atual passa por uma fase de transformações iniciadas com o fenômeno da globalização econômica, que proporcionou uma verdadeira modificação da maneira de viver mundial, alterando a configuração dos valores sociais e impondo uma nova forma de pensamento coletivo. Nesse contexto, destaca-se a concessão de crédito ao consumo como forma de viabilizar o ingresso e a participação dos indivíduos no mercado de consumo. O recurso ao crédito facilita sobremaneira a aquisição de bens e serviços pelo consumidor, que já não necessita desembolsar de imediato a quantia a eles equivalente. Por meio de empréstimos ou financiamentos, compromete-se a renda futura, mas o bem ou serviço adquirido pode ser desfrutado imediatamente. E não é só para o consumidor que esse sistema apresenta vantagens. O aumento do consumo amplia a demanda, fomenta o emprego e proporciona desenvolvimento da atividade industrial. O endividamento do consumidor, sob esse ponto de vista, constitui uma maneira de elevar a qualidade de vida da população. Contudo, o endividamento crônico é a outra face dessa democratização e resulta de muitas variáveis como a falta de educação financeira, o sistema de segurança social e o comportamento do mercado de trabaRevista do Curso de Direito
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lho. Pesquisas comprovam que o desemprego ou a precarização do emprego constituem uma das suas causas centrais e indicam que a grande maioria dos consumidores superendividados se encontra nessa situação de maneira passiva. O consumidor é o elo fraco da cadeia econômica e o seu resguardo depende necessariamente da limitação de algumas formas de exercício da atividade econômica que vigoram atualmente nas relações entre fornecedor e consumidor. É manifesta a necessidade da conduta proativa dos fornecedores em relação ao parceiro contratual mais vulnerável, desde a informação íntegra, permitindo ao consumidor exercer seu direito de escolha, sem submissão a vontades alheias, reduzindo os riscos de inadimplemento do contrato. Tutelar o consumo de crédito requer o enfrentamento de algumas barreiras, tais como: a criação de um ambiente propício a que o consumidor manifeste sua vontade de maneira livre e consciente; a adoção de normas imperativas de proteção do consumidor de crédito; e o desenvolvimento de mecanismos aptos a evitar a ocorrência do superendividamento, a minimização de seus efeitos e de solução para as situações mais graves deste fenômeno. Sob o aspecto econômico, a questão do endividamento de particulares já foi objeto de apreciação pelo legislador brasileiro, a considerar a existência de institutos como a insolvência civil (regulada pelo CPC) e a falência empresarial (disciplinada pela Lei nº 11.101/2005). Contudo, esses institutos não são suficientes para tratar de um fenômeno como o superendividamento, que envolve a necessidade de investigação de causas pessoais e sociais que levaram à situação de insolvência do consumidor. De igual maneira, a propositura de ações judiciais destinadas à revisão dos contratos de concessão de crédito também inviabiliza a análise da situação financeira global do devedor – o que se apresenta indispensável para a solução do problema em análise – visto que na maioria das vezes a discussão das dívidas contraídas pelo demandante é fragmentada. A despeito de ser um verdadeiro fenômeno social, inexiste tratamento legislativo específico a normatizar o superendividamento, não obstante a doutrina venha alertando sobre a necessidade de intervenção desta natureza, agora concretizada no Projeto de Lei nº 283/2012 que altera a Lei 8.078/90, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre o superendividamento. Buscou-se na legislação estrangeira alguns procedimentos legais que pudessem nortear a prevenção e o tratamento do superendividamento perante a realidade brasileira. A vertente da prevenção está ligada à instrução adequada do consumidor, ao dever de aconselhamento por parte dos fornecedores, a uma praxe solidária no mercado de consumo, ao planejamento familiar, à estabilidade do emprego no país e à implementação de políticas públicas que visem a coibir abusos de forma mais enfática. Exige-se fidelidade aos princípios descritos no Código do Consumidor, que não é uma legislação simbólica, mas uma lei avançada e sensível às necessidades de proteção àqueles que estão expostos às armadilhas do mercado. Verifica-se que é de extrema relevância a atualização do Código de Defesa do Consumidor, diante das mudanças ocorridas nas relações de consumo nos últimos anos, ensejadoras de lacunas na legislação que precisam ser suprimidas, de forma a estimular o consumo cauteloso e responsável, sem prejuízo do reconheci70 Faciplac
mento das relevantes funções sociais do crédito, geradoras de maior qualidade de vida para todos.
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ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO DO CONSUMIDOR: A EFICIÊNCIA DA APLICAÇÃO DO DANO MORAL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Marcela Carvalho Bocayuva ¹ ECONOMIC ANALYSIS OF CONSUMER LAW: DAMAGE THE APPLICATION OF EFFICIENCY IN MORAL CONSUMER RELATIONS IN SUPERIOR COURT. Gabriela Brandão Sé
¹Advogada. Graduada em Direito e mestranda pelo UniCeub (Centro Universitário de Brasília). Pós-graduada em Ordem Jurídica e Ministério Público pela FESMPDFT (Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios). E-mail: marcelabocayuva.adv@gmail.com 74 Faciplac
RESUMO O objetivo desse artigo é realizar algumas reflexões sobre como e com qual freqüência o Superior Tribunal de Justiça decide sobre o dano moral, visto que envolve diretamente a análise econômica do direito e a aferição de sua compatibilidade com o direito do consumidor. Para realização do estudo foram investigados assuntos relacionados à microeconomia, especialmente quanto à aplicação da eficácia das regras jurídicas, bem como a compreensão dos comportamentos das instituições que aplicam o direito e as regras protetivas ao consumidor. A visão de compatibilidade das premissas da análise econômica do direito tem grande importância perante o sistema de proteção do consumidor, isso faz com que exista melhor compreensão das decisões dos Tribunais Superiores. Trata-se de uma investigação de assunto relacionados à finalidade punição do dano moral atrelado à microeconomia, que é o ramo da ciência voltado ao estudo do comportamento das unidades de consumo representadas pelos indivíduos e familiares, empresas, suas respectivas produções e custos. Com base na teoria do risco da atividade e o estudo do dano moral junto com a análise da microeconomia, busca-se melhores soluções para eficiência das decisões do Poder Judiciário, bem como melhores soluções para prevenção de danos sofridas pelos consumidores. PALAVRA-CHAVE: Direito do Consumidor; dano Moral; Superior Tribunal de Justiça; análise econômica do direito; decisões judiciais; ABSTRACT The aim was to carry out some thoughts on how and how often the Supreme Court decides on the moral damage, since it directly involves the economic analysis of law and the assessment of its compatibility with consumer rights. To conduct the study were investigated issues related to microeconomics, especially the application of the effectiveness of legal rules, as well as understanding the behavior of the institutions that apply the law and the protective rules to consumers. The view of the compatibility of the premises of the economic analysis of law has great importance to the consumer protection system, this means that there is better understanding of the decisions of the Superior Courts. It is a matter of research related to the purpose punishment for moral damages linked to microeconomics, which is the branch of science focused on the study of the behavior of consumer units represented by individuals and families, companies, and their respective production costs. Based on the theory of the risk of the activity and the study of pain and suffering along with analysis of microeconomics, we seek the best solutions for the efficiency of the Judiciary decisions and better solutions for preventing damage suffered by consumers. KEYWORD: Consumer law; moral damage; Superior Court of Justice; economic analysis of law; court decisions;
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INTRODUÇÃO A Revolução Industrial do aço e do carvão trouxe uma grande migração da população residente na área rural para os grandes centros urbanos. Com a nova filosofia de mercado, problemas começaram a surgir, pois o novo contingente populacional começou, ao longo dos tempos, a manifestar ávido interesse pelo consumo de novos produtos e serviços capazes de satisfazer suas necessidades materiais. Com o avanço tecnológico decorrente do período PósSegunda Guerra Mundial vive-se um novo panorama de modelo produtivo que se consolida a cada geração histórica. O direito do consumidor tem como um de seus principais objetivos o atendimento da enorme demanda no aspecto quantitativo. Existem três maneiras de introduzir o Direito do Consumidor, entre elas a introdução socioeconômica que leva em consideração não apenas aspectos históricos como a quebra de ideologias, por exemplo a de Adam Smith de que o consumidor seria o rei do mercado, mas também questões do mundo contemporâneo, como as recorrentes práticas abusivas de alguns setores do mercado econômico² . A partir do momento em que o fornecedor passa a prezar pela quantidade em detrimento da qualidade, o consumidor pode sofrer com a defasagem de produtos e serviço viciados ou portadores de defeitos que lhe causarão prejuízos de ordem econômica ou física, respectivamente. A estrutura econômica está inteiramente ligada às atuais decisões sob o dano moral no direito do consumidor, por isso realizou-se um estudo aprofundado sob jurisprudências aplicadas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, referentes ao dano moral nas relações do consumo. Um dos temas que mais merecem atenção daqueles que se detém ao estudo do direito do consumidor é o dano moral. Por mais trivial que possa parecer esse debate, é importante destacar que o direito do consumidor está inteiramente ligado à proteção. Um dos aspectos fundamentais desse estudo é analisar o poder econômico da relação jurídica entre consumidor e fornecedor. O objetivo é tentar buscar soluções adequadas ao delicado problema da punição do fornecedor perante o consumidor vulnerável, aplicando-se dessa forma a análise econômica do direito. Em suma, o significado do presente estudo é realizar uma contribuição teórica para frutificar razoavelmente as atuais decisões do Poder Judiciário, tendo em vista a estreita correlação existente entre o direito do consumidor dano moral e economia. Para possibilitar a análise empírica das decisões ocorridas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, decorrentes de indenizações de danos morais aos consumidores, foi necessário definir alguns critérios que pudessem oferecer resultados robustos e confiáveis. Estabeleceu-se o período de janeiro/1995 a outubro/2013, no qual foram colhidas junto aos sistemas informatizados do Superior Tribunal de justiça todas as decisões colegiadas que envolveram indenizações relativas a danos morais. Esse conjunto de decisões colacionadas ao longo do tempo foram consideradas para totalizar o universo da pesquisa, ou população, que chegou ao número de 1.026 (um mil e vinte e seis) acórdãos, os quais foram inseridos em uma tabela e numerados. Após esta providência, definiu-se como parâmetros estatísticos para a amostragem, uma margem de erro de 5% (cinco por cento) e um grau de confiança de 95% (noventa e cinco por cento), significando que os resultados obtidos com a pesquisa, podem refletir a população analisada com 95% (noventa e cinco por cento) de certeza e 5% (cinco por cento) de margem de erro. Aplicada a fórmula da Amostragem probabilística (aleatória) – utilizada quando a probabilidade de um elemento da população a ser escolhido é o mesmo para qualquer dos elementos, foi obtida a quantidade de 256 (duzentas e cinquenta e seis) amostras aleatórias, ou seja, os resultados obtidos com a análise dessa amostra são 2 BENJAMIN, Antônio Herman, MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010. p. 45.
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suficientes para inferir sobre a população em estudo. Diante desses dados, concluiu-se que, dentre 256 (duzentas e cinquenta e seis) amostras aleatórias, só foi possível constatar fundamentação em apenas 68 (sessenta e oito) acórdãos. A fundamentação se refere à análise do caso concreto, a finalidade do dano moral no caso apreciado e a compreensão da consequência, que é o fato fundamental que se busca demonstrar na referente pesquisa. O principal fundamento da reparabilidade do dano moral reside no fato de que os indivíduos não são apenas titulares de direitos patrimoniais, mas também de direitos extrapatrimoniais, não podendo o ordenamento jurídico permitir que estes sejam impunemente violados. A compreensão da consequência da adoção do dano moral é uma das principais regras da Análise Econômica do Direito. Atualmente, se busca um direito mais repressivo, ou seja, busca-se evitar danos. Para tanto, o Poder Judiciário tem um papel fundamental na proteção do direito do consumidor, principalmente quando se trata de punição e prevenção de danos. Ao aplicar severas consequências, principalmente financeiras, estimula-se o fornecedor a uma atuação mais coerente que pode soar como injusta a uma primeira vista, mas, isso logo se dissipa em se comparada ao lucro exagerado que as grandes empresas obtêm negando qualidade de serviços aos seus consumidores.
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1. A IMPORTÂNCIA DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO. Vive-se uma realidade em que é preciso uma grande preocupação com políticas públicas eficientes. É preciso que as instâncias superiores façam uma análise econômica mais apurada para opinar com embasamento e não adotar um parâmetro qualquer para valorar um dano. Em meados dos anos 60, nos Estados Unidos aconteceu o caso marcante da Ford, por conta de um sério problema no tanque de combustível que fez diversas vítimas fatais. Esse acidente levou John Fitzgerald Kennedy, presidente dos Estados Unidos à época, encaminhar uma mensagem ao congresso com o seguinte teor: “consumidores, por definição, somos todos nós. Os consumidores são o maior grupo econômico na economia, afetando e sendo afetado por quase todas as decisões públicas e privadas [...]”.³ Por essas e outras razões que a linha de pensamento de John Fitzgerald Kennedy4 deve ser seguida no Brasil, tendo em vista que o mercado só cresce e se torna seguro quando o consumidor é protegido. Pode-se afirmar que os consumidores como maior grupo na economia, desde a sua criação, sempre tiveram direta ligação com a economia. A defesa do consumidor tem uma análoga relação com a análise econômica do direito. Sob a ótica econômica, sabe-se que a posição do consumidor diante da realidade das empresas é de uma verdadeira submissão estrutural5 , por isso há uma necessidade de tutelar sua proteção. A propósito cabe ressaltar que o poder econômico é uma das funções mais importantes da sociedade6, esse poder da atividade econômica é determinante para o direito de consumidor, de modo que reestabelece o equilíbrio das relações econômicas que propiciam o equilíbrio entre fornecedor e consumidor. A Análise Econômica do Direito contribui muitas vezes para identificar e até mesmo realizar ponderações sob o que é injusto, para isso é necessário que o aplicador do direito tenha compreensão das consequências reais de um dano. Márcia Carla Pereira Ribeiro7 e Irineu Júnior Galeski,8 defendem que dentre duas possíveis decisões, aquela que causar o maior bem-estar é a que deve ser aplicada, com intuito de analisar se as partes envolvidas estão em uma situação inicial relativamente homogênea. A escola de Law & Economics, para todos os efeitos, tem por foco a busca do melhor bem-estar, da melhor alocação possível de bens, conduzindo ao bem-estar dentro dos limites morais.9 A análise econômica do direito também auxilia na descoberta de resultados mais realistas quanto à reparação dos danos, especialmente nos danos de consumo. 3Tradução livre de: “Consumers, by definition, include us all. They are the largest economic group in the economy, affecting and affected by almost every public and private economic decision. Two-thirds of all spending in the economy is by consumers. But they are the only important group in the economy who are not effectively organized, whose views are often not heard. The federal Government--by nature the highest spokesman for all the people--has a special obligation to be alert to the consumer's needs and to advance the consumer's interests”. Disponível em: < http://www.presidency.ucsb.edu/ws/?pid=9108>. Acesso em: 5 Junho de 2015. 4 KENNEDY, John Fitzgerald. Special Message to the Congress on Protecting Consumer Interest. Discurso datado de 15 de março de 1962. Disponível em: em: < http://www.presidency.ucsb.edu/ws/?pid=9108>. Acesso em: 5 de junho de 2015. 5 BARCELO, Ariel. Mercado y Derechos, tradução de Font Ribas, 1985. p. 223. 6“Os economistas contemporâneos modernos estão em vias de liquidar a noção clássica de mercado, sobre a qual se fundou toda a análise econômica não-marxista desde Adam Smith. Na concepção tradicional, o mercado é sempre organizado em função do consumidor, cujas decisões fundamentam em última análise, a correspondência entre ofertas e demandas, num regime de produção essencialmente concorrencial. A situação de monopólio é considerada excepcional e combatida como autêntica aberração. Hoje, reconhece-se que o mercado de bens, serviços e de força-trabalho é formado pelas decisões do conjunto de empresas dotadas de poder econômico, ao qual submetem tidas as demais unidades, pequenas ou médias. As relações que se estabelecem entre esses setores, o nuclear e o periférico, são em tudo análogas ao relacionamento entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. O poder econômico, portanto, é regra e não exceção. Ora, a finalidade última desse poder, do qual todos nós dependemos, não pode ser apenas, nem principalmente, a produção e partilha de lucros entre proprietários e capitalistas; não deve ser, tampouco, assegurar ao empresário um nível de elevada retribuição econômica e social. O poder econômico é uma função social, de serviço à coletividade.” COMPARATO, Fábio Konder. Salomão Filho, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima - 6ª ed., 2014. p.406. 7 RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; GALESKI, Irineu Júnior. Teoria Geral dos Contratos. Contratos empresariais e análise econômica. Ed. Elsevier. 2009. p. 89. 8 RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; GALESKI, Irineu Júnior. Teoria Geral dos Contratos. Contratos empresariais e análise econômi-
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O estudo da análise econômica do direito nada mais é que a aplicação do instrumental analítico e empírico da economia, em especial da microeconomia e da economia do bem-estar social, para se tentar compreender, explicar e prever as implicações fáticas do ordenamento jurídico, bem como da lógica (racionalidade) do próprio ordenamento jurídico. Em outras palavras é a utilização da abordagem econômica para tentar compreender o direito no mundo e o mundo no direito.10 O Direito é influenciado cada dia mais pela economia, de maneira que ao estabelecer regras de conduta que modelam as relações entre as pessoas, deve-se levar em conta os impactos econômicos, os efeitos sobre a distribuição ou alocação dos recursos e os incentivos que influenciam o comportamento dos agentes econômicos privados. A análise conjunta do Direito, da Economia e das Organizações tem relevância por possibilitar entendimento mais profundo da complexidade da realidade, permite o emprego de aparato metodológico profícuo para a discussão crítica de temas de relevante interesse social.11 No caso da análise econômica aplicada ao direito do consumidor deve-se buscar o estudo da microeconomia, que genericamente é concebida como o ramo da ciência voltado ao estudo do comportamento das unidades de consumo representadas pelos indivíduos e familiares, empresas e suas respectivas produções e custos. Por fim, o estudo da geração de preços, serviços e fatores produtivos.12 No cenário atual do Brasil a relação entre Direito e Economia é fundamental tanto para o consumidor como para o fornecedor. O objetivo desse profícuo diálogo entre essas duas vertentes é a compreensão do sistema econômico. Quando os operadores do direito dominarem conceitos econômicos, suplantarão diversas lacunas que ocorrem em relação ao déficit da atuação do poder judiciário e em relação ao processo decisório visto de uma perspectiva crítica. Para o jurista é importante buscar as consequências da adoção de determinadas decisões, de modo que a análise econômica evidencia a tentativa de definir normas eficientes para gerar o bem estar social e a organização orçamentária do país. No Brasil o consumidor é um dos maiores responsáveis pela circulação de dinheiro, é um dos maiores públicos que movimenta a economia. É por essa razão que as decisões que decorrem de danos sofridos pelo consumidor devem buscar a proteção dos direitos consumeristas e a prevenção, além de uma resposta eficiente e justa, não só para o consumidor em si, mas para toda a coletividade. Sabe-se que não há um modelo que possa ser adotado para decisões judiciais. As decisões dos juízes são sem dúvida afetadas pelas preferências pessoais, porém a análise econômica do direito poderá abrir maior entendimento de diversos fenômenos jurídicos, bem como seus impactos na realidade social.
ca. Ed. Elsevier. 2009. p. 89. 9 RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; GALESKI, Irineu Júnior.Teoria geral dos contratos. Contratos empresariais e análise econômica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 89. 10 GICO JÚNIOR, Ivo. Metodologia e epistemologia da análise econômica do direito. Disponível em: <http://www.iders.org/textos/Ivo_Gicco_Metodologia_Epistemologia_da_AED.pdf>. Acesso em: 05 de julho de 2015. 11 ZYLBERSZTAJN, Decio, SZTAJN, Rachel. Direito e Economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p.4. 12 VASCONCELOS, Marco Antonio Sandoval. Manual de Economia. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 81. Revista do Curso de Direito
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2. PESQUISA EMPÍRICA DA APLICAÇÃO DO DANO MORAL PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. A pesquisa jurisprudencial foi o método escolhido para aferir que há um número significante de decisões que não abordam as causas efetivas de um dano. Os dados extraídos são importantes para refletir como hodiernamente a utilização da análise econômica do direito pode contribuir na defesa do direito do consumidor, uma vez que o olhar econômico pode trazer muitas melhorias para as relações de consumo. O impacto das decisões do Superior Tribunal de Justiça repercute e estrutura o Poder Judiciário. O Direito determina-se a ele mesmo por autorreferência, baseando-se na sua própria positividade.13 Um sistema hierarquizado não é suficiente, pois a aplicação do direito depende de vários elementos relevantes. Uma decisão não está pronta no texto da lei, toda decisão deve ser construída. A sociedade deve estar sempre integrada nos seus acoplamentos estruturais, pois os sistemas ligados entre si, ou seja, o sistema econômico é vinculado ao sistema político e o sistema jurídico. Então, a partir dessa premissa haverá decisões que façam sentido ao cidadão. Trata-se de descobrir lacunas ou espaços em branco no mapa dos fenômenos sociais e jurídicos, através da identificação das relações circulares internas do direito e da sociedade, bem como do estudo das respectivas interações externas.14 Diante de todos esses conceitos é possível afirmar que, o sistema deve ser sempre integrado, sociologicamente. A sociedade e o sistema, nada mais são do que um acoplamento estrutural, ou seja, significa que o sistema da sociedade entra em contato e compartilha valores comuns, portanto, os critérios de uma decisão devem ser valorados. No Brasil adota-se o critério de arbitramento pelo juiz para quantificar o dano moral, a teor do disposto no artigo 1.533 do Código Civil de 1916. O atual critério mantém a fórmula ao determinar, no artigo 946 do Código Civil, que se apurem as perdas e danos na forma que a lei processual determinar. Adota-se também a liquidação por artigos e por arbitramento. Deveras, o critério de arbitramento é a forma a mais adequada para a quantificação do dano moral. Quanto a fixação do valor da indenização há diversas controvérsias. O debate que se faz ao critério de arbitramento é que não há defesa eficaz contra uma estimativa que a lei submeta apenas ao critério livremente escolhido pelo juiz, pois se for exorbitante ou ínfima, qualquer que seja ela, estará sempre em consonância com a lei, obstando a criação de padrões que possibilitem o efetivo controle de sua justiça ou injustiça. A Análise Econômica do Direito não possui um critério específico para sua aplicação, mas é voltada para estudos empíricos da ciência econômica e microeconomia que se manifestam no plano individual. No caso do dano moral do consumidor, objeto do estudo, é possível que haja uma grande mudança quando o sistema econômico se chocar com o direito, portanto, é necessário que o aplicador do direito demonstre uma mínima compreensão de como extrair o conteúdo e a extensão do dano. Esse modelo de raciocínio poderá levar a uma mudança nas instâncias superiores, assim como poderá levar uma mudança no tratamento ao consumidor. Essa abordagem da Análise Econômica do Direito mesmo que mínima, nas decisões sobre dano moral no direito do consumidor, pode levar a sociedade a aceitar e mudar seu comportamento diante das decisões bem fundamentadas, com justificativas aceitas como razoáveis. O juiz tem que ter em toda e qualquer decisão, uma atuação política, econômica e justa. São observadas, diariamente, insuficiências da lei na sua literalidade para solucionar os casos judiciais. Casos rotineiros, como os de dano moral no direito do consumidor, se tornaram uma fábrica de reiteradas decisões sem fundamentos. E a partir dessa constatação leva-se um descrédito do Poder Judiciário, pois não há parâmetro em suas decisões. 13 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.2 14 TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.2
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3. ADEQUAÇÃO DAS DECISÕES PARA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR. A análise do dano moral, bem como a reparação desse dano, é tarefa das mais árduas, gerando incertezas e suscitando controvérsias na doutrina e jurisprudência. Em sentido comum, dano significa o mal ou ofensa pessoal; prejuízo moral; prejuízo material causado a alguém pela deterioração ou inutilização de bens seus; estrago, deterioração, danificação.15 O dano não consiste apenas na diminuição ou subtração de um bem jurídico material, mas também extrapatrimonial, como os direitos da personalidade. A questão da fixação do valor indenizatório do dano moral, deixada ao arbítrio dos magistrados, deve atender a alguns fatores como: a relação de causalidade entre a conduta e o resultado; o grau de intensidade da culpa ou do dolo por parte daquele que lesou; a extensão do dano conforme a gravidade das sequelas sofridas pela vítima; se o ofensor realizou qualquer ato no intuito de amenizar a dor sofrida pelo ofendido; se o lesante é reincidente; as condições econômicas das partes envolvidas; o grau de escolaridade; o nível social, ou seja, a reputação da vítima; a repercussão da ofensa perante a comunidade em que reside a vítima; a idade e o sexo da vítima; o caráter permanente ou não do menoscabo que ocasiona o sofrimento; a relação de parentesco com a vítima quando se trata do dano por ricochete.16 Apesar da legislação não estabelecer critérios e parâmetros para a indenização por danos morais, os magistrados, além de serem prudentes, devem seguir alguns critérios básicos sugeridos pela doutrina e utilizados pela jurisprudência, sob pena de infringir os princípios básicos do Estado democrático do direito, tais como o princípio da legalidade e o princípio da isonomia. A reparação do dano moral tem, antes de tudo, finalidade compensatória, proporcional ao agravo sofrido pelo ofendido e, em segundo lugar, finalidade punitiva, de natureza intimidatória. Assentando que o montante da indenização há de ser arbitrado judicialmente, caso a caso, afastados os antigos critérios tarifários e os limites estabelecidos por leis anteriores à Constituição.17 Quanto aos princípios gerais, estes devem permanecer íntegros e deve ser levado em conta elementos subjetivos e objetivos, tais como “a intensidade do sofrimento do ofendido, a gravidade, a natureza e a repercussão da ofensa e a posição social, política do ofendido, além da intensidade do dolo ou o grau de culpa do responsável, sua situação econômica e sua condenação anterior em ação criminal cível fundada no mesmo tipo de abuso” (art. 53 da Lei de Imprensa). Para que a reparação preencha dupla finalidade, compensatória e intimidatória, ressalvando-se ainda que, para a realização desta, é mister que o quantum da indenização seja de molde tal a desestimular novas ofensas. No contexto atual de crise econômica e globalização aumenta a interação entre os consumidores e o mercado. É preciso que haja um olhar econômico para as relações de consumo. O Direito do consumidor, em vista da grande exploração do consumo, tem grande necessidade de ser protegido, razão pela qual é muito importante que haja uma comunicação entre o Direito e a Economia. O artigo 170, inciso V, da Constituição Federal prevê como um dos princípios da ordem econômica a defesa do consumidor. Interessante ressaltar que o inciso IV do aludido dispositivo constitucional estabelece também como princípio a livre concorrência. Da interpretação dos incisos IV e V, a conclusão a que se chega é a de ser plenamente livre explorar a atividade econômica em nosso país, desde que de forma lícita — em respeito, por exemplo, aos demais princípios da ordem econômica —, e que, para ganhar da concorrência, o fornecedor não poderá colocar um produto ou prestar um serviço no mercado de consumo com violação aos direitos dos consumidores. 15 Verbete “dano”. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI – dicionário eletrônico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 16 CARDIN, Valéria Silva Galdino. Dano Moral no direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 44. 17 GRINOVER, Ada Pellegrini. A marcha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 153. Revista do Curso de Direito
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A opção da Constituição Federal de 1988 de tutela especial aos consumidores, considerados agentes econômicos mais vulneráveis no mercado globalizado, foi uma demonstração de como a ordem econômica de direção deve preparar o Brasil para a economia e a sociedade do século XXI.18 A dinamicidade do mercado de consumo, com a realização dos mais variados negócios jurídicos, leva os fornecedores a tratarem de forma impessoal os consumidores, praticamente impedindo-os de discutir o conteúdo das avenças, o que representa uma sensível redução da autonomia da vontade da maioria esmagadora dos destinatários finais de produtos e serviços As modificações socioeconômicas proporcionadas pela massificação contratual e pelo avanço tecnológico acarretaram a necessidade de uma maior intervenção do Poder Público sobre as relações privadas. Percebe-se também um grande crescimento da participação popular, que cada vez se torna mais efetiva na adoção de soluções políticas, e na realização de atividades que ordinariamente estão ligadas ao governo, para que se possa reencontrar o equilíbrio das relações jurídicas. A relação de consumo deve ser harmônica e justa, a fim de que o vínculo entre o fornecedor e o consumidor seja constituído de maneira tal que se estabeleça o equilíbrio econômico da equação financeira e das obrigações jurídicas pactuadas ou contraídas pelos interessados. O direito se vale de uma perspectiva econômica, razão pela qual os juristas devem observar os efeitos decorrentes da incidência da norma sobre a conduta dos indivíduos na sociedade.19 O Direito do consumidor se vale de uma perspectiva econômica, por isso os juristas devem observar os efeitos econômicos para tentar compreender o direito e o mundo do direito.20 A junção frutífera entre direito e economia não deve ser vista só no âmbito jurisdicional, mas sim no âmbito legislativo e no próprio executivo. Esse ramo do direito promove a criação de normas protetivas, visa-se três possíveis objetivos: 1. Desenvolver políticas de prevenção a falhas no mercado, promovendo a eficiência no mercado de produtos e serviços. 2. Objetivos de avanços éticos. 3.Proteção paternalista do consumidor.21 É preciso que haja eficiência frente aos casos concretos. Deve haver um estímulo por parte do legislador e aplicador do direito junto à economia para que o consumidor seja protegido à luz da lógica econômica, ou seja, não é só resolver conflitos, é preciso que haja repercussão para comportamentos futuros. Espera-se de um judiciário democrático e independente que seja imparcial e que as decisões proferidas observem o critério da racionalidade de suas fundamentações. Dois princípios que dão sentido à comunicação entre sujeitos e que são constitutivos da linguagem como meio de interação informativa são o princípio da não-contradição e o princípio da identidade.22 O resultado da pesquisa empírica demonstrou que dentre os julgados selecionados é possível afirmar que não há o olhar econômico, a partir dessa mudança pode-se dizer que poderá existir grande possibilidade de melhorias, especialmente para relações de consumo. Para aferição da pesquisa analisou-se alguns dos julgados selecionados na amostragem estatística feita dentre todos os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça do ano de 1995 ao ano 2013.
18 BENJAMIN, Antônio Herman de V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010. p .46. 19 SCOTON, Luis Eduardo Brito. Análise Econômica do direito do consumidor: o Código de Defesa do Consumidor como norma corretiva no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: <http://www.revista.amde.org.br/index.php/ramde/article/view/127> Acesso em: 09.ago.2015. 20 RIBEIRO, Gustavo Ferreira. GICO JR, Ivo. O jurista que calculava. Curitiba: CRV, 2013. p. 99. 21 RIBEIRO, Gustavo Ferreira. GICO JR, Ivo. O jurista que calculava. Curitiba: CRV, 2013. p.99. 22 ARISTÓTELES. Organon. São Paulo: Edipro, 2004. p. 384.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 291384 Recorrente: Soletur Sol Agencia de viagens e turismo LTDA. Recorrido: Renato de Magalhaes Rita. Relator: Min. RUY ROSADO DE AGUIAR - QUARTA TURMA. RAMO DO DIREITO: DIREITO CIVIL. ASSUNTO (S): DIREITO CIVIL, Responsabilidade Civil. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=IMGD&sequencial=169981&num_registro=200001286749&data=20010917&formato=PDF Acesso em: 09.ago.2015. Lex: Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça23 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 222837 / SP Recorrente Ana Maria Monteiro Recorrido: Varig S/A. Relator: Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO TERCEIRA TURMA. RAMO DO DIREITO: DIREITO DO CONSUMIDOR. Disponível em: <https://ww2. stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199900619200&dt_publicacao=10-04-2000&cod_tipo_documento=> acesso em: 09.ago.2015. Lex: Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça24 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 138.059 - MG (1997/00443264) Recorrente UNIMED BELO HORIZONTE COOPERATIVA DE TRABALHO MEDICO LTDA Recorrido: Varig S/A. Relator: Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO TERCEIRA TURMA. RAMO DO DIREITO: DIREITO DO CONSUMIDOR. Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=IMGD&sequencial=214773&num_registro=199700443264&data=20010611&formato=PDF> Acesso em: 09.ago.2015. Lex: Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça25 Com os resultados obtidos foi possível analisar que não há uma preocupação do jurista em observar os efeitos decorrentes da incidência da norma sobre a conduta que fere o direito consumerista, especialmente em relação a indenização de dano moral, veja-se alguns exemplos: Diante dos julgados extraídos da pesquisa realizada é possível afirmar que, o jurista deve revisitar o direito e levá-lo a sua máxima eficiência. O sistema jurídico deve prever uma resposta proporcional ao dano moral, por isso deve-se levar em conta a clareza e a adequação de um determinado valor em dinheiro para reparação da violação ao direito da personalidade.26 O juiz quando decide, decide a partir de determinados protocolos, baseado nas teorias jurídicas que pressupõe um saber estabilizado, a qual pode ser a mais adequada ao ponto de vista par da validade. Essa é a dimensão das abordagens teóricas e os precedentes. 23 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 291384, Ementa: “RESPONSABILIDADE CIVIL. AGÊNCIA DE VIAGENS. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INCÊNDIO EM EMBARCAÇÃO. A operadora de viagens que organiza pacote turístico responde pelo dano decorrente do incêndio que consumiu a embarcação por ela contratada. Passageiros que foram obrigados a se lançar ao mar, sem proteção de coletes salva-vidas, inexistentes no barco. Precedente (REsp 287.849/SP). Dano moral fixado em valor equivalente a 400 salários mínimos. Recurso não conhecido.” RECURSO ESPECIAL 2000/0128674-9. 24 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 222837 / SP, Ementa: “Extravio de bagagem. Dano moral e material. Código de Defesa do Consumidor. Prequestionamento. Tratando as instâncias ordinárias, com apoio na prova dos autos, das circunstâncias concretas do caso, assim a situação pessoal da autora, não é possível reverter o afastamento do dano moral, à medida que os seus pressupostos não foram ali configurados. 2.Não descartou o Acórdão recorrido a incidência do Código de Defesa do Consumidor, mas, apenas, considerou que não houve a prova do prejuízo, com o que aplicou o valor tarifado da Convenção de Varsóvia. Com essa peculiaridade não há violação ao art. 25 do referido Código.3. O tema da inversão do ônus da prova não foi tratado pelo Acórdão recorrido, não chegando o especial pela via do art. 535 do Código de Processo Civil.4.As peculiaridades do caso afastam o dissídio, pela falta de identidade da base empírica com os paradigmas.5.Recurso especial não conhecido.” REsp 222837 / SP RECURSO ESPECIAL 1999/0061920-0. 25 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 138.059 - MG (1997/0044326-4), Ementa: “CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. Quem se compromete a prestar assistência médica por meio de profissionais que indica, é responsável pelos serviços que estes prestam. Recurso especial não conhecido (STJ - REsp: 138059 MG 1997/0044326-4, Relator: Ministro ARI PARGENDLER, Data de Julgamento: 13/03/2001, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 11/06/2001 p. 197 JBCC vol. 193 p. 77 LEXSTJ vol. 146 p. 104).” 26 SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009. p. 217. Revista do Curso de Direito
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A jurisprudência serve para estabilização, reduz sentido, emite mensagem do ponto de vista jurídico. As teorias jurídicas constroem campos semânticos, é um universo lógico, argumentativo. As decisões são as formas como os tribunais se comunicam, por isso, atualmente, o Superior Tribunal de Justiça trava mecanismos de controles. A abordagem pós-giro linguístico é discutida no sistema social, portanto, nesse caso se afere que a análise econômica do direito, contribui indiretamente para afirmar que há uma ineficiência na aplicação do dano moral no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Com a compreensão do tema, bem como a pesquisa empírica realizada, percebe-se que não há tanta repercussão patrimonial para compensar a vítima, não há tanta punição ao infrator, não há desestímulo para que novas práticas semelhantes sejam repelidas, pois os operadores do direito não se atentam para os devidos mecanismos de aplicação, bem como não discorrem sob a finalidade do dano moral. Nesse sentido há uma falha na resposta aos ofensores que violam o direito do consumidor, principalmente uma resposta do sistema jurídico pela violação dos direitos da personalidade. Um precedente deve se ajustar aos critérios de validade, as modernas abordagens linguísticas, aos parâmetros epistemológicos para assim observar o direito. As decisões do Superior Tribunal de Justiça são ajustadas ao direito válido, são os materiais empíricos e a análise qualitativa do discurso jurídico. Para que se tenha um sistema mais eficaz na órbita do direito do consumidor, é preciso que o Poder Judiciário procure formular decisões adequadas ao que diz o direito. A reparação do dano moral pressupõe diversas finalidades, bem como: compensar, punir e prevenir. O operador do direito deve buscar aplicar suas decisões de modo que analise as consequências reais. Além das finalidades do dano moral, vem surgindo novos mecanismos para interpretação da regra do sistema jurídico, a jus economia é uma delas, pois auxilia a reconhecer uma política pública eficiente, e o custo de oportunidade para alcançar tal resultado. É certo que a fixação do valor da indenização do dano moral é tarefa extremamente árdua para os operadores do direito, sobretudo para o juiz, uma vez que deve indicar além dos pressupostos da responsabilidade civil, o critério que pautou a sua orientação e as regras de experiência27, uma vez que trabalha no campo marcado pelas incertezas do subjetivismo. O estudo da Análise Econômica do Direito ainda não é muito tratado pelos aplicadores do Direito, mas o direito do consumidor, principalmente no âmbito do estudo do dano moral, necessita de métodos próprios e diferenciados para aferir sua aplicação, sobretudo para cumprir suas finalidades. Ao fim e ao cabo a Análise Econômica do direito é um dos fatores que poderá contribuir para prevenção de danos ao consumidor, visto que a aplicabilidade da matéria pode ter um efeito motivador para as finalidades compensatórias, punitivas e preventivas. No Brasil as maiores reclamações dos consumidores são relacionadas a falha na prestação de serviços das empresas de telefonia. A empresa de telefonia TIM, por exemplo, teve uma receita líquida de R$19.49 bilhões de reais no ano de 2014.28 A partir desse dado pergunta-se: uma indenização de danos morais no valor de R$5 (cinco) mil reais teria um cunho preventivo e punitivo diante do lucro dessa empresa? A fixação de indenização por dano moral deve ser proporcional ao poder econômico do transgressor, entretanto jamais em valor irrisório, uma vez que pode funcionar como estímulo à prática reiterada de ato ilícito. O sentido da análise econômica do direito na aplicação do dano moral é demonstrar o potencial econômico das grandes empresas do Brasil que todos os dias lesionam seus consumidores e pagam indenizações ínfimas comparado ao lucro que obtêm. 27 SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009. p. 218. 28 BRASIL. Disponível em: < http://www.valor.com.br/empresas/3910544/lucro-liquido-da-tim-sobe-27-para-r-154-bilhaoem-2014 >. Acesso em: 01.ago.2015.
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O Estado é fundamental para o desenvolvimento da estabilidade e crescimento da economia do país. O Poder Judiciário como um dos poderes do Estado desempenha uma função de natureza distinta, qual seja, a detenção da atividade jurisdicional. A satisfação pecuniária em relação ao direito do consumidor está inteiramente relacionada a economia, principalmente aos conceitos da microeconomia, que é o estudo das empresas, suas produções, custos, bens, serviços. Quando o consumidor chega ao ponto de procurar o Poder Judiciário, significa que na maioria das vezes teve algum direito violado. Diante da função jurisdicional do Poder Judiciário, o magistrado deve buscar a otimização do poder decisório, ou seja, a consideração de certas consequências que provavelmente advirão do resultado da decisão. Quando se busca uma desmitificação do discurso jurídico aplicado as reais consequências, sabe-se que poderá existir uma resposta mais justa aos destinatários da decisão, que é a sociedade. A análise econômica nas decisões do direito do consumidor não busca um enriquecimento à custa do empobrecimento alheio, é preciso haver um equilíbrio entre o caso em exame e as normas jurídicas em geral. A proteção do direito do consumidor é vantajosa para o Estado e para o fornecedor, pois consequentemente o mercado terá maior circulação de riquezas. Aliar a análise econômica do direito com o direito do consumidor significa trazer grandes proveitos, principalmente para o progresso da economia que ultimamente passa por momentos instáveis. Buscar prevenção de danos e qualificação no atendimento ao consumidor é melhor opção tanto para o fornecedor quanto para o consumidor, pois estimula a confiança do consumidor e faz com que o fornecedor busque adimplir com suas obrigações. No caso das decisões de dano moral envolvendo o consumidor o valor a ser indenizado não poderá extrapolar as forças econômicas daquele que lesou, nem ser desproporcional ao dano produzido, sob pena de não se atingir a justiça. A indenização tem um grande papel na relação entre consumidor e fornecedor, busca-se repercutir na confiança da relação entre as partes, promove-se a eficiência, de forma que a indenização é mais uma ferramenta da qual se vale a legislação consumerista – em última instância, o Estado – para tutelar o consumidor. Nesse sentido, o jurista pode aplicar sanções mais severas com intuito de realizar alterações do mercado e conduzir a solução comportamental com critérios científicos e não à avaliação baseada em mero bom senso.29 A partir do momento que o consumidor é inserido numa sociedade capitalista vale tudo pelo lucro, por isso o Estado deve buscar prevenir e combater todas as políticas que são prejudiciais ao consumidor. A perspectiva econômica do direito do consumidor assume cada vez maior valor. Fica evidente, que ao proferir decisões no âmbito do direito do consumidor com a devida análise econômica, o Poder Judiciário também protege a economia. Existem diversas controvérsias sobre a natureza jurídica da indenização. Defende-se a natureza compensatória, ressarcitória ou ambas, discute-se muito acerca da fixação do valor que melhor represente a satisfação da vítima. Com o estudo da análise econômica do direito na aplicação do dano moral o que se pretende é reprimir a ofensa e compensar o consumidor. Quanto ao ofensor, puni-lo e inibir-lhe a prática de novos atos ilícitos que ensejem danos morais ou até materiais. O quantum devido deverá sempre ser arbitrado pelo juiz, que, levando em consideração os fatos pertinentes de cada caso específico, equacionará a dor sentida e o valor devido a título de indenização, chegando a uma quantia justa e proporcional, capaz de atender aos objetivos da indenização. 29 COOTER, Robert; ULLEN, Thomas. Direito & economia. Trad. Luis Marcos Sander e Francisco Araújo da Costa. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.p. 24. Revista do Curso de Direito
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O dano moral atrelado ao direito do consumidor procura simbolizar um marco de mudança. Há uma massificação dos danos, causada pela visão individualista e judicial liberal, que, no Brasil, resulta em uma forte impunidade da prática geral violadora dos direitos do consumidor.30 O Poder Judiciário tem um papel muito importante na efetividade do ressarcimento do dano moral. Deve-se buscar uma fundamentação coerente, atrelada à análise econômica do direito, que por si só impulsiona a prevenção de práticas comerciais lesivas ao consumidor. A função do dano moral é restrita a uma recomposição, inclusive quando compensa lesões de direito da personalidade, exatamente porque o objetivo de se destinar um valor econômico para aquele que sofreu danos imateriais é revitalizar o indivíduo, enfraquecido pela ofensa, com os prazeres advindos do consumo material do dinheiro, acreditando-se que essas sensações positivas eliminem ou contemporizem os males da alma. A aplicação do dano moral deve observar a visão da solidariedade, igualdade e liberdade, pois o Brasil se caracteriza por indenizações pífias que não possuem efeito pedagógico nenhum aos consumidores.31 A pesquisa realizada mostra a importância de se evitar reiteradas práticas comerciais que ferem os direitos dos consumidores, e ainda pior, práticas que se repetem diariamente. Percebe-se que pela estatística demonstrada, não há uma preocupação do operador do direito em observar os efeitos decorrentes do dano moral no caso concreto. Sabe-se que a Súmula 07, publicada no Diário da Justiça da União de 03.09.1990, com o seguinte teor: a “pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”, cuida de estabelecer um limite para a discussão das matérias de fato, razão pela qual não há reexame de provas. Mesmo com essa limitação da pesquisa no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o operador do direito, em especial o juiz, desembargadores e ministros, devem percorrer um caminho árduo, mas jamais poderá deixar de verificar a razoabilidade e proporcionalidade do dano no caso concreto. A valoração do dano moral nas relações de consumo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça deve ser destinada a eliminar essa injusta desigualdade entre fornecedor e consumidor, reestabelecendo o equilíbrio entre as partes, principalmente oprimindo os abusos econômicos. O Poder Judiciário deve revisitar suas decisões, aplicá-las de forma pedagógica em conjunto com análise econômica do direito, para cumprir com a verdadeira função social de exemplaridade, pois a sociedade cada vez mais, clama por métodos técnicos, jurídicos e econômicos que sejam razoáveis e possibilitem enfrentar temas jurídicos como o do dano moral, para no entanto obter, efetivamente, menor prejuízo ao consumidor, que hoje é um dos maiores públicos responsáveis pela circulação de riquezas.
30 SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009. p. 20. 31 SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009. p.19.
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CONCLUSÃO No direito do consumidor, especificamente no caso do dano moral no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a análise econômica das decisões pode agir como arma do Estado para intervir economicamente e promover a tutela do direito do consumidor de forma mais eficiente. Sabe-se que não é possível estabelecer uma resposta certa ou uma decisão certa para um problema jurídico, porém é possível identificar o déficit que ocorre em relação à atuação do Poder Judiciário. Para os consumidores que buscam seus direitos através de processos judiciais, é importante dizer que o jurista deve se atentar para as consequências que provavelmente advirão do resultado da decisão. A vulnerabilidade do consumidor deve ser compreendida pela ótica econômica, pelo elo fundamental que o liga ao mercado, constituindo-se, portanto, uma realidade que deve ser observada perante um dos principais fundamentos da atual Constituição Federal de 1988, qual seja, valores da dignidade da pessoa humana. É possível afirmar que o direito do consumidor está inteiramente ligado à produção e circulação de riquezas, por isso o jurista deve contrapor uma tipologia estrutural de sujeitos, coisas e atos, tendo em vista a aplicabilidade de uma disciplina normativa. Indubitavelmente os juristas devem se atentar as decisões aplicadas, levando-se em consideração o Estado constitucional com a índole de Estado de direito, em vinculação ao direito vigente. Compreende-se em adequar uma normatividade decisória, todavia, é um largo espectro de problemas, tendo em vista que não há um parâmetro que se deve seguir. Em todas as demandas que envolvem danos morais, o juiz defronta-se com o mesmo problema: a perplexidade ante a inexistência de critérios uniformes e definidos para arbitrar um valor adequado. Cabe aos juristas uma investigação aprofundada, não apenas sobre o valor a ser aplicado aos fornecedores que lesionam seus consumidores, mas em última ratio, deve-se buscar soluções efetivas, caso a caso, para que os propósitos da norma sejam aplicados com efetividade. A Constituição Federal afirma que há entre os fundamentos do Brasil, a dignidade da pessoa humana, portanto, o Poder Judiciário tem um grande papel no sentido de preservar o direito de todo cidadão, a quem cabe, em última instância, salvaguardar toda potencialidade existentes nas políticas públicas ditadas pelo Poder Constituinte. Afigura-se complexa a tarefa de precisar a eficiência da aplicação do dano moral nas relações de consumo. Não existe uma resposta certa ou uma decisão certa para um problema jurídico. É preciso uma exigência de uma reflexão teórica, porém sabe-se que o direito do consumidor precisa ser revisitado. A pesquisa das jurisprudências no âmbito do Superior Tribunal de Justiça demonstrou que de certa forma há uma falha em salvaguardar os direitos protetivos do consumidor perante o fornecedor. É inquestionável que o consumidor é submisso, inclusive estruturalmente diante da realidade de uma grande empresa ou submisso no sentido de ser vulnerável nas relações de consumo. Esses fatores devem ser encarados como fundamentais, essenciais, nas decisões dos tribunais superiores, para assim o direito do consumidor adequar-se estruturalmente à análise econômica do direito. A partir dessa conclusão, pode-se trabalhar com a norma consumerista e sua eficiência frente ao problema concreto.
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O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO, LEI Nº 13.1052/2015 E A BUSCA PELA EFICIENTE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL: APONTAMENTOS SOBRE O INCENTIVO À CONCILIAÇÃO E A EXIGÊNCIA DE COOPERAÇÃO DAS PARTES LITIGANTES THE NEW CIVIL PROCEDURE CODE AND THE SEARCH FOR EFFICIENT JUDICIAL PROVISION: NOTES ON INCENTIVE TO RECONCILIATION AND COOPERATION REQUIREMENT OF LITIGANTS Paulo Márcio Reis Santos. Advogado. Mestre e Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor de Direito Internacional Público e de Direito Internacional Privado da Universidade FUMEC. Coordenador da Pós Pós-Graduação Lato Sensu de Direito da Universidade FUMEC. E-mail: paulo.marcio@fumec.br. Samantha Caroline Ferreira Moreira Professora e Coordenadora Ajunta da Pós-Graduação Lato Sensu de Direito Empresarial da Universidade FUMEC. Professora da PUC MINAS. Mestra em Direito Privado. Especialista em Direito Empresarial com ênfase nas relações de mercado. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Advogada. E-mail: sthmoreira@yahoo.com.br
RESUMO A deficiência técnica na prática dos procedimentos judiciais, bem como a cultura da litigância excessiva brasileira acabam por implicar em um dos maiores obstáculos à missão do Poder Judiciário, qual seja, a tempestividade na entrega da prestação jurisdicional. Nesse contexto, o CPC/2015, enfatiza a necessidade da eficiência da prestação jurisdicional e convoca as partes, sempre que possível, a resolver seus conflitos de forma amigável, possibilitando a prévia designação de audiência de conciliação ou de mediação, antes mesmo de a parte contrária protocolar sua defesa. Para tanto, prevê a criação de centros com profissionais especializados, com a devida formação de mediadores e conciliadores. Será demonstrado que as partes terão importante papel durante a condução do processo, na medida em que, a partir da vigência do NCPC/2015, poderão convencionar, de forma ampla, em causas sobre direitos que admitam autocomposição. Ainda, o presente artigo tem por escopo estudar se as novidades trazidas nas normas gerais, bem como os dispositivos concernentes à postura das partes no processo judicial, serão benéficas e proporcionarão celeridade e eficiência aos procedimentos judiciais. A pretensão é de que a presente pesquisa seja útil à comunidade jurídica e à sociedade, a fim de contribuir para pacificação e diminuição de litígios no cenário nacional. Palavras-chave: Efetividade; Acesso à justiça; Novo Código de Processo Civil; Conciliação. ABSTRACT A technical failure in practice of judicial procedures and the culture of Brazilian excessive litigation ultimately result in a major obstacle to the mission of the judiciary, namely, the timeliness in the delivery of judicial services. In this context, the CPC / 2015 emphasizes the need for efficiency of adjudication and calls the parties, whenever possible, to resolve conflicts amicably, enabling the prior designation of hearing conciliation or mediation, even before the part contrary to file his defense. Therefore, it provides for the establishment of centers with specialized professionals with proper training of mediators and conciliators. It will be shown that the parties have an important role during the process of driving, to the extent that, as the term of the NCPC / 2015 may agree, broadly in causes on rights admit composition. Still, this article is scope to study whether the novelties introduced in the general rules and the provisions concerning the position of the parties in the judicial process will be beneficial and will provide speed and efficiency of judicial proceedings. The claim is that this research will be useful to the legal community and society in order to contribute to peace and decrease disputes in the national scene. Keywords: Effectiveness; Access to justice; New Civil Procedure Code; Conciliation; Revista do Curso de Direito
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1 INTRODUÇÃO A razoável e tempestiva duração do processo são formas de se alcançar um Poder Judiciário célere, anseio de toda a sociedade, inclusive dos operadores do Direito. A permanente demora das decisões judiciais e no trâmite do processo como um todo incide na verdadeira denegação ao acesso à justiça e violação dos ditames constitucionais, inclusive no que concerne à necessária segurança para a realização dos negócios jurídicos empresariais. Especificamente no art. 5º, inc. LXXVIII, da CF/88, o legislador constitucional estabelece o direito de todos terem "assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”1 É primordial que a prestação jurisdicional e o acesso à justiça, como pressupostos constitucionais, observem a legislação, especificamente de ordem econômica, para diminuir os custos envolvidos na manutenção de um processo e minimizar a quantidade de falhas nas decisões judiciais.2 De um lado, a demora no processo representa a falibilidade do Direito na proteção das situações concretas, que sofrem deformações com o decurso do tempo. De outro, a precipitação dos chamados provimentos sumários ou medidas de cognição parcial resulta na fragilização da ampla defesa e do estabelecimento do contraditório. Nas palavras do presidente da comissão de juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto do CPC, Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Luiz Fux: O Brasil clama por um processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma célere, sensível e efetiva, as misérias e as aberrações que passam pela Ponte da Justiça.3
O processo é um instrumento destinado à vontade da lei, devendo, na medida do possível, desenvolver-se mediante um procedimento célere, a fim de que a tutela jurisdicional seja oportuna e efetiva, sendo certo que a tempestividade e a efetividade da referida tutela são elementos primordiais para se determinar o grau de eficiência dos tribunais. Em trabalho sobre o tema destacamos que4 “o sentido da palavra justiça há muitos anos é objeto de investigação jurídica e filosófica.” Na acepção do jurisconsulto Ulpiano, "a justiça consiste em dar a cada um o que é seu". Podemos citar ainda estudos analisando a ideia de justiça em Aristóteles, Kant, Hegel e Radbruch5. No aspecto jurídico, a justiça tem por finalidade a garantia dos direitos e deveres previstos no ordenamento legal, propiciando o convívio harmônico. Destarte, o Poder Judiciário desempenha a relevante função de assegurar a efetiva aplicação da justiça, sendo que a administração judiciária eficaz é fundamental até para aquele que perde a demanda, já que, sob o enfoque psicológico e econômico, a espera demorada e desnecessária da jurisdição causa descrédito na legislação e no próprio Poder Judiciário. Desse modo, o novo diploma processual, CPC/2015, enfatiza a noção da prestação jurisdicional como serviço público adequado e eficiente, a partir da concepção de um novo formalismo, cujo objetivo é buscar a “solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”, em “prazo razoável” (art. 4º), bem como será enfatizado o importante papel das partes no curso do processo, onde será exigido o dever de lealdade, boa-fé e cooperação processual. 2 A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E ACESSO À JUSTIÇA COMO GARANTIAS CONSTITUCIONAIS O processo é um instrumento destinado à vontade da lei, devendo, na medida do possível, desenvolver-se mediante um procedimento célere, a fim de que a tutela jurisdicional seja oportuna e efetiva, sendo certo que 1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 10. mai. 2016. 2 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. 3 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Código de Processo Civil: anteprojeto. Brasília: Senado Federal, 2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/anteprojeto.pdf>. Acesso em: 3 jan. 2016. 4 SANTOS, Paulo Márcio Reis. Direito econômico processual: uma abordagem pela Análise Econômica do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. 5 Sobre o tema, ver Brych (2007) e Salgado (1986, 1996).
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a tempestividade e a efetividade da referida tutela são elementos primordiais para se determinar o grau de eficiência dos tribunais. A Constituição Federal em seu art. 5º, inc. XXXIV, onde se assegura o direito de petição aos Poderes Públicos, a obtenção de certidões em repartições públicas e a gratuidade das taxas judiciárias; assim como em seu inc. XXXV, onde se afirma taxativamente que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito6”, consagra o direito a jurisdição. A prestação jurisdicional7, por óbvio, não se esgota com a prolação da sentença, mas também nos provimentos cautelares e antecipatórios, sendo imprescindível a condução do processo de forma eficaz pelo magistrado, haja vista o crescente número de demandas, sendo imprescindível que, ao final da demanda, esteja solucionado o conflito e não a lide. Mauro Cappelletti8 aborda a questão do acesso à justiça sob o prisma da efetividade e apontam que os obstáculos para alcançá-la são: os custos do processo, condições financeiras das partes, capacidade de suportar as delongas do processo (também relacionada às condições financeiras) e habitualidade da parte na participação em litígios . O autor relaciona os obstáculos acima citados, dentre outros, especialmente à jurisdição estatal e apontam que os obstáculos criados por nosso sistema jurídico são mais pronunciados em pequenas causas e autores individuais, especialmente os pobres. Destarte, o acesso à justiça deve ser visto como o mais básico dos direitos em um sistema jurídico igualitário que tenha por finalidade realmente garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. Portanto, a democratização da justiça deve se dar com a efetiva aproximação do cidadão ao Judiciário. O entendimento de que a jurisdição deve atender ao cidadão de forma efetiva e tempestiva traz à tona o questionado problema da morosidade judicial. Sobre a efetividade do processo e técnica processual, José Carlos Barbosa Moreira10 listou um “programa básico em prol da efetividade”, a saber: a) o processo deve dispor de instrumento de tutela adequados, na medida do possível, a todos os direitos contemplados no ordenamento, quer resultem de expressa previsão normativa, que se possam inferir do sistema. b) esses instrumentos devem ser utilizáveis. c) impende assegurar condições propícias à exata e completa reconstituição dos fatos relevantes, a fim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder à realidade. d) em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento. e) cumpre se possa atingir semelhante resultado com o mínimo de dispêndio de tempo e energias.
Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr11. ressaltam que a Corte Europeia dos Direitos do Homem pacificamente entendeu que: [...] respeitadas as circunstâncias de cada caso, devem ser observados três critérios para se determinar a duração razoável do processo, quais sejam: a) a complexidade do assunto; b) o comportamento dos litigantes e de seus procuradores ou da acusação e da defesa no processo; c) a atuação do órgão jurisdicional. 6 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Código de Processo Civil: anteprojeto. Brasília: Senado Federal, 2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/anteprojeto.pdf>. Acesso em: 3 jan. 2016. 7 SANTOS, Paulo Márcio Reis; MOREIRA, Samantha Caroline Ferreira. A eficiente solução de litígios: uma proposta a partir da análise econômica do direito e dos meios alternativos de solução de conflitos. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 24., Aracaju/SE. Anais... Aracaju/SE: CONPEDI, 3 a 6 de junho de 2015. p. 86-106. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/6l9jk46k/Wjh892jI24G6VsA1.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2016. 8 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. 9 Relevante apontar a pesquisa realizada pela equipe de pesquisadores da PUCRS, em que foi abordado o problema do crescimento das demandas cíveis em nosso país a partir de dois planos distintos de análise: do que denominamos oferta da prestação jurisdicional e, por outro lado, da demanda por estes serviços. (TIMM; SANTOS FILHO, 2011, p. 34). 10 BARBOSA MOREIRA, José Carlos.O juiz e a cultura da transgressão. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 47, n. 267, p. 5-12, jan. 2000. 11 DIDIER, Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Revista de Processo. São Paulo: RT, vol. 236, p. 327, 2014. Revista do Curso de Direito
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A Corte Europeia adquire importância no desenvolvimento de uma jurisprudência a respeito da matéria, tendo em vista que a grande maioria das reclamações a ela submetidas refere-se à lentidão dos processos, em virtude da violação da garantia da tutela jurisdicional efetiva. Assim, Carlos Henrique Ramos12 reconhece que: A Corte Europeia de Direitos Humanos ocupa papel primordial na proteção dos direitos humanos no continente europeu. Primeiramente, por se tratar de órgão bem aparelhado, estruturado e organizado. Além do mais, sua jurisprudência, em muitos casos, serve como mecanismo de controle, pois muitas vezes uma condenação perante a Corte pode despertar a responsabilidade dos governantes em virtude do constrangimento sofrido em face da comunidade internacional.
Destarte, o ideal é a distribuição racional do tempo do processo com efetividade do resultado e decisão tempestiva, na medida em que o julgamento tardio faz perder seu sentido reparador, por isso a Constituição Federal brasileira de 1988 assegura, em seu art. 5º, § 1º, o direito ao processo sem dilações indevidas. O “fator tempo, que permeia a noção de processo judicial, constitui, desde há muito tempo, a mola propulsora do principal motivo de crise da justiça”13, e afirma que a demora processual é fonte de “injustiça e corresponde a verdadeira denegação da justiça”, citando Elio Fazzalari ao referir-se à demora do processo como a “tormenta das tormentas”. Nessa linha, o processo, para cumprir a missão que lhe atribui o Estado Democrático de Direito14, tem que se apresentar como instrumento capaz de propiciar efetividade à garantia de “acesso à Justiça”. Superada a enorme crise político-social causada pela 2ª Guerra Mundial, as atenções dos estudiosos do Direito voltaram-se para problemas da prestação jurisdicional até então não cogitados. Nota-se que, depois de um século de extensos e profícuos estudos sobre os conceitos e as categorias fundamentais do Direito Processual Civil, os doutos atentaram para um fato muito singelo e muito significativo: a sociedade como um todo continuava ansiosa por uma prestação jurisdicional mais efetiva. Sobre o ideal de justiça, com pertinência, o processualista Humberto Theodoro Júnior15 afirma que: Aspirava-se, cada vez mais, a uma tutela que fosse mais pronta e mais consentânea com uma justa e célere realização ou preservação dos direitos subjetivos violados ou ameaçados; por uma Justiça que fosse amoldável a todos os tipos de conflitos jurídicos e que estivesse ao alcance de todas as camadas sociais e de todos os titulares de interesses legítimos e relevantes; por uma Justiça, enfim, que assumisse, de maneira concreta e satisfatória, a função de realmente implementar a vontade da lei material, com o menor custo e a maior brevidade possíveis, tudo através de órgãos adequadamente preparados, do ponto de vista técnico, e amplamente confiáveis, do ponto de vista ético.
O fator tempo, que permeia a noção de processo judicial, constitui, desde há muito, a mola propulsora do principal motivo de crise da justiça. Além disso, tais obstáculos ocasionam a diminuição dos investimentos e da utilização do capital disponível, reduzindo, por fim, a qualidade da política econômica. A demora recorrente retira do Poder Judiciário a legitimidade que dele se espera como pacificador social por excelência. Ademais, causa na sociedade um descrédito da força normativa das leis. O Poder Judiciário, em geral, “é visto como uma alternativa pouco eficiente, dotada de uma relação custo-benefício desequilibrada, apta a ser acionada apenas em último caso, já que a Justiça é morosa, extremamente formalizada, imprevisível e, na maioria dos casos, onerosa.16” Assim, é imperiosa a ocorrência de uma mudança estrutural no Poder Judiciário, a qual também resta carac12 RAMOS, Carlos Henrique. Processo Civil e o princípio da duração razoável do processo. Curitiba: Juruá, 2008, p. 87. 13 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e processo: análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual, civil e penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 14 Importante apontar o conceito de Estado Democrático de Direito, do autor Sérgio Henriques Zandona Freitas que assim enfatiza: “O Estado Democrático de Direito não representa simplesmente o resultado dos elementos constitutivos do Estado de Direito e do Estado Democrático, mas uma evolução histórica que atravessou os estágios do Estado de Polícia, do Estado liberal e do Estado social, com a superação de grande parte das contradições e das deficiências dos sistemas anteriores, até atingir o modelo contemporâneo que inspira várias das atuais Constituições estrangeiras, além da brasileira de 1988. (FREITAS, 2014, p. 64-65). 15 HEODORO JÚNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional. Insuficiência da reforma das leis processuais. Academia Brasileira de Processo Civil, jun. 2004. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/artigos/artigo51.htm>. Acesso em: 15 fev. 2016. 16 MEDINA, José Miguel. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
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terizada pela Súmula Vinculante17, pelo necessário aumento do número de juízes e pela descentralização da Justiça através de medidas18 extrajudiciais de resoluções de conflito.
3 O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO E A BUSCA PELA EFICIÊNCIA DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL Os processualistas19 sempre se preocuparam com um valor fundamental ínsito à tutela dos direitos, qual seja: a imprescindibilidade da efetividade do processo como instrumento de realização da justiça. A efetividade e celeridade no Novo Código de Processo Civil restam sedimentadas, conforme enfatizado no texto de apresentação do Projeto do Novo Código de Processo Civil20: É que; aqui e alhures não se calam as vozes contra a morosidade da justiça. O vaticínio tornou-se imediato: justiça retardada é justiça denegada” e com esse estigma arrastou-se o Poder Judiciário, conduzindo o seu desprestígio a índices alarmantes de insatisfação aos olhos do povo. Esse o desafio da comissão: resgatar a crença no judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere.
17 “Súmula em sentido lato, nada mais é que o resumo do resultado dos julgamentos e resultante de teses jurídicas que demonstram o posicionamento da jurisprudência reiterada e predominante dos Tribunais. Seu principal objetivo é estabelecer as teses jurídicas que devem ser seguidas pelos membros do tribunal que a editou, para que direcione o julgamento e por consequência facilite o exercício da atividade jurisdicional, na condição de verdadeiro referencial de julgamento. No ordenamento jurídico pátrio atual, há previsão de edição de súmulas simples e das chamadas súmulas vinculantes, neste último caso de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal. A súmula vinculante surgiu com a emenda constitucional 45/2004 e acrescentou à Constituição Federal os seguintes dispositivos: Artigo 103 - A. A súmula vinculante além de evitar o acúmulo de processos, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, tem por escopo impedir que norma idêntica seja interpretada de forma distinta preservando-se assim o princípio da igualdade, pois, haja vista que não haveria necessidade de julgamento de matéria repetida, anteriormente discutida e decidida.” (MARTINS, 2012). 18 “Haja vista a diversidade e a amplitude de métodos seguem as principais formas extrajudiciais pelas quais se buscam a pacificação dos conflitos. Conciliação: é a solução de um litígio empreendida pelas próprias partes nele envolvidas. É presidida por um conciliador investido de autoridade, imparcial, com a competência de controlar as negociações, sugerir propostas e interferir na discussão, a fim de que os interesses divergentes sejam harmonizados. É o meio de solução de litígio mais eficiente, afinal ambas as partes saem satisfeitas, não correm o risco de ter a demanda julgada improcedente. Também evita o desgaste que um litígio longo causa e toda a insatisfação. Mediação: o mediador é o terceiro imparcial que auxilia o diálogo entre as partes, com o objetivo de transformar a divergência, diminuindo o espírito de competitividade, possibilitando que encontrem uma solução que as satisfaça. A mediação, assim como a conciliação, representa uma forma consensual na resolução de conflitos, onde as partes, por meio de diálogo claro e pacífico, têm a possibilidade resolverem o conflito, através de um mediador imparcial, que facilitará e conduzirá a comunicação entre elas. A grande diferença entre um mediador e um conciliador é que o primeiro leva as partes a se reencontrarem, tenta retirar o sentimento de rancor, de ódio, ou vingança, se preocupa com os sentimentos, o que diminui a chance das partes acionarem o Poder Judiciário. A arbitragem, por sua vez, é também um acordo de vontades, com o objetivo de eliminar o conflito presente, mas por meio de um ou mais árbitros. É classificada como um meio heterocompositivo, pois há a intervenção de um terceiro - árbitro - a quem será conferido pelos litigantes o poder de decidir o litígio, impondo a sua solução, tal como no Judiciário” (SANTOS; MOREIRA, 2015, p. 99-102). 19 É difícil precisar em que momento iniciou e em que fase atualmente encontra-se a reforma do processo civil brasileiro. Algumas correntes sustentam que o marco inicial foi no ano de 1985 com a introdução ao sistema de diversos instrumentos destinados a tutelar direitos de natureza coletiva (ZAVANSCKI, 1997, p. 173-178), outras afirmam que as reformas somente tiveram início no ano de 1992, a partir da promulgação da Lei 8.455 que alterou os dispositivos referentes à prova pericial (WAMBIER, 2015). Independente de ser a primeira ou a segunda fase das reformas deste cenário, ao final do ano de 1994 por meio das Leis 8.950, 8.951, 8.952 e 8.953 e, novamente, no ano de 1995 com as Leis 9.099, 9.139 e 9.245 apresentam-se no país as primeiras alterações com o objetivo de aperfeiçoar e ampliar os mecanismos até então existentes no sistema processual vigente (ZAVANSCKI, 1997). 20 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 10. Maio 2016. Revista do Curso de Direito
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Fred Didier Jr. observa que o novo CPC não contém apenas normas jurídicas novas, havendo, é claro, normas antigas. Mas ressalta, especialmente, as seguintes normas: Normas jurídicas novas: além de compreender as normas que não existiam (v.g., art. 319, VII), também compreendem as normas que reforçam tendências doutrinárias e jurisprudenciais (v.g. art. 1.023, § 2º), ou corrigem as teses jurisprudenciais dominantes (v.g., art. 85, § 18, que se opõe à Súmula 453/STJ: “Os honorários sucumbenciais, quando omitidos em decisão transitada em julgado, não podem ser cobrados em execução ou em ação própria”). Pseudonovidades normativas: normas jurídicas que já estariam implícitas no sistema processual (por decorrerem de princípios constitucionais), mas que foram explicitadas no novo CPC (v.g., art. 373, § 1º). Normas simbólicas: conceito decorrente da teoria de Marcelo Neves, referindo-se às normas em que o sentido político predomina sobre o normativo jurídico (v.g., art. 3º, § 3º). Pseudonovidades normativas: normas jurídicas que já estariam implícitas no sistema processual (por decorrerem de princípios constitucionais), mas que foram explicitadas no novo CPC (v.g., art. 373, § 1º). (Didier, p. 327, 2014) Desse modo, verifica-se que a noção da prestação jurisdicional como serviço público adequado e eficiente, a partir da concepção de um novo formalismo, cujo objetivo é a satisfação e solução dos conflitos em um prazo razoável, está amparada pela maioria dos dispositivos do novo instrumento processual. 3.1 PANORAMA DAS NOVAS NORMAS GERAIS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO Nas normas gerais do novo Código de Processo Civil Brasileiro (CPC/2015), Lei nº 13.105, de 18 de março de 2015,21 cumpre destacar, sem a pretensão de se esgotar o tema, algumas inovações que buscam eficiência da prestação jurisdicional, tais como as normas expressas no o art. 4º, onde temos a determinação de que as partes têm o direito da solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa; art. 9º o estabelecimento do reforço das garantias ao contraditório. O art. 3º do CPC/201522 reproduz, com pequena distinção redacional, o teor do art. 5º, inc. XXXV, da CF/88, assento legal do denominado direito fundamental à jurisdição ao dispor que: Art. 3º. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem23, na forma da lei. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Diante desse panorama, é imperioso que o Poder Judiciário não só consiga nortear as decisões dos juízes de instância inferiores e a vida social, mas também que recupere seu crédito perante a sociedade como um todo ao otimizar seu desempenho. As normas legais têm de ser reinterpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar “uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo ”.24 Vigência: o novo CPC passou a vigorar no dia 18 de março de 2016, isto é, um ano após sua publicação oficial. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 10. Maio de 2016. 23 Acerca dos tribunais arbitrais, vide Lei nº 9.307/96. 24 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 67/68. 21 22
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Na Parte Geral – Livro I, são previstas verdadeiras normas gerais de direito processual, destacando-se: a) o direito das partes em obter a solução integral do mérito (art. 4º); b) o reforço da garantia ao contraditório (art. 8º ao 10); e c) a previsão de ordem cronológica para se proferir sentença ou acórdão (art. 12). No que se refere à Parte Geral – Livro II, são definidos e disciplinados vários mecanismos de cooperação internacional (art. 26 a 34, especialmente). A Parte Geral – Livro III, confere uma regulamentação mais minuciosa dos honorários de sucumbência inclusive com previsão de sucumbência recursal, bem como regulamenta os procedimentos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 133 a 137) e do “amicus curiae” (art. 138). Ainda, merecem destaques a possibilidade de as partes estipularem mudanças no procedimento (art. 190), inclusive com fixação de calendário processual (art. 191), a alteração da forma de contagem dos prazos, contando-se apenas os dias úteis (art. 219), reputando-se tempestivo o ato praticado antes do início do prazo (art. 218, § 4º; em oposição à Súmula 418/STJ). Já a Parte Geral – Livro V, enfatiza o “fim” do processo cautelar, com instituição da tutela de provisória, de urgência25 ou de evidência (art. 294). A Parte Geral – Livro VI - traz a previsão de que, antes de proferir decisão sem resolução de mérito, “o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício” (art. 317). No que concerne a Parte Especial – Livro I, adota o procedimento comum e procedimentos especiais, com extinção de alguns dos antigos procedimentos especiais (v.g., nunciação de obra nova). e estabelece a previsão da improcedência liminar (art. 332), com tratamento mais minucioso que o atual art. 285-A do antigo CPC. As principais exigências, porém, dirigem-se ao Estado-Juiz, cuja conduta deve se pautar por um novo formalismo cujo objetivo, é a busca pela solução integral de mérito. Assim, o juiz deve permitir a correção de vícios formais, determinando, v.g, o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios (art. 139, IX, CPC/2015), cabendo-lhe ainda, antes de extinguir o feito sem resolução do mérito, conceder a parte oportunidade para corrigir os vícios (art. 317, CPC/2015). 3.2 O INCIDENTE DE DEMANDAS REPETITIVAS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Não está previsto no CPC/1973, e se mostra inovador, o denominado “incidente de resolução de demandas repetitivas” (art. 976 ao 987 do CPC/2015). Segundo esse instrumento, tão logo seja verificada pelo Tribunal a presença de "litigância em massa26" para determinada questão jurídica, o Tribunal pode, desde logo (e sem que haja decisão prévia em primeira instância), estabelecer o entendimento aplicável ao caso, vinculando os demais juízes das instâncias inferiores para os casos futuros. O precedente27 é necessário quando se está diante de um ambiente de incerteza jurídica sobre qual deve ser a regra aplicável para uma situação de fato e sem resolução eficaz dos conflitos, seja porque se tem mais de uma norma jurídica que possa ser aplicável (ao que se denomina de antinomia jurídica), seja porque se tem uma omissão sobre o caso em questão (ao que se denomina de lacuna). Assim, um processo judicial será útil quando servir para contribuir para a formação de um precedente judicial que elimine (ou pelo menos, diminua) o ambiente de incerteza normativa acima descrito. Por outro lado, ele será socialmente inútil quando não servir para a formação de um precedente, uma vez que, nesse caso, consistirá apenas num custo perdido para a sociedade sem qualquer contrapartida, especialmente tendo em vista que, nesse último caso, as partes certamente tinham informações simétricas em relação ao padrão de decisão do Poder Judiciário e poderiam, assim, celebrar um acordo para prevenção de litígios28. Tutela de urgência exige a probabilidade do direito, o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art. 300), sendo cautelar (art. 301: antigas formas de procedimentos cautelares) ou antecipada (art. 300, § 3º: vedada se houver perigo da irreversibilidade). Tutela de evidência independe do perigo de dano ou risco ao resultado útil (art. 311). 26 SILVA, Paulo Henrique Moritz Martins da. Novo CPC busca prestação jurisdicional mais rápida, eficiente e completa. Conjur, 29 mar. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-29/paulo-silva-cpc-busca-prestacao-jurisdicional-completa>. Acesso em: 5 Jan. 2016. 27 Gabriela Oliveira Freitas, esclarece que no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente após a Emenda Constitucional nº 45/2004, é reconhecido uma forte tendência à valorização dos precedentes judiciais. Isto ocorre por meio das súmulas vinculantes, repercussão geral e recursos repetitivos, súmulas impeditivas de recurso e possibilidade de não conhecimento de recursos com amparo na jurisprudência dos Tribunais. (FREITAS, 2014, p. 93). 28 FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno; MARQUES, Leonardo Albuquerque. Novo CPC deve mudar cultura de litigância excessiva. Conjur, 16 jul. 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-16/codigo-processo-civil-mudar-cultura-litigancia-excessiva>. Acesso em: 5 abr. 2015. 25
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A possibilidade do tribunal de "chamar para si" esse julgamento – seja diretamente, seja por provocação de alguma parte, do Ministério Público (MP) ou outro – certamente reduzirá bastante o tempo mediante o qual serão estabelecidos os precedentes (SILVA, 2015, p. 4). Contudo, os precedentes29 judiciais devem ser estáveis e emitidos sem demora para que possam ser compreendidos de maneira clara e precisa pelos vários atores sociais, a fim de evitar insegurança processual e dúvidas sobre quem deve ser o titular de um direito numa situação de conflito. Ademais, o incidente de demandas repetitivas busca diminuir o problema de subinvestimento, pois as pessoas poderão trabalhar com uma maior margem de segurança na tomada de decisões, uma vez que já será registrado como os juízes decidirão em determinados litígios. Não há como negar que a valorização dos precedentes contribui para a busca da eficiência processual, a fim de se evitar que o Poder Judiciário seja atravancado por uma série de demandas que possuem o mesmo objeto, como ocorre atualmente no cotidiano processual. Considera-se que CPC/2015 avança muito em tal perspectiva e amplia, sobremaneira, as possibilidades de organização do processo para uma boa decisão de mérito, e isso não se restringe à atividade probatória, porque poderá haver a explicitação e delimitação dos temas jurídicos a serem enfrentados. Ivo Teixeira Gico Junior30, sobre a litigância excessiva no Brasil, afirma que: Subsidiar a litigância é justamente o que o Brasil vem fazendo nos últimos anos, quando (a) criou os juizados especiais de pequenas causas nos quais não é necessário um advogado e não há custas processuais; (b) criou a defensoria pública (advogados públicos pagos pelo contribuinte); (c) criou a assistência judiciária gratuita – AJG (possibilidade de alguém não ter de pagar custas processuais, mesmo na justiça comum, nem honorários de sucumbência); (d) manteve o sistema de custas processuais abaixo do custo social de cada processo; etc. Tudo isso significa que é o contribuinte quem arca com parte dos custos de cada processo e não a parte litigante, o que claramente é um subsídio ao litígio e à parte da sociedade que litiga. Nesse contexto, é relevante apontar que Garrett Hardin31 (1968) publicou um artigo sob o título de “A Tragédia dos Comuns”, onde realizou uma criteriosa análise dos problemas que surgem sempre que é utilizado um bem comum, cujo resumo é o seguinte: “a maioria das pessoas, sempre que puder beneficiar-se de um bem comum será incentivada a fazer o mínimo de esforço para preservá-lo, ao mesmo tempo em que será tentado a extrair o máximo de vantagem desse bem”. Assim, tem se que, se o custo, em geral “baixo”, de uma demanda acaba por influenciar a motivação da instauração de um litígio, é importante registrar que os custos do Judiciário também não poderão ser exorbitantes, sob pena de impedir o acesso à justiça. O que se pretende, portanto, é enfatizar que a justiça não deve ser banalizada e utilizada para qualquer causa, deve ser idealizada especificamente em casos em que há lesão de direitos. A equipe de pesquisadores composta por juristas, economistas, sociólogos e administradores, predominantemente da PUCRS32, concluiu através de evidências empíricas que as partes litigam não apenas porque tiveram um direito violado, mas também por causa (a) dos baixos custos de acesso e baixo risco; (b) das perspectivas de ganho; e (c) do uso instrumental do Judiciário.
O precedente é necessário quando se está diante de um ambiente de incerteza jurídica sobre qual deve ser a regra aplicável para uma situação de fato e sem resolução eficaz dos conflitos, seja porque se tem mais de uma norma jurídica que possa ser aplicável (ao que se denomina de antinomia jurídica), seja porque se tem uma omissão sobre o caso em questão (ao que se denomina de lacuna). Assim, um processo judicial será útil quando servir para contribuir para a formação de um precedente judicial que elimine (ou pelo menos, diminua) o ambiente de incerteza normativa acima descrito. Por outro lado, ele será socialmente inútil quando não servir para a formação de um precedente, uma vez que, nesse caso, consistirá apenas num custo perdido para a sociedade sem qualquer contrapartida, especialmente tendo em vista que, nesse último caso, as partes certamente tinham informações simétricas em relação ao padrão de decisão do Poder Judiciário e poderiam, assim, celebrar um acordo para prevenção de litígios (FREIRE; DANTAS; MARQUES, 2013). 30 GICO JUNIOR, Ivo Teixeira. A tragédia do Judiciário: subinvestimento em capital jurídico e sobreutilização do Judiciário. 146 f. Tese (Doutorado em Economia Política) – Programa de Pós-Graduação em Economia, Departamento de Economia, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, 2012. 31 NETO, João Francisco. A Tragédia dos Comuns. Blog do ARF, 2015. Disponível em: <http://blogdoafr.com/articulistas/joao-francisco-neto/a-tragedia-dos-comuns>. Acesso em: 6 jan. 2016. 32 PUCRS. Demandas Judiciais e Morosidade da Justiça Civil Relatório Final Ajustado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Porto Alegre: Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 2011. Disponível em: <http://issuu.com/cnj_oficial/docs/rel__torio_sobre_as_demandas_judici>. Acesso em: 12 mai. 2015. 29
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Destarte, Medina33 afirma, é imprescindível, para adaptação e prática do CPC/2015, que a formação do operador se volte muito mais para identificação de possibilidades de composição do que para a apresentação de uma petição perante o Poder Judiciário como solução prioritária para uma situação de conflito. 4 A POSTURA PROCESSUAL DAS PARTES E O INCENTIVO À CONCILIAÇÃO NO CPC/2015 As partes terão importante papel durante a condução do processo na medida em que, a partir da vigência do NCPC/2015, poderão convencionar, de forma ampla, em causas sobre direitos que admitam autocomposição. A previsão dos deveres das partes e de seus procuradores, bem como da responsabilidade das partes por dano processual estava prevista nos arts. 14 a 18 do CPC/1973, com disposições parecidas com as do texto da nova legislação. Contudo é preciso apontar alguns acréscimos34 e avanços da redação da legislação de 2015, que procurou ampliar a abordagem da questão, bem como dar mais organicidade e coesão ao texto como um todo. Destarte, verifica-se um avanço da nova legislação quando prevê a possibilidade de responsabilização dos advogados públicos e dos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, sendo que eventual responsabilidade disciplinar deve ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará. O art. 78 também amplia a vedação de empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados para, além das partes e procuradores, os juízes, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, e a qualquer pessoa que participe do processo, o que se mostra muito coerente e razoável, uma vez que todos os participantes do processo devem manter postura de probidade e boa-fé processual em respeito ao princípio da colaboração processual35. O art. 81 do CPC/2015 tem previsão similar à do art. 18 do CPC/1973, porém se mostra mais severo quanto ao valor da multa a ser paga pelo litigante de má-fé, prevendo o percentual de 1 a 10% do valor corrigido da causa (o CPC/1973 previa “multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa”), e ainda quanto ao valor da indenização por dano processual, o qual será fixado pelo juiz ou, no caso de não ser possível mensurá-la, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum (§ 3º), nos próprios autos, mas sem limitação ao percentual de 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, conforme dispunha o § 2º do art. 18 do CPC/1973. O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Desembargador José Renato Nalini36, em reportagem concedida ao site UOL, relata que o brasileiro alimenta a cultura do processo e assim define: [...] o processo – ciência que estuda o instrumento de realização do justo concreto – converteu-se em finalidade em si, e muito mais importante do que o direito substancial. Por isso é que, ciência sofisticada, o processo gera inúmeras respostas a uma pretensão posta em juízo, todas elas periféricas, epidérmicas, sem exame do mérito. Ou seja: o processo termina e o conflito continua, com certeza mais agravado ante a decepção de quem acreditou numa solução ditada pelo Judiciário. Essa é a situação presente. A sociedade demandista se submete à cultura do litígio.
Aponta o magistrado a necessária pacificação entre as partes através de conciliação, mediação e arbitragem ou de qualquer uma das “dezenas de estratégias já adotadas pelo direito anglo-saxão”; segundo ele, é preciso “repensar com urgência o sistema de justiça”, para que possa atingir a “funcionalidade esperada” (NALINI, 2015). No CPC/2015, a atuação das partes também interfere sobremaneira no convencimento do julgador. Como exemplo, o art. 10 dispõe que o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (BRASIL, 2015). MEDINA, José Miguel. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. “Necessário enfatizar que o art. 77 esclarece que existem outros deveres das partes e de seus procuradores previstos pelo novo CPC, para além dos elencados naquela seção, como é o caso do art. 5º, que prevê que “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.” O inciso V do artigo 77 trata como dever a providência prevista no artigo 39 do CPC/73 quanto à necessidade de informação e atualização do endereço residencial ou profissional para o recebimento de intimações, enaltecendo que, no caso de não observância a tal exigência, a responsabilidade será das partes ou dos procuradores, que arcarão com as respectivas consequências. O parágrafo 2º do art. 77 trata da previsão da multa por ato atentatório à dignidade da justiça, previsto anteriormente no parágrafo único do artigo 14 do CPC/73. O parágrafo 3º esclarece o procedimento cabível (inscrição em dívida ativa e execução fiscal) e a destinação do valor da multa (fundos previsto no art. 97 - fundos de modernização do Poder Judiciário), questão que não era determinada pela legislação processual de 1973” (WELSCH, 2015, p. 103). 35 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 36 NALINI, José Renato. Incapaz de resolver conflitos, brasileiro alimenta cultura do processo. UOL Notícias, 19 fev. 2015. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/02/19/incapaz-de-resolver-conflitos-brasileiro-alimenta-cultura-do-processo. htm. Acesso em: 5 nov. 2015. 33 34
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Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (2010, p. 55-61) reconhecem que o CPC/2015 apresentou avanços, tornando as previsões mais claras e coerentes com os preceitos informadores da nova legislação quanto à celeridade, efetividade e segurança jurídica, além de contribuir para a efetivação da boa-fé e colaboração processuais. É objetivo fundamental no CPC/2015 a solução consensual dos conflitos postos à apreciação judiciária, contudo é importante que não haja prejuízo ao reconhecimento do direito ao amplo e irrestrito acesso aos tribunais a todo e qualquer jurisdicionado. No âmbito da jurisdição contenciosa, é evidente que existem interesses contrapostos; cada um dos envolvidos no trâmite processual deve comportar-se de maneira irretocável, contribuindo para que, de acordo com os valores eleitos pelo ordenamento jurídico pátrio, o Estado-Juiz possa entregar a melhor solução possível ao caso concreto . Ao analisar a postura processual das partes, Artur Torres37 afirma que o processo é um jogo: [...] a existência do processo judicial justifica-se, in concreto, face à ocorrência de um conflito de interesses (real ou virtual). Cada qual dos contendores, bem compreendida a afirmativa, pretende ver sua posição jurídica triunfar e, como regra, por determinação legal, entrega a “defesa” dos seus interesses aos advogados, públicos ou privados. São eles, no mundo real, que conduzem os feitos. Os patronos, em tese experts, respeitados os limites éticos de seu ofício, defendem uma “bandeira”, ou seja, são parciais. O projeto de cada causídico ao assumir seu posto é, quando mais na seara não criminal, o de ver, ao fim e ao cabo, o interesse daquele que lhe confiou o patrocínio prosperar. Trata-se, gostemos ou não, de uma constatação fática, não raro transparente, como dissemos alhures, aos apontamentos doutrinários. Assim sendo, por vestirem uma “camisa” (são parciais e não imparciais), os experts do foro passam a laborar, em cada um de seus processos, no afã de ver despontar o interesse de seus clientes, “jogando o jogo”. O “jogo só termina quando acaba!”. O processo, de um ponto de vista prático, em última análise, revela-se um “jogo” em que, não raro, vence o mais eficiente (processualmente falando).
O incentivo à conciliação judicial, em detrimento da construção de uma solução estatal impositiva ao conflito, e o estímulo à utilização de técnicas alternativas de composição de conflitos (não judiciais) estão expressos no CPC/2015. 4.1 EXIGÊNCIA DE COOPERAÇÃO DAS PARTES NO CPC/2015 Em seu art. 6º, o CPC/2015 traz a ideia de cooperação das partes: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Prestígio à cooperação e ao diálogo, segurança jurídica, prestação jurisdicional mais completa e razoabilidade no tempo para a solução justa do litígio; eis o que busca o CPC/2015. Importante e objetivo é o papel atribuído às partes, que, a partir da vigência do CPC/2015, poderão convencionar, de forma ampla, em causas sobre direitos que admitam autocomposição. Nesse sentido, o entendimento de Hugo de Brito Machado38: As raras possibilidades que a lei hoje concede para a transação processual tomam como referência, não a natureza do direito material em conflito, mas da norma processual que se almeja relativizar (CPC, art. 111). É exatamente por este motivo, que a eleição de foro somente é admissível nas hipóteses de regras de competência relativa (normas processuais desenhadas visando diretamente o interesse das partes), independentemente da natureza do litígio que, em muitos casos, pode tratar de bens absolutamente indisponíveis (e.g. direito de família, direitos da personalidade, estado das pessoas, etc.). O Projeto, diferentemente, preocupa-se em tratar da possibilidade de transação com referência no direito material, e não no processo, exigindo que a matéria ou o bem da vida em disputa possa vir a ser objeto de transação, conforme as regulações do próprio direito material.
TORRES, Artur. Anotações aos artigos 1º a 12. In: MACEDO, Elaine Harzheim; MIGLIAVACCA, Carolina Moraes (Coords.). Novo Código de Processo Civil Anotado. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Porto Alegre: OAB RS, 2015. p. 22-33. 38 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. 37
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A previsão se encontra no art. 190 do CPC/2015, sendo lícito às partes plenamente capazes estipularem mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. O parágrafo único desse artigo dispõe que, o juiz controlará a validade das convenções. As raras possibilidades que a lei atualmente concede para a transação processual tomam como referência não a natureza do direito material em conflito, mas também a norma processual que se almeja relativizar (CPC/1973, art. 111). É exatamente por este motivo, que a eleição de foro somente é admissível nas hipóteses de regras de competência relativa (normas processuais desenhadas visando diretamente ao interesse das partes), independentemente da natureza do litígio, que, em muitos casos, pode tratar de bens absolutamente indisponíveis (e.g. direito de família, direitos da personalidade, estado das pessoas, dentre outros). Destarte, o CPC/2015 convoca as partes, sempre que possível, a resolver seus conflitos de forma amigável, possibilitando a prévia designação de audiência de conciliação ou de mediação, antes mesmo de a parte contrária protocolar sua defesa; para tanto, prevê a criação de centros com profissionais especializados. De fato, o incentivo à conciliação judicial, em detrimento da construção de uma solução estatal impositiva ao conflito, e o estímulo à utilização de técnicas alternativas de composição de conflitos (não judiciais) estão expressos no CPC/2015. A jurisdição é, então, atividade exercida exclusivamente pelo Estado através do Poder Judiciário, contudo, além do juiz, terão importante papel na resolução dos conflitos não somente os mediadores como as próprias partes. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS No que diz respeito à tempestividade e busca pela eficiência da prestação jurisdicional, é possível observar grandes avanços, fruto das reformas legislativas no âmbito do novo Código de Processo Civil Brasileiro (CPC/2015), como são exemplos o prestígio à cooperação e diálogo entre as partes como requisitos fundamentais do processo, e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Registra-se, contudo, que os precedentes judiciais devem ser emitidos sem demora para que possam ser compreendidos de maneira clara e precisa e atenda seu escopo principal, qual seja, a busca pela celeridade processual. As partes litigantes deverão cooperar e agir sempre com lealdade e boa-fé processual, sendo lícito estipularem mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, antes ou durante o processo, tudo com a fiscalização e controle judicial. Em suma, não sobejam dúvidas que o CPC/2015 enfatiza a noção da prestação jurisdicional como serviço público eficiente, e busca a concepção de um novo formalismo, exigindo para tanto que o magistrado, determine o, suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios procedimentais, a fim de se buscar a solução integral do mérito. REFERÊNCIAS BARBOSA MOREIRA, José Carlos.O juiz e a cultura da transgressão. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 47, n. 267, p. 5-12, jan. 2000. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 67/68. BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Código de Processo Civil: anteprojeto. Brasília: Senado Federal, 2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/anteprojeto.pdf>. Acesso em: 3 jan. 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 15 jun. 2015. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, 17 mar. Revista do Curso de Direito
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POLÍTICA CRIMINAL. ESTRATÉGIA DE PREVENÇÃO E REPRESSÃO DE CRIMES Geraldo Cardoso Moitinho1 Natanael Araújo Bandeira2
Resumo Em meio a prática do crime e o que se busca com a punição e alcance da norma penal, visa-se renovar e inovar de forma correta e eficaz sua abrangência, para a prevenção e repressão do crime. No intenso combate à criminalidade, além da investigação e da solução para a proteção dos bens jurídicos tutelados, como a vida, a liberdade, há a inquirição dos métodos adotados e sua crítica para posterior adequação e atualização. Cabe à política criminal, portanto, eleger interesses e ideias diretivas do tratamento reservado à enfermidade social que é o crime, elaborar as estratégias para o seu combate, bem como incrementar a execução dessas estratégias. Logo se questiona, as pessoas quando saem do sistema prisional, qual é a chance, incentivo e oportunidade que essas pessoas terão para o não cometimento de novos crimes, o papel do Estado Democrático de Direito em proporcionar a ressocialização e inserção no mercado de trabalho é essencial e um dever. Palavras-chaves: Criminologia. Direito. Política Criminal. Prevenção. Repreensão.
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Moitinho, Geraldo Cardoso. Graduando em Bacharel em Direito pela Faciplac. E-mail: geraldo.moitinho@gmail.com Natanael Araújo Bandeira, Graduando em Bacharel em Direito pela Faciplac. E-mail. natanaelaraujodf@gmail.com Revista do Curso de Direito
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Introdução A sociedade de maneira em geral necessita de regras para que o ser humano conviva harmoniosamente entre si, e, neste caso, surgem diversas variáveis que facilitam ou dificultam o convívio harmônico entre os indivíduos em sociedade. Para o a solução das dificuldades ou pontos de conflitos que convergem para o judiciário, principalmente, no campo do Direito Penal, surge a necessidade do conhecimento da política criminal, pois, quando não existem possibilidades de solução da controvérsia ou conflito, recorre-se a última instância do Direito, o Direito Penal. Neste arcabouço entre conflito, vítima e réu, é fundamental estreitar o conceito de Política Criminal, pois não há como separar a punibilidade ou sanções para aqueles que cometam algum deslize com relação as regras sociais estipuladas pelo grupo. Infelizmente, a comunidade que tem como sua salvaguarda a política criminal, deve fazer um caminho de volta, pois, o natural, não é o caminho residual, mas o de diálogo, a compreensão e o ajuste entre as partes, entre o indivíduo e sociedade ou entre sociedade e grupos sociais. É papel do criminólogo partir desses pressupostos para enxergar qual é a melhor solução às partes. O criminólogo estuda o fenômeno criminoso, fornecendo dados que a política criminal transforma, às vezes, em reivindicações de alteração ou mesmo de elaboração da legislação penal; a ciência do Direito Penal normatiza essas reivindicações que passam a ter valor jurídico coativo; o processualista cuida da aplicação do ius puniendi de acordo com o devido processo legal; na fase executiva torna-se realidade a ameaça penal. Mesmo com a concepção mais humanista da política criminal, não há de se mencionar regime fechado, penas mais severas, transformação de alguns tipos penais em crimes hediondos, ou até mesmo, a perda de alguns benefícios que podem encurtar a pena. A exclusão do perdão judicial ou extinção de algumas penas em virtude da superlotação de cadeias. Apesar de pregar pelo esvaziamento das prisões, admitia a necessidade da permanência de alguns cárceres para indivíduos especiais. Ressalta-se, que o status quo nas cadeias atualmente é deprimente, além do que as prisões são universidades do crime, que não ressocializa o detento, mas pelo contrário, potencializa o ser humano criminoso. Deve-se discutir em audiências públicas tão fenômeno social, pois, a população carcerária cresce anualmente, e, inversamente proporcional crescem as medidas estatais para recolocar os presos ao convívio social. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3, nova população carcerária brasileira é de 711.463 presos, dados apresentados em junho de 2015. Os números apresentados a representantes dos Tribunais de Justiça brasileiros, levam em conta as 147.937 pessoas em prisão domiciliar. Para realizar o levantamento inédito, o CNJ consultou os juízes responsáveis pelo monitoramento do sistema carcerário dos 26 Estados e do Distrito Federal. De acordo com os dados anteriores do CNJ, que não contabilizavam prisões domiciliares, em maio de 2015 a população carcerária era de 563.526.
3BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Cidadania nos Presídios. 2015.
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Segundo, o Ministério da Justiça (MJ,2014)4 o Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, conforme tabela apresentada neste estudo, o Brasil vem atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Mas, se considerarmos a populações destes países proporcionalmente, o Brasil ficaria em segundo lugar. Os dados foram informados pelo Ministério da Justiça. Mais um ponto para que a Política Criminal brasileira avance em sentidos de ser proativas que retardem estes números ou encontrem meios para que os egressos não retornem ao sistema e em última instância, a sociedade disponibilize mecanismos de absorção dos detentos a oportunidades como trabalho, cursos, estudos em universidades, participação de grupos religiosos ou federações esportivas. Pode-se, então, entender que políticas criminais ou política criminal, como “o conjunto de procedimentos por meio dos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal”, o que em outras palavras significa que Política Criminal nada mais é do que uma forma de resposta ao crime, criada pela sociedade com o intuito de punir de maneira adequada o indivíduo que infringe as leis. Sua caracterização permeia teoria e prática das diferentes formas do controle social, o que significa que atua e estuda inúmeras maneiras de controlar o fenômeno criminal que ocorre na sociedade, o que faz dela uma disciplina independente, que difere da Criminologia e da Sociologia Criminal, pois a Política Criminal é sim uma pesquisa principalmente jurídica, voltada para encontrar a fórmula de erradicação do crime na sociedade, porém ela não se limita apenas do Direito Penal, e seus estudos abrangem muitas outras formas de controle social. Entende-se política, em seu sentido lato, como a ciência ou a arte de governar. Por analogia, política criminal compreende a política relacionada ao fenômeno criminal, sendo considerada a arte ou a ciência de governo, com respeito ao fenômeno criminal (ZAFFARONI, 2011)5. Sendo parte integrante da política em geral, a política criminal, pode ser definida como a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos. Ainda, (ZAFFARONI, 2011)6 entende que a política criminal pode ser considerada com o conjunto de princípios e recomendações destinados à reforma da legislação penal e transformação dos órgãos encarregados de sua aplicação. Tais princípios conforme elucida (BATISTA, 2007)5 são: [...] obtidos por meio das constantes mudanças sociais, das análises dos sistemas penais passados e aqueles ainda vigentes, com revelações empíricas das instituições penais, corroborando os avanços e descobertas da criminologia.
Segundo (DOTTI, 1999)7 conceitua Política Criminal de forma adequada e clara. Segundo suas lições, a política criminal é o conjunto sistemático de princípios e regras através dos quais o Estado promove a luta de prevenção e repressão das infrações penais. Em sentido amplo, compreende também os meios e métodos aplicados na execução das penas e das medidas de segurança, visando o interesse social e a reinserção do infrator. Em síntese, pode-se afirmar que a Política Criminal é a sabedoria legislativa do Estado na luta contra as infrações penais. Ela deve ser concebida e executada dentro de uma realidade humana e social vigente, daí porque se fala na necessidade de se conjugar os seus objetivos, meios e métodos com uma dogmática realista. Esta deve ser considerada como um núcleo característico da ciência penal que deve partir de suas normas e de seus institutos, ajustando-os, porém, às exigências da coletividade e ao reconhecimento da condição humana de seus membros. Podemos perceber, segundo o conceito exposto acima, que a política criminal possui estreita ligação com o bem jurídico, já que, é através da política criminal que o Estado externa a sua “sabedoria legislativa” no combate e repressão às infrações penais – e, portanto, elucida através dessas normas quais os bens jurídicos que merecem a guarida do Direito Penal. Também é através da política criminal que o Estado realiza a aplicação da lei penal, em momento que deve ater-se aos limites e orientações que podem ser extraídas do bem jurídico.
4MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. SEDH/DCA. Infopen (levantamento nacional de informações penitenciárias).Brasília: MJ. 2015. 5ZAFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro. v. 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 6ZAFARONI, Eugenio Raul. DOTTI, R. A. A Crise do Sistema Penal. Revista dos Tribunais, nº 768, ut.1999. v. 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 7DOTTI, R. A. A Crise do Sistema Penal. Revista dos Tribunais, nº 768, ut.1999. Revista do Curso de Direito
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Funciona, pois, como uma via de mão dupla: primeiramente o Estado “revela” através de sua atividade legislativa os bens jurídicos penalmente relevantes e depois, ao aplicar a lei penal, restringe-se aos limites da própria norma – situação típica dos Estados de Direito. 1.Finalidade Em nosso sistema, o desempenho da atividade legislativa do Estado é realizado na forma de uma democracia representativa, situação em que os membros dos órgãos legislativos são representantes do povo, eleitos por este periodicamente. Como exposto na conceituação de bem jurídico, o Estado deve tutelar penalmente os pressupostos imprescindíveis para a convivência humana em comunidade. O problema surge então, a partir do momento em que o Estado, no exercício da Política Criminal, elege, por via da atividade legislativa, a proteção a interesses estatais que não representam os interesses da sociedade. O bem jurídico constitui uma realidade válida em si mesma, cujo conteúdo valorativo não depende do legislador, por ser um dado social preexistente. O bem jurídico não é um conceito exclusivamente jurídico, uma criação do legislador contida na norma, mas uma criação da vida e como tal um interesse vital do indivíduo ou da comunidade, que a proteção do Direito lhe dá a categoria de bem jurídico; a norma não cria o bem jurídico, mas o encontra dentro da realidade social. 2.Visão Estatal É bastante frequente estabelecerem-se confusões entre Política Criminal e Criminologia ou mesmo entre elas e o Direito Penal (principalmente no que diz respeito à Dogmática jurídico-penal), por isto, o Estado delimita o assunto, mesmo que seja converso, injusto ou principalmente, confuso, pois, parece aos olhos da sociedade, que o bandido tem mais direito que o cidadão de bem. A Criminologia possui uma dimensão e uma estrutura científicas próprias, informadoras das estratégias que a Política Criminal estabelece para o controle, o combate da criminalidade. Por outro lado, as ameaças constantes de convulsão social levam o Estado a ficar reféns de organizações criminosas, que levam consigo o aparelhamento do Estado a calamidade pública, quer seja do ponto de vista social, político ou de segurança pública. Importante ressaltar, desde logo, que o ramo repressivo do Direito não é o único meio recomendado pela Política Criminal para a diminuição da violência. Inúmeras outras medidas de cunho político podem ser adotadas a partir das conclusões da Política Criminal. Investimentos em programas como o Escola Aberta, por exemplo, podem ser utilizados, eficazmente, nessa difícil tarefa. A política criminal serve – ou deveria servir – de alicerce para a criação normativa penal brasileira, e não como meio de viabilização de tipificação de condutas desamparadas de bem jurídico, até porque não é tipificar, moldurar os delitos e penas, mas sim, agir de forma pedagógica na aplicação das penas, bem como enfatizar que o crime, realmente não compensa. Não é raro vermos o Direito Penal abarcar desde as pequenas infrações contravencionais às mais diversas formas de ilícitos em matéria comercial, ambiental, administrativa, que na verdade deveriam outros tipos de sanções: civis, administrativas, disciplinares ou políticas. Em igual pensamento, Sánchez sustenta que: [...] a criação de novos bens jurídicos - penais, a ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, a flexibilização das regras de imputação e a relativização dos princípios político-criminais de garantia seriam aspectos desta tendência dominante em todas as legislações, a qual o autor refere-se como "expansão do Direito Penal.
A sanção penal destaca-se cada vez mais como a única forma de sanção e técnica de responsabilização dotada de eficácia e de efetividade, causando a inflação dos interesses penalmente protegidos e dificultando a conceituação da figura de bem jurídico. E como já visto, condutas desamparadas de Bem Jurídico no preceito punitivo fazem com que o Direito Penal faleça de sentido como uma ordem de direito, resultando num injusto penal material, ético-socialmente intolerável. Aí reside, portanto, a extrema relevância da noção de bem jurídico – não podendo o direito penal renunciar o primordial conceito que lhe permite a crítica do direito positivo. Também não é difícil vermos o próprio Poder Judiciário olvidar a observância de tal conceito no exercício de 106 Faciplac
sua competência, ao decidir observando apenas argumentos político-econômicos, acabando por “ratificar” leis penais que não amparam bens jurídicos, mas apenas interesses do Estado que deveriam ser tutelados através de sanções administrativas e civis. Tal modo de atuação acaba por ferir o próprio ordenamento, desvirtuando sua natureza jurisdicional e tornando o Poder Judiciário um apêndice político, viabilizador de uma política criminal inadequada. Afasta o próprio Estado da sujeição à lei, desconfigurando o Estado de Direito. No atual momento em que a sociedade necessita de uma reforma complexa no sistema penal, encontra barreiras ainda intransponíveis, passando por entraves políticos e pelo costume já sedimentado de que punição e pena é somente aquela relacionada à privação de liberdade. As penas alternativas ao encarceramento, que possibilitam a punição do delinquente mesmo que em liberdade, ainda são vistas como uma forma de impunidade. Uma verdadeira reforma penal só será possível quando as forças sociais e políticas se unirem um uníssono na busca de formas mais humanas e eficazes de aplicação da sanção penal. 3. Beneficiados x Sistema No Brasil, a aplicação da justiça criminal nos campos da segurança pública e do sistema prisional é afetada negativamente pelo choque entre os valores democráticos inscritos na Constituição Federal de 1988 e estatutos de direitos (igualdade de gênero, racial, direitos da criança e adolescente, idosos etc.), que de um lado, e, de outro, a arraigada tradição hierárquica e autoritária da sociedade brasileira em geral e do poder público em particular. Problema esse agravado pela insistência de alguns setores em sustentar o mito de que a sociedade brasileira se formou de maneira pacífica e que continua a ser harmoniosa e unida. Na verdade, há um longo caminho a percorrer na busca da consolidação da democracia pátria, fato que se evidencia na existência de dois eixos em torno dos quais a sociedade se move: o eixo formal, referido ao ordenamento jurídico e às instituições oficiais, e um eixo informal, material, referido à tradição, a arranjos relacionais e configurações sociais à "margem", um eixo prevalecendo sobre o outro em função do contexto e das pessoas e grupos envolvidos. Nesse modelo de duas vias, vai importar muito mais às camadas populares o eixo informal, pois o outro é percebido quase sempre como lhes sendo distante ou prejudicial. Já as elites e camadas mais altas têm facilidade de se mover com a utilização de um ou de outro, ou dos dois. Com isso, abrem-se duas possibilidades de abordagem da questão da segurança e da criminalidade: uma de cunho técnico-jurídico, e outra de cunho sociopolítico. O presente artigo é um esforço de aproximar essas duas visões. Parte-se da premissa de que a política criminal brasileira, na raiz, é marcada por uma concepção autoritária, discriminatória e elitista, premissa essa que poderá ser refutada por quem tem como referência os dispositivos constitucionais relativos aos direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, da CF/88 e outros diplomas legais, sobretudo no que diz respeito ao princípio da "igualdade de todos perante a lei", e mesmo diretrizes democratizantes do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A reflexão buscada, no entanto, não é o enunciado de direitos e diretrizes administrativas, e sim a garantia do desfrute dos direitos, in concreto, sobretudo no que concerne às camadas populares. E também de uma consideração sobre o sistema penal (ou sistema de justiça criminal), cuja estruturação e funcionamento, em qualquer sociedade, refletem a concepção que orienta, de forma clara ou recôndita, a política criminal. Podemos afirmar que a política criminal brasileira se distancia de forma acentuada dos mandamentos da Constituição. Lopez-Rey, citado na nota acima, propôs que: [...] a distinção entre o que chamou de "formulação da política criminal" e a "formulação do sistema penal", ou seja, a seleção e o ordenamento dos meios para atingir metas próprias como parte do esforço geral da sociedade para atingir os fins da política criminal.
Assim, se, numa sociedade que se declara democrática, os poderes públicos se orientam, na realidade, por concepções autoritárias e discriminatórias, o sistema penal será estruturado segundo essas concepções e as refletirá na prática dos seus operadores. Se orienta realmente por ideais democráticos, formal e materialmente, ocorrerá o inverso, em proveito do exercício da cidadania. Numa ditadura, é de toda coerência que o governo exercite o autoritarismo, o que é da sua essência; porém, num estado democrático de direito, como é o caso do Brasil, trata-se de contradição incontornável, contradição essa representada pelo enraizamento, na ordem jurídica, da visão autoritária e elitista que norteou a edição da legislação penal e processual vigente no ordenamento pátrio. Revista do Curso de Direito
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Isto se considerarmos que a política criminal em sentido estrito, in concreto, é ditada principalmente pelo Código de Processo Penal - CPP, "outorgado" pelo Estado Novo. A Lei de Execução Penal - LEP, embora de caráter mais democrático, volta-se tão somente para o "condenado e o internado", mesmo assim encontrando as velhas barreiras da tradição para a sua efetivação. Tramita no Congresso o Projeto de Lei do Senado nº 513/2013, que visa a alterar a atual Lei de Execução, coerentemente, as alterações se voltam para os colhidos pelo sistema, sem grandes novidades. Considerando que o CPP, apenas em abstrato, se dirige a todos os cidadãos, é como se a legislação penal pudesse dar conta da segurança e da tranquilidade da população. 4.Visão do Legislador O legislador observa a lei e os seus atos visam respeitar os direitos fundamentais, constitucionalmente reconhecidos, para a interpretação de todo fenômeno jurídico, assim como realizar uma correta aplicação da política criminal. O legislador não tem vedado a possibilidade de elaborar leis que limitem direitos fundamentais presentes no texto constitucional, desde o momento em que a mesma Constituição resulte possível fazer tal limitação da norma. Como não poderia ser diferente, a política criminal é mais que simplesmente legislar, é a busca de medidas e critérios de caráter jurídico, social, educativo, econômico e de índole similar, estabelecidas pelos poderes públicos para prevenir e reagir frente ao fenômeno criminal, com o fim de manter sob controle tolerável os índices de criminalidade numa determinada sociedade. A política criminal ostenta o poder de definir o processo dentro da sociedade, e, portanto, de dirigir e organizar o sistema social em relação à matéria criminal. Em verdade, surge, também, a necessidade da valorização e cumprimento quanto ao princípio de proporcionalidade no momento de elaboração legislativa das normas penais, precisamente observadas tanto pelo legislador penal, como pelo intérprete constitucional. No entanto, a importância do princípio de proporcionalidade é inclusive mais que isto, pois não constitui exclusivamente um mero orientador político criminal, é uma maneira de exercer o controle por parte do Tribunal Constitucional. 5.Formas de Política Criminal Os movimentos de política criminal consistem nas diversas formas de se interpretar e solucionar a problemática criminal. Podem ser divididos em três grandes grupos, sendo eles: movimento da lei e ordem, movimento da novíssima defesa social, e movimento da política criminal alternativa. 5.1.Movimento da Lei e Ordem Com a recente reiteração de fatos criminosos cruéis e bárbaros ocorridos nos mais diversos setores da sociedade uma explicação que recebe confiabilidade por muitos é a de que esses acontecimentos são frutos de leis penais muito benignas e de um ordenamento jurídico brando, que traz como consequência o clima de insegurança com que inúmeras pessoas convivem. Esse movimento entende que a sociedade é dividida em seres humanos bons e maus. Para manter a pacificação social e controlar os homens maus, ele defende a utilização de leis severas, com aplicação de penas privativas de liberdade caracterizadas pela longevidade. Destaca-se o caráter repressor da solução que é visto como única forma de diminuição da criminalidade. A aludida severidade das penas serviria como consolo e sentimento de justiça às vítimas, acrescentando-se a neutralização e intimidação dos seres criminosos. É por isso que os gastos com penitenciárias de segurança máxima são justificados. Os crimes mais graves merecem ser respondidos à altura e o regime de rigor e dureza como o anterior seria a resposta perfeita. Nesse contexto, ainda é defendido a diminuição da competência dos Juízes das Varas das Execuções Criminais e uma maior concessão de poder aos diretores das penitenciárias, como ocorre por exemplo, em vários estados dos Estados Unidos. Nas décadas de 80 e 90 houve uma explosão de ocorrências de crimes como roubos, sequestros e estupros, praticados com emprego de massiva violência e, devido a isto, a sociedade passou a exigir maior rigor do tratamento dispensado àqueles que praticavam tais delitos. 108 Faciplac
A solução legislativa encontrada foi a criação da Lei 8.072 de 25 de julho de 19908, destinada a enrijecer o tratamento destinado à ocorrência de tais crimes violentos. A tal lei foi dada o nome de “Lei de Crimes Hediondos”. 5.2 Movimento da Novíssima Defesa Social É o segundo grande grupo dos movimentos de política criminal. Sua criação se deve a Filippo Gramatica, professor italiano. O momento histórico de sua aparição é atribuído à década de 1940, logo após a segunda guerra mundial. Em 1945, Gramatica cria o Centro de Estudos de Defesa Social, vindo posteriormente, também a ocorrer o 1º e 2º Congresso Internacional de Defesa Social. Com a publicidade dos eventos e o aumento dos adeptos nasce a Sociedade Internacional de Defesa Social e mais à frente as bases do movimento de política criminal tido como a nova defesa social. Esse movimento, de cunho universal e multidisciplinar, passa a defender a reforma estatal com a revisão de suas estruturas sociais juntamente com a de suas instituições e órgãos jurídico-penais. Sob influência humanista, argumenta que a prevenção é a melhor solução para a criminalidade e que a função punitiva retributiva do Direito Penal deva ser extinta. 5.3 Movimento da Política Alternativa Parte de um pressuposto fático para desenvolver suas aspirações. Preliminarmente, ressalta a divisão econômica social da sociedade em classes. Nesse contexto considera o sistema punitivo como forma de proteção dos interesses e conceitos daqueles que compõe a classe dominante. O Direito Penal pouco é aplicado para as classes que detém os meios de sua produção, tendo como finalidade regular os atos e modos de vida das outras classes que só podem oferecer sua força de trabalho para sobreviver. É caracterizado, portanto, como seletivo e elitista, atuando somente em favor daqueles que compõe as classes consideradas nobres e, ao mesmo tempo, buscando manter pacíficos e dóceis, através de seu rigor, os componentes das outras classes. As medidas propostas por esse movimento, conforme (Shecaira e Corrêa Junior, 2002)9, são as seguintes: [...] defende-se a abolição da pena privativa de liberdade, sendo este o carro-chefe dos defensores desta Escola. Afirma-se que a prisão é inútil seja como instrumento de controle, seja como meio de promover a reinserção social; enquanto não houver a abolição do sistema penal, deve-se descriminalizar, despenalizar, desjudicializar; paralelamente a essa redução da atividade punitiva do Estado recomenda-se a criminalização de comportamentos que importem danos ao interesse das maiorias: criminalidade econômica, ecológica, crimes contra a saúde pública, segurança do trabalho etc.; todo este trabalho deverá ser feito com apoio maciço da propaganda, não só para denunciar as desigualdades do sistema vigente, como também para obter apoio popular aos métodos e à ideologia da política criminal alternativa.
Por meio da conjunção dessas ações é que se chegaria a diminuição dos índices criminais e se manteria a hegemonia das classes dominantes. No contraponto, não deve legislar para minorias, mas para sociedade. O crime, vítima e pena devem ser estudados como todo, não em partes, pelo pensamento mecanicista, mas perceber qual a melhor maneira de ajustar as desigualdades em geração de oportunidades e sociedade mais justa e humana. 6. A Política Criminal na Sociedade Atual A investigação científica provoca uma sensação de punição aos criminosos e sentimento de justiça feita. Mas, não é isto que sociedade almeja, mas sim a liberdade de ir e vir e poder transitar de carro à meia noite ou simplesmente atender ao celular em grandes centros. A política criminal não pode estar centrada no crime ou no criminoso, mas nas razões que levam ao aumento de violência ou estar focada, por exemplo, quais os fatores que aumentam os homicídios. 8BRASIL, Lei N. 8.072, de 25 de julho de 1990. Lei dos crimes hediondos. 9 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 476 p. Revista do Curso de Direito
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Segundo Liszt apud (D’Avila, 2009)10 a política criminal é: [...] a reunião ordenada de princípios, segundo os quais deve ser conduzida a luta da ordem jurídica contra o crime, ou o conjunto sistemático de princípios baseados na investigação científica das causas do crime e consequências da pena, segundo as quais o Estado, por meio da pena ou mecanismos a ela análogos, deve conduzir a luta contra o crime.
Ocorre que as políticas criminais na atualidade são fundamentadas com base nas pesquisas acadêmicas que são levantas nas universidades de vários países. Dentre elas se destacam a tese do abolicionismo, do direito penal máximo e do direito penal mínimo. Edmundo Oliveira apud (GRECO, 2009)11 assevera que “ainda prevalece a crença, no seio da coletividade, de que a prisão representa melhor resposta para as inquietações engendradas pelos comportamentos delinquentes”, o que reforça a tese abolicionista de que a construção de uma sociedade melhor e mais justa só será possível com o fim do sistema penal, pois já está ou sempre esteve, maculado pela ofensa à dignidade do ser humano. Por sua vez, em contraponto à tese abolicionista, o direito penal máximo tem ganhado força, principalmente nos países vítimas do terrorismo islâmico. Sua principal materialização se faz por meio do movimento lei e ordem que tem como discurso a efetividade da ação repressiva em matéria criminal. O movimento lei e ordem, surgido nos Estados Unidos, por volta da década de 60, prega um discurso que o direito penal deve ser máximo e eficaz, nesse sentindo (Greco, 2009) explica que: [...] faz a sociedade acreditar ser o Direito Penal a solução de todos os males que a afligem. E ainda, o convencimento é feito por intermédio do sensacionalismo, da transmissão de imagens chocantes, que causa revolta e repulsa no meio social. Não se pode tratar a sociedade pelos efeitos, os crimes, mas sim pelas causas que provocam o crime.
Seu resultado é a edição de leis cada vez mais severas, como aconteceu no Brasil na década de 90, com a publicação da lei dos crimes hediondos, após a forte pressão da sociedade, com o incansável apoio da mídia. No mesmo sentido é a teoria da Janelas quebradas ou tolerância zero, que afirma (CARVALHO, 2005)12 ser perceptível: [...] uma nítida simetria entre as propostas político-criminais propugnadas pelos defensores da “Tolerância Zero”, baseadas no incremento da repressão penal. Todavia, enquanto estes primam pela repressão à criminalidade de rua e pequenos crimes de menor potencial ofensivo, entendendo a intolerância como o único mecanismo de prevenção do caos e da desordem social, aqueles reivindicam alta punibilidade às ofensas dos bens jurídicos interindividuais, sobretudo os delitos contra a pessoa e o patrimônio.
Entretanto, elevada repressão, por si só, não é capaz de combater a criminalidade e garantir a ordem social, apenas apresenta uma aparente tranquilidade, conforme preconiza (ZAFFARONI, 2011)13 que: [...] vende-se a ilusão de que sancionando leis que reprimam desmesuradamente aos poucos vulneráveis e marginados que se individualizam, e aumentando a arbitrariedade policial, ao legitimar, direta ou indiretamente, todo gênero de violências, inclusive contra quem objeta o discurso publicitário, obter-se-á maior segurança urbana contra o delito comum.
D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 11 GRECO, ROGÉRIO. Curso de Direito Penal - Parte Geral - Vol. 1 - 11ª Ed. 2009. 12 Alexande; CARVALHO, Salo de (orgs.). Novos diálogos sobre Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. 13 ZAFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro. v. 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 14 JAKOBS, Gunther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Trad. De André Luís Callegari e Nereu José Giancomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 10
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Outra corrente que tem se destacado é a do Direito Penal do Inimigo, que se aproveita do momento de fragilidade pelo qual passa a sociedade, ante os altos índices de criminalidade e crescimento da violência. Tem como precursor o alemão GUNTHER JAKOBS14 e parte do pressuposto de que aquele que persiste em infringir a norma penal, violando o bom convívio social, deve ser considerado inimigo e ser afastado definitivamente do meio social. Segundo sua teoria (JAKOBS, 2005)15: [...] seria aplicado o direito penal clássico (do cidadão) unicamente às pessoas que não persistem em delinquir. Por outro lado, o direito penal do inimigo seria aplicado aos reincidentes, pois segundo ele, “o Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma [prevenção geral e negativa], e o Direito Penal do Inimigo combate o perigo.
Para essa teoria, a sociedade se encontra em guerra, sendo os bons contra os maus, devendo o Estado agir preventivamente a fim de prevenir o caos eliminando os inimigos da sociedade, antes que eles a dominam. Assim, o Estado seria capaz, por meio da segregação entre bons e ruins, de atuar antes da conduta delitiva, aplicando ao “inimigo” o tratamento mais drástico possível, pois este não merece qualquer garantia constitucional ou legal, pois por ser inimigo não é um sujeito de direitos. Importa ainda, que sua teoria elucida que (JAKOBS, 2005)15: [...] Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.
Fica, portanto, evidente, que tal teoria afasta o Direito Penal da regra que objetiva a tutela de um bem jurídico, pois para esta corrente não importa o ato ou a ação, mas o autor, suas características pessoais e sua personalidade. Zaffaroni apud (CANTERJI, 2008)16, em crítica a tal teoria, afirma que: [...] está se trata de uma corrupção do Direito Penal, a qual deve reconhecer e respeitar a autonomia moral da pessoa, jamais tendo legitimidade para punir o ser, mas somente o seu agir, já que o Direito Penal regula as condutas humanas.
Em contrapartida ao direito penal máximo, está lançado a teoria do Direito Penal Mínimo que apregoa ser a finalidade do Direito Penal a proteção de bens jurídicos necessários e vitais ao convívio em sociedade, ou seja, aqueles cuja importância, não são capazes de ser protegido pelos demais ramos do direito. Nas palavras de (Greco, 2009)17: [...] O Direito Penal do Equilíbrio tem como ponto central, orientador de todos os outros que o informa, o princípio da dignidade da pessoa humana. O Homem aqui, deve ocupar o centro das atenções do Estado, que, para a manutenção da paz social, deverá somente proibir os comportamentos intoleráveis, lesivos, socialmente danosos, que atinjam os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade.
Quem traça um paralelo entre Direito Penal Máximo e Mínimo ao finalizar com maestria é (Ferrajoli, 2002)18, que destaca que: [...] a certeza perseguida pelo direito penal máximo está em que nenhum culpado fique impune à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune.
JAKOBS, Gunther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Trad. De André Luís Callegari e Nereu José Giancomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005 16 CANTERJI, Rafael Braude. Política criminal e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 17 GRECO, ROGÉRIO. Curso de Direito Penal - Parte Geral - Vol. 1 - 11ª Ed. 2009. 18 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes,. 2002. 15
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Isso demonstra que as teorias, desenvolvidas em regra, nas academias, devem ser analisadas com responsabilidade, para que seja aplicada à finco a toda sociedade, como instrumento prático de efetivação do Direito Penal. Contudo, o que se vê é a desenfreada disseminação de correntes radicais, como a do Direito Penal Máximo, que tem sido veementemente aplicado neste século, sem, porém, ter passado por um aprofundamento, além da academia. Daí surge a preocupação deste trabalho, qual os riscos destas modernas tendências de políticas criminais e os riscos de violação aos Direitos Humanos. Qual a influência do clamor social e qual a reação por parte do legislador, que tende a editar leis cada vez mais severas. O que leva à utilização do aparato estatal da força policial repressiva e a utilização do Direito Penal como instrumento de combate e repressão à criminalidade, a fim de se obter uma possível solução para os problemas sociais, o que incorre em grande exagero na intensidade de aplicação da força estatal. Será o excesso de leis e a intensidade da repressão adotada pelo Estado, capaz de garantir a paz social, sem que viole os Direitos Humanos? CONSIDERAÇÕES FINAIS Mediante os esclarecimentos pelo presente trabalho é perceptível que o Estado brasileiro tem passado por certas dificuldades, no que tange a estabelecer uma política criminal responsável, pautada pelos direitos humanos e com garantia da ordem pública. Pouco se tem debatido sobre política criminal e direitos humanos, pouco se tem preocupado o legislador com a situação dos cárceres e quais os fatores que levam à delinquência e reincidência. Quando se debate no Brasil sobre a pena de morte é possível se apurar que grande parte da população é favorável, inclusive no meio acadêmico da área jurídica, o que demonstra que a população em geral, assim como o legislador tem se deixado levar pela emoção, escapando-se, ambos, da razão e, consequentemente, de que com a morte não há literalmente o cumprimento de pena real pelo condenado, o que gera preocupação. A pena, assim como a reclusão temporária (sem ressocialização), é uma falsa ilusão de segurança, pois o apenado voltará e nas palavras de Canterji (2008, p. 87)19 e “devolverá o grau de violência recebido da sociedade através do sistema penitenciário”. Munhoz Conde disciplina que (2005, p. 108) “educar para a liberdade em condição de ‘não liberdade’ não só é muito difícil, mas também é uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida na prisão”. Destarte, se o aumento das penas fosse por si só capaz de eliminar ou ao menos reduzir a criminalidade, já se teria no Brasil um “cidadão ideal” e um país sem criminalidade ou com um índice reduzidíssimo. Logo, é simples se apurar que o Direito Penal deve se ocupar em tutelar os bens jurídicos, não qualquer bem, mas sim aquele juridicamente relevante, como a vida, por exemplo. E suas imposições devem, além de reprimir a prática criminosa, condicionar os delinquentes a reinserção social. Ao se estabelecer o Direito Penal e Processual Penal como instrumentos de limitação do jus puniendi, têm-se um eficaz elemento de efetivação dos Direitos Humanos. A tolerância zero não deve ser pautada na reação contra a violência. E, também não se justifica como resposta no controle do crime. Tem-se a necessidade de reformas profundas na legislação penal. Porém, é relevante a aplicação de uma política de segurança pública voltada para a juventude, que é manipulada pelos narcotraficantes, pelo crime organizado, pelos políticos e empresários corruptos, que deixam transparecer que é fácil roubar, furtar e que impunidade é real no Brasil. Sabe-se que os traficantes têm o poder de cooptar um batalhão industrial de reserva. As políticas públicas para combater a corrupção nas suas variadas modalidades: preparo, salário digno e reforma das polícias; fiscalização e combate ao mercado ilegal de armas, sobretudo ao descaminho e contrabando que são praticados em nossas fronteiras; não é demais frisar que as indústrias de armas realizam vendas sem o devido controle, logo, lucram com a criminalidade; implementar políticas integradas do desarmamento com casa/escola/comunidade; urbanizar as comunidades visando à redução do isolamento, oferecer esporte, cultura e lazer como oportunidades de minimizar o ócio e, consequentemente, gerar oportunidades e convívio social. A política criminal, por sua vez, deve ser responsável e também ser pautada em compasso com os Direitos Humanos, sob pena de ser equivocada e inútil, e de colocar em risco não só o ordenamento jurídico de um país, mas toda uma segurança social. O legislador deve preocupar-se como a política criminal, pode ser uma MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro; Forense, 2005.
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redutora dos crimes e como deve atuar de forma preventiva, não criando bandidos imunes ao sistema penal, não perceberem que o crime não compensa. Após este estudo, não há que se falar em propostas para política criminal. Porque a política criminal tem, pois, duas premissas: o preventivo e o repressivo. O Brasil não tem nem um nem outro. Vive-se no caos de política criminal democrática, onde o Direito Penal é vislumbrado como o tapador de buracos de uma sociedade desigual e desumana, pois, não há políticas públicas para o preventivo e repressivo. As consequências são nefastas para o funcionamento do sistema penal, para a credibilidade do sistema judiciário e, mais genericamente, para o equilíbrio e o desenvolvimento da sociedade brasileira. Buscar-se-á mecanismos que convertam preventivo em educação, saúde, distribuição de rendas e oportunidades para os brasileiros, e, concomitantemente, o repressivo, que não é a mudança da maioridade penal, mas condições necessárias para que a repressão, não seja cadeia com amontoados de criminosos, mas sim, um sistema que organize e ressocialize o ser humano que necessita de uma oportunidade como egresso do sistema carcerário com profissão e dignidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. CANTERJI, Rafael Braude. Política criminal e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. DOTTI, R. A. A Crise do Sistema Penal. Revista dos Tribunais, nº 768, out.1999. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes,. 2002. GRECO, Rogerio. Curso de Direito Penal - Parte Geral - Vol. 1 - 11ª Ed. 2009. JAKOBS, Gunther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Trad. De André Luís Callegari e Nereu José Giancomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. SEDH/DCA. Infopen (levantamento nacional de informações penitenciárias). Brasília: MJ. 2015. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/ministro-da-justica-apresenta-documento-detalhado-sobre-prisoes>. Acesso em: 29 agos. 2016. MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito Penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro; Forense, 2005. SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 476 p. ISBN 85-2032266-2. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro. v. 1: parte geral. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de. Novos diálogos sobre Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005.
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SUPERENDIVIDAMENTO DOS CONSUMIDORES: ANÁLISE DO SUPERENDIVIDAMENTO DECORRENTE DE CONTRATOS DE CRÉDITO AO CONSUMO. Gabriela Brandão Sé1 RESUMO Este artigo aborda o superendividamento dos consumidores como um fenômeno econômico-social, que se propaga na sociedade brasileira como consequência do aumento da oferta de crédito às pessoas físicas e da ausência de tutela legal específica destinada a tratar os casos mais crônicos de endividamento. Nas palavras de Cláudia Lima Marques2, o superendividamento se caracteriza com “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, leigo e de boa-fé, pagar suas dívidas atuais e futuras de consumo”, sendo capaz de excluir o indivíduo vulnerável do mercado de consumo, abalar o seu mínimo existencial e sua dignidade. O artigo foi elaborado com metodologia de pesquisa bibliográfica, com cunho teórico. Revela-se um panorama geral de mecanismos de prevenção, proteção e tratamento do superendividamento dos consumidores, necessários para amenizar os desequilíbrios vivenciados no mercado de consumo. Constata-se a importância da atualização da Lei nº 8078/90 – Código de Defesa do Consumidor – com a inclusão de dispositivos que assegurem práticas mais responsáveis no uso do crédito, bem como o tratamento das situações de superendividamento existentes. Avalia-se a pertinência do Projeto de Lei nº 283/2012, que tramita no Congresso Nacional, com a perspectiva de inclusão de dispositivos legais que adequem o microssistema consumerista às novas demandas sociais. Palavras-chave: consumidor, crédito, superendividamento, prevenção, proteção, tratamento, normatização. ABSTRACT This article boards the over-indebtedness of the consumers as a social-economical phenomenon, which is propagated in the Brazilian society like consequence of the increase of the offer of credit to the individual entities and of the absence of specific legal protection when the most chronic cases of debt, able to exclude the vulnerable individuals of the market of consumption, to compromise his existential minimum and to shake his dignity destined being treated. In the words of Claudia Lima Marques, the over-indebtedness is characterized with "the overall failure of the debtor individual layperson in good faith, pay your current and future debts consumption", being able to delete the vulnerable individual consumer market, shake your existential minimum and dignity. The article was prepared having as methodology the literature, theoretical nature. There is revealed a general view of mechanisms of prevention, protection and treatment of the over-indebtedness of the consumers, necessary ones to ease the imbalances survived in the market of consumption. Notes the importance of the updating of the Law nº 8078/90 – Code of Defense of the Consumer – with the inclusion of devices that should secure more responsible practices in the use of the credit, as well as the treatment of the existent situations of over-indebtedness. There values the relevance of the Bill nº 283/2012, which goes through the procedure in the National Congress, with the perspective of inclusion of legal devices that adapt the market of consumption to the new social demands. Key words: consumer, credit, over-indebtedness, prevention, protection, treatment, legislation.
Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT). Especialista em Direito Público pelo Sui Juris – FACIPLAC. Bacharela em Direito pelo UniCeub. Analista Judiciário do Conselho Nacional de Justiça. E-mail: gbrasilis@gmail.com. 2 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direito do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p.260. 1
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INTRODUÇÃO Este artigo tem como objeto uma análise jurídica do superendividamento dos consumidores, avaliando aspectos positivos e negativos da expansão do uso do crédito e seus efeitos, os atuais instrumentos existentes para tratar a falência civil do consumidor e as propostas de atualização da legislação consumerista, com vistas a garantir o uso do crédito de forma responsável. A discussão deste tema encontra precedentes na França (surendettement), em Portugal (sobreendividamento), nos EUA, Reino Unido, Canadá (over-indebtedness) e na Alemenha (Überschuldung), por meio de legislações específicas que tratam a questão, a fim de amenizar os desequilíbrios vivenciados no mercado de consumo. O superendividamento é um fenômeno econômico-social que atinge parcela relevante da população brasileira, e necessita de contraposição normativa, definindo o instituto e seu alcance, tanto no âmbito material quanto processual. No Brasil, a abertura do mercado de crédito aos consumidores ocorreu a partir de meados da década de noventa, com a edição do plano Real e, mais acentuadamente nos últimos quinze anos, multiplicando-se as formas de concessão do crédito, as instituições que o concedem, os bens e os serviços que por meio dele podem ser adquiridos e, consequentemente, os riscos de insolvência ou superendividamento. Os reflexos da Revolução Industrial também mudaram os hábitos de consumo da sociedade, haja vista a dinâmica empresarial centrada na produção e distribuição de bens e serviços em larga escala, em substituição à anterior produção artesanal. Em resposta a este novo cenário, surgiram os contratos de adesão, instrumentos padronizados aptos a fazer frente às exigências de agilidade, segurança e praticidade, que trouxeram como uma de suas mais relevantes consequências a uniformização das negociações, onde o homem é tratado como um ser anônimo e despersonalizado. Ademais, o tempo é um elemento que alterou substancialmente o modo de avaliar as obrigações modernas, pois muitas contratações que eram realizadas de forma instantânea, passaram a se alongar no tempo (ex. aquisição de bens industriais através do leasing), o que exige um grau de informação mais elevado por parte do consumidor. Embora seja inegável que o acesso ao crédito constitui ferramenta indispensável para o desenvolvimento econômico, a grande complexidade das formas de contratação, bem como a série de riscos, custos e responsabilidades envolvidas, acaba por prejudicar a compreensão do consumidor a respeito das condições dos negócios, dificultando sua avaliação quanto a real capacidade de assumir compromissos. Nesse contexto, o endividamento que preocupa o mundo todo nas décadas mais recentes deriva do aumento dos recursos necessários para suportar as despesas corriqueiras, do crédito adiantado sob a forma de cartões de crédito ou de cheque especial, sem garantias reais, para prover a subsistência. Não são poucos que se endividam com a manutenção da vida diária ou com serviços indispensáveis que já não são providos pelo Estado ou que nunca o foram apropriadamente. Assim, o crédito tornou-se uma mercadoria, e como tal, é anunciado e promovido em diversas modalidades, entre elas a crescente oferta de cartões de loja, chamados pelos empresários de private label (selo próprio). Quando são oferecidos à clientela, o principal argumento é a facilidade de pagamento sem juros por 8, 10, 12 meses. A maioria não informa, porém, o valor dos encargos que chegam a 22,6% ao mês ou 1.059% ao ano. Os custos aos consumidores são definidos por técnicos do Banco Central como inaceitáveis, é um quadro de abuso. Não é à toa que esses cartões estão no topo do ranking de reclamações dos órgãos de proteção do consumo. Ao lado desta crescente oferta, a publicidade é utilizada como mecanismo apto a despertar novos hábitos de consumo na sociedade, substituindo as informações sobre as características dos produtos ofertados por apelos emocionais com o intuito de incentivar sua aquisição. Tamanha é a influência das mencionadas mensagens publicitárias que, ainda que não disponha de recursos imediatos para satisfazer sua necessidade de adquirir, o consumidor encontra no crédito ao consumo – cada vez mais facilitado dentre as diversas classes sociais – o caminho para concretizar seus sonhos de consumo. Neste contexto, espera-se dissuadir o pensamento de que somente o consumidor é responsável por sua condição de superendividado, tecendo considerações sobre a influência de fatores sociológicos, éticos, políticos e econômicos no desenvolvimento das relações consumeristas. Trata-se de fenômeno que é fruto da soRevista do Curso de Direito
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ciedade de massas, da era do excesso, onde o consumo é cada vez mais incentivado e a pessoa humana é vista como um potencial de compra. O artigo aponta importantes princípios constantes da Lei nº 8.078/1990 - Código de Defesa do Consumidor - que contribuem para a adequação das práticas consumeristas às estimas sociais. No entanto, as disposições legais atualmente existentes não têm sido suficientes para fazer frente ao surgimento de novas situações de superendividamento, diante das particularidades concernentes ao tema em análise, exigindo medidas mais enérgicas do legislador brasileiro, a exemplo do que já ocorre nos sistemas jurídicos de outros países. Com este enfoque, será analisado o Projeto de Lei nº 283/2012, que visa a alteração da Lei nº 8.078/1990, para disciplinar a concessão de crédito ao consumidor e dispor sobre a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento, buscando a garantia do mínimo existencial e da dignidade humana. 1. SUPERENDIVIDAMENTO 1.1CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA O consolidado modelo de economia de mercado capitalista, em face da escala mundial de produção, propiciou o encorajamento dos consumidores a se favorecerem da cultura do endividamento, diante da multiplicidade de bens e serviços ofertados incessantemente, de forma facilitada, caracterizando a atual sociedade como de consumo massificado. Essa atual fase do capitalismo, denominada de fase financeira, obteve sucesso em função de se fazer acompanhar por uma espécie de open credit society, utilizando a concessão de crédito como um mecanismo indutor do consumo, que desvincula a aquisição de produtos ou obtenção de serviços do pronto pagamento, sendo responsável por grande parte da movimentação econômica da atualidade. O crédito3, quando fornecido com responsabilidade e utilizado conscientemente pelo consumidor, viabiliza a inclusão social da população com menos possibilidades econômicas ou, simplesmente, promove maior segurança e conforto para o consumidor nas suas compras, contribuindo para o aumento do bem-estar dos indivíduos e das famílias.4 Entretanto, o aumento do volume de operações financeiras, a extensão a todos os setores da vida econômica e os financiamentos em longo prazo conduzem, gradativamente, o consumidor leigo e vulnerável à impossibilidade de manutenção e garantia do mínimo existencial, o “reste a vivre”, indispensável à subsistência do devedor, considerando sua renda e o valor dos débitos vencidos e a vencer5. Não raro, as contratações financeiras são realizadas sob uma pluralidade de formas, simultaneamente, sem, contudo, haver uma avaliação da real capacidade de adimplemento do conjunto das obrigações contratuais pelo consumidor. Como afirma Maria Manuel Leitão Marques6, o crédito “democratiza” o acesso a certos bens, mas não aumenta os rendimentos, daí a necessidade de uma cuidadosa atenção frente à inexistência de leis consumeristas neste âmbito específico. Nas palavras de Heloísa Carpena e Rosângela Cavallazzi7, o crédito para o consumo é um motor do processo capitalista, pois financia a atividade econômica; por outro lado, é fonte de abusos por parte dos fornecedores, ensejando a elaboração de normas disciplinadoras dessa relação.
O crédito é conceituado por De Plácido e Silva, do seguinte modo: derivado do latim creditum, de credere (confiar, emprestar dinheiro). Crédito em sua acepção econômica significa a confiança que uma pessoa deposita em outra a quem entrega coisa sua, para que, em futuro, receba dela coisa equivalente.[...] Charles Gide o considera como uma alargamento da troca, definindo-o como ‘a troca de uma riqueza presente por uma riqueza futura. [...] O crédito se constitui, na realidade comercial, sob as modalidades de vendas a prazo ou de empréstimos (SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.397). 4 MARQUES, Cláudia Lima. Os contratos de crédito na legislação brasileira de proteção ao consumidor.Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, v.18, p. 53. 5 CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 332. 6 MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 08. 7 CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.55, p. 134. 3
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Na visão de Adam Smith, seria possível uma noção econômica do homem (o homo economicus). Mas a crise de liquidez e de solvabilidade gerada pelo consumo inconsequente conduz o consumidor ao endividamento crônico, um problema social grave, espelho da exclusão social, criando uma nova espécie de morte civil, que é o falecimento do homo economicus.8 Os desejos de consumo dos indivíduos são objeto de estudo da sociologia do direito. O sociólogo alemão moderno, George Simmel9, afirmava que o ser humano é um ser dualístico por essência, o que faz com que suas ações sejam direcionadas por estes impulsos antagônicos e plurais, de integração social, que denominava “Sozialismus”, e de satisfação pessoal, que denominava “Individualismus”. É neste contexto que Gilles Lipovetsky10 desenha uma “sociedade-moda”, fundada na “cultura que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do conforto e do lazer.” Este sentimento constante de sedução atua como fonte legitimadora da já identificada “sociedade do superendividamento”, vista na condição de fenômeno de massa capaz de desestabilizar a ordem política, econômica e social. A proteção do consumidor, em uma sociedade endividada, passa a representar um valor social, ensejando reflexões sobre a função social da concessão de crédito, funcionalizando os conceitos, que deixam de ser um fim em si mesmo e passam a ter uma tarefa instrumental e a servir como parâmetro de interpretação e de aplicação das diretrizes normativas.11 Uma das funções do direito privado é a proteção da pessoa em face dos desafios da sociedade globalizada e informatizada, deslocando o foco patrimonialista e voltando-se para a pessoa e a coletividade. O reconhecimento do papel do consumidor na sociedade (art.5º, XXXII, da CF/88) e a necessidade de sua proteção no mercado (art. 170, V, da CF/88) são elementos indispensáveis no contexto das relações sociais de consumo. 1.2 CONCEITO JURÍDICO As condições da sociedade atual revelam similitudes com a sociedade feudal, na qual uma fração de trabalho já era devida antecipadamente ao senhor, ao trabalho escravo, porquanto o nosso sistema induz que a compra ocorra antes, para em seguida se resgatar o compromisso por meio do trabalho.12 Jean Baudrillard13 explica, entretanto, que na contemporaneidade, ao contrário do sistema feudal, ocorre uma cumplicidade: “o consumidor moderno integra e assume essa obrigação sem fim: comprar, a fim de que a sociedade continue a produzir, a fim de que se possa pagar aquilo que foi comprado”. Ao contrário da lógica cartesiana, em que o trabalho precede o fruto do trabalho como a causa precede o efeito, hoje, os objetos se antecipam à soma de esforços e ao trabalho que representam. Endividar-se significa contrair obrigações patrimoniais e possuir um saldo devedor, assim no ato de uma compra a prazo, por exemplo, o consumidor está se endividando. Tal situação, quando repetida em um número razoável de situações, acaba por aprisionar o consumidor, que fica envolto em uma órbita de dívidas que vão se tornando insolúveis, expondo-o a uma verdadeira ruína financeira.14 Todavia, dívidas contraídas a prazo não necessariamente terão reflexos negativos em um orçamento se puderem ser solvidas quando da data da quitação15, pois o superendividamento, conceituado por Cláudia Lima Marques16, somente se caracteriza com “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, leigo e de boa-fé, 8BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007, p.35. 9Apud BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007, p.35. 10 LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004, p. 61. 11 KIRCHNER, Felipe. Os novos fatores teóricos de imputação e concretização do tratamento do superendividamento de pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.65, 2008, p.107. 12 BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 169. 13 Op. cit., p.168. 14 MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006 p. 394. 15 MARQUES, Maria Manuel Leitão. et al. O Endividamento dos Consumidores. Lisboa: Almedina, 2000, p.02. 16 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006,p. 260. Revista do Curso de Direito
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pagar suas dívidas atuais e futuras de consumo”. Não sendo computados, para fins de averiguação do superendividamento, os débitos fiscais, as dívidas provenientes de delitos ou de prestações alimentícias. O art. 2º, caput, da Lei nº 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, dispõe que consumidor “é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”, entretanto, no âmbito do superendividamento, o conceito de consumidor não abrange as pessoas jurídicas e os empresários, para os quais existe lei específica que versa sobre a Recuperação de Empresas e Falência, a Lei nº 11.101/2005.17 Ressalta-se que o consumidor deve ser pessoa física e que contrata a concessão de crédito, destinado à aquisição de produtos ou serviços que, por sua vez, visam a atender a uma necessidade pessoal, nunca profissional do adquirente. Além disso, o consumidor deve agir de boa-fé, esta compreendida não como um estado de ânimo do sujeito, mas como comportamento leal, cooperativo, correto, enfim, a boa-fé objetiva. 1.2.1 SUPERENDIVIDAMENTO ATIVO E PASSIVO Complementando a compreensão do fenômeno, a doutrina europeia classifica o superendividamento em ativo e passivo. Conceitua o superendividado ativo consciente como sendo o indivíduo que agiu com a intenção deliberada de não pagar, ou seja, o consumidor de má-fé; o superendividado ativo inconsciente, como o devedor que agiu impulsivamente ou que deixou de formular o cálculo correto no momento em que contraíra as dívidas, também identificado como um devedor imprevidente e sem malícia; e, por fim, o superendividado passivo, indivíduo que por motivos exteriores e imprevistos sofreu uma redução brutal dos recursos, a exemplo do desemprego, do divórcio, do acometimento de doenças, vistos como acidentes da vida.18 Estes consumidores de boa-fé representam um percentual de aproximadamente 70% da parcela dos superendividados, que contratam podendo e querendo pagar, mas sofrem “um acidente da vida”, independente de culpa, impossibilitando-os de solver as dívidas contraídas. Sob uma ou outra forma, o superendividamento é fonte geradora de tensões, um passo na direção da exclusão social do consumidor vulnerável. A vulnerabilidade, que não se confunde com a hipossuficiência19, desdobra-se em duas categorias: econômica e técnica. A primeira ocorre em virtude da diferença do poderio econômico do fornecedor, em relação ao consumidor, ou da essencialidade do serviço prestado20; a segunda é consequência de ser o consumidor um não profissional, ou seja, diz respeito à ausência de conhecimentos específicos em relação às características do produto ou serviço que pretende adquirir21. Além da vulnerabilidade técnica e fática ou socioeconômica, Cláudia Lima Marques22 subdivide-a em jurídica e informacional. Esta vincula-se à importância da informação e da transparência no mercado cada vez mais dinâmico e competitivo; aquela seria a “falta de conhecimentos jurídicos específicos, de contabilidade ou economia”. O favor debilis pressupõe o reconhecimento de que alguns detêm posição jurídica mais forte, detêm mais informações, são experts ou profissionais, transferem mais facilmente seus custos e riscos profissionais para os outros, geralmente leigos, que não possuem informações sobre os produtos e serviços oferecidos no mercado,
O conceito de consumidor não se restringe apenas a essa disposição do caput do referido art. 2° do CDC, pode-se encontrar ainda mais três conceitos de consumidor, são os ditos consumidores por equiparação, disposto nos artigos 17, 29 e parágrafo segundo do art. 2° do referido diploma legal (KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa em juízo do consumidor. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 48). 18 MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p.237. 19 O conceito de vulnerabilidade é de caráter material. Todo consumidor é vulnerável. De outra parte, a hipossuficiência é idéia vinculada ao processo civil. Cuida-se de pressuposto para inversão do ônus da prova pelo juiz, conforme previsão no artigo 6º, VIII, do CDC. Significa falta de condições econômicas ou até culturais de realizar a prova necessária à instrução do processo. Por esta razão, admite-se que a hipossuficiência é uma presunção relativa, enquanto a vulnerabilidade é presunção absoluta (KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 35 e 36). 20 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5 ed. São Paulo: RT, 2005, p. 325. 21 BESSA, Leonardo Roscoe. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor: análise crítica da relação de consumo. Brasília: Brasília Jurídica, 2007, p. 39 e 40. 22 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5 ed. São Paulo: RT, 2005, p. 322 e 323. 17
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não conhecem as técnicas de contratação de massa, sendo, pois, mais vulneráveis a abusos.23 O critério do abuso não está apenas na intenção de causar danos, mas no desvio do direito de sua finalidade ou função social. O ato abusivo consiste na atuação antissocial, e a proteção das legítimas expectativas dos consumidores, a garantia do cumprimento do que ele espera obter de uma dada relação contratual, nada mais é do que a projeção do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana no âmbito obrigacional24. O ideal de igualdade estampado na Constituição Brasileira de 1988 é o aristotélico, onde a busca é do estabelecimento de uma igualdade real fundada no tratamento desigual aos desiguais25. O Estado assume um papel fundamental para garantir aos membros da sociedade a efetivação da isonomia, redimensionando seus objetivos e meios para atingi-los. Para superar a isonomia meramente formal, diante da presunção de vulnerabilidade do consumidor, é necessário limitar a liberdade de alguns, impor maior solidariedade no mercado de consumo e assegurar direitos imperativos aos mais fracos, tanto em relação ao conteúdo quanto às técnicas de contratação em massa.26 Além disso, os contratos de concessão de crédito são, via de regra, “contratos cativos de longa duração”27, que geram relações contratuais que se prolongam no tempo. O consumidor tende a manter relações continuadas e muitas vezes permanentes.28 Acumulam-se, portanto, diversos débitos, o que contribui para um endividamento que supera sua capacidade de pagamento. 2 PROTEÇÃO JURÍDICA DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO 2.1 A TUTELA CONSTITUCIONAL A ordem econômica no Brasil tem como lastro inicial a valorização do trabalho e da livre iniciativa, considerados os esteios de sustentação do desenvolvimento econômico. É do trabalho da pessoa humana que se inicia o processo de crescimento de um país e, portanto, há liberdade de explorar o mercado e dele obter lucro. Contudo, deve-se exigir observância dos princípios fundamentais da soberania nacional, porquanto o desenvolvimento pessoal do empresário deve ocorrer vinculadamente ao desenvolvimento social29. A defesa do consumidor é princípio geral da atividade econômica (art. 170, V, CF/88)30, elevada, ainda, ao posto de direito fundamental31, no artigo 5º, XXXII, portanto, cláusula pétrea, impondo ao Estado o dever de
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007, p.31. 24 CARPENA, Heloísa; CAVALLAZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 55, p.142. 25 O Código Civil de 2002 é um Código para iguais, um Código para civis em suas relações e para comerciantes ou empresários nas suas relações comerciais entre si. Não trata das relações de consumo, que são relações em princípio entre um leigo, civil, o consumidor, e um profissional, um empresário, o fornecedor. Para essas relações entre desiguais, relações mistas, o direito brasileiro, desde 1988 (art.48, ADCT), reservou uma proteção especial do consumidor e aplica-se prioritariamente o Código de Defesa do Consumidor, como lei especial (MARQUES, Cláudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financiamentos, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação? Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.43, p. 220). 26 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007, p.33 e 281. 27 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos bancários em tempos pós-modernos: primeiras reflexões. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.25, 1998, p.19-38. 28 LOPES, José Reinaldo Lima. Crédito ao consumidor e superendividamento – uma problemática geral. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 17, p.58. 29 JUNIOR, Humberto Theodoro. O contrato e sua função social. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.33. 30 BOLSON, Simone Hegele. O princípio da dignidade da pessoa humana, relações de consumo e o dano moral ao consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 46, 2003, p. 269. 31 A doutrina constitucionalista, atualmente, classifica os direitos fundamentais em “gerações”, representativas de etapas de consolidação desses direitos, cujos conteúdos ensejariam os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Direitos de primeira geração ou de liberdade consagram as garantias individuais e os direitos políticos clássicos, a chamada liberdade pública. Visam inibir a interferência indevida do Estado na vida do cidadão. Os direitos de segunda geração ou de igualdade referem-se aos direitos sociais, econômicos e culturais, surgidos no início do século XX. Eram os direitos de caráter social. Neste caso, a interferência do Estado era desejada para garantir a igualdade material dos indivíduos. Direitos de terceira geração ou de solidariedade ou fraternidade são os da coletividade, de titularidade coletiva ou difusa. Entre eles, encontram-se os direitos à paz, ao meio ambiente equilibrado, à comunicação e à proteção do consumidor (DE LUCCA, Newton. Direito do consumidor: aspectos práticos. Bauru: Edipro, 2003, p. 426). 23
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agir no sentido de proteger a parte mais fraca da relação de consumo.32 O artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou que o Congresso Nacional elaborasse um Código de Defesa do Consumidor, dentro de 120 dias da promulgação da Nova Carta, de onde surgiu a Lei nº 8.078/9033, vinculante de todas as relações jurídicas estabelecidas entre fornecedor e consumidor no mercado. As instituições financeiras se opuseram à incidência de lei protetiva dos consumidores nos contratos bancários e ajuizaram, perante a Corte Suprema, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n. 2.591/DF) do artigo 3º, § 2º, do CDC, que considera serviço qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. Visavam a declaração de que não poderia o Estado intervir para tutelar os consumidores, sob o argumento de que exigiria disciplina por meio de lei complementar, nos termos do artigo 192 da CF/88. Tratou-se de um movimento na contramão da proteção do consumidor nos contratos de crédito.34 Esta ação foi ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF) e definitivamente julgada em 14 de dezembro de 2006, por nove votos a dois; o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da aplicação da Lei nº 8.078/90 às atividades desenvolvidas pelas instituições financeiras35, como delineado pelo Ministro Celso de Mello: Os agentes econômicos não têm, nos princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência, instrumentos de proteção incondicional. Esses postulados constitucionais (...) não criam em torno das instituições financeiras qualquer círculo de imunidade que os exonere dos gravíssimos encargos cuja imposição, fundada na supremacia do bem comum e do interesse social, deriva dos princípios e do texto da própria Carta da República.36
Para Nelson Nery Júnior37, o aspecto central da problemática da consideração das atividades bancárias como sendo relações jurídicas de consumo reside na finalidade dos contratos realizados com os bancos. Havendo a outorga de dinheiro ou do crédito para que o devedor o utilize como destinatário final, há relação de consumo que enseja a aplicação dos dispositivos do CDC. Caso o devedor tome dinheiro ou crédito emprestado do banco para repassá-lo, não será destinatário final e, portanto não haverá relação de consumo. Como a experiência demonstra que a pessoa física que empresta dinheiro ou toma crédito de banco o faz para utilização pessoal, como destinatário final, existe aqui a presunção iuris tantum, de que se trata de relação de consumo, quer dizer, que o dinheiro (produto) será destinado ao consumo. O ônus de provar o contrário é do banco, quer porque se trata de presunção a favor do mutuário ou creditado, quer porque poderá incidir o art. 6º, VIII, do CDC, com a inversão do ônus da prova a favor do consumidor.38 2.1.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O princípio da dignidade da pessoa humana constitui a essência do sistema jurídico brasileiro39, organizado em um Estado Democrático de Direito, consoante estabelece o artigo 1º, III, da CF/88, reconhecendo expressamente que “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.40” SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009, p.39. KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 33. 34 MOURA,Walter José Faiad de; BESSA, Leonardo Roscoe. Impressões atuais sobre o superendividamento: sobre a 7ª Conferência Internacional de Serviços Financeiros e reflexos para a situação brasileira. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.65, 2008, p.160. 35 A decisão também enaltece a Drittwirkung, isto é, para a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas bancárias, entre consumidores, bancos, empresas financeiras, de crédito e seguradoras no Brasil. Veja mais sobre os efeitos da decisão do STF no artigo “A vitória da ADIn 2.591 e os reflexos no direito do consumidor bancário da decisão do STF pela constitucionalidade do Código de Defesa do Consumidor”. (MARQUES, Cláudia. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos bancos: ADIn 2.591. São Paulo: RT, 2006, p. 363-395). 36 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.591. Relator: Min. Eros Roberto Grau. DJU 29.09.2006, p.31. Disponível em: < http://stf. jus.br/portal/processo/pesquisarProcesso.asp>. Acesso em: 4 ago. 2016. 37 NERY JUNIOR, Nelson. A Defesa do Consumidor no Brasil. Revista de Direito Privado. São Paulo: RT, n.18. 2004, p. 253. 38 JUNIOR, Nelson Nery. A Defesa do Consumidor no Brasil. Revista de Direito Privado. São Paulo: RT, n.18. 2004, p. 253. 39 SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2009, p.29. 40 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 106. 32 33
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O direito deve intervir nas situações em que a dívida diminua a pessoa, comprometa o seu mínimo existencial, pois a dignidade do homem não se limita à dimensão física da existência. O consumidor superendividado torna-se um excluído socialmente, passa a amargurar uma angústia existencial, uma impotência diante da vida, sobrevivendo abaixo de um padrão de dignidade.41 O Código de Defesa do Consumidor tem o propósito de instituir uma mudança de mentalidade no que diz respeito às relações de consumo, que tem de ser implementada por todos aqueles que se encontram envolvidos nessas relações, notadamente o fornecedor e o consumidor. Ao lado da ordem pública social e da ordem pública econômica, fala-se modernamente em ordem pública de proteção aos consumidores. 2.2 O SUBSISTEMA CONSUMERISTA 2.2.1 PRINCÍPIOS INFORMADORES A Política Nacional das Relações de Consumo, prevista no art. 4º do Código de Defesa do Consumidor, atua como norma-base, na busca do alcance e atendimento das normas-fim, que são os direitos básicos dos consumidores, tais como, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, a serem respeitados na prática cotidiana, em sintonia com os princípios42 do aludido diploma consumerista. O princípio da função social, como expressão da “diretriz da socialidade”, indica um rumo a seguir oposto ao individualismo, pois, como todo meio, a liberdade de contratar não existe “em si”, mas “para algo”, isto é, está permanentemente polarizada e conformada para os fins a que se destina. O ambiente da liberdade de contratar é a comunidade, traduzindo valores que a sociedade assume como relevantes, onde imperam leis civis, ou seja, é uma liberdade situada, gerando uma nova ideia de autonomia privada solidária.43 A solidariedade possui também sentido moral, é a relação de apoio, adesão a um objetivo, plano ou interesse compartilhado. No meio do caminho entre interesse centrado em si (egoísmus) e o interesse centrado no outro (altruísmus) está a solidariedade, com o seu interesse voltado para o grupo.44 Entende-se, ainda, que diretamente associado à solidariedade está o princípio da confiança, presente em todas as relações de consumo e negociais, desde os contratos mais simples até os mais complexos e elaborados, o qual depende da boa-fé dos contratantes para vingar de forma plena. Poder-se-ia afirmar que a boa-fé objetiva é o princípio máximo orientador do Código de Defesa do Consumidor45, situada no art. 4º, inciso III e como critério de aferição de abusividade de cláusula contratual, no art. 51, inciso IV, afastando o voluntarismo extremado e situando-a como “ordem de cooperação” entre as partes, agregada a específicas funcionalidades.46 O princípio da boa-fé possui duas vertentes: uma de aspecto objetivo e outra subjetiva. A primeira domina as relações obrigacionais, sendo elevada à categoria de princípio geral dos contratos, que traz à tona a noção de um bom comportamento, como dever independente do estado anímico do agente. Por sua vez, a boa-fé subjetiva está relacionada a aspectos psicológicos que envolvem as ações das pessoas, como elemento da vontade oposto à má-fé. É comumente reconhecida a tríplice função da boa-fé objetiva, qual seja, interpretativa, como cânone hermenêutico e integrativo, dirigida ao intérprete do caso concreto, buscando a justiça interna da relação conOLIBONI, Marcella Lopes de Carvalho Pessanha. O superendividamento do consumidor brasileiro e o papel da Defensoria Pública: criação da comissão de defesa do consumidor superendividado. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 348. 42 O microssistema do Código de Defesa do Consumidor é lei de natureza principiológica. Estabelece os fundamentos sobre os quais se erige a relação jurídica de consumo, de modo que toda e qualquer relação de consumo deve submeter-se à sua principiologia. Consequentemente, as leis esparsas setorizadas (seguros, bancos, serviços etc) devem disciplinar suas respectivas matérias em consonância e em obediência aos princípios fundamentais do CDC (NERY JUNIOR, Nelson. A defesa do consumidor no Brasil. Revista de Direito Privado: RT, 2004, n.18, p.222). 43 MARTINS-COSTA, Judith. Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. Revista Direito GV. São Paulo, v.1, n.1, p.4145. 44 MARQUES, Claudia Lima. Solidariedade na doença e na morte. Sobre a necessidade de “ações afirmativas” em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, n. 8, 2001, p. 3-4. 45 MARQUES, Claúdia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5 ed. São Paulo: RT, 2005, p. 720. 46 MARTINS-COSTA, Judith. Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três perspectivas do Direito Privado brasileiro. Revista Forense, 2005, v.382, p. 122. 41
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tratual. A função criadora de deveres jurídicos, a fim de garantir a satisfação dos objetivos do contrato, das expectativas justas de ambas às partes; e, por fim, a função limitadora da autonomia da vontade, direito subjetivo que não pode mais ser exercido amplamente, como o foi de forma prevalente desde a Revolução Francesa, proporcionando desequilíbrios e injustiças nos contratos de consumo.47 O Código de Defesa do Consumidor vai além dessa tríplice função, transformando a boa-fé em um princípio geral de tutela do contratante débil, com perfil funcional, utilizada como fonte de deveres anexos, de modo especial o dever de informar, presente nos artigos 4º, IV e 6º, III, do CDC.48 O direito à informação adequada é um instrumento de exercício da cidadania, indeclinável, evitando a submissão dos indivíduos aos interesses do poder econômico. A informação é indutora do consumo consciente, minimiza os riscos de danos, de frustração da expectativa legítima do consumidor, adverte sobre custos e efeitos de um contrato e oferece oportunidade de escolha. Ao fornecedor incumbe prover os meios para que a informação seja conhecida e compreendida, ou seja, a cognoscibilidade abrange o conhecimento e a compreensão.49 Os contratos de crédito ao consumo são geralmente de adesão, pois inexiste a possibilidade de discussão e elaboração das cláusulas contratuais, bastando o preenchimento de fichas, propostas e formulários já impressos pelos fornecedores, o que potencializa a litigiosidade nessas relações. A falta de informação é um vício que macula o contrato.50 Assim, essa é a primeira tarefa do princípio da confiança: sanar o deficit de informação no contrato, dando segurança ao vínculo e garantindo a bilateralidade em condições paritárias. Entretanto, assim como a falta de informações direciona a vontade e não permite vislumbrar a realidade negocial, a dose excessiva de informações também desnorteia o contratante. Assim como a escuridão, o excesso de luminosidade também cega. A informação deve ocorrer na dose certa, sem restrição ou excessividade, sintetizando o ponto de equilíbrio na expressão “informação necessária”, que pode ser entendida como aquela que é capaz de proporcionar uma efetiva transparência na relação contratual e, ao mesmo tempo, amenizar a inevitável diferença informacional dos sujeitos das relações contratuais de consumo. O art. 52 do CDC estabeleceu que o fornecedor deverá51, nos contratos que envolvam outorga de crédito ou financiamento, informar prévia e adequadamente o consumidor sobre o preço e as condições, bem como sobre a soma total a ser paga, com ou sem financiamento. Já o art. 46 do CDC determina que os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. A doutrina francesa diferencia os deveres de informação e aconselhamento, apontando que aquele consiste na transmissão de conhecimentos objetivos, enquanto o dever de conselho consiste em guiar a ação do consumidor, estando a informação adaptada às necessidades e condições subjetivas do destinatário, o que demanda uma análise da situação particular do parceiro contratual. Em verdade, o dever de aconselhamento é uma personalização da informação ao consumidor52, que revela os prováveis problemas da operação de crédito em
KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa em juízo do consumidor. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.65-80. 48 MARTINS-COSTA, Judith. Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três perspectivas do Direito Privado brasileiro. Revista Forense, v.382, 2005, p. 124. 49 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2001, n. 37, p.74. 50 O dever de informação aplica-se durante todo o período da performance ou execução contratual, inclusas as fases pré-contratual, contratual e pós-contratual. Nesta última fase, descobertos os riscos posteriormente à prestação principal dos produtos e serviços, há necessidade de alerta, de informação de massa aos consumidores, com é o caso do recall, imposto pelo Código de Defesa do Consumidor (art10, §§1º e 3º). 51 Essa inversão de papéis, isto é, a imposição pelo Código de Defesa do Consumidor ao fornecedor do dever de informar sobre o produto ou serviço sobre os produtos ou serviços que oferece (suas características, seus riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que vinculará o consumidor, inverteu a regra do caveat emptor, que ordenava ao consumidor uma postura ativa, para a regra do caveat vendictot, que ordena ao vendedor que informe sobre o conteúdo dos contratos e suas limitações. Esse novo patamar de conduta, de respeito no mercado, não admite mais sequer o dolus bonus do vendedor, do atendente, do representante autônomo dos fornecedores diante do dever legal (MARQUES, Cláudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financiamentos, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação?. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.43, p. 239). 52 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: solidariedade e boa-fé. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor superendividado: superendividamento e crédito. São Paulo, RT, 2006, p.242. 47
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curto e longo prazo, prevenindo-o e sugerindo soluções possíveis.53 3 ENFRENTAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO 3.1 MECANISMOS DE PREVENÇÃO O enfrentamento do superendividamento, em sentido amplo, pressupõe uma etapa de observação e diagnóstico do problema, prévia à implantação de qualquer tipo de intervenção. Conhecidas as características do superendividamento do consumidor, pressupõe-se a adoção de medidas capazes de conter essa situação tanto no sentido de evitar a sua ocorrência como de possibilitar um auxílio àqueles que já se encontram superendividados, por meio de mediação ou de um processo judicial. Em busca de padrões mais responsáveis de consumo, torna-se necessário o crescimento das medidas preventivas do superendividamento, pois a crise financeira é uma demonstração de que há espaço para mudanças na política de consumo e fundamentalmente na educação do consumidor, por meio de medidas a serem fomentadas pelo Poder Público (hetero-regulatórias) e outras de iniciativa das próprias entidades (auto-regulatórias), dirigidas a modificar o comportamento dos credores e devedores, potenciais ou efetivos, de forma eficaz.54 A prevenção consiste em fazer com que o consumidor não seja levado a se comprometer em uma operação de crédito além de sua possibilidade de reembolso. Isso implica, de um lado, que todas as informações necessárias para que se possa determinar o custo real da operação visada pelo consumidor sejam precisamente transmitidas, e, de outro lado, o concedente do crédito avalie cuidadosamente a solvabilidade de seu cliente. A prevenção consiste, ainda, em não poder impor contratualmente ao consumidor encargos manifestamente desproporcionais. Deste modo, diversas legislações reprimem a usura, isto é, a prática de taxas de juros excessivas. Vários estudos demonstram que os jovens obtêm rendimento próprio cada vez mais cedo, e se inserem no mercado de serviços financeiros, tendo acesso à conta bancária e ao cartão de crédito. Trata-se de uma tendência que justifica o desenvolvimento em vários países de programas de educação para o consumo nas escolas, focando aspectos como o consumo-poupança, empréstimos, modernas técnicas de venda e de marketing, meios de pagamento etc.55 A educação em matéria de endividamento não se dedica apenas aos jovens. Outra finalidade da educação financeira é reinserir, no mercado, consumidores que já tenham enfrentado problemas com o crédito, a fim de reabilitá-los e ainda prevenir novos incidentes. A boa instrução dos consumidores é considerada uma questão central na prevenção da insolvência. No plano governamental, a educação do consumidor passa pela implementação de políticas eficientes de limitações equilibradas de acesso ao crédito, proibição de realização de créditos consignados a salários para áreas que não representem formas de suprimento de necessidades existenciais e, principalmente, pelo estabelecimento de limitações ao apelo publicitário das financeiras .56 Outra possibilidade seria a criação de regras que possibilitassem ao consumidor de crédito usufruir de um prazo razoável de reflexão que lhe outorgasse a possibilidade de arrependimento. O consumidor que não reflete a sua decisão está exposto a realizar compras desnecessárias e comprometer seu rendimento futuro. O direito de arrependimento instituído no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor é um instrumento de grande importância para a proteção do consumidor, nas hipóteses em que o contrato de consumo tenha sido celebrado fora do estabelecimento comercial. Nos casos de home – banking e empréstimos à distância, o prazo de retratação pode ser aplicado. Todavia, o que se espera como medida de prevenção do superendividamento CARPENA, Heloísa; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.55, p. 140-1. 54 MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 194 e 299. 55 MARQUES, Maria Manuel Leitão. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 197 e 201. 56 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 288 e 304-5. 53
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dos consumidores é a aplicação do instituto até mesmo quando a contratação é feita dentro dos estabelecimentos comerciais57. No direito francês, a faculdade de retratação integra o processo de formação do contrato de crédito. Ela se aplica em um momento em que o contrato ainda não foi formado. Retratando-se, o consumidor renuncia à conclusão de um contrato em via de formação; intervém no momento em que o princípio da força obrigatória dos contratos ainda não incide. A lei quer que a vontade do consumidor seja submetida a uma decisão “racional e estratégica”, prevalecendo o aspecto preventivo, dando à retratação o caráter de renúncia à conclusão definitiva do contrato.58 O direito de arrependimento atuaria como forma de preservação do consumidor de crédito em contratos extremamente onerosos, firmados sob os influxos de pressões externas, sem maior ponderação da situação e muitas vezes sem esclarecimentos indispensáveis por parte dos fornecedores.59 Já em relação às financeiras, a atuação esperada na concessão de crédito é a de proceder a um empréstimo responsável, acompanhado do dever de aconselhamento. O fornecedor deveria analisar detalhadamente as condições financeiras do tomador do empréstimo, consultando o registro de dados apropriados, a fim de verificar a solvabilidade do consumidor e acautelar-se sobre a possibilidade econômica deste de cumprir com as obrigações resultantes desse contrato. Esta perspectiva visa à responsabilização do fornecedor pelas repercussões que sua atividade provoca no mercado, tal como ocorre, por exemplo, com o fornecedor de produtos defeituosos ou com o publicitário que produz mensagem enganosa ou abusiva. Não se desconhecem casos em que a falência econômica do sujeito é fruto de ato de credores que extrapolam as mais basilares regras deontológicas, a fim de obterem lucros cada vez maiores. O superendividamento contribui para o aniquilamento social do indivíduo. Quanto mais este fenômeno aumenta, mais seu custo se eleva e a necessidade de combatê-lo se impõe. As diversas experiências legislativas mostram que as técnicas de prevenção buscam moralizar a distribuição do crédito, responsabilizando tanto os consumidores quanto os organismos concedentes. 3.2 MECANISMOS DE PROTEÇÃO Até recentemente vigorava na órbita civil o princípio da intangibilidade do conteúdo do contrato ou da obrigatoriedade do contrato, consubstanciado no pacta sunt servanda, que estabelece ser o contrato lei entre as partes. Ao longo dos anos, no contexto das relações massificadas envolvendo bens, produtos e novas formas de contratar, onde as cláusulas são impostas, na maioria das vezes, por meio de contratos de adesão, a doutrina e a jurisprudência passaram a conceber mecanismos de adaptação às mudanças sociais, destacando-se a adoção da teoria da quebra da base objetiva do negócio, para permitir a revisão dos contratos, mitigando o princípio da obrigatoriedade. O Código de Defesa do Consumidor, além de reconhecer a nulidade absoluta das cláusulas abusivas (art.51) e vedar aos fornecedores práticas abusivas (art.39), definiu como direito básico do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (art. 6º, V), no sentido de restabelecer o equilíbrio contratual. Como o próprio dispositivo legal sugere, existem causas concomitantes à formação do contrato, como as cláusulas abusivas e as prestações desproporcionais, que contaminam o contrato desde o seu nascimento e traz em seu conteúdo a possibilidade de modificação por determinação judicial.60 Também as causas supervenientes à formação do contrato, como a quebra da base objetiva do negócio por onerosidade excessiva, podem determinar a sua revisão. MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.55, 2005, p.36. 58 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 93. 59 BOLSON, Simone Hegele. O direito de arrependimento nos contratos de crédito ao consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n. 64, 2007, p.190. 60 ALMEIDA, João Batista. A revisão dos contratos no Código do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.33, p.144. 57
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Segundo Nelson Nery Júnior61, a onerosidade excessiva pode proporcionar o enriquecimento sem causa, razão pela qual ofende o princípio da equivalência contratual, e é aferível de acordo com as circunstâncias concretas que não puderam ser previstas pelas partes quando da conclusão do contrato. Somente as circunstâncias extraordinárias é que entram no conceito de onerosidade excessiva, dele não fazendo parte os acontecimentos decorrentes da álea normal do contrato.62 O Código de Defesa do Consumidor exige que os fatos sejam supervenientes, mas não que sejam imprevisíveis. Mesmo sendo previsível o fato, a sua superveniência aliada à quase impraticabilidade da prestação, permite a revisão do contrato, para adequá-lo ao que foi definido pelas partes no momento da sua celebração. Podem ser citadas como exemplo a inflação e a variação cambial nos contratos de arrendamento mercantil, com prestação fixada em dólar, em época de economia estável e inflação próxima de zero. O juiz, reconhecendo que houve cláusula estabelecendo prestação desproporcional ao consumidor, ou que houve fatos supervenientes que tornaram as prestações excessivamente onerosas para o consumidor, deverá solicitar às partes a composição no sentido de modificar a cláusula ou rever efetivamente o contrato. Caso não haja acordo, o juiz deverá estipular nova cláusula ou novas bases do contrato revisto judicialmente, ao proferir sentença mandamental, complementando ou mudando alguns elementos da relação jurídica de consumo já constituída63. A sistemática protetiva do consumidor busca garantir a conservação do contrato, de forma que tenha condição de ser cumprido pelas partes, restabelecido o equilíbrio contratual. Caso não seja possível, apesar dos esforços de integração, permite o Código a resolução do contrato (art.51, § 2º). A jurisprudência do STJ tem sido sensível a esta necessidade subjetiva do consumidor, mesmo quando em estado de inadimplência, de conseguir rescindir os contratos de longa duração, para evitar o estrago definitivo, especialmente em contratos de compromisso de compra e venda de imóveis. A ideia é possibilitar a purga da mora pelo devedor, isto é, que de inadimplente se torne adimplente, com a cooperação do fornecedor. Ocorre, porém, que a revisão contratual é um remédio paliativo por ser instrumento processual restrito à individualidade dos contratos e perante um dos credores; logo, as dívidas são discutidas de forma fragmentada e não global. O problema do superendividamento objetiva a renegociação conjunta das dívidas, como auxílio ao consumidor que se encontra impossibilitado ou com dificuldades de adimplir suas dívidas, visando à sua reinserção socioeconômica e de seu núcleo familiar. No âmbito da conservação dos contratos, aplica-se a teoria do adimplemento substancial e o reforço de que cabe ao consumidor rescindir o contrato ou mantê-lo, cabendo ao fornecedor renegociar o ajuste ou cooperar para que o consumidor possa adimpli-lo.64 Um pequeno inadimplemento pode não ser substancial o suficiente para causar a rescisão do contrato por decisão do credor.65 Outro avanço jurisprudencial foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de impossibilitar a prisão civil por dívidas de consumo. “A estratégia jurídica para cobrar dívida sobre o corpo humano é um retrocesso ao tempo em que o corpus vilis (corpo vil) era sujeito a qualquer coisa”, disse o ministro Cezar Peluso66 . Esta medida é aplicável somente ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.
NERY JUNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2001, p. 139 e 140. 62 Por álea normal deve entender-se o risco previsto que o contratante deve suportar, ou, se não previsto explicitamente no contrato, de ocorrência presumida em face da peculiaridade da prestação ou do contrato. 63 NERY JUNIOR, Nelson. A Defesa do Consumidor no Brasil. Revista de Direito Privado. São Paulo: RT, n.18. 2004, p. 260. 64 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: a proteção do consumidor em direito comparado brasileiro e francês. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.25-26. 65 Assim decidiu o STJ, in REsp 272739/MG, DJ 02.04.2001, Min. Ruy Rosado de Aguiar: “Alienação fiduciária. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência de boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido de reintegração de posse.” 66 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100258 >. Acesso em: 4 ago. 2016. 61
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A relação contratual se encadeia e se desdobra no tempo em direção ao adimplemento, logo, a cooperação no desenvolvimento do contrato não atende apenas aos interesses do devedor, pois o credor também usufrui das vantagens de um contrato reequilibrado, especialmente através da maximização da possibilidade de satisfação de seu crédito, hipótese sensivelmente comprometida com a própria configuração e manutenção do estado de superendividamento.67 3.3 MECANISMOS DE TRATAMENTO Para enfrentar o problema no Brasil, no que toca à proteção do consumidor de crédito, a experiência pioneira surgiu a partir da realização de uma pesquisa empírica no Rio Grande do Sul, com 100 casos de superendividamento de consumidores pessoas físicas. Tamanha era a dimensão do problema que a partir das proposições da referida pesquisa, inicialmente destinada a oferecer elementos ao Ministério da Justiça para a elaboração de um anteprojeto de lei acerca do tratamento das situações de superendividamento – concluiu-se pela necessidade de se buscar uma solução imediata para o problema, até que a legislação fosse efetivamente concebida. Foi justamente essa necessidade que levou à elaboração do Projeto-piloto de tratamento das situações de superendividamento, cujo objetivo consistiu em suprir a momentânea falta de previsão legal para as situações de superendividamento dos consumidores, de modo a viabilizar a reinserção social desses indivíduos e dos núcleos familiares no mercado de consumo. Tal projeto, de iniciativa das Juízas de Direito Karen Rick Danilevicz e Clarissa Costa de Lima, foi instaurado no Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul no ano de 2006. Seu objetivo foi de intermediar a renegociação das dívidas dos consumidores com seus credores, por meio da conciliação judicial ou extrajudicial, de modo a viabilizar a reinserção social do consumidor superendividado e garantir a preservação de seu mínimo vital, com inspiração no modelo jurídico francês. A primeira fase do procedimento de tratamento do consumidor superendividado seria extrajudicial. Neste momento o consumidor buscaria uma conciliação com seus credores, diante de uma comissão, que avaliaria as condições pessoais do superendividado e os requisitos formais impostos pela lei, tais como a boa-fé, para que fosse elaborado um plano de pagamento das dívidas. Havendo conciliação o acordo seria homologado pelo juiz. Além de estruturar condições em busca do pagamento das dívidas, seria necessário instituir um mínimo vital, que consiste em um rendimento fixado para que o superendividado possa sobreviver dignamente, paralelamente ao processo de sua reorganização financeira.68 Essa fase extrajudicial para conciliação do superendividamento com seus credores, por meio de uma comissão em que o Estado intervenha, pode ser mais facilmente implantada no Brasil, seja nas Defensorias Públicas, seja nos Juizados Especiais de Pequenas Causas, onde se conta com a presença de juízes. Difundido este mecanismo, certamente seria preferido às ações revisionais, que hoje abarrotam as Varas Judiciais no Brasil inteiro. Nesta comissão deve haver um juiz ou um leigo, árbitro ou mediador, um representante da Defensoria Pública, pelos consumidores, e um representante dos bancos ou financeiras, que podem ajudar nos cálculos e na elaboração do plano de recuperação e pagamento, tudo sob a supervisão do Estado, por meio de um juiz que homologa o acordo extrajudicial com a coletividade dos credores.69 Entretanto, não sendo possível a fase administrativa de conciliação, instaurar-se-ia a fase judicial que, ao contrário da fase extrajudicial, para ser realidade difundida no Brasil demanda necessariamente uma regulação específica do tema.70 Uma lei que trate de temas materiais (controle da publicidade e informação sobre o crédito, exigências de forma, direito de arrependimento nos contratos de crédito, limite às garantias pessoais, vinculação entre o pagamento, os contratos acessórios e o contrato principal de consumo) e de temas processuais ou administrativos. KIRCHNER, Felipe. Os novos fatores teóricos de imputação e concretização do tratamento do superendividamento de pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.65, 2008, p.107. 68 CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O perfil do superendividado: referências no Brasil. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do Consumidor superendividado: superendividamento e crédito. São Paulo, RT, 2006, p. 244. 69 MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.55, 2005, p. 51-52. 70 CEZAR, Fernanda Moreira. O consumidor superendividado: por uma tutela jurídica à luz do direito civil-constitucional. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.63, 2007, p.160. 67
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Tratar as situações de superendividamento é, em síntese, estabelecer um plano de recuperação que permita ao devedor regularizar sua condição financeira, resgatando sua cidadania econômica. Em última análise, é uma luta contra a exclusão social. Os interesses dos credores não são ignorados, mas são tratados de maneira subsidiária. Reencontra-se uma finalidade do direito do consumo: proteger aquele que se encontra em situação de vulnerabilidade. 4 ATUALIZAÇÃO DO MICROSSISTEMA CONSUMERISTA NA PROTEÇÃO DO SUPERENDIVIDAMENTO Tramita no Congresso Nacional o PLS nº 283/2012 que altera a Lei nº 8.078/90, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção do superendividamento, incluindo dispositivos complementares que visam a preparar o mercado e a sociedade brasileira para as novas demandas sociais, características de um País em desenvolvimento econômico. A proposta pretende ampliar o rol dos direitos básicos do consumidor, para assegurar a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira, de prevenção e tratamento das situações de superendividamento, preservando o mínimo existencial, por meio da repactuação da dívida, entre outras medidas. Além da atualização das normas já existentes, a proposta cria uma nova seção no Capítulo V do Código de Defesa do Consumidor, referente à proteção contratual. Regula-se o direito à informação adequada, a publicidade, a intermediação e a oferta de crédito aos consumidores. Garante-se a entrega de cópia do contrato e informações obrigatórias que permitam aos consumidores decidir de maneira refletida sobre a necessidade do crédito. Propõe-se também a figura do assédio de consumo, protegendo de forma especial os consumidores idosos e analfabetos, estabelecendo regras básicas para a publicidade de crédito ao proibir a referência a crédito “sem juros”, “gratuito” e semelhantes, de forma que não se oculte os ônus da contratação. Para resguardar a efetividade da tais garantias, o referido projeto reforça o vínculo de solidariedade entre os fornecedores de crédito e seus intermediários, bem como de coligação entre o contrato principal de fornecimento do produto ou serviço, e o contrato dependente, de crédito ao consumidor. Outra importante medida é a preservação de parcela da remuneração do consumidor não inferior a 70%, quando envolver débito direto em conta corrente, descontos em folha de pagamento, ou qualquer modo que restrinja parcela da remuneração. Quantos aos direitos materiais, institui-se também a possibilidade de o consumidor se arrepender do crédito consignado, sob determinadas condições, como mais um instrumento apto a evitar o superendividamento sem, contudo, ser penalizado diante desta decisão. Na parte processual, a nova legislação pretende instaurar a conciliação com todos os credores do consumidor superendividado, o que facilita a elaboração de um plano de pagamento para a quitação da dívida, com prazo máximo de 4 (quatro) anos, com a preservação de mínimo existencial, permitindo a reinclusão do consumidor no mercado, com tal circunstância anotada no banco de dados de proteção ao crédito. Cabe salientar que o processo de repactuação de dívidas é exclusivo dos consumidores de boa-fé, não sendo aplicável aos maus pagadores ou àqueles que agem conscientemente de má-fé. Há, contudo, uma reveladora constatação de que aproximadamente 70% dos consumidores superendividados encontram-se nesta situação por acidentes da vida”, caracterizando o superendividamento passivo, de vontade alheia do consumidor. Este novo projeto de lei pretende trazer, além da prevenção, o procedimento para a “reestruturação do passivo” do consumidor superendividados pessoa física de boa-fé. Seguindo a experiência da lei francesa e a do projeto piloto das magistradas Clarissa Costa de Lima e Karen Bertoncello, as pessoas físicas consumidoras poderiam requerer a regularização do conjunto de suas dívidas e obrigações através de um acordo consensual (fase conciliatória), com os credores, ou de plano judicial de pagamento (fase judicial em caso de conciliação frustrada). Na futura lei, o procedimento seria proposto perante o Poder Judiciário Estadual, a partir do preenchimento de formulário-petição, que estaria à disposição dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, na qual o devedor declararia: “a) dados pessoais socioeconômicos; b) rendimento mensal e despesas correntes; c) composição do núcleo familiar; d) relação de todos os credores e respectivos endereços; e) relação do ativo e respectivo valor, com indicação dos bens próprios e comuns; f) identificação de todas as ações e execuções contra si pendentes; g) descrição dos fatos que determinaram o aparecimento da situação de impossibilidade de satisfazer pontualmente as obrigações assumidas. Caso o devedor expresse dificuldade em fornecer os dados relativos aos créditos pelos quais é responsável, o Revista do Curso de Direito
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juiz poderá requisitar as informações necessárias diretamente dos credores, bancos de dados, serviços de previdência e seguridade social, administração pública ou outras instituições competentes para tanto. Prevaleceria o acesso gratuito ao primeiro grau de jurisdição, no foro do domicílio do consumidor, que deverá comparecer pessoalmente, podendo ser assistido por advogado nas causas de até 20 (vinte) salários mínimos; nas de valor superior, a assistência é obrigatória. No momento de entrega do formulário, idealiza-se o atendimento do consumidor por profissionais da área de assistência social, da psicologia, dentre outras, assim como por integrante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor capacitado ao aconselhamento acerca da prevenção e do tratamento do superendividamento. A fase de conciliação seria obrigatória, entretanto, inexitosa, o devedor poderá requere no juízo competente a reestruturação do passivo através de um plano, relativo às dívidas não acordadas, caracterizada a fase judicial. O juiz procede à citação dos credores cujos créditos não integraram o acordo obtido na fase conciliatória. Após a citação, com ou sem a resposta dos credores, o juiz decide quanto à admissibilidade do procedimento de reestruturação, mediante a análise da totalidade da renda e do patrimônio disponível do consumidor. Como efeitos da decisão que admite o procedimento, importa-se: a) a vedação do ajuizamento de ação executiva contra o devedor; b) na suspenção das ações executivas pendentes; c) na suspensão dos juros e encargos contratuais. Prevê, ainda, o vencimento antecipado das dívidas contempladas no acordo ou no plano do devedor que, após a apresentação do pedido, proceder de má-fé, intencionando fraudar a estipulação judicial, como exemplo, desviando parte de seus bens ou agravando sua situação de endividamento com novos empréstimos. Em prol da execução dos planos judiciais, ainda pode ser mencionada a criação futura de um “Fundo de Negociação do Endividamento” para apoio dos Poderes Judiciários Estaduais na execução deste lei. Assim, nas infrações do Código de Defesa do Consumidor, os julgadores poderiam canalizar os recursos para o Fundo e, da mesma forma, os órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor quanto às multas advindas de Termos de Ajustamento de Conduta. Percebe-se no Brasil uma crescente preocupação quanto à situação do consumidor superendividado, muitas vezes causada por ilegalidades e abusividades dos fornecedores de crédito, conduta esta que tem merecido o rechaço do Judiciário. Neste sentido, as experiências de conciliação e renegociação de dívidas têm revelado resultados satisfatórios, reforçando a importância da normatização deste procedimento no Código de Defesa do Consumidor. CONCLUSÃO A sociedade atual passa por uma fase de transformações iniciadas com o fenômeno da globalização econômica, que proporcionou uma verdadeira modificação da maneira de viver mundial, alterando a configuração dos valores sociais e impondo uma nova forma de pensamento coletivo. Nesse contexto, destaca-se a concessão de crédito ao consumo como forma de viabilizar o ingresso e a participação dos indivíduos no mercado de consumo. O recurso ao crédito facilita sobremaneira a aquisição de bens e serviços pelo consumidor, que já não necessita desembolsar de imediato a quantia a eles equivalente. Por meio de empréstimos ou financiamentos, compromete-se a renda futura, mas o bem ou serviço adquirido pode ser desfrutado imediatamente. E não é só para o consumidor que esse sistema apresenta vantagens. O aumento do consumo amplia a demanda, fomenta o emprego e proporciona desenvolvimento da atividade industrial. O endividamento do consumidor, sob esse ponto de vista, constitui uma maneira de elevar a qualidade de vida da população. Contudo, o endividamento crônico é a outra face dessa democratização e resulta de muitas variáveis como a falta de educação financeira, o sistema de segurança social e o comportamento do mercado de trabalho. Pesquisas comprovam que o desemprego ou a precarização do emprego constituem uma das suas causas centrais e indicam que a grande maioria dos consumidores superendividados se encontra nessa situação de maneira passiva. O consumidor é o elo fraco da cadeia econômica e o seu resguardo depende necessariamente da limitação de algumas formas de exercício da atividade econômica que vigoram atualmente nas relações entre fornecedor e consumidor. É manifesta a necessidade da conduta proativa dos fornecedores em relação ao parceiro contratual mais vulnerável, desde a informação íntegra, permitindo ao consumidor exercer seu direito de escolha, sem submissão a vontades alheias, reduzindo os riscos de inadimplemento do contrato. Tutelar o consumo de crédito requer o enfrentamento de algumas barreiras, tais como: a criação de um am128 Faciplac
biente propício a que o consumidor manifeste sua vontade de maneira livre e consciente; a adoção de normas imperativas de proteção do consumidor de crédito; e o desenvolvimento de mecanismos aptos a evitar a ocorrência do superendividamento, a minimização de seus efeitos e de solução para as situações mais graves deste fenômeno. Sob o aspecto econômico, a questão do endividamento de particulares já foi objeto de apreciação pelo legislador brasileiro, a considerar a existência de institutos como a insolvência civil (regulada pelo CPC) e a falência empresarial (disciplinada pela Lei nº 11.101/2005). Contudo, esses institutos não são suficientes para tratar de um fenômeno como o superendividamento, que envolve a necessidade de investigação de causas pessoais e sociais que levaram à situação de insolvência do consumidor. De igual maneira, a propositura de ações judiciais destinadas à revisão dos contratos de concessão de crédito também inviabiliza a análise da situação financeira global do devedor – o que se apresenta indispensável para a solução do problema em análise – visto que na maioria das vezes a discussão das dívidas contraídas pelo demandante é fragmentada. A despeito de ser um verdadeiro fenômeno social, inexiste tratamento legislativo específico a normatizar o superendividamento, não obstante a doutrina venha alertando sobre a necessidade de intervenção desta natureza, agora concretizada no Projeto de Lei nº 283/2012 que altera a Lei 8.078/90, para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre o superendividamento. Buscou-se na legislação estrangeira alguns procedimentos legais que pudessem nortear a prevenção e o tratamento do superendividamento perante a realidade brasileira. A vertente da prevenção está ligada à instrução adequada do consumidor, ao dever de aconselhamento por parte dos fornecedores, a uma praxe solidária no mercado de consumo, ao planejamento familiar, à estabilidade do emprego no país e à implementação de políticas públicas que visem a coibir abusos de forma mais enfática. Exige-se fidelidade aos princípios descritos no Código do Consumidor, que não é uma legislação simbólica, mas uma lei avançada e sensível às necessidades de proteção àqueles que estão expostos às armadilhas do mercado. Verifica-se que é de extrema relevância a atualização do Código de Defesa do Consumidor, diante das mudanças ocorridas nas relações de consumo nos últimos anos, ensejadoras de lacunas na legislação que precisam ser suprimidas, de forma a estimular o consumo cauteloso e responsável, sem prejuízo do reconhecimento das relevantes funções sociais do crédito, geradoras de maior qualidade de vida para todos. REFERÊNCIAS ALMEIDA, João Batista. A revisão dos contratos no Código do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.33. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2004. BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª triagem. São Paulo: RT, 2007. BESSA, Leonardo Roscoe. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor: análise crítica da relação de consumo. Brasília: Brasília Jurídica, 2007. BOLSON, Simone Hegele. O direito de arrependimento nos contratos de crédito ao consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, n.64, 2007. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso em: 4 ago. 2016. BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, p.1, 12, set.1990. BRASIL. Projeto de Lei nº 283, de 2 de agosto de 2012. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção do superendividamento. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF. asp?t=112479&tp=1>. Acesso em: 4 ago. 2016. Revista do Curso de Direito
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ERRO MÉDICO: RESPONSABILIDADE OBJETIVA PARA DANOS CAUSADOS POR TRATAMENTOS ESTÉTICOS
Yuri César Cherman1 RESUMO O presente texto aborda o tema da responsabilidade civil do profissional médico, diante de danos causados a pacientes. De início, o artigo apresenta aspectos gerais acerca do modo como o assunto é regulamentado pela legislação brasileira (a qual estabelece, via de regra, a responsabilização subjetiva, pautada na culpa) e tratado pela doutrina e jurisprudência pátrias. São ressaltados, durante o texto, elementos indicativos da necessidade de se alterar o modo como é abordada a responsabilidade civil por dano causado no desempenho de atividade médica. Ao final, apresenta-se doutrina especializada que sustenta a possibilidade de responsabilização objetiva do profissional liberal de medicina que realiza tratamentos meramente estéticos, ou seja, desprovidos de finalidade curativa, isto é, sem necessidade de que se comprove seu erro culposo. Tal conclusão se dá com base em pressupostos aplicáveis à teoria do risco e por meio da utilização do diálogo das fontes, isto é, em uma interpretação sistemática e harmônica do ordenamento jurídico. Palavras chaves: Médico. Profissional Liberal. Procedimento Estético. Responsabilidade Civil. Responsabilidade Objetiva. Teoria do Risco. 1. INTRODUÇÃO A disciplina jurídica da responsabilidade civil visa à análise dos casos de reparação de dano causado por ato ilícito civil, o que pode ocorrer pela via subjetiva (com apuração de culpa do agente do dano) ou pela objetiva (independente de culpa). Com o propósito de buscar maior justiça social, os estudos acerca da responsabilidade civil vêm evoluindo nos últimos anos, com a tendência de gerar entendimentos mais protetivos quanto aos interesses da vítima, em detrimento daqueles do causador do dano. De acordo com a Lei no 8.078/1990 (o Código de Defesa do Consumidor), via de regra, a responsabilidade civil do fornecedor de serviços deve ser apurada objetivamente, isto é, sem necessidade de que a vítima do dano (o consumidor) comprove a existência de culpa na conduta do causador do dano (o fornecedor). Porém, ainda seguindo o texto literal da Lei Consumerista, mais precisamente no artigo 14, parágrafo 4o, o fornecedor de serviços que se insira na categoria de profissional liberal, quando causa dano a alguém, tem sua responsabilidade civil apurada pela modalidade subjetiva, leia-se dependente da verificação de conduta culposa. A aplicabilidade deste segundo preceito normativo ao profissional de Medicina soa adequada, tendo em vista o seu enquadramento na categoria de profissional liberal. Indo além e refletindo sobre a justiça objetivada por tal norma, tem-se que, realmente, em regra, o médico deve ser responsabilizado subjetivamente, vistos os fatores que circundam a atividade médica, como (1) o objetivo de salvar vidas e (2) os riscos inerentes aos procedimentos curativos. No entanto, resta imperioso observar uma exceção. Relativamente à Medicina estética, tais premissas acima citadas não são aplicáveis, haja vista se tratar de procedimento voluntário, verdadeiramente desnecessário, e por inexistirem (1) o objetivo de salvar vidas e (2) a realização de procedimentos curativos. Yuri César Cherman, Especialista em Regulação da Agência Nacional de Aviação Civil, advogado, mestrando no curso de Direito e Políticas Públicas do UniCeub. E-mail: yuricherman@gmail.com 1
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Diferentemente, as premissas aplicáveis à medicina estética são (1) o objetivo de embelezamento e (2) os riscos inerentes aos procedimentos embelezadores. Com isso, resta claro que a proteção legislativa atribuída ao profissional médico que realiza procedimentos necessários e até mesmo emergenciais não pode ser a mesma conferida àqueles que desempenham atividade voluntária, fundada em objetivos narcisísticos. Como será explicado até o final do presente artigo, ante à natureza do trabalho desempenhado pelo médico “esteticista”, em especial quanto ao cirurgião plástico “embelezador”, faz-se lícita e justa a aplicação da teoria do risco a sua atividade lucrativa, apurando-se sua responsabilidade civil pela modalidade objetiva, isto é, sem aferição de culpa. 2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO Importante, de início, demonstrar que, ao longo da história, várias foram as formas como, nas mais diversas sociedades, era apurada a responsabilidade civil do profissional médico. A responsabilidade do profissional médico teve origem na Idade Antiga, tendo sido prevista pelo art. 218 do Código de Hamurabi, de 2.394 a.C., segundo o qual “o médico que mata alguém livre, no tratamento, ou que cega um cidadão livre terá suas mãos cortadas; se morre o escravo, paga seu preço; se ficar cego, a metade do preço.”2 Observa-se que tal norma, porquanto rudimentar, não se arrimava em grande técnica jurídica, sendo incerta qualquer conclusão acerca do modo como a responsabilidade civil do médico seria apurada, ou seja, pela via subjetiva ou pela objetiva. Com o passar do tempo, de acordo com Ruy Rosado Aguiar Junior, durante muitos anos, a função do profissional médico esteve atrelada a aspectos religiosos e mágicos, consistindo sua atuação em um verdadeiro ritual, razão pela qual era desarrazoada a sua responsabilização por ilícito civil, visto que se considerava que a morte e as demais desgraças eram eventos inevitáveis, frutos da vontade divina.3 Com o aprimoramento tecnológico e a evolução das sociedades e da ciência, adveio a possibilidade de se avaliar tecnicamente a atuação médica, razão pela qual os ordenamentos jurídicos passaram a admitir a responsabilidade civil do profissional médico, nos casos em que o erro ficasse comprovado. Atualmente, a responsabilidade civil do profissional da Medicina é objeto de estudos de alto relevo, considerando-se diversos fatores: De acordo com Edilson Enedino das Chagas, “hoje, não se contratam serviços médicos, preponderantemente, pela confiança depositada no talento profissional, mas sim por imposição do mercado, pela necessidade de usufruir de assistência à saúde”4, afirmativa esta que corrobora a ideia de impessoalidade na contratação dos profissionais de Medicina, o que conduz à necessidade de maior regramento social. Alexandre Gir Gomes, criticando o grande aumento na quantidade de escolas de medicina na atualidade, afirma a “impressionante queda de qualidade dos profissionais lançados ao mercado, com enorme prejuízo e risco às carreiras, à sociedade e, é claro, aos consumidores”.5 CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Manual de Orientação Ética e Disciplinar. 2ª ed. Florianópolis: Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos, 2000. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/Regional/ crmsc/manual/sumario.htm. Acesso em: 22 set. 2015. 3 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan/jun., 2000, p. 151. 4 CHAGAS, Edilson Enedino das. Erro médico nas cirurgias estéticas. Revista de Doutrina e Jurisprudência. Brasília: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. v. 96, mai./ago., 2011, p. 19. 5 GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 12, out./dez., 2002, p. 81. 2
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Por isso, Edilson Enedino das Chagas considera premente a necessidade de ampliação dos estudos que envolvem a responsabilidade civil dos profissionais de medicina, tendo em vista a inaceitável quantidade de casos de erro médico na atualidade6. Reforçando ainda mais a relevância de tais estudos, não é demais ressaltar que os direitos à vida e à saúde são fundamentais, contidos nos artigos 5o, 6o e 196 da Constituição da República, ostentando com isso natureza de cláusulas pétreas, razão pela qual devem ser tutelados com seriedade. Finalizando com um dado estatístico, de acordo com o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 21 de julho de 2011, milhões de pessoas morrem todo ano vítimas de erro médico, gerando a alarmante conclusão de que ir ao hospital é mais arriscado do que viajar de avião.7 Por conseguinte, o avanço dos estudos da responsabilidade civil dos médicos visa a proporcionar à sociedade maior proteção naqueles momentos em que seus membros se submetem aos riscos da medicina, fomentando-se com isto, inclusive, o aprimoramento técnico dos referidos profissionais. 2.1 Aspectos Gerais da Atividade e da Responsabilidade Médica Em linhas gerais, tem-se que o profissional da Medicina deve desempenhar seu ofício diligentemente, dentro das possibilidades científicas e de acordo com a literatura médica, sob pena de, causando um dano culpável, ser condenado a indenizar o paciente vitimado. Heloisa Helena Barbosa explica que os deveres do médico, resumidamente, consistiriam em “a) emprego da técnica adequada; b) informação ao paciente; c) tutela do melhor interesse do paciente”8. Corroborando tal entendimento, Ruy Rosado Aguiar Junior assinala que os deveres do médico consistiriam, sucintamente, em agir com diligência e cuidado, conforme o estado da ciência e a literatura médica.9 Em outro momento de seu texto, o referido jurista explica que a responsabilidade civil do médico é dependente da prova de sua culpa, nas modalidades imprudência (agir com descuido), negligência (deixar de agir conforme deveria) ou imperícia (descumprimento de regra técnica da profissão)10, devendo-se estender, por óbvio, tal entendimento à conduta dolosa. O professor explica ainda que o médico responderá pelo efeito maléfico de sua ação, ainda que agravado pelas condições pessoais que ostentava o paciente antes do tratamento.11 Ou seja, caso o paciente ostente alguma peculiaridade pré-existente que acabe agravando o resultado danoso do erro médico, o profissional causador responderá cabalmente pelo mau resultado. Atribuindo tecnicidade ao presente estudo, importante a lição de Miguel Kfouri Neto, segundo o qual os pressupostos da responsabilidade civil do médico são (1) comportamento próprio, comissivo ou omissivo; (2) violação de dever de cuidado; (3) verificação de culpa ou dolo do médico; (4) resultado danoso, material ou moral; (5) nexo causal.12
CHAGAS, Edilson Enedino das. Erro médico nas cirurgias estéticas. Revista de Doutrina e Jurisprudência. Brasília: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. v. 96, mai./ago., 2011, p. 23. 7 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 402. 8 BARBOSA, Heloísa Helena. Responsabilidade civil médica no Brasil. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 19, jul./set., 2004, p. 61. 9 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun. 2000, p. 154. 10 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000, p. 158. 11 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000, p. 181. 12 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 103. 6
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Este professor detalha ainda que o dano causado pelo erro médico pode ser físico (corporal), material (normalmente decorrente do dano físico, como lucros cessantes, despesas hospitalares, medicamentos) ou moral (como o estético, os danos psicológicos).13 Miguel Kfouri Neto também expõe que, normalmente, os julgadores são rigorosos quanto à atribuição de responsabilidade civil face ao médico, exigindo uma demonstração da culpa efetiva no processo, seja ela profissional (decorrente da técnica médica) ou ordinária (decorrente da falta de zelo comum por parte do médico).14 A obtenção da prova da culpa do médico dar-se-á, principalmente, por meio de perícia médica, tendo esta valor relativo, a fim de que o juiz avalie suas explicações, fundamentações e conclusões.15 O professor Kfouri Neto enumera ainda em sua obra os tipos de prova possivelmente aferíveis nos processos de erro médico, quais sejam o depoimento pessoal do médico, a inquirição de testemunhas, a prova documental, a inspeção judicial, as presunções, a prova pericial, bem como a convicção e convencimento do juiz.16 Ele conclui que o julgador embasará sua decisão em indícios suficientes, haja vista a grande dificuldade de se obter prova cabal nesta matéria.17 Já Sergio Cavalieri Filho, em lição mais rigorosa, explica que só existe responsabilidade civil por erro médico caso seja verificado erro grosseiro do profissional.18 Ele acrescenta ainda ser necessário apurar em cada caso se, “à luz da ciência e do avanço tecnológico que o médico tinha à sua disposição, era-lhe ou não possível chegar a um diagnóstico correto, ou a um tratamento satisfatório”.19 Cavalieri ainda assevera que a inércia do médico quanto ao seu dever de informar ao paciente sobre os riscos inerentes a um tratamento pode levar o profissional a ter que responder, “não por ter havido defeito do serviço, mas pela ausência de informação devida, pela omissão em informar ao paciente os riscos reais do tratamento”.20 O referido professor fundamenta a responsabilidade supracitada tanto no direito à informação (previsto no artigo 6o, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor), como no artigo 15 do Código Civil, segundo o qual “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. 2.2
Fundamento da Responsabilidade Subjetiva
Focando-se principalmente na história recente do Brasil, tem-se que o Código Civil de 1916 previa, em seu artigo 1.545, literalmente: Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir ou ferimento.
Com o advento do Código Civil de 2002, manteve-se a mesma ideia da responsabilidade civil subjetiva do profissional médico. Além da cláusula geral de responsabilidade civil, contida no artigo 927 do Código Civil de 2002, há também alguns regramentos especiais atinentes à responsabilização pelo erro médico. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 105-106. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 80. 15 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 82. 16 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 88. 17 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 89. 18 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 404. 19 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 407. 20 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 411. 13 14
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O próprio artigo 951 do Código Civil aborda o tema com um pouco mais de especificidade, admitindo a responsabilização civil daquele “que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.” Ressalta-se também o Decreto-Lei no 20.931/1932, que regula e fiscaliza o exercício da medicina, da odontologia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermeira, no Brasil. Este Decreto-Lei, também adepto da responsabilização subjetiva, estabelece: Art. 11. Os médicos, farmacêuticos, cirurgiões dentistas, veterinários, enfermeiros e parteiras que cometerem falta grave ou erro de ofício, poderão ser suspensos do exercício da sua profissão pelo prazo de seis meses a dois anos, e se exercem função pública, serão demitidos dos respectivos cargos.
Igualmente importante é a referência ao Código de Ética Médica (Resolução no 1.931/2009, do Conselho Federal de Medicina), o qual, em seu Capítulo III, detalha diversos regramentos acerca da responsabilidade profissional, enumerando vedações. O artigo 1o do referido Capítulo III assevera ser vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência, deixando claro, em seu parágrafo único, que “a responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida”. Por fim, considerando-se a existência de uma relação contratual, sinalagmática e remunerada, adequando-se aos conceitos de consumidor, de fornecedor e de serviço, nos termos dos artigos 2o e 3o do Código de Defesa do Consumidor, tem-se que este diploma legal é aplicável ao profissional médico e ao estabelecimento onde ele atua21. Carlos Roberto Gonçalves explica quanto a este ponto que, apesar de o Código de Defesa do Consumidor ter optado, via de regra, pela responsabilidade objetiva dos prestadores de serviço, tem-se a exceção dos profissionais liberais, os quais devem responder subjetivamente, ou seja, mediante demonstração de culpa, o que se deve à natureza da atividade desenvolvida (primordialmente, de cunho intelectual)22. Assim, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14, parágrafo 4o, estabelece que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”. Sergio Cavalieri filho, buscando adentrar a mens legis que elaborou a norma supracitada, em especial quanto aos profissionais da Medicina, justifica que a responsabilidade subjetiva, neste caso, deve-se ao fato de que “nenhum médico, por mais competente que seja, pode assumir a obrigação de curar o doente ou de salvá-lo, mormente quando em estado grave ou terminal”, pois há limitações que “só os poderes divinos são capazes de suprir”.23 Com isso, torna-se indubitável a aplicação, como regra, da responsabilidade civil subjetiva ao profissional médico que, no exercício de sua atividade curativa, causar dano ao paciente. 2.3
Obrigação de Meio e de Resultado
Antes de se adentrar o capítulo principal do presente artigo, é importante a análise da atividade médica, de acordo com o entendimento doutrinário e jurisprudencial, verificando-se, em cada caso, qual seria o objetivo do contrato firmado entre as partes, caracterizando-se, assim, a obrigação do médico como de meio ou de resultado. O professor Ruy Rosado Aguiar Junior explica a distinção entre obrigação de meio e de resultado, considerando ser a primeira relativa ao modo de agir do profissional, ao passo que a segunda refere-se ao êxito que deve BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1107613/SP. 4ª Turma. Rel. Min. Marco Buzzi. Julgado em 25/06/2013. Divulgado no DJe em 06/08/2013. 22 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.363. 23 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 403. 21
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ser obtido com a sua atuação.24 Rui Stoco, semelhantemente, explica que a obrigação de meio consiste em, simplesmente, realizar determinado procedimento corretamente, sem a obrigação de se lograr êxito quanto ao resultado.25 Em regra, a obrigação do médico é de meio, isto é, aquela cujo objetivo contratual é o de bem desempenhar seu trabalho, conforme as normas e a literatura aplicável. Sobre o presente tema, Miguel Kfouri Neto explica que, em regra, a obrigação do médico é de meio, e não de resultado, comprometendo-se o profissional a agir de acordo com as regras e os métodos da profissão.26 No entanto, neste ponto, é preciso distinguir o procedimento médico destinado à manutenção da saúde, ou à cura do paciente (regra geral), daquele que objetiva, meramente, o embelezamento de um cliente. Especialmente no que tange à cirurgia plástica, tem-se que ela pode ser corretiva (reparadora) ou estética. A primeira é dedicada a corrigir deformidade física do paciente, situação em que é recomendada a intervenção médica, embora o cirurgião não possa garantir a eliminação do defeito. Assim, neste caso, havendo o intuito de curar uma deformidade, uma verdadeira doença, a responsabilidade do médico persiste de meio.27 Alguns exemplos de cirurgia plástica corretiva, ou reparadora, são a correção de fenda labial (lábio leporino), de genitália externa ambígua (como o hermafroditismo) a retirada de hérnias abdominais etc. Já com relação à cirurgia plástica meramente estética, consiste em procedimento desnecessário28, cujo objetivo seria o de embelezar algum traço desgostoso da aparência do paciente. De acordo com a doutrina e a jurisprudência majoritárias, a cirurgia estética consiste em uma obrigação de resultado para o médico que a realiza29, de modo que, havendo dano, a vítima deve provar o mero descumprimento dos objetivos contratuais por parte do médico, a fim de exigir sua indenização30. A título exemplificativo, algumas formas de cirurgias estéticas mais comuns na atualidade são a lipoaspiração, o implante de silicone, a alteração da forma ou a redução do nariz ou da mandíbula, retirar o excesso de pele ou de rugas naturais da idade etc. Miguel Kfouri Neto, partidário da corrente minoritária31, discorda de que, no caso da cirurgia plástica estética, haveria obrigação de resultado, isto é, de se atingir determinado fim.32 Igualmente, o professor Ruy Rosado Aguiar Junior, embora discorde de que o cirurgião estético tenha obrigação de resultado33, afirma que este tipo de médico deve cumprir rigorosa e especialmente o dever de informação e cuidado na execução do trabalho.34 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000, p. 153. STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 547. 26 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 71-72. 27 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 416. 28 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Responsabilidade civil: responsabilidade civil na área da saúde. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 147. 29 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 819008/PR. 4a Turma. Rel. Min. Raul Araújo. Julgado em 04/10/2012. Divulgado no DJe em 29/10/2012. 30 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000, p. 161162. 31 Verificar também FORSTER, Nestor José. Cirurgia plástica estética: obrigação de resultado ou obrigação de meios?. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, v. 738, p. 83-89. 32 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 72. 33 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000, p. 163. 34 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000, p. 159. 24 25
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Interessante demonstrar que o Conselho Federal de Medicina (nada imparcial, visto que composto por médicos), também refuta ser de resultado a obrigação do cirurgião “esteticista” (artigo 4o da Resolução no 1.621/2001), ressaltando a necessidade de demonstração de culpa profissional. Já Teresa Ancona Lopez de Magalhães, partidária da corrente majoritária, que considera a obrigação de resultado do médico “esteticista”, apresenta explicação lógica e enfática sobre o tema: Na verdade, quando alguém, que está muito bem de saúde, procura um médico somente para melhorar algum aspecto seu, que considera desagradável, quer exatamente esse resultado, não apenas que aquele profissional desempenhe seu trabalho com diligência e conhecimento científico, caso contrário, não adiantaria arriscar-se e gastar dinheiro por nada. Em outras palavras, ninguém se submete a uma operação plástica se não for para obter um determinado resultado.35
Ressalta-se, quanto a este tema, que a obrigação de resultado, apesar de consistir na obrigação do profissional de alcançar os objetivos contratados, não é sinônimo de responsabilidade objetiva, tendo como consequência apenas a inversão do ônus da prova (pautada na hipossuficiência técnica do consumidor)36, ou seja, “tanto na obrigação de meio como na de resultado, impõe-se a existência de culpa (lato sensu).”37 Sobre este ponto, Ada Pellegrini Grinover explica: [...] se o dispositivo comentado afastou, na espécie sujeita, a responsabilidade objetiva, não chegou a abolir a aplicação do princípio da inversão do ônus da prova. Incumbe ao profissional prover, em juízo, que não laborou com equívoco, nem agiu com imprudência ou negligência no desempenho de sua atividade.38
No sentido, o Superior Tribunal de Justiça possui o entendimento de que “nas obrigações de resultado, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva. Cumpre ao médico, contudo, demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia”39. Paralelamente, o professor Ruy Rosado Aguiar Junior explica que, ainda que se considerasse a existência de obrigação de resultado, o médico poderia provar o caso fortuito ou força maior, situação em que se exoneraria da responsabilidade.40 3. RESPONSABILIDADE CIVIL POR TRATAMENTO ESTÉTICO Diversos são os ramos da Medicina que desempenham tratamentos estéticos, embora a cirurgia plástica possua papel de destaque nos estudos mais recentes acerca da responsabilidade civil do profissional médico. De acordo com Alexandre Gir Gomes, a cirurgia plástica surgiu como especialidade médica no curso da Primeira Guerra Mundial, com o fito de corrigir e recuperar as feridas de guerra. Todavia, com o desenvolvimento da atividade, ela acabou adquirindo finalidade meramente estética, interessada unicamente na adequação aos padrões sociais de beleza, diferenciando-se, desse modo, daquela com fim reparador e terapêutico.41
LOPEZ, Teresa Ancona apud GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 12, out./dez., 2002, p. 85. 36 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 410. 37 STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 548. Nesse sentido, TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Responsabilidade civil: responsabilidade civil na área da saúde. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 25 38 GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 175-176 39 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1180815/MG. 3ª Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado em 19/08/2010. Divulgado no DJe em 26/08/2010. 40 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000, p. 154. 41 GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 12, out./dez. 2002, p. 82. 35
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Outro exemplo típico de tratamento estético de relevância na atualidade é o dermatológico, nos casos em que visa unicamente a aprimorar a beleza externa, ou seja, sem qualquer finalidade de corrigir eventuais problemas causados por doenças de pele. As consequências negativas causadas pelo tratamento estético podem ter duas naturezas: (1) de dano estético, isto é, o resultado incompatível com aquele pretendido; ou (2) de dano à saúde, ou seja, uma reação corpórea inesperada por parte da vítima, capaz de comprometer o sucesso do procedimento e até mesmo a higidez física do paciente. De acordo com Tereza Ancona Lopez, o dano estético é aquele capaz de causar “enfeamento” na vítima, causando-lhe verdadeira dor moral42. Um elemento importante a se observar para a caracterização do dano estético é a afetação da autoestima da vítima, isto é, a repercussão íntima, personalíssima, do dano causado.43 Já o dano à saúde consiste na doença originada em razão do ato médico ou da intervenção medicamentosa, sendo também conhecida por iatrogenia.44 O conceito de iatrogenia abarca, inclusive, as situações em que, independentemente, do modo de agir do médico, diligente ou não, o procedimento realizado produz dano ao paciente45. Um exemplo muito comum de dano à saúde originado em procedimento estético e que, inclusive, afetou recentemente um cantor brasileiro famoso46, é o choque anafilático resultante de procedimento de lipoaspiração. Importante ressaltar que o estudo do erro médico atinente às cirurgias estéticas é de grande valia na atualidade, conforme afirma Edilson Enedino das Chagas, literalmente: “Erro Médico nas Cirurgias Estéticas” como tema delicado e multidisciplinar, que ultrapassa a preocupação do meio jurídico, por ser estudado e investigado por outras ciências (como a medicina, a psicologia e a sociologia), e somente o pensar e o enfrentar o “Erro Médico” através de uma força-tarefa múltipla propiciarão resultados profícuos. Esforço necessário e urgente para mitigar (o quanto possível) o cancro “Erro Médico”; e, para que, paralelamente, desenvolvam-se também ações de prevenção a tema tão suscetível.47
3.1 Medicina Estética e Teoria do Risco Como anteriormente demonstrado, a aplicabilidade da responsabilidade subjetiva ao profissional de Medicina soa adequada, considerando-se (1) o objetivo de salvar vidas e (2) os riscos inerentes aos procedimentos curativos. No sentido, Miguel Kfouri Neto aponta que a atividade do médico, apesar de ser arriscada, visa a curar os pacientes das consequências maléficas das doenças.48
LOPEZ, Tereza Ancona. O dano estético. 3ª ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2004, p. 46. TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Responsabilidade civil: responsabilidade civil na área da saúde. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 65. 44 CHAVES, Antônio. Responsabilidade civil do ato médico – ato médico – contrato de meios. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 43, n. 207, p. 19-34, jan. 1995. 45 COUTO FILHO, A. F.; SOUZA, A. P.. Responsabilidade civil médica e hospitalar. 2ª ed. Rio de Janeiro: 2008, p. 32. 46 CANTOR do LS Jack é internado em coma no Rio após lipoaspiração. Folha de S. Paulo. São Paulo, 02 jul. 2004. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u45562.shtml>. Acesso em: 22 set. 2015. 47 CHAGAS, Edilson Enedino das. Erro médico nas cirurgias estéticas. Revista de Doutrina e Jurisprudência. Brasília: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. v. 96, mai./ago., 2011, p. 23. 48 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 61. 42 43
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Entretanto, com relação à Medicina Estética, inexiste qualquer objetivo de salvar vidas, bem como qualquer procedimento curativo, de modo que as premissas a ela aplicáveis são (1) o objetivo narcisístico e (2) os riscos inerentes aos procedimentos embelezadores. Edilson Enedino das Chagas, sobre o tema, afirma que “neste século, [...] incrementou-se a medicina para o consumismo, não para o doente, e, sim, para o são, para fins de ‘embelezamento’’49. Com isso, frente à natureza do trabalho desempenhado pelo médico “esteticista”, em especial quanto ao cirurgião plástico que realiza procedimento meramente estético, deve-se aplicar a teoria do risco a sua atividade lucrativa, apurando-se sua responsabilidade civil pela modalidade objetiva, isto é, sem aferição de culpa. Tal afirmativa consiste em mera conclusão lógica, haja vista que a atividade de Medicina Estética adéqua-se, sem ressalvas, aos requisitos aplicáveis à teoria do risco. De acordo com o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, [...] quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem”. De acordo com Maria Helena Diniz, a responsabilidade objetiva, quando advinda da teoria do risco, “funda-se num princípio de equidade, existente desde o direito romano: aquele que lucra com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes”50. A doutrinadora ainda complementa: Logo, todo aquele que desenvolve atividade lícita que possa gerar perigo para outrem deverá responder pelo risco, exonerando-se o lesado da prova da culpa do lesante. [...] A responsabilidade, fundada no risco, consiste, portanto, na obrigação de indenizar o dano produzido por atividade exercida no interesse do agente e sob seu controle, sem que haja qualquer indagação sobre o comportamento do lesante, fixando-se no elemento objetivo, isto é, na relação de causalidade entre o dano e a conduta do seu causador.51
Assim, a medicina estética consiste em atividade que envolve, principalmente no caso da cirurgia plástica, grandes perigos aos clientes que a ela aderem, o que basta, conforme explicado acima, para que seja aplicada a teoria do risco. Desta forma, considerando-se (1) os riscos inerentes às cirurgias estéticas, (2) o objetivo meramente embelezador da atividade, ou seja, sem finalidade curativa e (3) os altos lucros envolvidos neste ramo da medicina, há de se lhe aplicar as premissas concernentes à teoria do risco, o que fundamenta a utilização da responsabilização objetiva. Em igual sentido, Fabrício Silva de Carvalho pondera: Diante de tais considerações, no caso específico do profissional liberal que desenvolve atividade de risco nas relações de consumo, parece-me que não merece ser aplicada a regra inserida no § 4o do artigo 14 da Lei 8.078/90, e sim o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, sob pena de se atribuir ao consumidor, notadamente vulnerável, maiores entraves para ser reparado pelos danos por ele sofridos do que ao não-consumidor numa relação travada entre duas partes presumidamente iguais, o que colidiria com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da proteção do consumidor.52 CHAGAS, Edilson Enedino das. Erro médico nas cirurgias estéticas. Revista de Doutrina e Jurisprudência. Brasília: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. v. 96, mai./ago., 2011, p. 20. 50 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 52. 51 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 24 ed. São Paulo: Saraiva. 2010, p. 53. 52 CARVALHO, Fabrício Silva de. Cláusula geral de responsabilidade objetiva e responsabilidade civil dos profissionais liberais nas relações de consumo. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 15, jul./set., 2003, p. 277. 49
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A fim de corroborar a presente conclusão lógica, citam-se ainda os Enunciados de números 194 e 195 da III Jornada de Direito Civil53: 194 – Art. 966: Os profissionais liberais não são considerados empresários, salvo se a organização dos fatores da produção for mais importante que a atividade pessoal desenvolvida. 195 – Art. 966: A expressão “elemento de empresa” demanda interpretação econômica, devendo ser analisada sob a égide da absorção da atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística, como um dos fatores da organização empresarial.
Tais enunciados, discutidos e elaborados por uma alta cúpula de juristas, sob a organização do Conselho da Justiça Federal, demonstram justamente que a atividade médica atinente às cirurgias estéticas possuem natureza empresarial, porquanto desprovidas de pessoalidade e com intuito meramente econômico, isto é, sem qualquer objetivo curativo. Inclusive, diversos sítios eletrônicos tratam a atividade como serviço empresarial lucrativo, visando a atrair consumidores aleatórios mediante propagandas, o que sem dúvidas destoa das características atribuídas aos profissionais liberais, configurando elemento de empresa. Edilson Enedino das Chagas chega a denominar o ramo profissional em questão de “Medicina para o Consumismo” e de “Medicina Mercenária”54, o que reforça a ideia de que a atividade adquiriu características empresariais, em detrimento das medicinais. Alexandre Gir Gomes ressalta ainda a necessidade de “mudança de atitude daqueles médicos que, em detrimento dos bons profissionais, apelam ao marketing grosseiro de suas supostas realizações para a captação de clientes”, transformando a medicina em uma “prática mercantilista voltada única e exclusivamente ao lucro, desvinculada da primordial meta: a saúde e o bem-estar dos pacientes”.55 3.2 Responsabilidade Objetiva Como anteriormente explanado, a obrigação de resultado, apesar de consistir no dever do profissional de alcançar os objetivos contratados, não é sinônimo de responsabilidade objetiva, tendo aquela como consequência prática apenas a inversão do ônus da prova em favor do consumidor. Com isso, relativamente à Medicina Estética, mostra-se inadequada a aplicação da teoria subjetiva para fins de responsabilidade civil, mesmo que o referido ofício já seja atualmente considerada como atividade fim. É perfeitamente possível admitir a plena vigência do artigo 14, parágrafo 4o, do Código de Defesa do Consumidor, que implementa a responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais, e, paralelamente, justificar a responsabilidade objetiva dos profissionais médicos, que realizam procedimentos meramente embelezadores. Isto porque o referido artigo 14 operaria como regra geral, enquanto a responsabilidade objetiva seria uma exceção justificada no diálogo das fontes, isto é, na “aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais (como o CDC, a lei de seguro saúde) e gerais (como o CC/2002), com campos de aplicação convergentes, mas não mais iguais”56.
JORNADAS DE DIREITO CIVIL I, III, IV E V : ENUNCIADOS APROVADOS. Coordenador científico Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Brasília : Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. Disponível em: http://www.cjf.jus.br/cjf/ CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf. Acesso em: 22 set. 2015. 54 CHAGAS, Edilson Enedino das. Erro médico nas cirurgias estéticas. Revista de Doutrina e Jurisprudência. Brasília: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. v. 96, mai./ago., 2011, p. 29. 55 GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 12, out./dez., 2002, p. 90. 56 BENJAMIN, Antônio Herman et al. Manual de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 89. 53
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Ou seja, o diálogo das fontes possui a “finalidade de impor duas lógicas, de aplicar simultânea e coerentemente duas leis”57. Importante ressaltar que, desse modo, a aplicação da responsabilidade objetiva ao cirurgião “esteticista” não necessitaria de qualquer alteração legislativa, mas apenas de interpretação sistemática, por meio do diálogo das fontes. Isto porque, considerando-se a existência de risco inerente ao serviço, conforme anteriormente demonstrado, o caso subsume-se à regra do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, segundo o qual haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Sendo a responsabilidade objetiva, não há que se falar em termo de consentimento para afastar o encargo indenizatório do médico que realiza tratamento estético e causa dano estético ou à saúde do paciente. Isto porque é incontestável, considerando-se o já mencionado artigo 15 do Código Civil58, que “no caso de cirurgias facultativas, a deficiência de informação acerca dos riscos poderá ser a causa adequada dos danos sofridos pelo paciente, que, se soubesse, poderia ter optado por não se submeter a eles”59. Porém, neste ponto, contesta-se, com todo o respeito, a doutrina majoritária, inclusive a lição de Sérgio Cavalieri Filho, segundo o qual o “consentimento informado pode afastar a responsabilidade médica pelos riscos inerentes à sua atividade”.60 Segundo a referida afirmativa de Cavalieri, a mera transmissão da responsabilidade à vítima, mediante termo de consentimento informado, bastaria para afastar a responsabilidade civil do médico, em razão de eventual complicação não culpável ocorrida no procedimento estético. Todavia, é claro que este entendimento contraria as diretrizes consumeristas atuais, proibitiva de cláusulas abusivas, principalmente em casos como o da cirurgia estética, procedimento voluntário e desprovido da finalidade de cura de um paciente. O Direito Consumerista consiste em norma de ordem pública, impedindo que um fornecedor de produtos ou serviços possa ter a responsabilidade pelos riscos inerentes a sua atividade repassada ao consumidor61, principalmente no caso em que, repita-se, o médico não trata da saúde do paciente, mas de mero objetivo estético. Ressalte-se aqui que, conforme redação literal dos artigos 25 e 51, inciso I, ambos do Código de Defesa do Consumidor, afastar, por cláusula contratual, a responsabilidade do fornecedor de serviços é considerado prática abusiva, nula de pleno direito. Valendo-se da mesma lógica, Alexandre Gir Gomes considera ilícito ao médico “eximir-se dessa responsabilidade pelo não atingimento do resultado prometido por meio de cláusula expressa em contrato”, asseverando que, neste caso, “as disposições avençadas serão nulas ipso iure, por serem abusivas, em conformidade com o art. 51 do CDC”62.
BENJAMIN, Antônio Herman et al. Manual de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 90. Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. 59 VIOLA, Mario. Responsabilidade civil dos médicos, dos hospitais e das seguradoras e operadoras de planos de assistência à saúde por erro médico. Revista Jurídica. São Paulo: PUCCamp. v. 23, n. 1, 2007, p. 87. 60 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 412. 61 BENJAMIN, Antônio Herman et al. Manual de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 63. 62 GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 12, out./dez., 2002, p. 87. 57 58
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Inclusive, o núcleo axiológico carregado pela Lei Consumerista, ao impor tais normas, é a implementação da igualdade material, direito fundamental previsto pelo artigo 5o, caput, da Constituição Federal. Isto é, considerando-se o desequilíbrio de forças existentes no mercado de consumo, busca-se assegurar direitos imperativos (de ordem pública) dos consumidores, coibindo abusos dos fornecedores.63 Ou seja, repassar a responsabilidade pelos perigos de um procedimento estético ao consumidor, por meio de termo de consentimento, serviria apenas para proteger um abastado fornecedor de serviços dos riscos inerentes à atividade que ele oferece ao mercado. Miguel Kfouri Neto ressalta, inclusive, que “todas as vezes que a saúde, a integridade física ou a vida do paciente estejam em perigo, o médico deve renunciar ao aperfeiçoamento de caráter estético, independentemente da vontade do próprio paciente”64, o que reforça a ideia de que o cirurgião estético assume o risco de sua atividade. Um outro argumento que estimularia tal reflexão é a grande dificuldade de a vítima produzir a prova da culpa nos casos de erro médico, tendo em vista (1) que os fatos, isto é, os procedimentos médicos, se desenrolam, normalmente, em ambientes reservados; (2) a ignorância do paciente quanto à técnica médica; (3) o possível e comum corporativismo existente entre o médico que vai realizar a perícia e o que está sendo julgado pelo suposto erro cometido.65 Em determinado trecho de sua obra, Miguel Kfouri Neto chega a assumir que existe uma tendência a se buscar a objetivação da responsabilidade do profissional médico, tendo em vista o princípio social da reparação, bem como a finalidade de se facilitar o ônus da prova.66 Ainda segundo ele, para que o ressarcimento do dano advindo da falha médica seja facilitado, é necessário amenizar as exigências para a aferição de culpa e do nexo de causalidade67, haja vista a grande dificuldade dos operadores do Direito em verificarem a ocorrência de erro médico68. Edilson Enedino das Chagas, apesar de não ser expressamente adepto da responsabilização objetiva do profissional que exerce a Medicina Estética, chega a apresentar a seguinte ponderação: Entender como objetiva a responsabilidade do profissional médico pode desestimular uma atividade que se destina à correção corporal, visando à cura da alma. Entender o contrário poderia estimular mais ainda a indústria da beleza e da cosmetologia em situações que não reclamariam, prima facie, intervenção cirúrgica.69
Ou seja, a responsabilização objetiva do médico que desempenha cirurgia plástica meramente estética ainda teria o condão benéfico de desestimular a ditadura da beleza ou, de acordo com Alexandre Gir Gomes, o “reinado da vaidade humana impulsionado pela cultura do consumo”70. Todavia, ressalte-se que, conforme argumentado acima, a aplicação da responsabilidade objetiva para o cirurgião “esteticista” não diz respeito unicamente a uma análise econômica das suas consequências, mas sim à simples adequação da atividade a uma categoria verdadeiramente empresarial.
BENJAMIN, Antônio Herman et al. Manual de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 35. KFOURI NETO, Miguel, apud GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 12, out./dez., 2002, p. 84. 65 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000, p. 159160. 66 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010, p. 61-62. 67 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 86. 68 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 87. 69 CHAGAS, Edilson Enedino das. Erro médico nas cirurgias estéticas. Revista de Doutrina e Jurisprudência. Brasília: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. v. 96, mai./ago., 2011, p. 36. 70 GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunai, v. 12, out./dez., 2002, p. 81. 63 64
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Alexandre Gir Gomes, adepto da presente teoria, entende que “o desenvolvimento das ciências médicas é o principal fator de alteração da natureza da responsabilidade civil do médico, em especial quanto às cirurgias estéticas”71, apresentando, ainda, uma interessante crítica: Como já explicado, alguns arestos e doutrinadores preferem adotar a responsabilidade dos facultativos, na cirurgia estética, sob o prisma da presunção de culpa, omitindo a denominação “responsabilidade objetiva”, mas tal diferença é meramente terminológica, na realidade, uma forma tímida de se aplicar a teoria do risco (...).72
Arrematando, Nelson Nery Junior, também adepto da ideia da responsabilização objetiva do médico “esteticista”, sustenta: Quando a obrigação do profissional liberal, ainda que escolhido intuitu personae pelo consumidor, for de resultado, sua responsabilidade pelo acidente de consumo ou vício de serviço é objetiva. Ao revés, quando se tratar de obrigação de meio, aplica-se o § 4.o do CDC em sua inteireza, devendo ser examinada a responsabilidade do profissional liberal sob a teoria da culpa73
Ou seja, há fundamentos suficientes para que a responsabilidade civil do médico que realiza tratamento meramente estético seja apurada de modo objetivo, sem a necessidade de demonstração de sua culpa específica. 4. CONCLUSÃO Conforme demonstrado anteriormente, várias foram as formas pelas quais, com o desenvolvimento das sociedades, era apurada a responsabilidade civil dos profissionais da Medicina. Considera-se acertada, via de regra, a opção legislativa atual, pela qual o profissional liberal (inclusive o médico) deve ser responsabilizado subjetivamente pelos danos que causar no desempenho de sua atividade. Todavia, considerando-se o princípio da isonomia, de cunho constitucional, situações peculiares devem ser tratadas de modo diferenciado, na medida em que elas são desiguais.74 Com isso, em sede de exceção, aquele médico que aufere ganhos por meio da exposição de uma atividade meramente estética ao mercado de consumo não merece a mesma proteção legal atribuída àquele que destina seu ofício à cura dos pacientes. Em verdade, o ofício desempenhado pelo médico que realiza procedimentos estéticos enquadra-se perfeitamente nos preceitos atinentes à teoria do risco, de modo a merecer responsabilização objetiva pelos danos oriundos dos riscos atrelados à atividade. Com isso, o cliente que sofrer dano advindo de serviço médico com fim unicamente estético (como grande parte das cirurgias plásticas) deve ser indenizado objetivamente, sem aferição de culpa do profissional, porquanto este desempenha atividade de risco e, como cediço, altamente lucrativa.
GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 12, out./dez., 2002, p. 90. 72 GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 12, out./dez., 2002, p. 90. 73 NERY JUNIOR, Nelson apud GOMES, Alexandre Gir. A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 12, out./dez. 2002, p. 88. 74 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. 16ª Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 41-42. 71
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MEDICAL ERROR: STRICT LIABILITY FOR DAMAGES CAUSED BY AESTHETIC TREATMENTS ABSTRACT This paper addresses the issue of civil liability of the medical professional, resulting from damages caused to patients. Initially, the paper presents general aspects about how the subject is regulated by Brazilian legislation (which establishes, as a rule, subjective liability fault-based) and how it is treated by the Brazilian doctrine and case law. In the text, are highlighted the elements indicative of the need to change how the civil liability is covered for damage caused in medical activity performance. At the end, it presents specialized doctrine that holds the possibility of strict liability (without the need to prove the culpable error) of medical professional who performs purely aesthetic treatments, in other words, devoid of curative purpose. This proposal was grounded in the assumptions applicable to the theory of risk and based on the dialogue of multiple sources, ie, in a systematic and harmonious interpretation of the law. Keywords: Doctor. Liberal Professional. Aesthetic Procedure. Civil Liability. Strict Liability. Theory of Risk. REFERÊNCIAS AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade civil do médico. Universitas/jus. Brasília: UniCEUB, v. 5, jan./jun., 2000. BARBOSA, Heloísa Helena. Responsabilidade civil médica no Brasil. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 19, jul./set.,2004. BENJAMIN, Antônio Herman et al. Manual de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1107613/SP. 4ª Turma. Rel. Min. Marco Buzzi. Julgado em 25/06/2013. Divulgado no DJe em 06/08/2013. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1180815/MG. 3ª Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado em 19/08/2010. Divulgado no DJe em 26/08/2010. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 819008/PR. 4a Turma. Rel. Min. Raul Araújo. Julgado em 04/10/2012. Divulgado no DJe em 29/10/2012. CANTOR do LS Jack é internado em coma no Rio após lipoaspiração. Folha de S. Paulo. São Paulo, 02 jul. 2004. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u45562.shtml . Acesso em: 22 set. 2015. CARVALHO, Fabrício Silva de. Cláusula geral de responsabilidade objetiva e responsabilidade civil dos profissionais liberais nas relações de consumo. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 15, jul./ set., 2003. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. CHAGAS, Edilson Enedino das. Erro médico nas cirurgias estéticas. Revista de Doutrina e Jurisprudência. Brasília: Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. v. 96, mai./ago., 2011. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Manual de Orientação Ética e Disciplinar. 2ª ed. Florianópolis: Comissão de Divulgação de Revista do Curso de Direito
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Assuntos Médicos, 2000. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/Regional/crmsc/manual/sumario.htm. Acesso
em: 22 set.2015.
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DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E TUTELA COLETIVA: ESTUDO DE CASO SOBRE O RECURSO ESPECIAL N. 440.502/SP
JOÃO VICTOR LOPES PEREIRA LIMA DA SILVA1
Graduado em Direito pelo UniCeub (Centro Universitário de Brasília) em 2015. Pós-graduando em Ordem Jurídica e Ministério Público pela FESMPDFT (Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios). Ex-estagiário da Defensoria Pública da União, da Presidência da República e do Ministério Público Federal. Advogado em Brasília/DF. E-mail: joaovictorlopes@ hotmail.com 1
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RESUMO Cuida-se de estudo que trata, essencialmente, da efetivação, pelo Poder Judiciário, do direito à educação infantil previsto na Constituição Federal de 1988. Essa é uma discussão candente no regime democrático brasileiro, qual seja: a busca crescente pela tutela jurisdicional daqueles que se vêem prejudicados pela omissão da Administração Pública, eis que tal omissão inviabiliza a fruição de seus direitos sociais. O controle jurisdicional da omissão administrativa é um embate que data de regimes constitucionais anteriores, mas que, com a ampla consagração de direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, merece mais atenção do campo jurídico. Sem embargo, o mote proposto faz parte do cotidiano dos tribunais, do Ministério Público e da advocacia pública, além de ser um assunto importante para a sociedade brasileira. Dessa forma, os postulados da inafastabilidade do Poder Judiciário, do Direito à Educação, da Separação de Poderes e da Reserva do Possível são o pano de fundo do presente artigo. Mais que isso, o presente artigo reflete sobre a Ação Civil Pública, que tem se mostrado uma das principais ferramentas de tutela coletiva para proteção de direitos sociais, tendo como paradigma o Recurso Especial n. 440.502/SP. Busca-se, por fim, também, com o intuito de enriquecer o debate, referência nos documentos firmados pelo Brasil perante a comunidade internacional. Então, esse é um duro embate em que Tribunais de Justiças estaduais e Tribunais Superiores se colocam atualmente: sanar a omissão da administração pública, sobremaneira no tocante ao direito à educação infantil, que sofre com o déficit de vagas em creches. PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Direito à Educação Infantil. Omissão Administrativa. Ação Civil Pública. Ministério Público.
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RÉSUMÉ Il s’agit d’un étude sur l’efficacité des jugements prononces dans la shpère judiciare de se conformer au droit à l'éducation des jeunes enfants dans la Constitution Fédérale actuelle, de 1988. Ceci est une discussion brûlant dans le régime démocratique brésilien, à savoir: la recherche de plus en plus fréquente, de protection judiciaire de ceux qui sont blessés par l'échec de l'administration publique, que cette omission empêche l'exercice des droits sociaux. Ainsi, des principes tels que inafastabilidade la magistrature, le droit à l'éducation, la séparation des pouvoirs et la loi de finances de l'Etat sont très importants à cet article. Cependant, la Constitution Fédérale de 1988, n'a pás expresse mentré soluun conflit datant de régimes précédents, à savoir: la (im)possibilité de contrôle des actes administratifs par les juges, en particulier des omissions. Le problème soulevé ici est une partie de la vie quotidienne des tribunaux brésilien, les procureurs et les avocats de l'Etat. Il est aussi un thème cher à la société brésilienne. En outre, cet article se penche sur le procès collectif, qui a prouvé un des outils majeurs de protection collective pour la protection des droits sociaux, avec le paradigme d'un cas réel. Afin d'enrichir le débat, nous allons nous référer aux documents signés par le Brésil devant la communauté internationale. Voilà l'affrontement difficile dans laquelle les tribunaux sont actuellement pose: remédier à l'omission de l'administration publique, grandement à jouer le droit à l'éducation des jeunes enfants, parce que le système educatif souffre de la pénurie de postes vacants dans les écoles maternelles. MOTS-CLÉS: Droit Constitutionnel. Droit à L'éducation des Enfants. Omission de L’administration publique. Procès Collectif. Parquet.
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1 INTRODUÇÃO A Constituição de Weimar, de 1919, foi um marco para os direitos sociais. Promulgada após a Primeira Guerra Mundial, em um momento de intensa conturbação política, tornou-se documento influente na história do Direito Constitucional. Mas, como relata o Min. Barroso: “Considerada um marco do constitucionalismo social, essa Carta jamais logrou verdadeira efetivação. Sua vigência se deu sob condições econômicas precárias, resultado da política de reparações de guerra imposta pelo Tratado de Versalhes.”1 Na história constitucional brasileira, por sua vez, a Carta Política de 1988 não encontra precedente quando o assunto é direitos sociais. De fato, “A Constituição brasileira de 1988 atribui significado ímpar aos direitos fundamentais.”, sendo, “[...] a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva.”.2 Digno de relevo que os direitos fundamentais e, por conseguinte, os direitos sociais, estão protegidos por cláusula pétrea, o que afasta qualquer reforma constitucional tendente a oprimi-los.3 O presente trabalho se insere exatamente nesse quadro, eis que seu intuito primordial é analisar, com a devida aproximação, o Recurso Especial n. 440.502/SP, que cuidava de uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra o Município de Santo André/SP, na qual constava como principal pedido ministerial a disponibilização de 7.200 (sete mil e duzentas) vagas em creches. Com efeito, o estudo jurisprudencial concede a devida concretude aos textos legislativos, dando dinamismo ao texto normativo e delimitando controvérsias que, em grande parcela, não foram bem resolvidas pelo legislador. Ademais, a valorização dos precedentes judiciais é uma realidade no contexto brasileiro recente.4 Enfim, a jurisprudência representa a forma viva do Direito, o que evidencia a importância das decisões tomadas pelos tribunais. 1 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 56-57. 2 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 681. 3 A despeito da redação constitucional se referir à “direitos e garantias individuais”, a doutrina e a jurisprudência, quase que de forma uníssona, consideram que o inc. IV do Art. 60 da CF/1988 se estende aos direitos coletivos, vejamos o texto constitucional: Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 08 ago. 2015. 4 O Brasil acompanha movimento semelhante ao de outros países que adotam o sistema da “civil law”, se aproximando, paulatinamente, de uma cultura do “stare decisis”, própria do sistema da “common law”. A expansão do papel dos precedentes atende a três finalidades constitucionais básicas: segurança jurídica, isonomia e eficiência. Além disso, certas decisões judiciais são ordinariamente dotadas de eficácia “ultra partes”, como aquelas produzidas no âmbito do processo coletivo, os enunciados de súmulas vinculantes, as decisões emanadas em sede de repercussão geral no Recurso Extraordinário, bem como a modulação de efeitos, que inclui a possibilidade de estender determinada decisão a outros casos análogos. Por todos, ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva. 2014. 150 Faciplac
Nessa toada, é importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988 reconhece o ensino obrigatório como direito público subjetivo. No ensinamento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “[...] disto resulta que o titular desse direito poderá fazê-lo valer em juízo, contra o Estado, que deverá assegurar-lhe matrícula em escola pública, ou bolsa de estudos em escola particular (art. 213, §1º) se houver falta de vagas nos cursos públicos.”.5 O direito ao ensino básico ainda não encontrou, na realidade educacional brasileira, aplicação plena, a despeito de seu abrigo constitucional. A atualidade do tema é reforçada por ser recorrente no Poder Judiciário, em Tribunais Superiores e locais.6 Frise-se, ainda, que é um tema caro para a sociedade, de tal sorte que milhares de genitores procuram o Estado para matricular seus filhos em creches próximas à suas residências. A relevância da educação básica se potencializa quando tratamos de entidades familiares com baixa renda, que ainda são maioria, e quando olhamos para os dados alarmantes da educação no Brasil.7 Um dos principais problemas do nosso pacto federativo é a excessiva atribuição de competências para os municípios, sem a contraprestação de fontes de receitas, de tal modo que os entes municipais não estão suficientemente aparelhados para suprir com as mais diferentes demandas sociais.8 Sendo assim, não resta 5 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 400. 6 No sentido da recorrência do tema de vaga na rede de ensino básica, no TJDFT, ilustrativamente, vide o seguinte julgado: “Matrícula em creche da rede pública está condicionada à existência de vaga e à ordem da lista de espera. A criança, representada pela mãe, ajuizou ação contra o Distrito Federal para garantir o direito à matrícula em creche pública. Os Julgadores afirmaram que o Estado tem a obrigação de criar condições objetivas para possibilitar o efetivo acesso de crianças a creches e unidades pré-escolares, por imposição contida na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, embora o Poder Judiciário possa obrigá-lo a cumprir esse dever, havendo lista de espera, a determinação judicial para que a instituição de ensino matricule a criança, desconsiderando a ordem de classificação, viola o princípio da isonomia. Dessa forma, mesmo acobertada pela garantia constitucional, a criança deve aguardar a lista de espera para evitar o tratamento diferenciado em relação aos demais inscritos”. Acórdão n.º 788946, 20140020056790AGI, Relatora: Simone Lucindo, 1ª Turma Cível, Data de Julgamento: 14/05/2014, Publicado no DJE: 19/05/2014. Pág.: 88. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/institucional/ jurisprudencia/informativos/2014/informativo-de-jurisprudencia-no-281>. Acesso em: 13 ago. 2015. 7 Nesse sentido é o relatório publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, apesar de antigo, afirma: “[...] No período de 92 a 99, a taxa de analfabetismo caiu de 17,2% para 13,3%. Em relação ao analfabetismo funcional (pessoas com menos de 4 anos de estudo), foi verificada também uma redução de 36,9% para 29,4% no país, apesar das altas proporções observadas em alguns estados como o Piauí com 53%. Enquanto a desigualdade reduziu-se velozmente na escolarização das crianças entre sete e 14 anos (passando de 74,5% para 92,5% a taxa de escolarização entre os 25% mais pobres da população brasileira) ela mantém-se muito elevada no pré-escolar. As famílias com renda per capita superior a três salários tem mais de 90% de suas crianças, entre quatro e seis anos, escolarizadas, contra menos da metade nas famílias com renda mensal per capita inferior a ½ salário mínimo. O ingresso na escola pode ser observado ainda entre as crianças de 0 a 3 anos de idade. No período de 1995/1999, a freqüência no estabelecimento de ensino ou de cuidados maternais passou de 7,6% para 9,2%. Entretanto, essa escolarização é maior entre as crianças que vivem em famílias com rendimento superior a 3 salários mínimos alcançando a proporção de 32%. Já para as crianças pobres o crescimento foi pequeno passando de 4,9%, em 1995, para 5,9%, em 1999. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil termina o século com mudanças sociais. Disponível em: <http:// www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/0404sintese.shtm>. Acesso em: 12 set. 2015. 8 Confira-se, reconhecendo o desequilíbrio entre encargos e receitas, o texto publicado pelo Professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). MARRAFON, Marco Aurélio. Novo pacto federativo para aprimorar a democracia brasileira. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014Revista do Curso de Direito
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outra solução às famílias, senão garantir este direito eminentemente social pela via judicial, onde é postulada a condenação do Poder Público à obrigação de disponibilizar vagas em creches, públicas ou particulares. Dessa maneira, assistimos à uma forte judicialização do direito à educação. A judicialização, em sentido amplo, pode ser definida como o fato de se levar ao Poder Judiciário questões que se apresentam comumente em pautas diversas que não a judicial, e que seriam resolvidas prioritariamente em outras instâncias. Daí resulta a interferência do Poder Judiciário na definição de políticas públicas e no desenho institucional do Brasil.9 Sobre a judicialização dos direitos sociais, bem ressalta Carlos Pulido, Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca, que:10 Os direitos sociais são promessas de prestações que a Constituição faz a cada indivíduo e as Cortes Constitucionais são responsáveis por garantir seu cumprimento. Por esta razão, não é estranho que a incapacidade do Estado para satisfazer os direitos sociais haja levado à instauração massiva, ante a justiça constitucional, de ações de tutela ou recursos de amparo onde se pede à Administração Pública que assegure as prestações que, em teoria, podem ser deduzidas dos direitos sociais.
Em contrapartida, a reserva do possível e a separação dos poderes são reiteradamente usadas - e distorcidas, eis que buscam blindar a Administração Pública de seus deveres - em juízo pela advocacia pública na defesa dos entes públicos. Dessa forma, essa é uma discussão que, infelizmente, não apresenta boas perspectivas de ser superada no curto prazo, de tal sorte que este ensaio busca fortalecer o que há muito se sabe: os direitos constitucionais devem ser priorizados pelos atores políticos, e a tutela coletiva tem se revelado um bom instrumento para tanto. Oportuno esclarecer que no decorrer do estudo serão identificados os direitos envolvidos nesse tipo de demanda, tendo como paradigma o Recuso Especial n. 440.502/SP. Serão analisados os fundamentos da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a partir da divergência dos votos e alguns julgados do Supremo Tribunal Federal (STF). Ademais, com o intuito de elevar o debate, a doutrina será constantemente trazida e também será feita uma breve referência aos Direitos Humanos ligados ao tema. Por fim, serão identificados os principais documentos internacionais que impõem aos Estados signatários a adoção de medidas que assegurem às crianças e adolescentes o acesso à educação. 2 O RECURSO ESPECIAL N. 440.502/SP. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA DA CRECHE.11 abr-21/constituicao-poder-pacto-federativo-aprimorar-democracia-brasileira>. Acesso em: 12 set. 2015. 9 Acerca do diálogo institucional e a possibilidade de decisões judiciais, cf. MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. A constitucionalização da política: entre o inevitável e o excessivo. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 18, 2010. Disponível em: <http://www.revistadireito.uerj.br/artigos/ Aconstitucionalizacaodapoliticaentreoinevitaveleoexcessivo.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2015. 10 PULIDO, Carlos Libardo Bernal. Direitos Fundamentais, Juristocracia Constitucional e Hiperpresidencialismo na América Latina. Trad.: Graça Maria Borges de Freitas. Revista Jurídica da Presidência da República, V. 17, n.111, Fev/Mai. 2015. p. 23 Brasília, 2015. p. 23. 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. RESP n. 440.502/SP. Órgão julgador: 2ª Turma. Recte.(s): Município de Santo André. Recdo.(s): Ministério Público do Estado de São Paulo. 152 Faciplac
2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS O direito à educação está inserido na ordem social, conforme arts. 205 e ss. da Constituição Federal, figurando como um fator determinante das políticas públicas. É um direito de todos, sendo dever do Estado e da família promovê-lo, a fim de assegurar o pleno desenvolvimento das pessoas, seja para o exercício cívico ou para o desempenho laboral. Tendo em conta tais vetores, o Ministério Público tem o dever de incentivar a educação. Nesse sentido se firmou, de longa data, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal.12
A “Ação Civil Pública da creche”, como ficou conhecida, foi proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em face da omissão do Município de Santo André em corrigir o déficit de vagas no sistema primário de ensino. Impende destacar que o Ministério Público estadual é o órgão legitimado para a propositura de ações que tutelam os interesses relativos à infância e à adolescência, conforme art. 201, inc. V, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).13 Nessa esteira leciona a doutrina: “O inc. V cuida de assuntos importantíssimos, mormente a iniciativa para propositura da ação civil pública, quando se tratar de interesses difusos e coletivos”.14 A defesa dos interesses individuais pelo Ministério Público deve relacionar-se a direitos indisponíveis, como é o caso do direito à educação. Caso contrário, caberia à Defensoria Pública promover a ação, com repercussão meramente “inter partes”. Saliente-se que o ECA dispõe expressamente que cabe ao Parquet ajuizar Ação Civil Pública para garantir vaga em creche e em pré-escola para crianças de até 6 anos de idade.15 Com razão a legitimidade ministerial, eis que a garantia ao acesso à justiça envolve a Relator(a): Min. Herman Benjamin. Brasília, 15 de dezembro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj. jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200200699966&dt_publicacao=24/09/2010 >. Acesso em: 28 fev. 2015. 12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. RE. n. 163.231/SP. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Recte: Ministério Público do Estado de São Paulo. Recdo: Associação Notre Dame de Educação e Cultura. Relator: Min. Maurício Corrêa. Data do julgamento: 26/02/1997. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=214240>. Acesso em: 09 ago. 2015. 13 Assim dispõe o ECA: Art. 201. Compete ao Ministério Público: [...] V - promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, inclusive os definidos no art. 220, § 3º inciso II, da Constituição Federal; [...]. BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 20 ago, 2015. 14 ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 278. 15 Note-se a redação do dispositivo: Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular: I - do ensino obrigatório; II - de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência; III - de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; [...]. BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá Revista do Curso de Direito
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possibilidade de utilização dos instrumentos disponíveis no sistema processual e, igualmente, a garantia da prestação jurisdicional útil, célere e segura. O processualista Arruda Alvim, sobre ação civil pública, ensina que:16 A ação civil pública nasceu para proteger novos bens jurídicos, referindo-se a uma nova pauta de bens ou valores, marcados pelas características do que veio a ser denominado de interesses e direitos difusos ou coletivos. [...] Os bens protegíveis pela ação civil pública, antes da Lei 7.347/85, eram, em termos reais, insuscetíveis de proteção. Ainda que houvesse algumas previsões, a proteção era inteiramente destituída de eficácia porque destituída de instrumental preordenado a proporcionar autêntica proteção. São bens, contemporaneamente, altamente prezáveis, de que podem servir de exemplos emblemáticos o meio ambiente e a situação dos consumidores.
Sobre o avanço do sistema processual, Mauro Cappelletti discorre que, historicamente, três “ondas” voltadas para o desenvolvimento do acesso à justiça podem ser identificadas. A primeira seria a assistência judiciária, papel desempenhado pela Defensoria Pública. A segunda “onda” de acesso à justiça, relevante para a compreensão da origem da ação civil pública, diz respeito à adaptação do processo civil e dos juízes aos direitos coletivos. Sobre esta “onda”, Cappelletti esclarece que o Poder Judiciário teve de se adaptar ao novo conceito de parte, composta por infinitos indivíduos, conduzindo de forma eficiente as reivindicações sociais. Por fim, a terceira “onda” seria complementar às anteriores, reformando a assistência judiciária para otimizar a representação dos direitos coletivos.17 2.2 REFLEXÕES SOBRE AS RAZÕES RECURSAIS Superada a questão da legitimidade do Ministério Público estadual para intentar, no caso, a ação civil pública, devemos partir para a análise do Recurso Especial n. 440.502/SP. Em apertada síntese, o Recurso Especial foi interposto pelo Município de Santo André contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que condenou o ente municipal a disponibilizar 7.200 (sete mil e duzentas) vagas em creches e escolas para crianças de até 6 anos de idade, incluídas ou não em lista de espera. O recurso constitucional interposto pelo município se fundamentou na impossibilidade jurídica do pedido ministerial, nos seguintes argumentos: (I) o pedido cominatório encontraria óbice na reserva do possível, tendo em vista os altos recursos necessários para sua efetivação e a impossibilidade de disponibilização orçamentária municipal; (II) a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo estaria ferindo o postulado da Separação dos Poderes, consagrada pela Constituição da República, tendo em vista que a decisão de construir novas escolas e creches deve ser pautada pelo juízo de discricionariedade da Administração Pública. outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 20 ago, 2015. 16 ALVIM, Arruda. Ação Civil Pública: sua evolução normativa significou crescimento em prol da proteção às situações coletivas. In: MILARÉ, Edis. A Ação Civil Pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 77. 17 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988. 154 Faciplac
O núcleo da discussão encontra-se, pois, na possibilidade de efetivação de direito fundamental prestacional de segunda geração, qual seja, educação infantil, por meio de decisão judicial, diante da omissão municipal.18 O principal direito envolvido, pois, refere-se à Educação, mais precisamente a de crianças de até 6 anos de idade. O déficit de vagas em creches municipais foi o motivo que levou o Ministério Público do Estado de São Paulo a ajuizar a Ação Civil Pública em comento.19 O direito à educação exige uma atuação do ente público, encaixando-se nos direitos de segunda dimensão. Uma das principais formas de diferenciação entre os direitos de primeira e segunda dimensão encontra-se na atitude do Estado. Enquanto para os direitos de primeira dimensão – como liberdade e propriedade – o que se espera é uma não ação (omissão) estatal, para os direitos de segunda dimensão a atuação estatal é imprescindível (ação). O Estado deve atuar de forma prestativa com o intuito de assegurar a igualdade real entre os seres humanos. Reduzir desigualdades, fomentar oportunidades e garantir condições dignas não poderão ser alcançadas caso o Estado adote atitudes negativas e nada fazer. Igualmente, conclui André Ramos Tavares que:20 Os direitos sociais, como direitos de segunda dimensão, convém relembrar, são aqueles que exigem do Poder Público uma atuação positiva, uma forma atuante de Estado na implementação da igualdade social dos hipossuficientes. São, por esse exato motivo, conhecidos também como direitos a prestação, ou direitos prestacionais.
Sem embargo, há expressa menção no texto constitucional ao direito à educação infantil.21 E mais, não só o elencou expressamente, como também o colocou entre aqueles que devem ter prioridade frente aos demais direitos previstos na própria Constituição Federal. Frise-se, ademais, que a redação foi reforçada pela legislação infraconstitucional, conforme se verifica no art. 4º do Estatuto da Criança e Adolescente.22 18 O termo “geração”, cunhado por Noberto Bobbio em sua destacada obra “A era dos direitos”, atualmente, sofre resistência de parcela da doutrina, porquanto daria uma conotação de superações sucessivas. As três clássicas “gerações” de direitos, associadas ao lema da Revolução Francesa “Liberté, Egalité, Fraternité”, em verdade, sofreram influências mútuas , não havendo propriamente uma superação. O termo que tem prevalecido na doutrina que não acolhe a terminologia do teórico italiano é “dimensão”. A despeito dessa resistência,adotamos a divisão neste trabalho. 19 Vera Karam e Miguel Godoy, sobre o regime democrático e a importância da igualdade, destacam que: “É a partir, sobretudo, da igualdade [...] e da existência e fruição de instrumentos que facilitam e permitem atuações e decisões coletivas que se pode pensar em um processo transformador da realidade. Dessa forma, concebe-se a democracia como um processo orientado à transformação.”. CHUERI, Vera Karam de; GODOY, Miguel G.. Constitucionalismo e democracia: soberania e poder constituinte. Revista Direito GV. São Paulo. V. 6, n. 1. Jan-Jun. 2010. p. 159-174. São Paulo. 2010. p. 169. 20 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 701. 21 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 08 ago. 2015. 22 Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e Revista do Curso de Direito
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O ECA conceitua, mais especificamente no art. 29, a educação infantil como sendo a destinada à crianças de até 6 anos de idade, com a finalidade de complementar a ação da família e da comunidade, objetivando o desenvolvimento integral da criança nos seus aspectos físicos, psicológicos, intelectuais e sociais. Note-se que o direito à educação para crianças até 5 anos de idade é assegurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação.23 A educação é uma garantia de absoluta prioridade, sendo inadmissível a sua violação. Para o ordenamento jurídico brasileiro, um direito passa a ser vinculante quando o legislador o qualifica como tal. Com maior força, obviamente, quando o constituinte originário o faz. Dessa forma, não poderá ser alegado juízo de discricionariedade observando-se a conveniência e a oportunidade, mas sim a não integração do direito à educação à reserva do possível, eis que pertence ao grupo do “mínimo existencial”.
Ademais, a Constituição Federal de 1988 expressamente atribui ao Estado, em seu art. 208, inc. IV, a obrigação de efetivar a educação infantil, aí compreendido crianças de até 5 (cinco) anos de idade. Dessa forma, cabe a todos os entes federativos, de forma irrestrita, promover o direito à educação básica.24 Nessa esteira, Uadi Lammêgo Bulos assevera que: 25 Os municípios têm a obrigação impostergável de cumprir o disposto no art. 208, inc. IV, da Carta Magna. Eles não poderão demitir-se desse mandato constitucional, juridicamente vinculante, o qual representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais.
O Município de Santo André/SP argumentou pela impossibilidade jurídica do pedido, tendo como parâmetros o princípio constitucional da Separação dos Poderes e a insuficiência orçamentária. Para o recorrente, a disponibilização de vagas em creche e pré-escolas, bem como a construção destas, deve ser pautada em critérios de oportunidade e conveniência da Administração Pública; e quando o Poder Judiciário determina essa disponibilização, estaria incorrendo em usurpação de atribuições do Poder Executivo. O ente municipal, portanto, alegou que a decisão recorrida estaria em confronto com a postulação constitucional da Separação dos Poderes. Ao decidir que é obrigação do município disponibilizar 7.200 (sete mil e duzentas) vagas necessárias ao acesso das crianças à educação, a atuação do Poder Judiciário paulista estaria, nos termos das alegações do recorrente, usurpando poderes tipicamente executivos, invadindo a esfera do administrador.
do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069. htm>. Acesso em: 20 ago, 2015. 23 Nesse sentido dispõe seu art. 4º, inc. II: Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: [...]; II - educação infantil gratuita às crianças de até 5 (cinco) anos de idade; [...]. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 10 ago. 2015. 24 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET; Ingo Woflgang; STRECK; Lênio Luiz (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2013. 25 BULOS, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance de todos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 719. 156 Faciplac
Por sua vez, o Ministério Público, ancorado no postulado constitucional da inafastabilidade do Poder Judiciário, defendeu que a partir do momento em que o Município de Santo André/SP deixou para um segundo plano e, conseqüentemente, não priorizou a educação infantil, protegido pela Constituição Federal, surgiu a necessidade de exercitar uma das garantias constitucionais, mediante Ação Civil Pública. José Afonso da Silva, sobre a inafastabilidade de jurisdição, prevista no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal, leciona que “a primeira garantia que o texto revela é a de que cabe ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, pois sequer se admite mais o contencioso administrativo que estava previsto na Constituição revogada”.26 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) repisou o entendimento de que a inafastabilidade do controle jurisdicional é garantia elementar do Estado de Direito e também entendeu que: “[...] a oferta insuficiente de vagas em creches para crianças de 0 a 6 anos faz surgir o direito de ação para todos aqueles que se encontrem nessas condições, diretamente ou por meio de sujeitos intermediários, como o Ministério Público [...]”, reafirmando a legitimidade ministerial.27 Para o STJ, decisões como a do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, são permitidas, e recomendáveis, quando as prioridades estabelecidas pela CF/88, e essenciais à efetivação da dignidade humana, são preteridas pelo administrador, que deixa de observar o cumprimento dos deveres vinculados à Administração Pública. Nesse sentido, a vinculação do administrador a determinado direito ocorre quando o legislador o qualifica como prioritário, refutando a aplicabilidade da “reserva do possível”. Essa é uma das facetas do Estado Democrático de Direito que impõe não apenas a simples Separação dos Poderes, mas a ampliação de um frente ao outro quando observada sua ineficiência e/ou ineficácia. A excepcionalidade da decisão é uma das consequências do sistema de freios e contrapesos adotado pela Constituição Federal. Odete Medauar, ilustre administrativista, sobre o controle do Poder Judiciário na Administração Pública, esclarece que:28 A expressão controle jurisdicional da Administração abrange a apreciação, efetuada pelo Poder Judiciário, sobre atos, processos e contratos administrativos, atividades ou operações materiais e mesmo a omissão ou inércia da Administração. O controle jurisdicional caracterizase como controle externo, de regra a posteriori, repressivo ou corretivo, podendo apresentar conotação preventiva. É desencadeado por provocação (não existe jurisdição sem autor) e efetuado por juízes dotados de independência. Esse controle se realiza pelo ajuizamento de ações que observam procedimentos formais, com garantias às partes, tais como juiz natural, imparcialidade, contraditório, ampla defesa, dentre outras. O processo se encerra por sentença, obrigatoriamente motivada e dotada da autoridade da coisa julgada, impondo-se, portanto, à Administração, que deve acatá-la. De regra exige-se, para o ajuizamento dos remédios,
26 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 432. 27 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. RESP n. 440.502/SP. Órgão julgador: 2ª Turma. Recte.: Município de Santo André. Recdo.: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 15 de dezembro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/ revistaeletronica/ita.asp?registro=200200699966&dt_publicacao=24/09/2010 >. Acesso em: 08 mar. 2015. 28 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 443 Revista do Curso de Direito
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patrocínio de advogado e pagamento de custas. O controle jurisdicional continua a ser o mais importante instrumento de controle da Administração, apesar da busca de outros meios que possam suprir falhas ou dificuldades desse controle.
O princípio da proporcionalidade é o principal vetor de controle jurisdicional, que busca preservar os direitos fundamentais das ingerências legislativas e administrativas É preciso ter em mente que, por previsão constitucional e legal, a Educação é prioridade do Estado. Dessa forma, não há que falar em juízo de discricionariedade administrativa, tendo em vista que conveniência e oportunidade devem respeitar os limites estabelecidos nas normas jurídicas, sobretudo a legalidade, a moralidade e a razoabilidade. Nesse quadro, e refutando a tese de que a decisão que condena a Administração Pública fere a Separação de Poderes, esclarecedor o voto Min. Celso de Mello:29, 30 [...] A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político- -administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a
29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento. AI n. 677274/SP. Decisão Monocrática. Relator: Min. Celso De Mello. Julgamento: 18/09/2008.Agte.: Município de São Paulo.Agdo.: Ministério Público do Estado De São Paulo. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento. asp?numero=677274&classe=AI&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 10 ago, 2015. 30 Note-se que o Recurso Especial trazido à discussão neste artigo foi levado ao Supremo Tribunal Federal, cuja relatoria também ficou responsável o Min. Celso de Mello, mantendo-se o entendimento de que a educação infantil não se expõe a avaliações meramente discricionárias da administração pública, mas pela densidade do voto, bem como para demonstrar a firmeza do entendimento jurisprudencial, optouse por também trazer o julgado acima referenciado. Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. RE n. 436.996/SP. Órgão julgador: 2ª Turma. Julgamento: 22/11/2005. Agte.: Município de Santo André. Agdo.: Ministério Público do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/ paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=354801>. Acesso em:18 ago, 2015. 158 Faciplac
integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. [...]
Em sentido oposto ao do Supremo Tribunal Federal, encontramos a clara e relevante doutrina de Carlos Pulido, senão vejamos:31 Contudo, a aplicação do princípio da proporcionalidade para a tutela dos direitos fundamentais enfrenta dois desafios nada negligenciáveis. Por uma parte, na medida em que é utilizado em uma grande diversidade de casos heterogêneos, o conteúdo desse princípio tende a subtrair-se às generalizações das quais não possa derivar-se senão uma única solução correta para cada caso possível. [...] Dessa maneira, a atividade jurisdicional se torna pouco controlável. Por outra parte, não é evidente que os tribunais disponham da suficiente legitimação para ordenar ao Legislador e à Administração Pública uns precisos roteiros para cumprir os objetivos do Estado Social, mediante o princípio da proporcionalidade. [...] tampouco o juiz parece estar equipado dos instrumentos técnicos, dos dados extrajurídicos e das competências democráticas suficientes para estabelecer, com precisão, que medidas concretas deve adotar o Estado para tornar efetivos os direitos sociais e as normas de proteção.
Apesar de não ser a posição da jurisprudência dominante, o magistério de Pulido é relevante na medida em que pluraliza o debate com argumentos que devem ser considerados pelos operadores do Direito. Dando continuidade à análise do caso, importante se faz identificar a espécie de interesse coletivo envolvido porque impacta diretamente nos efeitos da decisão. Assim, é preciso ter em mente a diferença entre as espécies de direitos coletivos. De início, interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato. Coletivos, por sua vez, aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Assim, a indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos, e a determinidade dos interesses coletivos.32 Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum, constituindose em subespécie de direitos coletivos.33 Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos. Isso porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.
31 PULIDO, Carlos Libardo Bernal. Direitos Fundamentais, Juristocracia Constitucional e Hiperpresidencialismo na América Latina. Trad.: Graça Maria Borges de Freitas. Revista Jurídica da Presidência da República, V. 17, n.111, Fev/Mai. 2015. Brasília, 2015. p. 23. 32 ANDRADE, Adriano; ANDRADE, Landolfo; MASSON, Cleber. Interesses Difusos e Coletivos Esquematizado. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 17-37. 33 Elucidativo, nesse ponto, o Código de Defesa do Consumidor, vejamos: Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos
consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em: 20 ago, 2015. Revista do Curso de Direito
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Maria Paula Dallari Bucci, se referindo ao processo de constitucionalização dos direitos sociais, observa que:
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Os críticos consideram ingênua a “inflação de direitos” promovida nesse processo. Alertam para o fato de que, como disse certa vez um jurista “a Constituição não cabe no PIB”. Haveria um excesso de direitos correspondentes a aspirações sociais cuja satisfação depende da macroeconomia, da organização dos setores produtivos, da inserção do Estado na economia mundial, enfim, de variáveis estranhas ao direito. Para os países em desenvolvimento, o rol inspirado nas Declarações Internacionais e nos textos constitucionais dos países avançados constitui ideal irrealizável, em vista dos meios disponíveis. Mais do que isso, em certos momentos, como ocorreu nos anos 80 com o declínio do Estado de bem-estar nos países europeus, a multiplicação de direitos, particularmente os direitos sociais, seria um fator de perda de competitividade dos Estados, na medida em que tais direitos imporiam a criação e manutenção de pesadas e dispendiosas estruturas de serviços públicos de saúde, educação etc.
O município também alegou que a decisão prolatada incorreria em risco à Administração Pública tendo em vista que a execução faria com que os limites orçamentários e financeiros fossem extrapolados. Isso significa dizer que a discussão abrangeu também o a Lei de Responsabilidade Fiscal, havendo aparente colisão de direitos, sobretudo entre o direito à educação infantil e o princípio da Separação de Poderes e os ditames orçamentários. O Superior Tribunal de Justiça aponta que o ônus probatório recai sobre o Estado quando ele se valer da reserva do possível, devendo comprovar a falta de recursos financeiros necessários. Nesse sentido é a decisão do REsp 1185474/SC, Rel. Min. Humberto Martins: “[...] a real insuficiência de recursos deve ser demonstrada pelo Poder Público, não sendo admitido que a tese seja utilizada como uma desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, principalmente os de cunho social.”35 Sobre a eficácia dos direitos sociais frente limitações orçamentárias do Estado, Ingo Wolfgang Sarlet declara:
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[...] ao Estado não apenas é vedada a possibilidade de tirar a vida (daí, por exemplo, a proibição de pena de morte), mas também que a ele se impõe o dever de protefer ativamente a vida humana, já que esta constitui a própria razão de ser do Estado, além de pressuposto para o exercício de qualquer direito (fundamental, ou não). Não nos parece absurda a observação de que negar ao indivíduo os recursos materiais mínimos para a manutenção de sua existência [...] pode significar, em última análise, condená-lo à morte por inanição, por falta de atendimento médico, etc. Assim, há como sustentar – na esteira da doutrina dominante – que ao menos na esfera das condições existenciais mínimas encontramos um claro limite à liberdade de conformação do legislador.
34 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p.4. 35 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. REsp. n. 1.185.474/SC, Órgão julgador: 2ª Turma. Recte.: Município de Criciúma. Recdo.: Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Relator: Min. Humberto Martins. Brasília, 20 de abril de 2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/ revista/inteiroteor/?num_registro=201000486284&dt_publicacao=29/04/2010>. Acesso em: 13 jul. 2015. 36 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 355. 160 Faciplac
Soma-se ao ensinamento de Ingo Sarlet, o fato de que a Constituição Federal dotou o direito à educação infantil de prioridade, vale dizer, encontra-se em patamar de superioridade se comparado com os demais direitos anunciados pelo pergaminho constitucional. Sendo assim, descabido falar em aplicação da reserva do possível quando se trata de direito à educação, umbilicalmente ligado ao exercício dos direitos da personalidade. 2.3 A VISÃO DO RELATOR O relator, Min. Herman Benjamin, negou provimento ao recurso do Município de Santo André/ SP, mantendo a condenação fixada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em disponibilizar à população local 7.200 (sete mil e duzentas) vagas em creches e escolas municipais. No contexto da sociedade atual, onde impera a isonomia material, a educação é indispensável. Impedir que crianças tenham acesso à educação significa limitar-lhes o desenvolvimento, cerceando a dignidade e a inserção na vida social em condições de mínimas de igualdade com os demais seres humanos. O relator salientou que: 37 [...] Na ordem jurídica brasileira, a educação não é uma garantia qualquer que esteja em pé de igualdade com outros direitos individuais ou sociais. Ao contrário, trata-se de absoluta prioridade, nos termos do art. 227 da Constituição de 1988. A violação do direito à educação de crianças e adolescentes mostra-se, pois, em nosso sistema, tão grave e inadmissível como negar-lhes a vida e a saúde.
Em vários momentos o Ministro se valeu de mandamentos legais e constitucionais para esclarecer que a educação é uma prioridade constitucional e um dever vinculado da Administração Pública. Como tal, além de ser possível sua exigência de imediato – pois se trata de uma obrigação do Estado –, não poderá ser preterida pelo administrador público, não lhe incidindo a aplicação da teoria da reserva do possível. Nessa esteira, vale observar a seguinte passagem:38 No campo dos direitos individuais e sociais de absoluta prioridade, o juiz não deve se impressionar nem se sensibilizar com alegações de conveniência e oportunidade trazidas pelo administrador relapso. A ser diferente, estaria o Judiciário a fazer juízo de valor ou político em esfera na qual o legislador não lhe deixou outra possibilidade de decidir que não seja a de exigir o imediato e cabal cumprimento dos deveres, completamente vinculados, da Administração Pública. Se um direito é qualificado pelo legislador como absoluta prioridade, deixa de integrar o universo de incidência da reserva do possível, já que a sua possibilidade é, preambular e obrigatoriamente, fixada pela Constituição ou pela lei.
Outro ponto do voto do relator digno de relevo se refere ao enfrentamento do Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional em combinação com o Princípio da Separação dos Poderes. No 37 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. RESP n. 440.502/SP. Órgão julgador: 2ª Turma. Recte.: Município de Santo André. Recdo.: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 15 de dezembro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/ revistaeletronica/ita.asp?registro=200200699966&dt_publicacao=24/09/2010>. Acesso em: 08 mar. 2015. p. 7. 38 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. RESP n. 440.502/SP. Órgão julgador: 2ª Turma. Recte.: Município de Santo André. Recdo.: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 15 de dezembro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/ revistaeletronica/ita.asp?registro=200200699966&dt_publicacao=24/09/2010>. Acesso em: 08 mar. 2015. p. 8. Revista do Curso de Direito
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acórdão, o posicionamento acerca do tema retrata que a visão do STJ é a de submeter-se à regra geral da não interferência de um poder em relação aos outros, mas que, todavia, quando um dos poderes escusa-se a cumprir determinação constitucional ou legal, tendo o caso sido levado à apreciação do judiciário, não poderá também este poder eximir-se de suas responsabilidades vinculadas. Nesse sentido:39 Se é certo que ao Judiciário recusa-se a possibilidade de substituir-se à Administração Pública, o que contaminaria ou derrubaria a separação mínima das funções do Estado moderno, também não é menos correto que, em nossa ordem jurídica, compete ao juiz interpretar e aplicar a delimitação constitucional e legal dos poderes e deveres do Administrador, exigindo, de um lado, cumprimento integral e tempestivo dos deveres vinculados e, quanto à esfera da chamada competência discricionária, respeito ao due process e às garantias formais dos atos e procedimentos que pratica.
2.4 A VISÃO DO VOTO DIVERGENTE A divergência foi suscitada pela Ministra Eliana Calmon ao verificar as alegações trazidas pelo Município de Santo André/SP de que faltaria ao pleito ministerial possibilidade jurídica, pois não poderia o município atender à criação de 7.200 (sete mil e duzentas) vagas em creches e pré-escolas. Os limites seriam as regras orçamentárias, eis que o impacto de mais de cinquenta milhões no orçamento municipal comprometeria mais de 80% (oitenta por cento) dos recursos disponíveis para a educação. O Município apresentou a estimativa de que, para atender a 7.200 (sete mil e duzentas) crianças, sendo 3.200 em creches e 4.000 alunos de 4 a 6 anos em Educação Infantil e Ensino Fundamental, seriam necessários mais de R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais), o que corresponde a 80% do orçamento anual para educação do Município, que conta com o valor de R$ 67.000.000,00 (sessenta e sete milhões de reais). Ademais, de acordo com os cálculos do município, teriam de ser construídas 20 (vinte) creches para atender às crianças de 0 a 6 anos e 08 (oito) Escolas Municipais de Educação Fundamental, o que daria um custo de R$ 35.600.000,00 (trinta e cinco milhões e seiscentos mil reais), sem considerar o custo do terreno e mobiliário, este último orçado em R$ 1.560.000,00 (um milhão e quinhentos e sessenta mil reais). Necessitariam ainda ser contratados servidores com um custo de R$ 16.000.000,00 (dezesseis milhões de reais), afora o custo da merenda e manutenção dos equipamentos. Para a Min. Eliana Calmon, o STJ deveria se preocupar com a efetividade da decisão tomada no Recurso Especial n. 440.502/SP, evitando, assim, que “caia no vazio, pela impossibilidade jurídica e material de ser executada”. De acordo com a ex-Corregedora Nacional de Justiça, as respostas do Poder Judiciário não devem ser fruto exclusivo da interpretação legislativa, elas devem possuir conteúdo exeqüível. Acerca da prioridade da educação a ministra demonstrou seu posicionamento citando como 39 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. RESP n. 440.502/SP. Órgão julgador: 2ª Turma. Recte.: Município de Santo André. Recdo.: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 15 de dezembro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ ita.asp?registro=200200699966&dt_publicacao=24/09/2010>. Acesso em: 08 mar. 2015. p. 10-11. 162 Faciplac
precedente outro Recurso Especial de sua relatoria no qual consignou:40 É preciso considerar que a educação infantil, por não ser prioritária, deve inserir-se em um planejamento específico, estando aí a força do Ministério Público para exigir que, no planejamento municipal, sejam traçadas as prioridades e dentro delas as passíveis de atendimento. Sem essa ingerência, é inteiramente impossível, sem deixar cair no vazio, a ordem judicial. (...) não é possível impor aos órgãos públicos obrigação de fazer que importe gastos, sem que haja rubrica própria para atender à determinação. (...) Ademais, ainda devem os ordenadores de despesa atender aos ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal.
2.5 A PONDERAÇÃO DE VALORES E A CONCLUSÃO DO COLEGIADO A ponderação se ocupa das situações que envolvam colisões de princípios ou de direitos fundamentais. Nesse sentido, o magistério de Luís Roberto Barroso41: A ponderação consiste em uma técnica de decisão jurídica, aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente. A insuficiência se deve ao fato de existirem normas de mesma hierarquia indicando soluções diferenciadas.
Tradicionalmente, a ponderação de valores divide-se em três etapas, quais sejam: identificação das normas pertinentes, seleção dos fatos relevantes e atribuição geral de pesos. Na Ação Civil Pública em comento, superando a análise do imbróglio processual, a discussão orbita em torno de dois direitos fundamentais, ambos de patamar constitucional, são eles: limite fático da reserva do possível e direito a creche e a pré-escola de crianças até 6 anos de idade, sendo que este, em última análise, refere-se ao direito a educação pública. No caso em tela, imperioso reconhecer que o julgador se valeu da ponderação de valores para produzir uma conclusão. Primeiramente, reconheceu a aplicabilidade do direito à educação, nos termos do art. 227 da CF, apresentando como característica a absoluta prioridade. Partindo da análise do voto relator, é possível observar com nitidez a terceira etapa do processo de ponderação de valores. Nessa fase, os grupos de normas e a repercussão do fato concreto são analisados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve prevalecer em detrimento dos demais. Ressalte-se que o Min. Herman Benjamin faz considerações no sentido de afastar a aplicabilidade do princípio da reserva do possível, de cunho eminentemente orçamentário, tendo em vista que o direito a educação possui mandamento constitucional expresso de prioridade. Oportuno destacar, por óbvio, que o direito a educação, no caso concreto, requeria do juiz atribuição valorativa muito superior ao concedido ao argumento da reserva do possível. Some-se, ainda, que todo esse processo intelectual tem como esteira o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. 40 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. RESP n. 440.502/SP. Órgão julgador: 2ª Turma. Recte.: Município de Santo André. Recdo.: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Herman Benjamin. Brasília, 15 de dezembro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/ revistaeletronica/ita.asp?registro=200200699966&dt_publicacao=24/09/2010>. Acesso em: 08 mar. 2015. p. 16. 41 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 361. Revista do Curso de Direito
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O texto constitucional não congrega expressamente o princípio da proporcionalidade, mas tem seu fundamento nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça. É ferramenta fundamental na proteção dos direitos fundamentais e de interesse público, porque permite o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional. Sobre essa questão nos ensina Gilmar Mendes42: O juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a solução do problema, que não haja outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus imposto ao sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende obter com a solução. Devem-se comprimir no menor grau possível os direitos em causa, preservando-se sua essência, o seu núcleo essencial.
Nesse contexto, insere-se justamente o que foi defendido pelo Município de Santo André ao argumentar que a reserva do possível deveria ser acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão do ‘elevado’ sacrifício às finanças municipais, afastando-se, em última análise, a obrigatoriedade do direito à educação infantil. É possível concluir que, apesar do Recurso Especial n. 440.502/SP ter sido denegado pelo STJ ocorreu a ponderação de valores no tocante aos argumentos levados aos ministros. O voto do relator da Ação Civil Pública das creches, Min. Herman Benjamin, revela que os princípios em colisão foram devidamente ponderados a fim de se estabelecer uma solução que atendesse à demanda de educação pública para crianças de até 6 anos de idade do Município de Santo André. Refutou-se, por maioria, a aplicação da reserva do possível e a de que eventual decisão condenatória infringiria a Separação de Poderes. A despeito da boa fundamentação apresentada pelo voto divergente, os demais ministros da Segunda Turma do STJ, à época, Castro Meira, Mauro Campbell e Humberto Martins acompanharam o voto condutor do relator e entenderam, majoritariamente, pela denegação do Recurso Especial interposto pelo Município de Santo André. Isso porque o Direito à Educação infantil é de absoluta prioridade, não se submetendo à reserva do possível, mantendo-se a condenação do município a disponibilizar 7.200 (sete mil e duzentas) vagas em creches para crianças de até seis anos de idade. 3 DIREITOS HUMANOS: DA TEORIA AOS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS Com um enfoque histórico, assinala Francisco Rezek que os direitos humanos demoraram a ser efetivamente protegidos:43 Até a fundação das Nações Unidas, em 1945, não era seguro afirmar que houvesse, em direito internacional público, preocupação consciente e organizada sobre o tema dos direitos humanos. De longa data alguns tratados avulsos cuidaram, incidentalmente, de proteger certas minorias dentro do contexto da sucessão de Estados. Usava-se, por igual, do termo
42 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO; Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 211. 43 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 253-254. 164 Faciplac
intervenção humanitária para conceituar, sobretudo ao longo do século XIX, as incursões militares que determinadas potências entendiam de empreender em território alheio, à vida de tumultos internos, e a pretexto de proteger a vida e o patrimônio de seus nacionais que ali se encontravam.
O conceito de Direitos Humanos não conta com a unanimidade da doutrina, podendo se aproximar do Direito Natural, ou seja, de uma concepção em que os direitos humanos seriam inatos ao homem e decorrentes simplesmente de sua condição humana, como também pode aproximar-se do Direito Positivo, isto é, somente pode ser considerado como direito humano aquele que o ordenamento jurídico assim o define. Os direitos de primeira geração correspondem aos direitos de liberdade e foram os primeiros, na ordem cronológica, previstos constitucionalmente. Referem-se aos direitos civis e políticos, têm como titular o indivíduo e são direitos de resistência ou oposição contra o Poder Público. Pressupõem uma separação entre Estado e sociedade, em que esta exige daquele apenas uma abstenção, ou seja, uma obrigação negativa visando a não interferência na liberdade dos indivíduos. Esses são direitos que reservam ao indivíduo uma esfera de liberdade “em relação ao” Estado. No que concerne aos direitos políticos, são direitos que concedem uma liberdade “no” Estado, pois permitiram uma participação mais ampla, generalizada e frequente dos membros da comunidade no poder político.44 Por seu turno, os direitos de segunda geração são os sociais, culturais e econômicos; derivados do princípio da igualdade surgiram com o Estado social e são vistos como direitos da coletividade. São direitos que exigem determinadas prestações por parte do Estado, o que ocasionalmente gerou dúvidas acerca de sua aplicabilidade imediata, pois nem sempre o organismo estatal possui meios suficientes para cumpri-los. Por fim, os direitos de terceira geração surgem a partir da “fraternidade”, os quais visam à proteção dos direitos difusos, e não apenas do indivíduo ou do Estado em nome da coletividade e trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos. Partindo-se de uma rápida observação, poderíamos chegar ao entendimento de que os Direitos Humanos são derivados da constitucionalização. Entretanto, uma análise histórica mais detida da evolução do pensamento humano revela que a origem de tais direitos é anterior. E mais, concluímos que os Direitos Humanos positivados nas Constituições são resultado de diversas transformações ocorridas no decorrer da história.45 Bobbio se coloca como precursor da teoria individualista, pois considera o homem como titular de direitos por si mesmo, e não apenas como um membro da sociedade; ao contrário da anterior concepção organicista, segundo a qual a sociedade é um todo, e o todo está acima das partes. Em seu entender: “concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo [...], que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, 44 BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 45 Para entender com mais propriedade a história dos direitos humanos; cf.: COMPARATO. Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Revista do Curso de Direito
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e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado.”.46 Apesar da visão jusnaturalista, a comunidade internacional se movimentou no sentido de dar efetiva positivação aos postulados dos direitos humanos. Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, primeira movimentação internacional com intuito de proteger esse grupo de pessoas, fundamentou-se em princípios protetores, tais como: seguro social, nutrição, moradia, lazer, atendimento médico, educação e proteção contra qualquer tipo de abuso (físico, espiritual, moral, mental) ou qualquer outro que pudesse impedir o seu pleno desenvolvimento. Apesar do documento, inúmeras violações aos direitos das crianças continuaram a ser relatados, fazendo surgir a necessidade de elaborar um tratado, superando-se o mero grau de soft norm. Felipe de Melo Fonte, Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Procurador do Estado do Rio de Janeiro, esclarece que:47 O terceiro conjunto de prestações ligadas ao mínimo existencial compreende os bens e serviços imprescindíveis à construção da própria personalidade, o que é precondição para o exercício da autonomia individual e, num segundo momento, para o exercício pleno dos direitos de cidadania. O direito à educação básica também decorre da necessidade de se igualar os pontos de partida dos cidadãos, ideia escorada na justiça. [...] Num primeiro plano, o direito à educação emerge como elemento necessário à formação da autoimagem do indivíduo, à estabilização das aspirações e preferências, em suma, ao desabrochar das características que vão conferir ao ser humano a individualidade que é inerente à personalidade. É essencial que a sociedade forneça estes elementos mínimos que caracterizam o processo civilizatório.
Então, em 1989, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. Esta é a convenção sobre direitos humanos da ONU com a maior abrangência, envolvendo direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.48 A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989 e internalizada pelo Brasil no ano seguinte, em 1990, é o tratado que cuida de direitos humanos com o maior número de ratificações, contando com 193 Estados signatários. Dos 193 estados signatários, apenas os EUA e a Somália não a ratificaram. Sem dúvida, quando o assunto é direitos da criança, a ordem internacional exerce marcante influência no Brasil. A Convenção sobre Direitos da Criança, que é o documento de maior destaque, ratificada em 24 de setembro de 1990, inspira - junto com a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente - o ideal de que crianças e adolescentes são sujeitos de direito, apesar da condição peculiar de desenvolvimento. Segundo Flávia Piovesan:49 46 BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 60. 47 FONTE, Felipe de Melo. Políticas Públicas e Direitos Fundamentais: Elementos de fundamentação do controle jurisdicional de políticas públicas no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 211. 48 BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 15 ago, 2015. 49 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 448. 166 Faciplac
Este novo paradigma fomenta a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente e consagra uma lógica e uma principiologia próprias voltadas a assegurar a prevalência e a primazia do interesse superior da criança e do adolescente. Na qualidade de sujeitos de direito em condição peculiar de desenvolvimento, à criança e ao adolescente é garantido o direito à proteção especial.
Os princípios gerais da convenção são: proibição da discriminação, art. 2°; direito à vida e ao desenvolvimento ideal, art. 6°; direito à participação, art. 12; e a orientação ao melhor bem-estar da criança, art. 3°. A convenção impõe aos signatários obrigações positivas com intuito de assegurar à criança – aí compreendidas, conforme art. 1°, “todo ser humano menor de 18 anos de idade, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes” - padrão de vida digno com acesso à educação e à saúde. A Convenção estabelece ainda vários direitos importantes, tais como: participação na sociedade, vida, habitação, acesso a serviços médicos preventivos e de saúde, saneamento básico, convivência familiar, educação, cultura, informação, liberdade de pensamento, de expressão e de religião, e defesa de todas as formas de exploração, crueldade, separação arbitrária da família e abusos do sistema judiciário. Em contrapartida, a fim de monitorar os progressos alcançados no cumprimento das obrigações contraídas pelos Estados-partes, há previsão da existência de um Comitê, integrado por especialistas de reconhecida integridade moral e notório conhecimento na área concernente à infância. Há também a influência de outros documentos internacionais. Para tanto, basta ver o Preâmbulo da própria Convenção Sobre os Direitos da Criança, na qual constam informações dos diversos documentos sobre reconhecimento e proteção dos direitos das crianças, utilizados pelo direito internacional, e que deram substrato à sua edição:50 Tendo em mente que a necessidade de proporcionar proteção especial à criança foi afirmada na Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança de 1924 e na Declaração sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral em 20 de novembro de 1959, e reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (particularmente nos arts. 23 e 24), no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (particularmente no artigo 10) e nos estatutos e instrumentos relevantes das agências especializadas e organizações internacionais que se dedicam ao bem estar da criança; [...]
Além dos documentos referenciados na Convenção Sobre os Direitos da Criança, outros dois Protocolos Facultativos merecem destaque. O primeiro se refere à venda, prostituição e pornografia infantil. O segundo se refere ao envolvimento de crianças em conflitos armados. O Brasil é signatário, desde março de 2004, de ambos. Também aqui os Estados deverão submeter ao Comitê formado por experts relatório contendo informações sobre as medidas adotadas para programar as disposições protocolares.
50 BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 15 ago, 2015. Revista do Curso de Direito
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4 CONCLUSÃO A partir do Recurso Especial n. 440.502/SP é possível concluir que o Estado deve ser mais ativo na concretização dos direitos fundamentais elencados pela Constituição Federal de 1988. Restou claro, pela exposição da doutrina, da jurisprudência e dos documentos internacionais em que o Brasil figura como signatário, que a educação goza de prioridade constitucional, não se submetendo à reserva do possível. O alinhamento entre a doutrina e a ordem internacional repercute na jurisprudência nacional. No Recurso Especial n. 440.502, o STJ se valeu da técnica da ponderação de valores para solucionar o imbróglio. Primeiramente, reconheceu que a aplicação do direito à Educação, nos termos do art. 227 da Constituição da República, apresenta como característica a absoluta prioridade. Em seguida, afastou a incidência dos limites orçamentários apresentados e consignados em lei, porquanto apresentam menor relevância. Atente-se que, mesmo diante do julgado em tela, ressaltou-se que os limites orçamentários devem ser respeitados, mas deverá a Administração Pública priorizar a educação infantil na formulação de políticas públicas, como expressão da dignidade humana e, se necessário, reorganizar suas finanças a fim de destinar-lhe mais recursos.
O caso também aponta para uma boa prática a ser adotada pelos magistrados que, quando se depararem com a omissão estatal, deverão afastar os argumentos, quase sempre levantados pela advocacia pública, de impossibilidade da condenação a disponibilizar vagas em creche por conta da reserva do possível e da violação à Separação dos Poderes. Isso porque é obrigação do Estado de patamar constitucional fornecer uma educação de boa qualidade e promover o ensino, reafirmando-se a tese defendida em sede doutrinária da possibilidade de controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Destaca-se, também, outro aspecto da decisão do STJ, qual seja: a vinculação do Estado à prestação do serviço educacional independentemente de fila de espera: O administrador deve pautar sua atuação pelo princípio da eficiência, vale dizer, alcançar ao máximo a realização do interesse público com o mínimo de recursos. O que não se admite, claramente, é a inércia do Estado, de tal sorte que viola frontalmente um direito tão importante quanto o direito à saúde e o direito à vida. O desrespeito aos direitos fundamentais retrata um descaso com a dignidade humana, princípio da República Federativa do Brasil. Assim, a obrigatoriedade do Estado em prestar educação infantil já encontra respaldo na jurisprudência dos Tribunais Superiores, mormente Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Tal reconhecimento confirma uma antiga luta da ordem jurídica internacional pela proteção especial à criança, formalmente iniciada em 1924, com a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança. O enfoque sobre o julgado também recai sobre a Ação Civil Pública enquanto instrumento de garantia dos direitos sociais. Com efeito, assegurar direito à educação infantil a 7.200 (sete mil e duzentas) crianças se revelaria impossível pela via do processo individual, com condenações isoladas. É possível, e preferível, a efetivação de direitos fundamentais por meio de tutela coletiva, quando da omissão dos demais Poderes da República.
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Sendo assim, uma das preocupações deste trabalho foi lançar luzes sobre a efetividade dos direitos elencados na Constituição Federal, o quanto ainda se depende do Poder Judiciário para fazer valer seus postulados mais elementares e como a tutela coletiva pode contribuir para reverter esse quadro. O direito à educação não foge à regra. Aliás, no tocante ao direito à educação infantil, a Constituição Federal de 1988 tem tido, até o momento, o mesmo desfecho da Constituição de Weimar, isto é, o descumprimento, ainda que em menor proporção do que a Carta Alemã de 1919, dos direitos sociais nela estampados.
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OS CONSUMIDORES NA CONDIÇÃO DE TURISTAS EM PAÍS ESTRANGEIRO E A INFLUÊNCIA DE EVENTOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Rafael Souza Viana1
1 Formado em Direito e mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo UniCeub – Centro Universitário de Brasília. Advogado. Endereço: SQS 114, Bloco D, Apt: 302, Asa Sul, Brasília/DF – CEP: 70.377-040. Telefone: (61) 9923-3742 / (61) 3345-3909. E-mail: souza_viana@hotmail.com Revista do Curso de Direito
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RESUMO
Este artigo busca expor os principais aspectos, princípios e normas relacionadas à aplicabilidade do Direito do Consumidor, dando enfoque aos consumidores que se encontrem na condição de turistas em países estrangeiros, momento em que irão se deparar com situações de consumo peculiares e adversas, além do usual, as quais terão o condão de cercear seus direitos, o que acaba por gerar um potencial lesivo ainda maior. Ademais, invertendo-se o cenário, será demonstrada a influência de entes estrangeiros, que promovem eventos de repercussão global e, em sua maioria, esportivos, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, em espacial, o consumerista. Deflagra-se, portanto, mais uma potencialidade de lesão ocasionada por estrangeiros aos consumidores, desta vez quando estes estão em seu próprio território. Isso se dá em razão da imposição, como condição necessária para a escolha do país como sede, de modificações ou suspensão de leis nacionais, com a consequente substituição das mesmas por outras que lhes sejam mais favoráveis, que lhes propiciem maior lucro, menor autonomia e segurança jurídica aos seus consumidores. Para tanto, serão trazidos casos concretos, tais como a experiência brasileira com a Fórmula 1 e as Copas das Confederações e do Mundo, bem como ressaltando o temor pela repetição dos fatos nas Olimpíadas de Verão que estão por vir.
Palavras-Chave: Direito do Consumidor – Consumidores – Turistas – Hipervulnerabilidade – Organizações internacionais – Blocos econômicos - 75º Congresso de Direito Internacional – Bulgária – International Law Association -Princípios Básicos Internacionais - Ordenamento Jurídico – Brasil – Eventos Internacionais – Fórmula 1 – FIFA – Estatuto do Torcedor - Copa das Confederações – Copa do mundo - Ordenamento Próprio.
RESUMEN
Este trabajo busca exponer los principales aspectos, principios y normas relacionadas a la aplicabilidad del Derecho del Consumidor, dando enfoque a los consumidores que se encuentran en la condición de turistas en países extranjeros, ocasión el la cual van a encontrarse con situaciones de consumo peculiares y adversas, que podrán quitarles derechos. Además, cambiando el contexto, será demostrada la influencia de entidades extranjeras, que promueven eventos de repercusión global y, muchos de ellos, deportivos, atingidos por el ordenamiento jurídico brasileño. Es percibida, por lo tanto, una potencialidad de lesiones hacia los derechos de los consumidores, en razón de la imposición, por los organizadores de los eventos deportivos, de modificaciones o suspensión de leyes y consecuente sustitución por otras que les sean más favorables o les generen más ganancias. Para ello, serán presentados casos concretos, tales como la experiencia brasileña con la Formula 1 y las Copas de las Confederaciones y del Mundo, más allá de resaltar el temor por la repetición de los mismos hechos en los Juegos Olímpicos del 2016.
Palabras clave: Derecho del Consumidor – Consumidores – Turistas – Hipervulnerabilidad – Organizaciones Internacionales - 75º Congreso de Derecho Internacional – Bulgaria – International Law Association – Principios bBsicos Internacionales – Ordenamiento Jurídico – Brasil – Eventos Internacionales – Fórmula 1 – FIFA – Copa de las Confederaciones – Copa del mundo – Legislación Propia.
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INTRODUÇÃO O consumo é uma atividade cotidiana básica, uma vez que todos possuem a necessidade de comprar alimentos, utilizar os mais variados serviços e produtos, buscando assegurar uma boa qualidade de vida. Constata-se, por derradeiro, que se tornou uma atividade da qual é impossível se esquivar. Desde a Revolução Industrial, quando em decorrência da massificação da produção acabou-se por tornar as relações de consumo mais impessoais, liberando novos produtos e serviços, em um espaço de tempo cada vez mais curto, os consumidores sofrem as consequências deste padrão capitalista, tornando-se vulneráveis em relação aos fornecedores, detentores de todas as técnicas e conhecimentos do que é oferecido no mercado. Para tanto, na busca de equilibrar esta relação, foram criadas normas voltadas à proteção dos direitos destes consumidores, merecedoras de direitos fortes, sólidos, que lhes dessem a segurança de consumir com maior sem temores de lesões, sejam financeiras, sejam para sua própria saúde.
Contudo, em um mundo globalizado, impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico, as fronteiras são cada vez menores, o que acaba estimulando o consumo para territórios mais longínquos, principalmente em países estrangeiros, fora, consequentemente, do alcance de suas respectivas leis protetoras.
A tutela dos consumidores, quando se encontram em território internacional, é alvo de grande estudo na doutrina consumerista, uma vez que poucas são as proteções dadas e muitas são as desvantagens e os obstáculos a se enfrentar, tornando-os presas fáceis para o mercado.
Com o crescente desenvolvimento da atividade turística em todo o mundo, torna-se imperioso solucionar, o quanto antes, esta deficiência normativa, em ordem a proteger o mercado de consumo, resguardando seu público alvo. De igual forma, é necessário agir contra a influência de eventos internacionais no ordenamento jurídico dos países que os sediam. Invariavelmente, as normas mais afetadas são as que dizem respeito aos direitos do consumidor, tornando os entes organizadores uma espécie de superfornecedores, os quais ficam imunes aos direitos já impostos pela legislação brasileira, aumentando ainda mais a disparidade da relação. 1. CONSUMIDORES NA CONDIÇÃO DE TURISTAS 1.1. ASPECTOS INICIAIS O ser humano, por natureza, é curioso, sendo esta a principal razão da sua evolução histórica, a qual passa, necessariamente, pela evolução tecnológica, em particular, a referente aos meios Revista do Curso de Direito
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de transporte, sendo extremamente relevante ao presente artigo.
Estimulado pela curiosidade, os seres humanos partiam nas mais incríveis jornadas, buscando desbravar novas terras, ampliar seus horizontes e, porque não, seu território também.
Com o aperfeiçoamento dos meios de transporte, esta aventura se tornou cada vez mais ousada, perfazendo maiores distâncias em menor tempo. Basta ter em mente que, nos primórdios, os meios de transportes eram animais (cavalos, camelos, mulas, etc), o que condicionava a jornada à resistência física (fadiga) dos mesmos e ao tipo de terreno que lhes era possível percorrer.
Surgiram então carruagens, barcos, automóveis, aeronaves, dentre diversos outros, os quais, além de mais velozes, não possuíam obstáculos, utilizando-se de rios, oceanos, espaço aéreo, enfim, tornou-se possível atingir qualquer parte da superfície do planeta. No entanto, não obstante nos dias atuais não ser mais possível se falar em descoberta de novos territórios1, principalmente com intuito de anexá-lo ao seu, a curiosidade nos leva agora a conhecer as culturas dos outros povos, as belezas naturais dos locais onde vivem, principalmente quando estão localizados em outros países.
É em razão disso que a indústria do turismo surge e se fortalece cada vez mais, movimentando consideravelmente a economia de diversas cidades e países.
1.2. O TURISTA E CONSUMO Com a evolução contínua dos meios de transporte, no âmbito do seu uso para a obtenção de lucro (prestação de serviço por um fornecedor), ao contrário de outros serviços dependentes da tecnologia2, os valores cobrados dos consumidores reduziram consideravelmente ao longo dos anos. Um exemplo claro disso são as passagens aéreas, antes consideradas como algo que atribuía status e poder ao seu possuidor. O valor de um bilhete de embarque era altíssimo, apenas pequena parcela da população tinha o privilégio de voar e realizar seu trajeto em velocidade assombrosa comparada com os demais transportes. Hoje a realidade é bem diferente, seja em razão do aumento do poder aquisitivo das classes anteriormente consideradas como menos favorecidas em alguns países (Brasil está inserido nesse grupo)3, seja em razão das crises econômicas mundiais ou então da forte concorrência no ramo, o que fez com que as
1 Os satélites em órbita possuem condições de transmitir imagens de qualquer parte da superfície do planeta. 2 Serviços de televisão por assinatura, de telefonia, assistência técnica a aparelhos eletrônicos, dentre outros. 3 <http://blog.planalto.gov.br/com-aumento-do-poder-aquisitivo-brasileiro-viaja-mais-de-aviao> acesso: 30 de agosto de 2015. 176 Faciplac
empresas criassem novas estratégias, tais como os programas de fidelização4, cortassem seus custos com o supérfluo5, tornando os preços muito mais acessíveis do que outrora, tanto a nível interno (nacional) quanto externo (internacional). E mais, em recente pesquisa (junho de 2013) divulgada pelo Ministério do Turismo brasileiro6, o avião foi apontado como o meio de transporte mais utilizado pelos brasileiros. Até dezembro de 2013, mais de 59% dos entrevistados pretendiam voar até seus destinos, enquanto os que optaram pelos carros ou transportes coletivos atingiram o percentual de 25% e 14%, respectivamente, ou seja, uma diferença brutal.7 Tais dados nos ajudam a compreender um fator muito importante, quanto mais tempo as pessoas permanecerem em determinado local, maior será o seu consumo. Isso porque, durante uma viagem de férias, é notório que o consumo ocorrerá de alguma forma, seja em razão de alimentação, de acomodações em hotéis, e claro, da compra de produtos. Trata-se de um momento em que as pessoas buscam descansar, viver momentos felizes, que lembrarão no futuro, razão pela qual o que for consumido terá um valor especial, servirá como recordação. Inclusive, importante salientar, muitas viagens são planejadas com o intuito exclusivo de realizar compras. Ora, os próprios cruzeiros marítimos são exemplos disso. Paga-se para ficar durante dias, ou então semanas, dentro de um navio, verdadeiro shopping center flutuante, onde a principal atividade é consumir (bebidas, espetáculos, alimentos, jogos de azar, etc) e, ao mesmo tempo, permite-se conhecer uma série de cidades, ou ilhas próximas, dentro de uma determinada região, nas quais, invariavelmente, a cada parada, se consumirá ainda mais. Dando continuidade, os dados trazidos acerca do crescimento do uso de aeronaves8, visam expor um importante elemento, o caráter têmporo-espacial do consumo, ou seja, o fato de que os turistas buscam, cada vez mais, diminuir seu tempo de viagem (entenda-se como sendo o período gasto para realizar o trajeto entre o local de partida e o de destino), ocasionando um maior período de estadia nos locais e, consequentemente, gerando mais tempo livre, o qual, conforme já se constatou na sociedade pós-moderna, será convertido em tempo de consumo.9 Desta forma, os destinos escolhidos são, em sua maioria, verdadeiros paraísos do consumo10, 4 Smiles (programa de milhagem da Gol Linhas Aéreas), TAM Fidelidade (programa de milhagem da TAM Linhas Aéreas), Amigo (programa de milhagem da Avianca), etc. 5 Anteriormente as refeições realizadas a bordo eram verdadeiros banquetes, inclusive dando a opção aos passageiros de escolherem entre carne vermelha, frango ou peixe, servia-se, inclusive, caviar em alguns voos , os talheres eram de metais, enfim, vários gastos extras, além serviço de transporte. 6 A FGV (Fundação Getúlio Vargas) entrevistou habitantes das sete maiores regiões metropolitanas do Brasil, sendo elas Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. 7 <http://www.turismo.gov.br/%C3%BAltimas-not%C3%ADcias/2934-viagem-de-carro-cresce-napreferencia-do-brasileiro.html> acesso: 30 de agosto de 2015. 8 Meio de transporte mais rápido até hoje inventado. 9 PORTUGUEZ, Anderson Pereira. Consumo e espaço: turismo, lazer e outros temas. São Paulo: Roca, 2001. p. 7 e 8. 10 Locais onde são fabricados produtos de muita procura nacional e que, consequentemente, possuem valores muito abaixo do mercado, uma vez que ainda não sofreram a incidência de impostos. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, quanto a produtos eletrônicos, e dos países europeus, quanto ao mercado de vestimentas, em especial as de grifes famosas. Revista do Curso de Direito
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os quais, especialmente nos verões ou durante as festas de fim de ano, são grandes sensações, períodos em que as liquidações são motivo de grande euforia. Uma explicação para todo esse frisson encontra esteio no valor que se atribui aos bens, não apenas em razão do fator monetário (preços mais baixos), mas também o fator social. Por se tratar de produto comprado em outra localidade, a sociedade acaba dando-lhe um grau maior de relevância, independentemente do mesmo produto ser comercializado em diversas outras localidades.11 Desta forma, uma camisa, por exemplo, que é vendida em todos os países do mundo, iguais em todos eles (não há diferença no modelo ou qualidade), se comprada em Milão ou Paris, cidades reconhecidas mundialmente como capitais da moda, receberão um valor social superior às demais. Todos estes fatores acarretaram em um crescimento do turismo mundial a níveis muito acima do esperado, impulsionando, inclusive a globalização, quando se esperava, de fato, que este impulsionasse aquele.12 1.3. BREVES NOÇÕES ACERCA DO DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL Se há consumo, este deve ser disciplinado, uma vez que se trata de uma relação jurídica com características peculiares, as quais serão apresentadas mais a frente.
O Direito do Consumidor, no Brasil, é disciplinado pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), cabendo dar destaque, no presente trabalho, aos conceitos de consumidor e fornecedor, bem como aos direitos basilares daqueles. Primeiramente, para que haja uma relação de consumo, será necessária a presença de dois sujeitos, o consumidor e o fornecedor. Aquele será o foco da referida lei, uma vez que encontra-se na condição de vulnerável nesta relação, possui menos expertise que este, tanto em sentido estrito13, quanto técnico14 ou jurídico15. Por consumidor, o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor, determina ser a pessoa, física ou jurídica, que utiliza serviço ou produto como destinatário final. Isso quer dizer que não poderá ter, por 11 PORTUGUEZ, Anderson Pereira. Consumo e espaço: turismo, lazer e outros temas. São Paulo: Roca, 2001. p. 15. 12 BENI, Mário Carlos. Globalização do turismo: megatendências do setor e a realidade brasileira. São Paulo: Aleph, 2003. p. 17. 13 Também chamada de vulnerabilidade econômica, refere-se ao maior poder financeiro do fornecedor, que é normalmente um empresário, tendo facilidades para se unir a outros e praticar condutas anticoncorrenciais como o cartel, por exemplo, em desfavor daquele. 14 Também enquadrada como vulnerabilidade informacional, trata-se da superioridade quanto as informações e conhecimentos sobre os produtos ou serviços vendidos, podendo o fornecedor, desta forma, induzir o consumidor a erro, dando-lhe informações insuficientes, ou confundi-os, em razão do excesso de informações. 15 Consiste no fato do fornecedor estar acostumado com o processo, com o ambiente judiciário, ou seja, ser um litigante habitual, ao contrário dos consumidores, levando vantagem sobre estes por já haverem passado por diversos tipos de situações, por terem mais experiência, enquanto que, para muitos consumidores, o mundo jurídico é algo novo, uma espécie de aventura muitas vezes. 178 Faciplac
exemplo, intuito de revendê-lo, reutilizá-lo para obter lucro, o qual será sempre considerado como vulnerável (tal qualificação não deverá ser confundida com a idéia de hipossuficiência, uma vez que esta corresponde a uma condição concreta, a qual deverá se observar caso a caso, não sendo adequado presumir-se) nas relações em que participar.16 Este conceito funciona muito bem na maioria dos casos, contudo, a Lei Consumerista, em seus artigos 17 e 29, estende a sua tutela àqueles que são, ou podem vir a ser, vítimas de uma atividade de mercado, equiparando-os à condição de consumidores.17 Nestes casos, o Superior Tribunal de Justiça pacificou em sua jurisprudência a adoção da Teoria do Finalismo aprofundado, a qual consagra que, independentemente da pessoa ser, de fato, o destinatário final, o que valerá para a análise do seu enquadramento na condição de consumidor será a presença do elemento vulnerabilidade, assegurando assim, por completo, o equilíbrio da relação. Entendido o conceito de consumidor, traz-se agora o referente à outra parte da relação de consumo, o de fornecedor. Presente no artigo 3º do CDC serão assim consideradas todas as pessoas, físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, que desenvolvam atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização18 de produtos ou serviços, entenda-se, os que desenvolvem atividade com finalidade econômica.19 Em arremedo de conclusão destas breves pinceladas acerca do Direito do Consumido no Brasil, deve-se dar destaque ao conteúdo do artigo 6º do Código, aonde se alocam suas normas basilares, os quais são indisponíveis (irrenunciáveis e intransmissíveis).20 Dentre eles, os mais relevantes para o presente trabalho são os direitos à vida, à saúde, à segurança, à liberdade de escolha, à informação, à transparência e boa-fé, à proteção contra publicidade enganosa e abusiva, bem como a métodos comerciais coercitivos ou desleais, o direito à prevenção e reparação de danos morais e materiais, ao acesso à justiça e inversão do ônus da prova, e a serviços públicos adequados e eficazes. Os direitos à vida, à saúde e à segurança são, provavelmente, os mais importantes dentre os indicados no artigo 6º. Não à toa estão dispostos no inciso I, dando um certo ar de superioridade dentre os demais, não obstante inexistir de fato qualquer predileção normativa, juridicamente falando. Objetiva-se garantir a segurança das pessoas ao consumirem determinado produto ou serviço que possam gerar algum perigo à sua integridade (física ou moral), ou seja, estar-se-á protegendo seu bem mais valioso.21 16 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 143. 17 BESSA, Leonardo Roscoe. Relação de consumo e aplicação do Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 44 e 45. 18 Rol elencado no artigo 3º, caput, do Código de Defesa do Consumidor. 19 PASQUALOTO, Adalberto. O destinatário final e o “consumidor intermediário”. Revista de Direito do Consumidor, vol. 74, abr./jun. 2010, p. 24. 20 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 123. 21 BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 55 e 56. Revista do Curso de Direito
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A liberdade de escolha visa garantir a autonomia da vontade quando na escolha de algum produto ou serviço, evitando-se manipulações que por ventura possam ocorrer, principalmente em razão das atuais estratégias de marketing, muito agressivas e cada vez mais apelativas, as quais possuem o condão de induzir o consumidor em erro quanto ao seu real desejo, deturpando aspectos do produto ou serviço desejado (preço disposto a pagar, qualidade necessária, tamanho, marca de preferência, etc). Esta prevista no inciso II.22 O direito à informação surge exatamente para assegurar que o direito exposto no parágrafo anterior seja atendido, fazendo assim com que ambos possuam uma espécie de simbiose. Seu objetivo é o de assegurar a transparência nas relações entre consumidor e fornecedor, devendo este dar informações de forma clara e adequada àquele, assegurando assim, de forma reflexa, a liberdade de escolha. Caso não seja respeitada, o contrato estará passível de nulidade. Trata-se do disposto no inciso III.23 A transparência e a boa-fé, nos contratos, nas publicidades, ou até mesmo na atividade da venda em si, visam restabelecer o equilíbrio na relação, fazendo com que a vantagem do fornecedor diminua, uma vez que, reitere-se, o consumidor é o vulnerável da relação, pois aquele é o especialista, sabendo os pontos fortes e fracos do produto ou serviço, diferentemente deste, leigo, não possui contato cotidiano com os mesmos, passando a conhecê-los a partir daquele momento, tendo como ponto de partida as instruções do fornecedor. É o que versa o inciso IV.24 O inciso VI traz o direito à prevenção e reparação de danos aos consumidores, sejam eles morais, patrimoniais, individuais ou coletivos. Trata-se de direito inafastável e, sendo assim, nenhuma cláusula contratual terá o poder de suprimi-lo.25 Deve-se levar em conta, no entanto, que para ser legítimo o dever indenizatório, devem coexistir três pressupostos, sendo eles a conduta, o nexo causal e o dano, no intuito de atribuir o encargo a quem de direito, buscando o retorno daquele que foi lesado ao status quo ante, ou, quando não for possível, ao menos amenizar o prejuízo sofrido (dor, abalo psicológico, por exemplo).26 Outra peculiaridade sobre o direito a reparação de danos morais e patrimoniais tratase da unificação patrimonial da pessoa jurídica infratora com os seus sócios, ou seja, quando tratar-se de direito do consumidor, não há mais a barreira legal que separa seus patrimônios, a personalidade jurídica pode ser desconsiderada em favor dos interesses dos consumidores.27 O inciso VII busca assegurar a proteção jurídica e administrativa dos consumidores, ou seja, o seu acesso aos órgãos judiciários e administrativos, garantindo também, por consequência, o mandamento
22 BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.56. 23 BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.56. 24 BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.57. 25 BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.59. 26 SANTANA, Héctor Valverde. Dano moral no direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 190 27 BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 60. 180 Faciplac
disposto no inciso VI.28 O inciso VIII merece especial atenção. Nele encontra-se consagrada a autorização ao magistrado (a seu critério, conforme analisar os requisitos29) de inverter o ônus da prova em favor do consumidor (retira este encargo, o qual é muito difícil de ser cumprido por este, uma vez que seu acesso às provas é limitado, reduzido)30, ou seja, quem deverá realizar a prova dos fatos, tentar demonstrar como a coisa ocorreu de fato será o fornecedor31. Este é um dos mais importantes instrumentos (isso se não é o mais importante) asseguradores do equilíbrio na relação de consumo, aqueles que retiram os fornecedores do seu estado de conforto, de soberania, nivelando-o, e, assim como no inciso VI, a cláusula ou contrato que prevê a inversão do ônus da prova de forma deturpada (entenda-se, a favor do fornecedor) será inválida.32 Finalmente, o inciso X encerra o rol dos direitos básicos do consumidor. Ele simplesmente complementa o inciso VI ao pregar que os serviços públicos, na forma concessiva, também estarão sob a vigilância das normas de direito do consumidor, devendo ser prestados de forma adequada e eficaz, sob pena de sanções administrativas e a reparação dos danos causados.33 O que é lógico, pois, não é porque o serviço é prestado por um ente público que os cidadãos deixarão de se enquadrar na condição de consumidores, aliás, esta condição estará ainda mais realçada, a vulnerabilidade será maior, fazendo jus, por derradeiro, aos direitos até agora expostos. No entanto, deve-se frisar, mais uma vez, que todos esses dispositivos não visam colocar o consumidor em posição de vantagem em relação aos fornecedores, tornando-os invulneráveis e donos da verdade, estar-se-ia cometendo um erro gravíssimo, desvirtuando-se o propósito da Lei Consumerista, a qual busca, tão somente, a igualdade de condições (justiça social) 34, utilizando-se da razoabilidade e da coerência para tanto. 1.4. OS CONSUMIDORES NA CONDIÇÃO DE TURISTAS EM PAÍS ESTRANGEIRO Esclarecidas as peculiaridades de uma relação de consumo, deixando claras as disparidades entre consumidores e fornecedores, resta ainda uma dúvida. Não obstante haver uma norma jurídica sólida visando o equilíbrio da relação em nossa pátria, como será possível assegurá-lo
28 BRASIL, CDC. “Art. 6º, inciso VII. O acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados.” 29 Para tanto, a situação deve se enquadrar em duas hipóteses, sendo necessária a existência de verossimilhança na alegação ou a hipossuficiência do autor da ação, facilitando desta forma a defesa de seus direitos. 30 CABRAL, Érico de Pina. Inversão do ônus da prova no processo civil do consumidor. São Paulo: Método, 2008, p. 331-333. 31 Por se tratar de um direito básico do consumidor, ainda que o magistrado não conceda a inversão em primeiro grau, os das instâncias superiores ainda poderão fazê-lo. 32 BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.61-62. 33 BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.63. 34 GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p 109 Revista do Curso de Direito
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nos momentos em que os vulneráveis se encontrem em país estrangeiro, detentor de regras diversas?
Para se ter uma idéia, apenas nos quatro primeiros meses de 2013 já se tornou possível constatar um aumento no número de pessoas realizando turismo internacional, superando em 4,3% os números do mesmo período no ano de 2012, ou seja, são cerca de 298 milhões de turistas em 2013 contra 286 milhões no ano anterior (diferença de cerca de 12 milhões). Além disso, países que antes não eram tão atrativos, pelos mais diversos motivos35, conseguiram reverter esse cenário, aproveitando-se deste grande mercado para movimentar sua economia interna. Não é por acaso que os locais com maior índice de crescimento turístico (6%), no citado período, encontram-se na Ásia e na área do Oceano Pacífico, contrastando com o baixo crescimento (1%) na região das Américas.36
Contudo, o fato do turismo ser crescente nestas localidades, não significa dizer que estejam preparados para tanto. Questões como quantidades razoáveis de acomodações, conhecimento de outras línguas, em especial o inglês, preparo dos comerciantes para lidar com estrangeiros, ausência ou pouca efetividade de leis que assegurem a proteção dos direitos dos consumidores ou que estabeleçam o equilíbrio na sua relação com os fornecedores, são alguns dos pontos mais críticos. Eis que surge o problema jurídico e sem fronteiras acima destacado. Como assegurar que o consumidor tenha a certeza, a nível global, de que seus direitos serão respeitados, que ele terá acesso às benesses que colocarão a relação de consumo em um patamar equânime, e que, caso contrário, possa ter a segurança de cobrá-los de um ente maior (Estado), ter seu acesso ao judiciário garantido? Conforme já foi dito, independentemente do propósito da viagem, uma das principais atividades a se realizar, se não a principal, é o consumo. A relação de consumo, em países estrangeiros, no que diz respeito ao procedimento em si, não será diferente do que se está acostumado no Brasil, em razão da preponderância do sistema capitalista na maioria do planeta, podendo-se variar apenas quanto a aspectos menores, por exemplo, as condições de pagamento (normalmente, nos países estrangeiros, não se tem o costume de permitir o parcelamento dos preços), a moeda, a forma de negociação, enfim. Sendo assim, também estarão presentes todos os aspectos trazidos neste trabalho, devendo-se destacar, por óbvio, a permanência da condição de vulnerabilidade dos consumidores, mais que isso, quando se vêem em país estrangeiro, o desnível entre eles e os fornecedores aumenta, não sendo nenhum exagero considerá-los como hipervulneráveis. Agora, imagine o seguinte cenário, o consumidor encontra-se fora de seu país, onde se fala uma língua estranha (algumas vezes mais de uma)37, possuem costumes inusitados, moedas (economia) com as mais variáveis taxas de câmbio, enfim, uma série de situações com as quais não está habituado e com as quais 35 Pobreza, segurança, burocracia para se obter vistos, preço das passagens, dificuldades com a língua falada, situação política, etc. 36 World Tourism Organization – UNWTO. <http://media.unwto.org/en/press-release/2013-07-17/extra-12-millioninternational-tourists-first-four-months-2013> acesso em: 30 de agosto de 2015. 37 Suíça, onde fala-se o italiano, o francês, o alemão e o romanche, o Canadá, onde fala-se inglês e francês, por exemplo. 182 Faciplac
dificilmente saberá lidar. Consiste em um ambiente completamente novo, podendo se tornar, inclusive, arisco. Some todos estes aspectos nada facilitadores ao caráter temporário, transitório, de uma viagem, quando pretende-se aproveitá-la ao máximo no, normalmente, curto período que se manterá estadia.38 Após todas essas considerações, quais diferenças existiriam entre eles, nessas condições, e uma criança, um idoso ou até mesmo um analfabeto (todos estes enquadrados como hipervulneráveis39)? Em razão do seu estado anímico, pois estão mais desatentos e relaxados, em razão da viagem (momento de descontração), em uma situação que possuem pouca experiência (não possuem a sensação de segurança como quando estão no seu lugar de origem)40, não se sabe em que marcas confiar, os costumes de mercado do lugar e, normalmente, tem-se pouco conhecimento da língua falada e escrita, qualquer problema que possa vir a ocorrer terá dimensões maiores41, não sendo capaz de interpretar as instruções de modo satisfatório (se é que conseguem) estando assim mais suscetíveis a serem enganados, à frustração, à quebra de uma série de direitos (à informação precisa, por exemplo), equiparando-se, assim, aos sujeitos hipervulneráveis citados.
1.5. A TUTELA INTERNACIONAL DOS CONSUMIDORES O turismo é uma atividade econômica muito rentável e, em razão disso, o que se busca é o lucro crescente. Uma vez que é exercida por seres humanos42, a ganância estará presente, em conjunto com a malícia. Maximizam as produções, criam estratégias de mercado, lícitas ou ilícitas, tornam os serviços cada vez mais impessoais, mitigando, ou até mesmo ignorando, os interesses do seu público alvo, os consumidores43, razão pela qual as normas jurídicas se fazem necessárias, inibindo e punindo tais ações. No entanto, a solução não é tão simples. Normas existem em todos os países, coincidindo determinados mandamentos em alguns e diferindo em outros, e, de igual forma, mais protetora em uns e menos em outros. Essa salada normativa, ao invés de ajudar, acaba por dificultar ainda mais a vida dos consumidores, criando-lhes confusão, incerteza e a sensação de estarem desprotegidos.44 Surgem então os agentes internacionais dos direitos do consumidor, os quais são, basicamente, constituídos por organizações internacionais, institutos ou por blocos econômicos regionais, os quais buscam 38 SOARES, Ardyllis Alves. A tutela internacional do consumidor turista. Revista de Direito do Consumidor, vol. 82, abr./jun. 2012, p. 114. 39 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 586.316/MG. Min. Herman Benjamin. Julgado em 17/04/2007. 40 SOARES, Ardyllis Alves. A tutela internacional do consumidor turista. Revista de Direito do Consumidor, vol. 82, abr./jun. 2012, p. 122. 41 Curto período nos locais, ou seja, pouco tempo para resolvê-los, acesso ao judiciário é mais complicado em razão de incertezas acerca do foro competente, dentre outros. 42 Confirmando o que Thomas Hobbes consagrou, que o homem é o lobo do homem. 43 SOARES, Ardyllis Alves. A tutela internacional do consumidor turista. Revista de Direito do Consumidor, vol. 82, abr./jun. 2012, p. 118. 44 Importante ressaltar que, não obstante a necessidade, urgente, de normas, elas ainda são muito escassas a nível internacional (proteção internacional dos consumidores). Revista do Curso de Direito
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nortear, dar diretrizes globais, atinentes às relações de consumo, assegurando que o mínimo (os principais direitos e proteções dos consumidores) será observado e respeitado. Quanto às organizações internacionais, merecem maior destaque a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Turismo (OMT)45, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Organização Mundial do Comércio e a Organização dos Estados Americanos. Não obstante a maioria das convenções internacionais sobre comércio exterior buscarem excluir do seu foco as relações entre vendedores e consumidores, quando estes possuem o objetivo de realizar um consumo próprio, doméstico, familiar, ou seja, não profissional, vide a Convenção de Viena de 198046, ainda assim as resoluções da ONU são as mais relevantes, dentre os órgãos citados acima, no que diz respeito à influência nas legislações nacionais.47 Dentre elas, destacam-se as Resoluções da Assembléia Geral das Nações Unidas de números 39/248 e 58/232. A primeira traçou os parâmetros para que os Estados membros facilitassem ou efetivassem a defesa do consumidor. Foram definidos objetivos para as normas nacionais de proteção ao consumidor, sendo eles o auxílio a países, visando atingir ou manter uma produção adequada para sua população consumidora, a oferta de padrões de produção e distribuição que satisfaçam as necessidades do mercado, o incentivo a uma conduta ética por parte dos fornecedores, o auxílio no combate à prática comercial abusiva, a ajuda no desenvolvimento de grupos independentes, a buscar pela cooperação internacional no que diz respeito à proteção consumerista, e, por fim, a criação de incentivos no sentido de disponibilizar aos consumidores maiores possibilidades de escolha, dando-lhes maior possibilidades de comparação de preços, permitindo, consequentemente, a escolha de produtos ou serviços dentro de um padrão financeiro mais adequado, mantendo-se um certo padrão de qualidade. Já a segunda, consistiu em um acordo firmado entre a ONU e a Organização Mundial do Turismo, buscando estabelecer estratégias para a atuação conjunta destas organizações. Primeiramente, reconheceu-se a Organização Mundial do Turismo como uma agência da ONU para tratar de assuntos vinculados ao turismo, em especial, ao turismo internacional. Em seguida, destacou-se a necessidade de focar suas ações nos países não desenvolvidos ou em desenvolvimento, utilizando o poder econômico do turismo na busca da erradicação da pobreza e na difusão da idéia de turismo sustentável, evitando-se o desgaste do meio ambiente ao passo que gera-se crescimento econômico, garantindo 45 Sediada em Madri, na Espanha, tem o objetivo de criar normas gerais, as quais servirão como padrão de conduta para os Estados-membros, bem como para as empresas vinculadas à organização. 46 MARQUES, Claudia Lima. A insuficiente proteção do consumidor nas normas de Direito Internacional Privado – Da necessidade de uma Convenção Interamericana (CIDIP) sobre a lei aplicável a alguns contratos e relações de consumo. Revista dos Tribunais, número 788, jun. 2001, p. 11-56. <http://www.google.com.br/ url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0CC4QFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.egov.ufsc.br %2Fportal%2Fsites%2Fdefault%2Ffiles%2Fanexos%2F33001-41354-1-PB.pdf&ei=zsMWUvfQNoWi9QSj64 GQCQ&usg=AFQjCNFOVXKDJgPwmaq-FPoZNOOyCB5BCQ&bvm=bv.51156542,d.eWU> acesso em: 30 de agosto de 2015 47 Um dos maiores marcos quanto à unificação de normas do comércio internacional, contudo, voltada apenas para relações entre comerciantes, excetuando-se os casos em que o fornecedor, antes ou no momento da venda, não saiba, não perceba, que operação tem finalidade doméstica, de uso pessoal, conforme expresso no seu artigo 2º. 184 Faciplac
a continuidade da atividade.48 Outro importante ente na tutela internacional dos direitos dos consumidores são os blocos econômicos. Eles estabelecerão regras e diretrizes a serem observadas pelos Estados que o compõem, realizando, em sua maioria, políticas de facilitação de acesso e circulação, tanto de pessoas quanto de mercadorias, agregando seus signatários. No MERCOSUL, por exemplo, por meio da Resolução número 126/1994, tem-se o objetivo de elaborar normas que aperfeiçoem a proteção consumerista, uniformizando o regramento dos países membros. Contudo, a criação de tais normas ainda está pendente, sendo efetiva, por enquanto, a busca pela harmonização das normas nacionais. Mesmo diante da existência de uma série de importantes resoluções, cabe dar especial destaque às de número 123/1996, a qual consagra o conceito de consumidor, standard e equiparados, de fornecedor, relação de consumo, produto e serviço, a de número 124/1996, definindo-se os direitos básicos dos consumidores, os quais são, basicamente, os mesmos do nosso Código de Defesa do Consumidor, já expostos no presente trabalho, bem como a de número 125/1996, que trata da saúde e segurança dos mesmos (a mais importante dentre todas as proteções).49 Percebe-se que a tutela internacional do consumidor ainda é muito esparsa, e que, não obstante a existência de algumas normas e diretrizes, ainda é insuficiente para englobar todo o conteúdo necessário. No entanto, em agosto de 2012, na cidade de Sofia, Bulgária, por ocasião do 75º Congresso de Direito Internacional, a International Law Association (ILA)50, levando em consideração a precária condição da tutela internacional dos direitos do consumidor, baixou a portaria de número 04/2012, estabelecendo, a nível mundial, os cinco princípios básicos para sua legislação e regulamentação. Após quatro anos de estudos, o Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores, presidido por Claudia Lima Marques51, elucidou como pilares da proteção internacional dos consumidores, os princípios da vulnerabilidade, da proteção mais favorável ao consumidor, da justiça contratual, do crédito responsável e da participação dos grupos e associações de consumidores. O primeiro, vulnerabilidade, possui o mesmo sentido do seu homônimo brasileiro, o de que os consumidores são vulneráveis em relação aos contratos de massa e padronizados, principalmente no que diz respeito às informações (neles contidas) e no poder (condições) de negociação. A proteção mais favorável ao consumidor busca equilibrar a situação de vulnerabilidade, criando-se regras que os coloquem no mesmo patamar, nas mesmas condições, que os fornecedores. Lembrese, não se trata de uma busca por formas de atribuir vantagens aos consumidores, mas sim, reitere-se, equilibrar a relação de consumo, colocando seus sujeitos no mesmo patamar. 48 SOARES, Ardyllis Alves. A tutela internacional do consumidor turista. Revista de Direito do Consumidor, vol. 82, abr./jun. 2012, p. 135-139. 49 SOARES, Ardyllis Alves. A tutela internacional do consumidor turista. Revista de Direito do Consumidor, vol. 82, abr./jun. 2012, p. 153-155. 50 Fundada em 1873, é um dos principais fóruns de Direito Internacional do mundo, tendo por objetivo contribuir com o desenvolvimento do Direito Internacional. 51 Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e diretora do Brasilcon. Revista do Curso de Direito
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Já a justiça contratual visa impor que as regras e regulamentos dos contratos devem ser efetivos, assegurando-se a transparência e a justiça contratual, ou seja, não é aceito que se faça previsões irreais, cláusulas exorbitantes ou obrigações que extrapolem o razoável, por exemplo. O princípio do crédito responsável estende a responsabilidade a todos os envolvidos no fornecimento de crédito aos consumidores, sejam eles fornecedores, consultores, corretores ou agentes. O quinto e último princípio determina a participação ativa, presente, dos grupos e associações de consumidores quando na elaboração e na regulação da proteção dos consumidores, permitindo-lhes atuar como fiscais, evitando-se aberrações normativas e assegurando a correta aplicação do direito.52 Todas essas diretrizes ainda não são suficientes para se assegurar a efetiva tutela mundial dos consumidores, no entanto, dá-se mostras que se evolui cada vez mais rumo a este objetivo.
2.0. A INFLUÊNCIA DE EVENTOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Já não bastasse a insuficiente tutela internacional dos consumidores, conforme exaustivamente demonstrado, é possível constatar situações em que, não obstante a existência de um forte sistema normativo nacional de proteção aos consumidores, estes, em seus próprios países, se vêem reféns das imposições feitas por eventos internacionais, os quais exigem a suspensão de uma série de leis protetoras como requisito para que um país se qualifique na intenção de abrigá-los, ser sua sede. No Brasil, é possível citar alguns exemplos claros disso. Alguns deles, inclusive, recentes ou na iminência de ocorrer. Uma vez por ano, a cada ano, é realizado o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 no Autódromo José Carlos Pace (vulgo, Interlagos). Apesar da popularidade do evento, elevando os índices de turismo na cidade de São Paulo,ele teve o condão de mudar uma lei brasileira. Após as vedações às publicidades de produtos fumígenos impostas na Europa, local onde realiza-se a maior parte das corridas da temporada, a Fórmula 1 se viu diante de uma forte crise financeira, perdendo seus principais patrocinadores no Velho Continente.
Sendo assim, a organização se aproveitou do seu poder econômico para impor, como condição à realização de corridas em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, a autorização das publicidades de cigarros, independentemente da existência de leis que as vedassem.53
Foi o que ocorreu no Brasil no ano de 2003. A cidade de São Paulo sofreu um ultimato da principal categoria de automobilismo mundial, colocando em risco a realização do Grande Prêmio do Brasil, uma vez que vigia no país lei que proibia a publicidades de tabaco em eventos esportivos (Lei 9294/96, 52 MARQUES, Claudia Lima; SANTANA, Héctor Valverde. Notícia sobre a Declaração de Sofia de princípios internacionais de proteção do consumidor. <https://sociedip.files.wordpress.com/2013/12/limamarques-y-valverde-santana-consumidor.pdf> acesso em: 30 de agosto de 2015 53 TIVERON, Raquel. Sinal de fumaça à frente: a codependência de indivíduos e governos em relação ao cigarro. Revista de informação legislativa, Brasília, a. 48, n. 192, p. 6-7 186 Faciplac
legitimada pelo artigo 220 da Constituição Federal de 1988). No intuito de assegurar a realização do evento, garantindo a movimentação econômica que o turismo traria à cidade e para o país, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, bem como os então Ministros dos Esportes e da Saúde, respectivamente, Agnelo Queiroz e Humberto Costa, apoiados pelo Ministro do Turismo, Walfrido Mares Guia, assinaram a Medida Provisória 118/03, que permitiu, até o ano de 2005, a realização de publicidades tabagistas em eventos esportivos internacionais.54 Logo, percebe-se que o interesse econômico é capaz de se sobrepor às leis e à Constituição Federal, alterando facilmente o seu teor com medidas provisórias. Outro caso semelhante pode ser constatado em relação aos eventos realizados pela FIFA (Federação Internacional de Futebol), mais especificamente a Copa das Confederações, realizada entre os dias 15 e 30 de junho de 2013, e a Copa do Mundo, entre os dias 12 de junho e 13 de julho de 2014. Várias foram as constatações de violação aos direitos do consumidor, a começar pela impossibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, que foi substituído pela Lei Geral da Copa (Lei 12.663/12), supressora de uma série de direitos e garantias anteriormente previstos. A referida lei permitiu à FIFA alterar a data de um jogo a qualquer momento, sem prévio aviso (o Estatuto do Torcedor obriga a entidade organizadora do evento a confirmá-lo com antecedência mínima de quarenta e oito horas)55, deixando os torcedores em total desamparo. Autoriza, ainda, a venda casada de produtos e serviços, ação combatida pela legislação brasileira.56 E mais, torna sem efeito muitos outros direitos previstos no Estatuto do Torcedor, uma espécie de código de defesa do consumidor voltado aos torcedores esportivos, especialmente os de futebol. Foi permitida a venda de bebida alcoólica, mesmo após a ocorrência de diversos casos de violência em estádios, muitos deles impulsionados pelo álcool57,. Além disso, a própria FIFA estipulou os preços – abusivos58 – dos produtos previamente, sem possibilitar qualquer concorrência de marcas, não permitindo aos torcedores que exercessem seu direito de escolha ou de barganha. E mais, realizou limitações à meia-entrada, retirou-se a obrigação de publicar no site da entidade responsável informações como a tabela da competição, a íntegra do regulamento e, principalmente, nome e as formas de contato com o ouvidor da competição.59 54 <http://www.riosvivos.org.br/Noticia/Liberacao+de+propaganda+cigarro+na+Formula+1+gera+polemica/1001> acesso em: 30 de agosto de 2015. 55 SIMÃO, Calil. Estatuto de Defesa do Torcedor comentado. São Paulo: JH Mizuno, 2011, p. 49. 56 <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1273013> acesso em: 30 de agosto de 2015. 57 CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira; MELO, Marcos de Abreu; ABRAHÃO, Bruno Otávio de Lacerda; SILVA, Silvio Ricardo da. As determinações do Estatuto de Defesa do Torcedor sobre a questão da violência: a segurança do torcedor de futebol na apreciação do espetáculo esportivo. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, vol. 30, set./ 2008, p. 19-21. 58 Cervejas nacionais custavam R$ 9,00 (nove reais) e importadas R$ 12,00 (doze reais), bebidas não alcoólicas R$ 6,00 (seis reais) e cachorro quente R$ 8,00 (oito reais). 59 Disponível em <http://consumidormoderno.uol.com.br/index.php/defesa-do-consumidor/item/948direitos-do-consumidor-na-copa-das-confederacoes-e-outros-eventos > acesso em: 30 de agosto de 2015. Revista do Curso de Direito
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Não suficiente, não possibilitou a escolha dos assentos, mesmo havendo a marcação de lugares, a qual coube à entidade máxima do futebol, gerando diversos casos de descontentamento. Os torcedores que compraram ingressos nos setores mais caros, o 1 e o 2, foram acomodados em assentos localizados na parte superior no estádio, sob o argumento de que se utiliza o critério de visibilidade para a definição dos lugares, enquanto, na realidade, esperavam estar em locais mais próximos ao campo. Demonstrados todos esses abusos, deve-se lembrar que as normas de direito do consumidor foram suspensas e, com elas, todos os benefícios e ferramentas que visam equilibrar a relação de consumo, ou seja, ao menos diminuir as vantagens, a superioridade, dos fornecedores em relação aos consumidores. Resta demonstrado que aos fornecedores estrangeiros foi concedida uma série de benefícios e incentivos do Estado, apesar de que deles não se exigiu a mesma proteção, qualidade e segurança na comercialização dos seus produtos e serviços que seriam cobradas de fornecedores nacionais em períodos comuns. Tudo isso faz com que fiquemos em alerta em relação aos eventos que estão por vir, com destaque para os Jogos Olímpicos de Verão, a se realizarem no Rio de Janeiro. Não obstante sua organização ser de competência de outra entidade, no caso o COI (Comitê Olímpico Internacional), é temerário que abusos semelhantes, ou até mesmo piores, venham a se repetir, dada a passividade do Governo e a facilidade com que a FIFA e demais entidades lograram manipular as normas nacionais. Um país que busca ter normas eficientes e sólidas não pode se submeter a desmandos que afetam a sua soberania. Resta agora aguardar e torcer para que os erros cometidos no passado não se repitam, que a lição tenha sido aprendida e possamos rumar para um ordenamento muito mais rígido e que, efetivamente, proteja seus cidadãos, seus consumidores e seja contra a ação de fornecedores dentro ou fora de seu país de origem.
CONCLUSÃO A globalização e a diminuição das distâncias são uma realidade e, com ela, constata-se a evolução da atividade econômica do turismo. O consumo é inevitável, sendo, por várias vezes, o ponto alto de uma viagem, expondo os turistas às artimanhas do mercado com o agravante de, nos casos em que se encontrem em outros países, se tornarem vítimas ainda mais fáceis, em razão do seu estado anímico, bem como as dificuldades de se adaptar a cultura estrangeira, escorados em uma ainda fraca presença normativa. Caberá então a todos os agentes internacionais de direito do consumidor dedicarem-se a produção de normas mais efetivas, ao estudo deste fenômeno e a fiscalização do mercado, incentivando, principalmente, a integração dos países nesse sentido, em busca de uma tutela mais homogênea e abrangente. Deve-se também voltar atenção às exigências abusivas praticadas pelas entidades 188 Faciplac
organizadoras de eventos internacionais de grande porte, as quais, se aproveitam do elevado interesse econômico dos países em sediá-los, para alterar ou suspender direitos voltados à tutela dos consumidores, vigentes naquela localidade. Desta forma, sofre a soberania dos Estados, bem como os cidadãos, em especial os consumidores, uma vez que normalmente são as normas protetoras destes que são modificadas, transformando as entidades organizadoras em superfornecedores, desequilibrando ainda mais a relação de consumo. Com tudo isso, percebe-se que a tutela dos consumidores precisa ser aperfeiçoada, especialmente diante de casos em que os consumidores se encontrem em países estrangeiros ou em razão de eventos internacionais em seu próprio país. Deve-se trabalhar para que as lacunas normativas sejam preenchidas, de forma integrada, assegurando-se assim o perfeito cumprimento dos direitos consumeristas. REFERÊNCIAS BENI, Mário Carlos. Globalização do turismo: megatendências do setor e a realidade brasileira. São Paulo: Aleph, 2003.
BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Claudia Lima, BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
BESSA, Leonardo Roscoe. Relação de consumo e aplicação do Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
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Revista do Curso de Direito
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SUPERENDIVIDAMENTO: TRATAMENTO JURÍDICO EM FACE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (*) OVERINDEBTEDNESS: LEGAL TREATMENT FROM THE VIEWPOINT OF THE PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY. Carolina Barbosa Fernandes (**)
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RESUMO: O presente artigo analisa o fenômeno do superendividamento no contexto atual, faz apontamentos sobre o direito comparado e indica os instrumentos já existentes no Brasil acerca da prevenção dessa mazela social. Por fim, expõe alternativas trazidas pelo Projeto de Lei de atualização do Código de Defesa do Consumidor para prevenir e tratar a situação de superendividamento no país, em observância aos preceitos do consumo responsável do crédito e da garantia da dignidade da pessoa humana. ABSTRACT: The article seeks to analyse the overindebtedness in the current context, makes notes on comparative law and indicates the existing instruments in Brazil about the prevention of this social problem. It also presents alternatives brought by the update bill of the Consumer Protection Code to prevent and treat the indebtedness situation in the country, in compliance with the principles of responsible consumption credit and the guarantee of dignity human. PALAVRAS-CHAVE: Dignidade. Pessoa humana. Consumidor. Superendividamento. Crédito. KEYWORDS: Dignity. Human being. Consumer. Overindebtedness. Credit. SUMÁRIO: Introdução - 1. A dignidade da pessoa humana - 2. O fenômeno do superendividamento: 2.1 Conceito e espécies de superendividamento; 2.2 Modelos do direito comparado; 2.3 O superendividamento no Brasil e o consumo responsável do crédito - 3. Tratamento jurídico atual e a proposta de atualização do CDC - Conclusão - Referências.
INTRODUÇÃO O presente estudo versa sobre o fenômeno do superendividamento e as repercussões nas esferas individual, social e econômica. A análise tem por premissa a dignidade da pessoa humana e seus reflexos nas relações consumeristas atuais. Inicialmente, expõe-se sobre a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro e vetor de todo o ordenamento jurídico pátrio. Em seguida, é abordado o fenômeno do superendividamento, com seus pertinentes conceitos, características e implicações práticas. Mediante análises sobre o tema no direito comparado é possível identificar dois modelos distintos de tratamento a ser dado ao consumidor superendividado: o americano e o francês, que serão caracterizados oportunamente. No Brasil o superendividamento é reconhecido como um problema social, econômico e ainda carece de legislação adequada. Seu incremento está diretamente associado ao forte estímulo publicitário e governamental do consumo de crédito, a facilidade de adquirí-lo, a ausência de educação financeira da maioria da população, além de informações não muito claras e objetivas acerca dos financiamentos e serviços prestados pelos oferecedores de crédito. A oferta de crédito propicia o incremento da economia do país, pois permite a obtenção de bens e serviços para serem pagos posteriormente, ou para a abertura ou melhoria de empreendimento, sendo, portanto, considerada um mecanismo de inclusão social. Antagonicamente, é também um mecanismo de exclusão social, especialmente para a população de baixa renda, pois o aumento do consumo sem planejamento faz com que o consumidor contrate o que está além das suas condições financeiras, passe a inadimplir as obrigações e acabe por comprometer o seu mínimo existencial e de sua família. A partir dessa problemática, iniciaram-se debates e pesquisas, a fim de se chegar a um consenso acerca do tratamento a ser dispensado aos consumidores superendividados, que representam um número cada vez mais expressivo da população brasileira. A proposta legislativa de alteração do Código de Defesa do Consumidor - CDC - Lei n.8.078/1990, ocorreu em 2012, no âmbito do Senado Federal, com o Projeto de Lei n.283/2012, que dispõe especificamente sobre o aperfeiçoamento da disciplina do crédito ao consumidor e prevenção e tratamento do fenômeno do superendividamento. Por fim, foram apuradas as peculiaridades do tratamento jurídico atual do superendividamento no Revista do Curso de Direito
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Brasil e as disposições do modelo que se pretende adotar com o advento do Projeto de Lei do Senado Federal n. 283/2012, embora esse Projeto ainda não tenha concluído sua regular tramitação legislativa. Procurouse elucidar que o efetivo exercício da garantia fundamental da dignidade da pessoa humana não pode ser desconsiderado na prevenção e tratamento da mazela social do superendividamento. 1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 previa expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana, que igualmente foi mencionado na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. O art. 1º, III da Constituição Federal dispõe sobre esse princípio como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. A cláusula geral de tutela da existência digna da pessoa humana tem por escopo assegurar a observância de valores existenciais imprescindíveis à sociedade e ao Estado. A dignidade da pessoa humana insere o ser humano, sua existência qualificada e a garantia de um mínimo existencial, no centro do sistema jurídico, em torno do qual gravitam os demais institutos jurídicos, sendo, portanto, o alicerce de todo o ordenamento pátrio.1 Inicialmente a dignidade da pessoa humana era uma proteção do indivíduo em face da ingerência do Estado, mas, atualmente, configura a sua base antropológica, devendo ser estendida as relações privadas, nas quais há integração pragmática dos direitos fundamentais e a eficácia horizontal destes2. Os direitos fundamentais caracterizam-se como direitos subjetivos a prestações e omissões, pois exercem dupla função, em clara dicotomia: determinam a proibição da ingerência do Poder Público na esfera jurídica individual e, simultaneamente, impõe deveres ao Estado, a fim de proteger os titulares e o exercício de determinados direitos.3 A dignidade da pessoa humana pode ser entendida sob o aspecto da função referencial que exerce, exatamente por representar a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, tanto no sentido material quanto formal. Significa entender a fundamentalidade do direito à dignidade humana, formalmente, ligada ao direito constitucional positivado, e materialmente, com a análise do conteúdo material do direito e as decorrências deste na estrutura do Estado, da sociedade e da posição ocupada pelo ser humano. Dessa forma, sua interpretação deve ser feita à luz de um critério basilar, embora não exclusivo, para a construção do conceito material dos demais direitos fundamentais.4 Acompanhando a evolução história, social e jurídica, foram desenvolvidos para o princípio da dignidade da pessoa humana, e os demais direitos fundamentais dele decorrentes, novas facetas de instrumentalização e vetores interpretativos. 5 Atualmente, existe consenso doutrinário e jurisprudencial de que os princípios fundamentais devem repercutir diretamente no trato das relações públicas e privadas, especialmente nas relações consumeristas, onde existe um polo vulnerável. O conceito de dignidade da pessoa humana ainda decorre de grande abstração e prescinde de análise do caso concreto. Importa ressaltar alguns elementos caracterizadores e funcionais desse princípio que, por ter 1
p.66.
CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil - v.1 – Parte Geral. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2012.
2
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed., 6.reimpr. Coimbra: Almedina, 2009. p. 248. 3 Ibid., 2009. p. 407 - 409. 4 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 281- 282. 5 Id., A Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 50.
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envergadura constitucional de fundamento do Estado, considerou a pessoa humana a finalidade precípua do Estado e não simples meio de sua atividade. 6 O elemento nuclear da dignidade da pessoa humana compreende a autonomia do direito de autodeterminação do indivíduo e confere limites e tarefa aos poderes estatais. Sob o enfoque social, sendo esse princípio o vetor de todo o sistema jurídico7, é possível inferir que somente poderá ser confrontado consigo mesmo, enquanto dois ou mais indivíduos, dotados de igual dignidade, estejam em algum tipo de conflito de interesses ou necessidades. É factível analisar a dignidade da pessoa humana com base nas funções integradora e hermenêutica que exerce, sobretudo com os contornos do mínimo existencial e da reserva do possível. A fim de garantir uma vida condigna a todos, no âmbito das relações de consumo, surge a necessidade do debate e estudo aprofundado sobre o crescente superendividamento, pois esse fenômeno não afeta apenas a pessoa do consumidor, mas sua família, sua saúde, coloca em crise seu relacionamento familiar e social, gera efeitos danosos e patrimoniais ao credor e altos custos sociais ao Estado. Indubitavelmente, o superendividamento é uma mazela social e um grave problema de ordem econômica que atinge frontalmente a dignidade da pessoa humana. O fornecedor de crédito, como os demais fornecedores de produtos e serviços nas relações consumeristas, tem direito ao lucro e adimplemento dos contratos pactuados e interesses resguardados. Contudo, esse fornecedor tem igualmente a obrigação de atender à função social do seu empreendimento e isso implica em honrar as responsabilidades pelo risco e exercício do seu negócio. Concomitantemente, o consumidor superendividado, independente das circunstâncias fáticas que o levaram a essa condição e da obrigação de adimplir o que contratou, tem direito ao mínimo existencial para sua subsistência, com a garantia de respeito a sua dignidade humana, de sua família e dependentes econômicos. 2 O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO 2.1 CONCEITO E ESPÉCIES DE SUPERENDIVIDAMENTO O superendividamento é um problema de natureza econômica e social que atinge diretamente os objetivos do Estado e do oferecedor de crédito, na medida da responsabilidade social do seu negócio. Sendo a disponibilização de crédito uma forma de inclusão social, a sua democratização propiciou o aumento do endividamento dos consumidores, tanto nos países desenvolvidos, onde já existe um sistema maduro de falência das pessoas físicas, como em países em desenvolvimento, que carecem de disciplina normativa sob essa perspectiva.8 Alega-se que o superendividamento é decorrente do uso excessivo do crédito pelo consumidor. No entanto, há diferentes abordagens para compreender os motivos que levaram as pessoas à situação de superendividadas, sendo as principais: países que não oferecem educação e saúde pública de qualidade, obrigando as famílias a arcarem com essas despesas básicas; situações de emergências médicas, acidentes, divórcio ou desemprego, obrigando as famílias a obterem crédito para suprir suas despesas de subsistência; ausência ou insuficiência de instrução quanto ao planejamento financeiro e uma cultura de poupar não enraizada; excesso de crédito disponível, com facilidade de obtenção e concessão irresponsável pelo fornecedor. Há situações de superendividamento decorrentes do consumo compulsivo ou do impulsivo, cuja decisão é efetuada 6 7
Ibid., p. 98 - 102. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.60. 8 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 33. Revista do Curso de Direito
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subestimando os riscos e com a certeza de poder pagar a dívida no futuro.9 O fenômeno do superendividamento refere-se à pessoa física, nos moldes da insolvência civil e consiste na situação em que o indivíduo possui um passivo maior que o ativo e passa a precisar de auxílio para reconstruir sua vida econômico-financeira.10 Atualmente é a doutrina que define e aborda os limites, causas e consequências do fenômeno do superendividamento, pois ainda não existe legislação pátria que o faça. Entretanto, não há consenso doutrinário e jurisprudencial sobre a quantia que define o valor a partir do qual o devedor é considerado superendividado, pois a análise do caso concreto, em atenção às necessidades do indivíduo, é imprescindível. Ressalte-se que não é possível tratar como superendividado todos os indivíduos inadimplentes, descumpridores de prestações pecuniárias, pois há casos em que o não cumprimento de uma prestação não teve sua causa na incapacidade econômica do consumidor. Na busca por um conceito legal e específico de superendividamento, o anteprojeto final apresentado pela comissão de juristas instituída no Senado Federal para atualização do CDC, em 2012, prevê no art. 104A, §1º o seguinte: §1º Entende-se por superendividamento o comprometimento de mais de trinta por cento da renda líquida mensal do consumidor com o pagamento do conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas, excluído o financiamento para a aquisição de casa para a moradia, e desde que inexistentes bens livres e suficientes para liquidação do total do passivo.11
A emenda n. 43, substitutiva do Projeto de Lei do Senado n. 283/2012, Art. 54-A, § 1o, dispõe “Entendese por superendividamento a impossibilidade manifesta do consumidor, pessoa natural, de boa-fé, de pagar o conjunto de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, que comprometa seu mínimo existencial”. Para a legislação francesa o superendividamento é caracterizado “pela impossibilidade manifesta do devedor de boa-fé de enfrentar o conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas”. Para a doutrina portuguesa o superendividamento é definido como “a impossibilidade do devedor de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto de suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça seria de que não possa fazê-lo no momento em que elas se tornarem exigíveis”.12 O superendividamento é, portanto, um fenômeno mundialmente reconhecido e que pode atingir pessoas físicas de diversos países, etnias, classes sociais, profissões, raças, sexo, razão pela qual não há como definir um perfil único do consumidor superendividado. O que as pesquisas brasileiras recentes demostram são as características mais frequentes desses grupos, classificando-os pela faixa etária, faixa de renda, ou direcionando as pesquisas para identificar os principais tipos de dívidas, prazo de atraso, localidade com maior incidência do fenômeno. O fato é que essa mazela social pode afetar qualquer pessoa no decorrer da vida, seja devido à imprudência, má-fé, ou em decorrência de situações adversas. A partir dessas causas a doutrina europeia 9 10
Id., 2014. p.36. SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, v.16 n. 26, 2009. Disponível em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/ viewFile/36/34>. Acesso em: 09 jul. 2015. 11 BRASIL. Projeto de Lei do Senado n. , de 2012. Altera a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I e dispor sobre o comércio eletrônico. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/codconsumidor/pdf/Anteprojetos_finais_14_mar.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015. 12 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 34.
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classifica o consumidor superendividado em ativo – consciente e inconsciente - e passivo. 13 Essa classificação tem sido bem vista pela doutrina brasileira, sendo sugerida a sua adoção para fins de tratamento diferenciado em uma possível situação de renegociação de dívidas e repactuação de contratos de crédito. O superendividado ativo é o consumidor que se endivida voluntariamente, como reflexo do consumo exacerbado, da ampla publicidade e oferta de crédito e do uso irresponsável deste. Esta categoria subdividese em superendividado ativo consciente e inconsciente. O superendividado ativo consciente é o consumidor que faz uso da má-fé na obtenção de crédito, pois contrai dívidas que sabe que não terá condições de pagar. A intenção do devedor, desde o momento da contratação, é de não pagar. O crédito habitualmente fornecido sem uma avaliação criteriosa quanto ao comprometimento da renda do consumidor agrava esta situação. O superendividado ativo inconsciente é o consumidor que agiu impulsivamente, de modo imprevidente, pois não verificou o seu orçamento ou subestimou seu rendimento. Este consumidor se endividou por inconsequência, mas não com dolo de enganar, efetuando compras por impulso, geralmente de supérfluos. O crédito muito facilitado é uma tentação constante. O superendividado passivo é caracterizado como aquele consumidor que se endivida em decorrência de situações externas imprevisíveis e urgentes, tais como acidentes, doença em pessoa da família, desemprego, diminuição do salário, aumento dos membros da família que dependam economicamente desse consumidor, conjuntura econômica desfavorável. São casos de inequívoco imprevisto financeiro e que acabam por comprometer o seu mínimo existencial e de sua família. Esta classificação tem utilidade prática em tribunais estrangeiros, pois interfere nas decisões quanto ao apoio ou não dos que contraíram dívidas excessivas14, podendo também ser de grande valia à jurisprudência brasileira, a fim de reafirmar a importância de institutos jurídicos, motivar fundamentadamente as decisões judiciais e nortear a interpretação de cláusulas de contratos de crédito. O amplo acesso ao crédito e à publicidade maciça, aliados a evolução da industrialização moderna e produção em massa, rotineiramente propiciam um ambiente de consumo indiscriminado, uma vez que é comum a associação da felicidade e realização pessoal ao consumo de bens e serviços. Existe uma dicotomia sobre o uso do crédito. Por um lado, a utilização do crédito disponível pode ser positiva, uma vez que permite às pessoas pagarem suas despesas utilizando rendimentos futuros e movimentando a economia do país. No entanto, os efeitos negativos do uso indiscriminado do crédito, que culmina com o superendividamento, são amplamente percebidos no dia-a-dia dos indivíduos, que tendem a ser menos produtivos, a apresentar estresse e outros problemas de saúde e sentimento de insegurança econômica, o que reflete na sua vida familiar e social, com aumento dos divórcios e até mesmo negligência na educação dos filhos. Para orientar os consumidores acerca do uso sustentável do crédito disponível no mercado e enfrentar o fenômeno social do superendividamento é necessário a mobilização da sociedade, a fim de fomentar o consumo do crédito consciente, especialmente baseado no planejamento financeiro. É indispensável buscar uma regulação efetiva e específica, que permita responsabilizar adequadamente as partes envolvidas - consumidor e fornecedor - desde a fase da pré-contratação, mediante criteriosa avaliação de risco e com publicidade ampla de informações claras e objetivas, até a fase do pagamento. E, se necessário, admitir a flexibilização das cláusulas contratuais para renegociação das dívidas, com vistas ao adimplemento da obrigação de uma 13
LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 35. 14 SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, v.16, n. 26, p.175. 2009. Disponível em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/ viewFile/36/34>. Acesso em: 09 jul. 2015. Revista do Curso de Direito
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maneira viável em face da nova realidade financeira do consumidor. 2.2 MODELOS DO DIREITO COMPARADO Para enfrentar o fenômeno social e jurídico do superendividamento, alguns países se viram obrigados a desenvolver uma regulamentação específica para a proteção do consumidor de crédito, atuando numa frente preventiva, mas também apoiando o consumidor já superendividado, seja na suspensão, na renegociação e, em alguns casos, até com o perdão total da dívida. A doutrina identifica basicamente dois modelos distintos. Importa frisar que a simples dicotomia entre as estratégias e seus paradigmas não é mais suficiente para distanciá-los, pois existe uma forte tendência mundial de adoção de modelos híbridos, mistos de tratamento do superendividamento. O primeiro modelo, conhecido como fresh start, é adotado nos países de tradição common law, tais como Estados Unidos da América, Inglaterra e Canadá. O segundo modelo é adotado nos países europeus, de tradição civil law, também chamado de modelo reeducativo, tem a França como seu principal e mais rígido expoente. No modelo americano o fenômeno do superendividamento é visto como uma falha do mercado e não do devedor. A principal medida concretizadora da sua filosofia é conceder ao devedor honesto o perdão imediato e incondicional de suas dívidas, na visão mais clássica, em troca de liquidação de patrimônio disponível, se houver. Pode-se afirmar que o sistema americano não privilegia o aspecto educativo e, tampouco, a força dos contratos pactuados. O rendimento do devedor assume importante função econômica, já que é incentivado a arriscar-se a fazer novos investimentos e consumir mais crédito. Não há que se falar em análise da boafé do devedor e das razões fáticas que o levaram a situação de superendividado, uma vez que a principal preocupação do sistema é apenas o bom funcionamento do mercado, não atento a condição da dignidade humana do devedor.15 No modelo francês existe uma orientação social, pois o superendividamento é visto como uma falha pessoal e por isso deve o devedor ser submetido a uma rigorosa responsabilização pelo pagamento das dívidas, sem deixar de ser uma reeducação de cunho solidário. Ao invés do simples perdão, o instrumento é o plano de pagamento escalonado, sendo o perdão concedido apenas como medida extrema em benefício de devedores em situação irremediável. Nesse sistema se analisa e discute a boa-fé e as razoes que levaram o devedor ao superendividamento. Inclusive, há diferenças consideráveis nos tratamentos dispensados aos consumidores superendividados, a depender do que ocasionou tal situação, do tipo de comportamento que o devedor tenha em face dos credores e da demonstração da vontade de adimplir suas dívidas e se reabilitar. O propósito dos sistemas existentes é a adoção de uma política de recomeço e reabilitação para o consumidor superendividado, a fim de evitar ao máximo as perdas pessoais, familiares, sociais e econômicas. Por conseguinte, a principal linha de atuação contemporânea de ambos os sistemas é no sentido de não excluir o consumidor da sociedade e de orientá-lo para que não gaste mais do que precisa e que pode pagar. Entretanto, ocorrendo o superendividamento, que seja concedida ao devedor uma alternativa condizente com suas possibilidades para quitar as dívidas, prevenindo situações de problemas de saúde, desajustes de ordens familiar, social e econômica, além de garantir a dignidade humana do consumidor superendividado e de sua família. 2.3 O SUPERENDIVIDAMENTO NO BRASIL E O CONSUMO RESPONSÁVEL DO CRÉDITO 15 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 100 - 128. 198 Faciplac
A expansão e democratização do crédito no Brasil não foram acompanhados com a melhoria da informação e conscientização do consumidor. Ao contrário, o consumidor é constantemente incitado a aceitar a oferta excessiva de crédito pessoal e consignado, inclusive por mensagens eletrônicas (SMS, e-mail), além de créditos específicos para financiamento de habitação, de veículos, de bens duráveis, de cartões de crédito para construção, viagens e despesas diárias. Para incrementar o consumo do crédito as instituições promovem campanhas para divulgar Programas de Recompensas no uso do Cartão de Crédito e a Portabilidade de Crédito, que consiste na possibilidade de o consumidor transferir operações de crédito - como empréstimos e financiamentos - de uma instituição financeira para a outra, com a quitação do empréstimo junto à instituição original, em busca de melhores taxas.16 Ainda que o superendividamento não se confunda com a mera inadimplência, certamente são fenômenos intimamente relacionados. Diversas instituições fazem pesquisas e acompanhamento da inadimplência, que permitem estimar a situação do superendividamento no Brasil e, para as instituições financeiras, permitem traçar novas estratégias de mercado. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) efetua mensalmente a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), coletando dados em todas as capitais dos Estados e no Distrito Federal, que alimentam indicadores como o percentual de consumidores endividados, percentual de consumidores com contas em atraso, percentual de consumidores que não terão condições de pagar suas dívidas, tempo de endividamento e nível de comprometimento da renda. É uma pesquisa que mostra o nível de comprometimento do consumidor com suas dívidas, bem como a percepção do consumidor em relação a sua capacidade de pagamento, complementando informações de outros indicadores nacionais de crédito e inadimplência.17 O Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), patrocinado pelas associações comerciais, especificamente as Câmaras de Dirigentes Lojistas, apresenta estudos relacionados à inadimplência com variações mensais e anuais, mostrando resultados relacionados à faixa etária, tempo de atraso da dívida, região, setor credor.18 A SERASA EXPERIAN, que é parte integrante do grupo Experian e líder mundial em serviços de informação, possui o Indicador de Inadimplência, acompanhado conforme variação mensal, variação anual, variação acumulada anual, variação acumulada de 12 meses. Como exemplo da análise, o estudo efetuado sobre a inadimplência por idade mostra que os inadimplentes acima de 61 anos aumentaram em relação a maio de 2014, passando de 11,8% para 12,2% em maio de 2015, sendo um dos fatores o crescimento do volume de crédito consignado concedido de 2014 para 2015.19 A Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), a principal entidade representativa do setor bancário brasileiro, mantém informações relacionadas à atividade bancária, dispondo de diversos relatórios e informes baseados no “compromisso de fortalecer o sistema financeiro e suas relações com a sociedade e contribuir para o desenvolvimento econômico, social e sustentável do País. ”20 16
BANCO CENTRAL DO BRASIL. FAQ Portabilidade. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?PORTABILIDADEFAQ>. Acesso em 16 jul. 2015. 17 CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO COMERCIO DE BENS, SERVICOS E TURISMO. Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC). Disponível em: <http://www.cnc.org.br/central-do-conhecimento/pesquisas/economia/ pesquisa-nacional-de-endividamento-e-inadimplencia-do-c-7>. Acesso em 12 jul. 2015. 18 SPC BRASIL. Dívidas em atraso crescem em todas as regiões brasileiras. 23/06/2015. Disponível em: <https:// www.spcbrasil.org.br/>. Acesso em 12 jul. 2015. 19 SERASA EXPERIAN. Indicador de inadimplência das pessoas físicas que sensibilizaram a base de dados da Serasa Experian. Disponível em: <HTTP://NOTICIAS.SERASAEXPERIAN.COM.BR/INDICADORES-ECONOMICOS/INADIMPLENCIADO-CONSUMIDOR/ 20 FEBRABAN. Guia do Uso Consciente do Crédito. Disponível em: <http://www.febraban.org. br/7Rof7SWg6qmyvwJcFwF7I0aSDf9jyV/sitefebraban/Guia%20do%20Uso%20Consciente%20do%20Cr%E9dito.pdf>. Acesso em Revista do Curso de Direito
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O Banco Central do Brasil (BACEN) possui o Sistema de Informações de Crédito (SCR), que consiste num banco de dados alimentado mensalmente pelas instituições financeiras sobre operações e títulos de crédito. É um instrumento de gestão de crédito, que beneficia as instituições financeiras pela ampliação do conhecimento acerca de seus clientes, viabilizando a análise de vários aspectos na avaliação de riscos, mediante a compreensão do nível de endividamento e do perfil de pagamento dos clientes. Nota-se que existe atualmente um maior intuito das instituições e entidades em disponibilizar informações acerca do uso sustentável e responsável do crédito e, igualmente, de formas de prevenção do superendividamento. É possível encontrar em diversos sites informações, dicas, simuladores e guias voltados para a educação financeira e uso consciente do crédito, conquanto tais informações não são suficientes para a prevenção do superendividamento do consumidor brasileiro. Em dezembro 2010 foi publicado o Decreto 7.397 que instituiu a Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF): Art. 1º Fica instituída a Estratégia Nacional de Educação Financeira - ENEF com a finalidade de promover a educação financeira e previdenciária e contribuir para o fortalecimento da cidadania, a eficiência e solidez do sistema financeiro nacional e a tomada de decisões conscientes por parte dos consumidores.21
Como resultado, foi criado o Programa Educação Financeira nas Escolas, coordenado pela Associação de Educação Financeira do Brasil (AEF-Brasil), instituição sem fins lucrativos, que tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento da cultura de planejamento, prevenção, poupança, investimento e consumo consciente, promovendo o fomento da Educação Financeira no Brasil.22 A educação financeira é uma importante ação preventiva no combate ao superendividamento, na medida em que propicia a população uma melhor compreensão dos produtos financeiros disponíveis no mercado. Ademais, possibilita ao consumidor a tomada de decisões mais conscientes dos riscos, efetuando escolhas responsáveis e sustentáveis em relação à administração dos seus recursos. Mesmo quando já superendividado, é interessante que o consumidor seja financeiramente educado visando acautelar situação futura similar. 3 TRATAMENTO JURÍDICO ATUAL E A PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO DO CDC Devido às mudanças sociais e econômicas vivenciadas no país nos últimos anos, simultaneamente a massificação da produção, da distribuição e do consumo, tornou-se necessária a adequação de antigos dogmas, visando instituir a ideia de função social dos contratos no direito privado, envolvendo o reconhecimento da dignidade da pessoa humana e flexibilizando normas e princípios de Direito Civil. Conexo ao supra princípio da dignidade da pessoa humana surgiu a concepção de mínimo existencial. Esse conceito originou-se no período pós Segunda Guerra e teve sua primeira elaboração dogmática feita por Otto Bachof, na Alemanha.23 O mínimo existencial simboliza uma garantia à liberdade da vida humana, aliada 16 jul. 2015.
21 BRASIL. Decreto Nº 7.397, de 22 de dezembro de 2010. Institui a Estratégia Nacional de Educação Financeira - ENEF, dispõe sobre a sua gestão e dá outras providências. Diário Oficial da União (DOU) de 23 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/ D7397.htm>. Acesso em 16 jul.2015. 22 BRASIL. Programa de educação financeira nas escolas. Disponível em: <http://www. edufinanceiranaescola.gov.br/o-programa/>. Acesso em 15 jul.2015. 23 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina do TRF4, Porto Alegre, ed.24, 02 jul.2008. Disponível em: <http://www.
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a um mínimo de segurança social e condições de subsistência. Seu conteúdo, amplamente adotado por doutrina e jurisprudência brasileiras, é limitado por condições socioeconômicas de espaço e tempo, implicando em ir além da mera sobrevivência física humana. Garantir o mínimo existencial significa abranger um conjunto de garantias materiais a uma vida condigna, referindo-se, simultaneamente, a uma dimensão negativa (o que não se pode subtrair do indivíduo) e outra positiva (o que se deve proteger e garantir efetivamente ao indivíduo).24 Ressalte-se que o mínimo existencial não se confunde com o núcleo essencial dos direitos sociais, mas representa um princípio orientador de ponderação e interpretação dos demais direitos fundamentais, com vistas a garantia da dignidade humana. Entretanto, a quantificação do valor adequado para garantia do mínimo existencial é passível de grande controvérsia e subjetividade. Sabe-se que valores humanos e condições materiais de subsistência abrangem o mínimo existencial, todavia, a grande dificuldade prática é encontrar o núcleo essencial dessa garantia fundamental, sem que se faça uma análise puramente casuística. Partindo da premissa de que as relações privadas, mormente as de consumo, devem igualmente respeitar e garantir tanto a dignidade da pessoa humana quanto a sua instrumentalização pelo mínimo existencial, importa analisar o tratamento jurídico dispensado ao superendividamento no Brasil e as propostas de alteração do microssistema do Código de Defesa do Consumidor acerca do tratamento e prevenção do fenômeno. O Código de Defesa do Consumidor - CDC - Lei n. 8.078/1990 é formalmente uma lei ordinária caracterizada pela extensa função social que exerce, posto que regulamenta as relações de consumo, tutelando um grupo específico de indivíduos, agentes econômicos vulneráveis, quais sejam, os consumidores. Tal microssistema tem origem constitucional e traz em seu bojo normas de direito privado, embora de ordem pública, e normas de direito público. O superendividamento no Brasil tem sido crescente e notório. As mudanças das relações de consumo fizeram com que o crédito, amplamente disponível e promovido no mercado, se tornasse a principal mercadoria nos dias atuais. Considerado um meio de inclusão social e mecanismo que possibilita movimentação na economia do país, a oferta de crédito permite à população ter acesso a mais bens e serviços. Ademais, em diferentes situações, é possível recorrer ao crédito como uma alternativa para o início ou o desenvolvimento de um negócio. Contrariamente, a oferta maciça de crédito pode se apresentar como mecanismo de exclusão social, especialmente para a população de baixa renda. Em decorrência do aumento da necessidade de consumo e da facilidade de atendimento dessa necessidade, o cidadão assume múltiplas dívidas, oriundas de diferentes naturezas. O acúmulo excessivo de dívidas, associado a pouca instrução quanto ao planejamento dos gastos e informações não muito claras quanto aos encargos daí decorrentes, acabam por comprometer o seu mínimo existencial e de sua família. Embora vivenciando um período de crise financeira mundial, o consumo tem sido fortemente estimulado nos últimos anos, inclusive pelo Governo Federal, A título de exemplo é possível mencionar a diminuição de taxas de juros nos bancos estatais (CAIXA Melhor Crédito) e de impostos de eletrodomésticos e carros em passado recente. Esse estímulo também se materializa com a possibilidade de aumento do crédito no mercado, como recentemente se observou com a edição da Medida Provisória 681, de 13 de julho de 2015.25 Por intermédio dessa medida provisória, ampliou-se a margem consignável de desconto em folha para revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao024/ingo_mariana.html.>. Acesso em 10 jul. 2015. 24 Id.; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 575. 25 BRASIL. Medida Provisória nº 681, de 10 de julho de 2015. Diário Oficial da União (DOU) de 13 de julho de 2015. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/diarios/95599956/dou-secao-1-13-07-2015-pg-1>. Acesso em 14 jul. 2015. Revista do Curso de Direito
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35 %, sendo o novo limite de renda válido para empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aposentados, pensionistas e servidores públicos. O desconto é para o pagamento de empréstimos, financiamentos, cartão de crédito e operações de arrendamento mercantil (leasing), sendo que 5% desse novo limite será reservado exclusivamente para pagamento de despesas contraídas por meio de cartão de crédito, que atualmente é de onde advém a maior parcela dos casos de superendividamento. O governo interpreta que tais medidas significam uma alternativa para que o trabalhador melhor se planeje e se adapte ao ajuste da economia. O Ministério da Fazenda alega que consignar em folha os pagamentos de cartão de crédito tornaria a operação mais segura para as instituições financeiras, o que demostra claramente uma intenção de amenizar as responsabilidades do oferecedor de crédito em detrimento do consumidor, muitas vezes já superendividado. O ideal seria que o cidadão soubesse avaliar suas reais necessidades frente à forte publicidade e à facilidade de adquirir bens e serviços, fazendo uso consciente e responsável do crédito. Embora o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil vigentes disponham sobre princípios e condutas norteadores da proteção ao consumidor, tais como a boa-fé objetiva e o dever de informação, o Brasil ainda carece de legislação suficiente para o tratamento do consumidor superendividado e as relações consumeristas de crédito. Diante da preocupação doutrinária e legislativa e da necessidade social de atualização dessas normas consumeristas, em 2012 criou-se um Projeto de Lei ordinária no Senado Federal sobre atualização de vários dispositivos do CDC, com estudo aprofundado e amplo debate. O Projeto de Lei Ordinária do Senado Federal n. 283/2012, de autoria do senador José Sarney, foi apresentado originalmente em 02.08.2012. Seu escopo é alterar a Lei n. 8.078/1990 (CDC) no que tange ao aperfeiçoamento da disciplina do crédito ao consumidor e prevenção e tratamento, extrajudicial e judicial, do superendividamento. Busca-se, por intermédio de um maior detalhamento das obrigações contratuais e deveres anexos aos contratos, promover o acesso responsável ao crédito, a prevenção ao superendividamento e a garantia da proteção do consumidor superendividado e seu mínimo existencial, conforme preceitua o supra valor da dignidade da pessoa humana. Uma grande conquista social desse Projeto é a possibilidade do consumidor superendividado ter direito a uma análise global de sua situação pelo Poder Judiciário pois, anteriormente, o máximo que conseguia era a revisão individual das cláusulas do contrato de crédito. Exalta-se a importância da conciliação prévia, para facilitar uma solução mais amigável e rápida, mesmo que não impeditiva do direito de buscar uma solução perante o Poder Judiciário. Com a renegociação da dívida, a preservação da dignidade humana do consumidor superendividado, o estabelecimento do valor do mínimo existencial diante das peculiaridades concretas e contexto social em que se insere esse consumidor, a tendência é tornar o sistema de falência civil pretendido mais inclusivo e solidário. O Projeto propõe, igualmente, maior responsabilidade do fornecedor de crédito, pois este passaria a ter a obrigação de não ocultar os ônus e riscos da contratação do crédito, e o dever de não estimular o endividamento excessivo e irresponsável do consumidor. No caso do consumidor já superendividado o fornecedor de crédito, apesar do interesse em receber e lucrar, deve garantir a proteção da dignidade da pessoa humana, por meio do respeito ao mínimo existencial, do direito à repactuação de dívidas, remanejamento de prazos de cobranças, juros e multas e uma modificação contratual adequada a nova realidade fática. O objetivo maior dessa atualização normativa é prevenir novos casos de superendividamento, mas, simultaneamente, encontrar formas de reinserir o consumidor superendividado no mercado de consumo, desde que de maneira mais consciente e responsável, mediante um programa de educação financeira. 26 Busca26 LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.158.
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se garantir a efetiva tutela do consumidor na prevenção e nas fases da oferta, da contratação e da conciliação, abrangendo o fenômeno do superendividamento em seus diversos aspectos e nuances, desde a publicidade até a renegociação da dívida, regulando de forma eficaz o antes, o durante e o depois da aquisição do crédito. O Projeto de Lei n. 283/2012 ainda não concluiu o percurso de tramitação legislativa. Em maio de 2015 se encontrava na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ – e contava com 44 emendas. Ressalte-se que a emenda n. 43 foi considerada o texto substitutivo ao Projeto de Lei do Senado n. 283/2012, pois a n. 44, de autoria do senador Romero Jucá, aborda apenas um dispositivo sobre ação coletiva, qual seja, o art. 104-A. Por fim, deve ser destacado que tal Projeto de Lei representa uma necessidade social urgente de reequilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores de crédito. CONCLUSÃO A dignidade da pessoa humana é um princípio considerado vetor interpretativo de todo o ordenamento jurídico pátrio e está consagrado na Carta Magna como um fundamento do Estado Democrático de Direito. Partindo dessa premissa, é incontroverso que deve ser respeitado em todas as relações humanas, sejam públicas ou privadas. A constante evolução das relações consumeristas desencadeou a necessidade de atualização do CDC, inclusive para analisar o superendividamento crescente da sociedade brasileira e o tratamento a ser dispensado aos consumidores superendividados, igualmente merecedores da tutela da sua dignidade de pessoa humana. O superendividamento é um fenômeno social que decorre, em meio a outros fatores múltiplos e complexos, do capitalismo moderno; da excessiva publicidade e oferta de crédito; do incentivo governamental ao consumo; da pouca ou inexistente educação e planejamento financeiro da maior parte da sociedade. O superendividamento é uma vicissitude que prejudica não apenas o consumidor e a sua família, mas igualmente o credor, a economia, e a sociedade como um todo. O consumidor superendividado é levado a situação de indignidade humana, na medida em que acaba por se submeter ao pagamento perpétuo de uma dívida insolúvel, é excluído do mercado de consumo e tem seu poder de compra reduzido a ínfimas possibilidades. A compreensão desse fenômeno supõe a análise das suas causas, espécies e consequências práticas, sendo pertinente a constatação e classificação das situações de insolvência da pessoa física, ou seja, dos motivos fáticos que levaram os consumidores à situação de superendividados. Sendo um problema contemporâneo de ordem social e econômica, deve ser objeto de prevenção e, quando necessário, de tratamento pelo Estado, a fim de remediá-lo. Na busca por alternativas, no estudo de direito comparado são encontrados dois modelos para prevenção e tratamento dessa causa de desequilíbrio em que consiste o superendividamento. Conhecidos como modelo francês e modelo americano, embora partam de premissas diversas, têm por finalidade prevenir e sanear o fenômeno do superendividamento, realocando o consumidor no mercado de consumo. Na busca por uma legislação condizente com as recentes necessidades sociais, principalmente no que concerne ao consumo de crédito e situações de prevenção e tratamento do superendividamento, originou-se, no âmbito do Senado Federal, uma proposta de atualização do CDC. A finalidade precípua seria prevenir novas situações de superendividamento, fomentando a educação financeira de toda a sociedade e limitando a oferta maciça de crédito. Todavia, quando já instalado o problema, deve-se buscar a satisfação do crédito e o implemento da obrigação, com a devida apuração da responsabilidade do consumidor e do fornecedor, respeitando a condição digna de pessoa humana do consumidor superendividado e o mínimo existencial adequado a sua sobrevivência e de sua família. O Projeto de Lei n. 283/2012 do Senado Federal objetiva definir alguns conceitos e características sobre Revista do Curso de Direito
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o superendividamento, contribuindo para sanear os desajustes sociais dele decorrentes. Ademais, visa ampliar o âmbito de intervenção judicial e suprir o ordenamento jurídico pátrio com alternativas para o enfrentamento do fenômeno. Inspirado nos modelos e instrumentos existentes no direito comparado e na busca por adaptálos às necessidades brasileiras de consumo de crédito, a aprovação e sanção desse Projeto de Lei representa inegável avanço social no tratamento do superendividamento no Brasil sob a ótica da dignidade da pessoa humana.
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