Revista da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP - no 26 - 1o semestre de 2013
Raul Roulien Maximo Barro
O cinema para a educação para o cinema para a educação... Luciana Rodrigues
O cinema e a redemocratização do Brasil e da América do Sul Luiz Alberto Machado
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Editorial Revista da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP Nº 26 - 1º semestre de 2013 ISSN: 1676-8221
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A revista FACOM impressa em São Paulo, é uma publicação semestral da Faculdade de Comunicação e Marketing. Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores. Aceita-se permuta. FAAP - Faculdade de Comunicação e Marketing Rua Alagoas, 903 - 01242-902 - São Paulo - SP Tel: 11 3662-7332 Fax: 11 3662-7334 Site: http://www.faap.br E-mail: facom@faap.br
O processo de construção de uma revista acadêmica de periodicidade semestral é bastante difícil e, de certa forma, exige uma dinâmica que envolve todos os colaboradores. Isso mesmo, a cada revisão é devolvido o texto ao autor que mais uma vez faz pequenos ajustes e acertos para que a edição seja próxima da ideal. Invariavelmente, quase sempre temos alterações que acabam por modificar o desenho do ensaio e os acréscimos das imagens provocam novos arranjos formais. O professor Máximo Barro a partir de uma doação do historiador e bibliógrafo Byron Gaspar, autor do clássico livro Fontes e Chafarizes de São Paulo, e dos nossos próprios arquivos da Filmoteca Faap, escreveu um perfil biográfico sobre Raul Roulien, o primeiro grande ator a fazer sucesso em Hollywood na década de 1930. Já a professora Luciana Rodrigues publica parte de sua pesquisa intitulada O cinema para a educação para o cinema para a educação..., evidenciando a importância dessa relação e apontando caminhos para uma urgente e necessária reflexão. Luiz Alberto Machado, vice-diretor e professor da Faculdade de Economia da Faap elabora uma boa discussão no texto O Cinema e a Redemocratização do Brasil e da América do Sul, trazendo uma análise da relação entre cinema e os regimes autoritários. Outro texto instigante, O Inquilino Hitchcockiano, foi elaborado pelo professor de roteiro Hugo Harris que busca decodificar algumas possibilidades de compreensão do cinema de Alfred Hitchcock e sua influência no trabalho de Roman Polanski. A professora Neiva Pitta Kadota, uma das mais constantes colaboradoras da Revista Facom, discute algumas das potencialidades da questão signica sob a ótica de Charles Sanders Peirce em Semiótica: a multiplicidade do olhar. Valdir Cimino, professor do departamento de Relações Públicas e presidente da Associação Viva e Deixe Viver, analisa a importância dos processos comunicacionais na área da saúde em Impactos da Comunicação Humanizada na Saúde. Os professores Beatriz Santos Samara, Adélio Gonçalves Brito e Roberto Bertani em conjunto, elaboraram o texto Um Olhar Antropológico a partir das ideias de três reconhecidos antropólogos: Ruth Bendict, Franz Boas e Bronislaw Malinowski. Aracy Amaral, historiadora, curadora e crítica de arte, nos brinda com o texto Vera Vicente de Azevedo em que busca traçar a biografia aventurosa da modelo retratada por Antonio Gomide e Flavio de Carvalho, e de sua filha Verinha retratada por Tarsila do Amaral. Com certeza os textos irão iluminar outras pesquisas e o prazer de reuni-los na Revista Facom visa promover uma maior interação entre os nossos professores e a pesquisa acadêmica brasileira. Rubens Fernandes Junior
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APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte)
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índice
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Raul Roulien Maximo Barro
O cinema para a educação para o cinema para a educação... Luciana Rodrigues
O cinema e a redemocratização do Brasil e da América do Sul Luiz Alberto Machado
O inquilino hitchcockiano
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Hugo Harris
Semiótica: a multiplicidade do olhar Neiva Pitta Kadota
Impactos da comunicação humanizada na saúde
Valdir Cimino
Um olhar antropológico
Beatriz Santos Samara, Adélio Gonçalves Brito e Roberto Bertani
Vera Vicente de Azevedo
Aracy Amaral
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Raul
Roulien
Maximo Barro
Resumo
Abstract
Este trabalho está fundamentado em fotografias e documentos que a FILMOTECA FAAP vem adquirindo há anos e, principalmente, numa doação recente. Através desses documentos incorporados à Filmoteca propomos aqui um esboço biográfico de Raul Roulien que ainda deixa muitos claros, em grande parte motivada pelos depoimentos dispares que ele emitia. Somamos a isso o desaparecimento de importantes filmes que participou. Mesmo assim acreditamos na relevância dessa primeira iniciativa.
This work is founded in documents and photographs that the FAAP film library has been acquiring for years, and mainly on a recent donation made to the institution. Through these documents we suggest a biographical draft of Raul Roulien which still has many blanks, mainly through the depositions he gave. We add this to the disappearance of many important films in which he participated. Even so we believe in the relevance of this first initiative.
Palavras-chave
Keywords
Raul Roulien, cinema , Hollywood, contratos.
Raul Roulien, cinema, Hollywood, contract.
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O pesquisador
,
por vezes, trabalha anos à cata de documentos que comprovem suas teorias. Outras vezes o fortuito engendra circunstâncias capciosas conduzindo- o para o quase ineditismo. O melhor presente natalino, para não dizer de todo o ano 2011, surgiu na pessoa do historiador e bibliógrafo Byron Gaspar, nos presenteando com vários álbuns de material iconográfico do ator e diretor brasileiro Raul Roulien, hoje inteiramente esquecido mas que gozou nas décadas 20 e 30 de renome nacional e internacional, comprovado em várias fotos e artigos jornalísticos daquele momento. Essas fotos e documentos, unidos aos já existentes através de aquisições diversas, tornaram a Filmoteca FAAP depositária de material provavelmente único no Brasil. Com a morte de Rodolfo Valentino o cinema americano encetou uma frenética busca, principalmente do México à Patagônia, de um novo rosto para substituí-lo. No Brasil, uma equipe comandada por americanos avaliou centena de candidatos recaindo a escolha no jornalista Olympio Guilherme (19011971) para depois utilizá-lo apenas como figurante em variados estúdios. Humilhado pelos acontecimentos produziu com a ajuda da colônia brasileira residente em Hollywood o média metragem Fome,
(Hungry), uma radiografia dramática dos que se aventuravam a trabalhar na Usina de Ilusões. No Brasil, Fome ganhou dimensões épicas, descritas por muitos historiadores – a maioria sem jamais tê-lo assistido - como uma obra prima perseguida pelos donos de estúdios americanos, chegando ao ponto de inventarem que o negativo fora comprado para ser incinerado. A invencionice morre quando se pode provar que chegou a ser lançado em São Paulo, no circuito comercial, apesar de ser um média metragem, no Cine Teatro Santa Helena, a 16 de junho de 1930. Olympio Guilherme deixou ainda o romance, Hollywood, reproduzindo as dramáticas situações dos candidatos ao estrelato na América. O segundo lugar no certame coube a Tito Batini – sem direito a viagem - que chegamos a conhecer na intimidade, pois foi meu professor de Argumento, no Seminário de Cinema do MASP, em 1949. Mais tarde, trabalhei como seu assistente de produção na Musa Filmes em filmetes de propaganda para televisão e, finalmente, em 1954, montando o longa metragem, ...Se A Cidade Contasse... Dele recebemos muitas informações sobre o concurso. Felizmente, Raul Roulien – Raul Salvador Intisse Pepe Roulien, ou também, Raul Pepe Acolti Gil, carioca, nascido a 8 de outubro de 1905 e falecido em São Paulo, a 8 de setembro de 2.000, não passou pelas agruras dos testes, jamais ficando esclarecido a contento, como foi contratado. Para muitos, ao viajar para Hollywood já carregava um teste em que cantava e atuava, produzido por ele mesmo na Cinédia. Inúmeras vezes, pela televisão, dele vimos e ouvimos dizer que fora recomendado
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O Ator Raul Roulin, 1947.
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pela cúpula da algumas das distribuidoras americanas que funcionavam no Rio de Janeiro. Outras vezes, de que ele e a esposa, Diva Tosca, bailarina e atriz, foram descobertos quando trabalhavam em clubes e boites de Los Angeles. Outro que repetidamente o citava era Silveira Sampaio, igualmente esquecido, quando ancorava um programa de entrevistas na antiga TV Paulista, canal 5, enfatizando a fantástica repercussão dos shows de Raul Roulien pelo Brasil, Argentina, Uruguai e a recepção apoteótica de uma multidão avaliada em 250.000 pessoas nas ruas do Rio de Janeiro que foram aclamá-lo num dos retornos de Hollywood, fatos que estimularam o então pediatra a fechar o consultório e enveredar pelo palco e, depois, pelo cinema.
Outra possibilidade que poderia contribuir para entender seu contrato nos Estados Unidos seria a atribulação que o cinema americano atravessava nos inícios do sonoro, indeciso entre produzir versões francesas, italianas, espanholas e alemãs dos seus principais produtos ou optar pela didascália na parte inferior do fotograma, coisa que, finalmente, vingou. Anos antes, na Folha da Manhã, há longa notícia sobre a estréia de Raul Roulien aos 3 anos para Rodrigues Alves e Rui Barbosa. O apoio dos dois permite seu internamento no famoso colégio dos salesianos em Niterói e, mais tarde, sua ida para Hollywood, a 21 de dezembro 1930, com duas cartas de apresentação. Recusado pela Paramount, acertou contrato com a Fox. O jornal A Folha da Manhã, do dia 6 de agosto de 1931 relata que uma interessante notícia acaba de
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chegar-nos de Nova York: Raul Roulien, o querido ator brasileiro de comédias, que tantos sucessos alcançou nos nossos palcos, mesmo, em certa época, se tornando a “coqueluche” das nossas lindas patrícias, foi contratado pela FOX Film, para figurar em filmes em espanhol, português e inglês. Roulien conhece bastante esses idiomas e, dadas as suas qualidades cênicas, irá conquistar grandes vitórias na arte do “écran”. A estas horas Raul Roulien está a caminho de Hollywood, onde logo que chegue, entrará em atividade nos estúdios da FOX. Seu engajamento foi imediato pois em outubro, no Brasil, era anunciado como participante de Charlie Chan Carries On. A produção encabeçava uma das série de filmes classe B, obrigatória nos programas duplos em cinemas de bairro, baseado no personagem do detetive chinês, Charlie Chan, representado sob quilos de maquiagem
transformadora pelo ator sueco Warner Oland. Já cotado pelo estúdio da FOX como bilheteria certa, imediatamente foi providenciado um remake em versão espanhola, para os países latinos, especialmente México e América Central e do Sul. Eran Trece, foi o título escolhido para estes países de língua latina e A Astucia de Charlie Chan, para o português do Brasil. Em ambas as versões Roulien cantava um samba e um tango. Incongruência ocorreria a 12 de fevereiro de 1933, quando da reapresentação no Odeon, da versão espanhola de Eran Trece Os letreiros de apresentação anunciavam Manoel Arbo, transfigurado no policial chinês, mais Juan Torena, Ana Maria Custódio e só então, em quarto lugar, Raul Roulien. O filme fazia parte de um
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programa duplo, acompanhando outra produção americana, Millie. Caso Warner Oland, interprete do detetive chinês, escondesse bem seu sotaque sueco quando imitava o linguajar dos imigrados asiáticos na América - e disso temos certeza porque assistimos a alguns Charlie Chan na metade dos anos 40 - é de se pensar o que resultava quando o sotaque chinês espanholava-se. De qualquer forma, todas estas conjecturas bizarras, foram vergastadas por críticos e historiadores daquele momento, num leque que percorria desde a defesa da estética cinematográfica para atingir, no outro lado, as premissas sibilínicas de que um personagem francês não podia ser interpretado num sotaque novaiorquino, esquecidos de que Ésquilo, Shakespeare, Goldone e Racine eram representados nos palcos americanos em sotaque bostoniano, californiano, oklaomadiano e até ... floridanês. Indiferente a toda celeuma, os cofres da FOX indicavam que o personagem chinês continuaria soberano até fins de 48. É nesse formato, e em meio à essas disputas que Roulien aparecerá na pele do personagem Max Minchin, quem sabe ele também enrolado como sino-espanhol. As conjecturas a qualquer julgamento deste filme hoje serão ainda mais precárias que as da época. Indiscutível resta que Roulien havia passado pela filtro da popularidade e a FOX lhe reservava algo de mais empolgante.
Ainda em 1931 foi designado para Deliciosa (Delicious) e o próprio Raul Roulien previa, com muita justeza, que este seria seu verdadeiro cartão de apresentação, pois no verso de uma foto que ganhamos de Byron, visivelmente recortada de outra maior para melhor identificação, o vemos na intimidade do trabalho de estúdio, conversando com Janet Gaynor. No verso, escreve eufórico, o Brasil está dialogando, não escondendo suas grandes esperanças para um amigo ou familiar brasileiro não identificado: Mando esta foto para que vocês me vejam retratado com Janet Gaynor, num dos melhores momentos de Delicius. É uma cópia ruim, onde, a pintura (maquiagem) dela como a minha está mal; mando apenas para que os amigos vejam que o Brasil já pode estar dialogando com uma das maiores celebridades mundiais. Importantíssimo! Peça quem pedir, não deixe absolutamente, que estas fotos, sejam publicadas. Para isso enviarei uma excelente dela, Charles Farrell e minha, para que saia em todas as 1ª páginas, e com autorização, caso contrário, pode custar-me um sério desgosto. A FOX empenhou-se particularmente na produção de Deliciosa porque os dois últimos filmes da dupla Gaynor-Farrell estivera muito abaixo do desejado pelo estúdio. Desta vez, o argumento melífluo estaria ancorado com o apoio de 5 canções de Gershwin, que em muito concorreriam para levantar as previsões. O argumento narrava as peripécias de Heather, uma imigrante escocesa, (Janet Gaynor), viajando na terceira classe de um navio para encontrarse com seu tio na América. Ela faz amizade com outros companheiros pobretões, principalmente o
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russo Sacha, que se enamora dela. Ele é músico e compõem uma canção para ela: Delicious. Para que todos os companheiros viajando no porão do navio a ouvissem se esgueiram na primeira classe único lugar onde há um piano. Sacha está cantando e tocando a canção quando chegam guardas do navio pretendendo impedir e prendelos. Os imigrantes são salvos por um playboy e jogador de pólo, Larry (Charles Farrell) viajando na primeira classe, com sua noiva e a futura sogra. A partir deste momento o argumento inicia o confronto entre pobres e ricos. Chegando ao cais americano, o tio de Heather avisa que não poderá abrigá-la. Os guardas da imigração querem remetê-la de volta mas ela foge escondendo-se num caixão, dentro do navio, no local onde está alojado o cavalo de Larry. Assim é transportada para a mansão dos pais de Larry sem ninguém perceber. No casarão ela continua escondida, ajudada pelo mordomo que também a conhecera na terceira classe. Ela foge novamente e vai viver com os artistas russos, sendo novamente perseguida pelas autoridades. Sacha oferecelhe o casamento. Ela refuga. Mais tarde Larry se machuca numa partida de pólo e Hearther vai visitá-lo, mas a noiva enciumada avisa a polícia. A moça decide voltar para a Escócia. Larry sabedor do acontecido corre até o cais, propõe casamento e a viagem será a lua de mel. Ao longo dos 100 minutos da patuscada, estão distribuídas as cinco canções de Gershwin. Roulien cantava a principal, Delicious. A ele cabia o segundo papel masculino, pois o primeiro pertencia, pela lógica do star-sistem, a Charles Farrell. O nome do brasileiro aparecia em quarto lugar nos créditos,
porém, acima de Virginia Cherril, a noiva do playboy e que meses antes fora a atriz principal de Luzes da Cidade, de Chaplin. Disfarçado de imigrante russo, Raul poderia exercitar os sotaques mais extravagantes sem que nada lhe fosse cobrado. Não esquecer que, com o sonoro Greta Garbo somente interpretou não inglesas-americanas. Ela foi Madame Waleska, Ninotcheca, Mata Hari, Ana Karenina, Camile e várias outras que vagavam do Báltico ao Bósforo. Foi até sueca em Rainha Cristina mas, insistimos, jamais americana ou inglesa. Para garantir uma grande bilheteria o filme foi simultaneamente lançado em 186 cinemas de todo os Estados Unidos e próximo a vários feriados reunidos. A recepção foi ótima e Roulien ficou conhecido em toda a América como ator e cantor de Delicious. A crítica foi violentamente contra, mas pouco adiantou o Variety classificá-lo como crème fôfo, compota de maçã e plantação de amendoim..... apoiado naquilo que receberá o nome de resistência. O empenho da propaganda do filme continuou, lançado em São Paulo a 6 de junho de 1932, permanecendo no Odeon até o dia 15, sendo o nome de Roulien cortejado em letras garrafais. “A magnífica interpretação de Raul Roulien, o artista brasileiro que conquistou as glórias do cinema ou sejam todas as glórias da
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arte moderna”. Assim expressava-se o colunista da Folha da Manhã, logicamente trabalhando para a FOX. A 27 de abril de 1932, representantes da FOX no Brasil vão ao Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, para agradecer o
A primeira delas, do ano 33, seria uma comédia amalucada, com um diretor apático, colocando seu maior empenho na filmagem de um desfile de moda. Mulheres e Aparências, apresentava Joan Bennett como uma garota descuidada, modelo profissional, que as circunstâncias ajudavam a ter uma vida agitada. Encontra-se num bar bebendo, quando um homem (John Boles) insinua-se. Desafortunadamente, nesse momento, a polícia dá uma batida e todos serão presos. Na delegacia ela se dá a conhecer com o sobrenome do homem do bar. Em Paris, onde foi desfilar ele volta a assediá-la dando a todos a impressão de serem amantes ou casados. A notícia chega a Nova York complicando ainda mais a vida já muito complicada da jovem. Mesmo no Brasil, que ansiava pelo novo trabalho de Roulien, foi exibido sem o menor interesse propagandístico, aliás impossível de ser notado quando nem seu nome vinha creditado. Importante lembrar que o ano de 1932 será conturbado para o Brasil, principalmente em São Paulo, inteiramente voltado para a Revolução Constitucionalista, especialmente entre julho e outubro. Havia jornais que imprimiam apenas quatro folhas, enquanto outros viram-se na contingencia de converteremse em tablóides ou semanários. Desta vez ele cantava o tango, Madame. Para os fãs incondicionais de Roulien restava o cuidado policialesco de não descuidar os olhos da tela porque a brevidade de sua permanência poria a perder o próprio custo do ingresso. Intrigante, também, fora o empréstimo da FOX à produtora concorrente R.K.O para outra participação dele, sem crédito, em O Promotor Público, filme importante para John Barrymore, em fim de carreira, com dificuldade de memorizar o texto.
comparecimento de Getúlio na estréia carioca de Deliciosa. Após tantas expectativas, a continuação foi, praticamente, fatídica para Rouliem, pois as três produções seguintes vieram demarcadas como obras de menor empenho que mal atingiam a linha daquilo que americanos e brasileiros classificavam entre o razoável e o regular.
O corrupto advogado Tom Cardigam (John Barrymore) financiado pela máfia, é noivo de June Perry (Helen Twelvetress) que tenta limpar seu passado. O mafioso Vanny Power (William Boyd) julga que Tom funcionaria mais efetivamente para a máfia no cargo de promotor. Tom avisa que nesse cargo estaria funcionando no outro lado da mesa, nos tribunais. Para sua surpresa é elevado à promotoria com enorme facilidade. Começa a ter um caso com a filha de um político. Levado a julgamento Vince tem contra si o depoimento de June. Segundo a revista CINEARTE, Raul Roulien recebera um personagem que muito contrastava com ele, tanto que novamente nem era citado nos
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créditos. Restava a participação como autor e cantor do tango, Bibelot. Na quarta incursão, Mulher Pintada, Kiddo (Peggy Shennon) é uma cantora de cabaré em Cingapura. O capitão da marinha mercante Boyton (William Boyd) pretende esposá-la. Kiddo envolvese num assassinato. Para fugir ela mente a Boyton que a transporta no seu navio. Quando descobre a trapaça, ele a deixa numa ilha dos Mares do Sul. Ali, Kiddo encontra Tom Brian (Spencer Tracy) e apaixonam-se. Ela narra sua vida e casam-se. Por ocasião de outra viagem, Boyton se enfurece quando a vê casada com Tom. Pretende matá-lo. Um nativo, operário e amigo de Tom, interpretado por Roulien, assassina Boyton ocultamente. Kiddo é acusada do crime. Tom desesperado, a abandona. Porém, o nativo confessa o crime. CINEARTE novamente reclama: “Roulien está deslocado num papel ridículo. Felizmente nós o conhecemos bem. Não era papel para ele, absolutamente”. A oportunidade benfazeja acontece em fins de 1933. Um aviador sofre um desastre numa ilha deserta no sul do Pacífico. Meses depois, quando é descoberto e recambiado, descobre que em conseqüência de uma epidemia, tornou-se o único homem fértil na terra. A comédia, agora em termos musicais, era remake de outro filme de 1924. O argumento e as pretensões do filme demonstram as potencialidades que Raul possuía naquele momento com o público. Não crendo que ele sozinho pudesse ser o fio condutor da bilheteria, a FOX procurou gastar o mínimo na produção. Para isso apenas a versão espanhola foi elaborada, porque um elenco de espanhóis e mexicanos filmando num barracão nos fundos da FOX, custava-lhe quantia bem menor que a dispensada caso fossem americanos. Cremos, ainda, que por ser um elenco de não americanos, não estariam sujeitos aos rigores sindicais. Foi filmado em menos de 15 dias, trabalhando, sabe-se lá quantas horas por dia. O texto de Gilberto Souto na CINEARTE, de 15 de julho de 1933, é parecido com outro que escrevera meses antes: “O filme é uma comédia musicada, muito bem tratada para um “hablado”. Roulien é melhor que Kagle”. O comentarista se reportava ao ator que havia interpretado o mesmo personagem no cinema mudo. Gilberto acrescenta que o longa
metragem vinha acompanhado de um short explicativo de Roulien. Para surpresa do estúdio a renda nos cinemas foi ótima levando-os a elaborarem imediatamente uma versão em inglês e conservando Roulien como ator principal. A revista Scena Muda, de 18 de julho de 1933 deita nacionalismo barato em frases que beiram o cafajestismo. Raul Roulien, o nosso patrício, que tão vertiginosamente vai subindo entre as celebridades da Fox Film, está, positivamente avassalando os lábios e os corações das mulheres de Hollywood... as dos estúdios e as que não pertencem ao cinema... É que, Raul, filho desta terra forte e moça, treinado, treinadissimo na arte de beijar cariocas, faz a “coisa” com um ímpeto que tonteia as girls e as stars norte americanas. É como se pela primeira vez estivessem sendo beijadas por um homem...Raul tem um geitinho natural de segurar uma mulher pelos ombros e sugar-lhe os beicinhos, de transmitir-lhe todo o seu sentimento de brasileiro, que elas ficam grogues... Na Fox, pelo menos, é o campeão de beijos... As garotas entregam os pontos com facilidade, mesmo as que são
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estrelas importantes, pedem a pose de braços de Roulien, esquecem a câmera, o próprio papel e ficam apenas “ uma mulher nos braços de um homem”. Recentemente, (e disso apresentamos documentos irrefutáveis nessas páginas) Roulien passou cinco dias beijando, e beijando muito, duas dezenas de mulheres... Foi durante as filmagens de o Último Varão Sobre a Terra... na sua versão inglesa! Sim...E sobre isso devemos uma explicação que, por certo, vai encher de orgulho os fans... Roulien conseguiu o que até hoje nenhum outro astro havia obtido. Elevado a astro, Roulien foi chamado a fazer El Ultimo Varão Sobre la Tierra, em espanhol... E todos julgaram isso tivesse
encerrado suas atividades com este tema...porém tal foi seu triunfo com este trabalho que Fox o incumbiu de fazer também a versão inglesa! E Roulien “abafou” tudo! Quase tirou pedaços dos lábios carnudos das garotas... E elas gostaram...Oh, se gostaram... Enquanto a Fox depositava esperanças fundamentadas na presença de Roulien em habla espanhola, Gilberto Souto as detestava. “Sua interpretação em O Último Varão retornava o artista das temporadas do Teatro Lírico. Parece incrível que um artista que desempenhou em Mulher Pintada cenas tão dramáticas, possa, ao mesmo tempo, ser um comediante, tão fino, tão natural, tão galante.” O estúdio da R.K.O., secundando o que já vinha sendo norma na Warner, resolveu investir
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decididamente no que havia de mais caro em matéria de orçamento cinematográfico; o musical. Para isso contratou dois coreógrafos, Hermes Pan e Dave Gould, ambos sofrendo forte influência dos balés geométricos de Busby Berkeley, mais o produtor das extraordinárias trucagens do primeiro King Kong para organizar os estupendos efeitos em back projection do balé dos aviões sobre a cidade do Rio de Janeiro e os exteriores do Copacabana Palace.
digna para com ela obrigando o marido a expulsá-los. Em seguida Elena fica sabendo que a filha também é amante de Juan Manuel. Elena volta a interessar-se pelo marido. Ao fim tudo se acomoda e o casal separado volta ao convívio. Raul interpretava Juan Manuel o amante da mãe e da filha.
O argumento de Voando Para o Rio vale-se dos musicais da Broadway onde cinco ou seis personagens se degladiavam para formarem dois casais, aqui referendados pelo maestro da orquestra da boite, Gene Raymond que flerta com Ginger Rogers, mas gosta de Dolores, que é noiva de Raul, mas flerta com Gene Ao fim, literalmente, Roulien salta de para-quedas para não atrapalhar o casamento de Dolores com Gene, enquanto Ginger e Fred, também, literalmente, vêem tudo pelo binóculo. É o único trabalho de Roulien que pode ser visto ainda hoje sem grandes buscas, porque andou pelos celebrados festivais de musicais, de aviação e até no biofilme felliniano da dupla Fred e Ginger, perenes ainda hoje, para os que não medem o cinema pelos anos, décadas ou séculos. O conceito em relação a Roulien, apesar dos percalços, andava alto. O primeiro nome nos cartazes puxando a bilheteria pertencia à mexicana Dolores Del Rio e o de Roulien, em segundo. Fred Astaire e Ginger Rogers, em seguida. Era um espetáculo musical que viveria da música, não fosse o espetacular balé realizado nas asas de aviões, tendo a cidade do Rio como cenografia. Passados 80 anos, ainda mantém em acelerado a adrenalina pela utilização dramática das bailarinas nas alturas e, principalmente, pela queda de uma delas. Por outro lado, o diretor Thornton Freeland dispunha de pouca habilidade para dirigir o elenco que, por sua vez, pautavam-se segundo suas escassas possibilidade e Raul, especialmente, na mais discreta de todos eles. Em Primavera no Outono, Elena estava separada de Mario há longos anos. Porém, o casamento da filha de ambos, Agustina, os obriga a conviverem durante uns dias na casa dos pais do noivo, apesar de Elena trazer seu amante, Juan Manuel. Um dia os convidados portaram-se de maneira pouca
Em, Não Deixes a Porta Aberta, de 1933, Raul comparecia novamente, como atorletrista- compositor. Jovem recentemente casada imagina que está sendo traída. Decide ter casos durante um cruzeiro marítimo entre Nova York e Havana.
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Todos reclamaram da falta de definição estilística de Granadeiros do Amor, 1934, que transita entre o surrealismo, realismo e romântico sem definir-se por nenhum destes estilos. O argumento pretende narrar as peripécias de um jovem compositor popular que é incentivado por um amigo a ir ao Tirol e inspirar-se para uma operetas. Ele segue o conselho e lá encontra-se com uma jovem da nobreza, que está prometida a um déspota. Em visita ao castelo da família da moça ela mostra-lhe o quadro de uma ancestral que promove um retrocesso no filme, voltando-se ao século XIX, quando o jovem músico é travestido de tenente francês e tem que salvar a moça, apesar de ser um inimigo. O ato de coragem é interrompido porque o filme não apenas volta ao presente mas, a um presente futuro onde o rapaz já compôs a famosa opereta. Um crítico após arrasar a interpretação de Raul Roulien, proclama: “ele tem ótima estampa mas é péssimo ator e os espanhóis devem ter ficado martiri – zados com o sotaque de austríaco que ele emprega no filme.” John Ford apelou a todos os subterfúgios que conhecia para não dirigir, A Marcha do Século – The World Moves On, 1935 mas, o contrato era leonino e ele seria banido do cinema caso se rebelasse. As sequências da guerra de 1914-18 foram compradas de um filme francês mais antigo. O mau humor de Ford estendeu-se a todo o elenco e equipe técnica. Vários incidentes colaboraram para mais traumatiza-los. Ouvimos do próprio Roulien, numa entrevista de televisão, que todas as manhãs havia bate boca entre Ford e Franchot Tone porque o ator interpretava inteiramente fora do que o diretor desejava. No avanço das horas ele melhorava mas, no dia seguinte, tudo voltava a mesma. O segredo foi desvendado quando Joan Crawford, esposa de Tone, apareceu um dia para visitá-los. Ficou claro que ela desejava uma interpretação diferente da pedida por
Ford e, para isso, ensaiava todas as noites as tomadas do dia seguinte. A saga escrita por Reinald Berkeley pretende levantar a luta de duas famílias, os Girard, de linha francesa e os Warburtons, ingleses, disputando para serem os únicos controladores do algodão da Louisiana. A guerra entre eles estende-se à Europa. Em certo momento tudo parece resolvido quando a filha dos Girard casa com o filho de Warburtons. Porém, anos depois os três filhos do casal entram em nova luta. Isso leva as famílias ao definhamento, agravado com a crise de 1929. Finalmente um dos descendentes resolve amealhar o que sobrou e recomeçar a saga. Parte do argumento transcorria entre 1824 e a guerra de 1914 quando os irmãos vivendo em países opostos lutam entre si. Madeleine Carroll, Franchot Tone e Raul Roulien vivem personagens da mesma família em séculos diferentes. Os demais personagens tiveram intérpretes diferentes para as duas épocas. As cenas de batalha tão elogiadas pela critica foram compradas do filme francês, Croix de Bois. As sequências submarinas eram de um antigo filme do próprio Ford, Sob os Mares. A crítica classificou como bom e Roulien não foi citado em separado como orgulhosamente acontecera até ali. Canções de Oscar Levant, Sidney Clair, Arthur Jonhson e Raul Rolien eram o forte de A Mágica da Música, portanto, a participação dele é somente na órbita musical. A idosa estrela de Hollywood, Bebe Daniels não aceita o fato de que envelheceu e sua popularidade está em queda. Ela somente se dá conta quando for substituída pela garota do coro que obtêm enorme sucesso. Produzida ao tempo da incorporação da Fox, o filme reflete a economia de recursos que estavam atravessando, porém, contém muitas ironias sobre Hollywood. Em Piernas de Seda, 1935, uma vendedora de Nova York faz um cruzeiro marítimo para Havana mas, o navio emborca. Um funcionário da companhia onde ela trabalha vai investigar. Ele não se dá a conhecer e isso desaponta a moça. Um trambiqueiro amável a confunde como uma passageira rica e aproxima-se dela, apesar dos entraves colocados pela sua amante ciumenta. O investigador percebe que está cada vez mais apaixonado.
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Quando Serenata Tropical, o primeiro filme de Carmem Miranda, chegou ao Brasil, em 3 de maio de1941, Alex Viany escreveu um artigo violento contra ela e o filme. Entre outras coisas delatava que o argumento era idêntico ao que Fox fizera com Piernas de Seda. Mais tarde, em 1952, ele também seria delatado, principalmente por Moniz Viana, por receber o prêmio de melhor argumento original em Uma Agulha no Palheiro, quando na realidade fora calcada em um filme francês. A participação de Raul ficara novamente restrita nas canções, uma delas interpretada pela estreante Rita Cancino, mais tarde, Rita Haywort. O mexicano Manuel Peluffo também aparecia numa ponta insignificante. Em 1952, ele dirigiria em São Paulo, Meu Destino É Pecar, na Cinematográfica Maristela.
mais adequadamente, para não vir à tona o longo caso havido entre ele e a atrizempresária Abigail Maia. Em 1928, ainda no período mudo, Diva interpreta seu único filme, Às Armas, de Otavio Gabus Mendes. Preferiu abandonar a vida artística para dedicar-se inteiramente a Roulien. Nas sombras, anonimamente, assessorava a carreira do marido quando, na noite
A última participação de Roulien em Hollywood foi na comédia de qui-pro-quo, Assegure Su Mujer - Insure Your Wife – de 1935. O número de intérpretes espanhóis e mexicanos era grande, deixando à mostra que os filmes em duas ou três versões ainda eram tentados na Fox, quando todos os outros estúdios já o haviam abandonado. Os quatro anos da vivencia hollywoodiniana de Roulien foram tumultuados, repleto de altos e baixos por vezes extremados, com ocorrências trágicas que não explicam, por completo, como o êxito e o revés caminharam juntos em tempo tão exíguo. Sua primeira esposa, Diva Tosca, também tivera educação anormal para uma mulher dos anos vinte. Fora levada para o Chile e lá educada num convento, aprimorando-se em violino e piano. Enviada para os Estados Unidos, licenciou-se em inglês enquanto aprendia balé. Mais tarde, na Itália, continuou os estudos de música, principalmente, canto. Nada de excepcional, portanto, que aos 17 anos já militasse como profissional nos palcos americanos. No ano seguinte, trabalhava nas principais companhias nacionais. É nesse ambiente que vem a conhecer Raul Roulien, que a contrata para a sua Companhia de Filmes Cênicos, nome adequado para quem usava os intervalos entre os dois filmes então em moda, para rápidos espetáculos de música e humor. Apaixonados, casam-se em segredo para não melindrar, segundo consta, a família de Raul, ou
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fatídica de 27 de setembro de 1933, ao atravessar uma rua de Hollywood foi atropelada e morta pelo então jovem John Houston. Muitos interpretaram o fim desastroso da carreira de Roulien quando pretendeu exigir a prisão do jovem bêbado pelo crime. Explicavam alguns parentes e amigos do brasileiro, que a influência do pai do americano – o grande ator, Walter Houston – além de amigos como William Wyller, impuseram a lei do silêncio contra o forasteiro abusado que obtivera destaque em uns poucos filmes. Pelo que se pode avaliar do único exemplo fílmico que é ainda reprisado, por sua importância dentro do campo do musical, Voando Para O Rio, o brasileiro era carente como intérprete, nem mesmo podendo equiparar-se a outros da área hispânica. Após a participação no filme de John Ford, interpretando dois papeis, ele ainda agüentavase pelas letras e músicas que compunha para o estúdio, bastante explícito no contrato que dele possuímos com a FOX. Outro entrave que muito o prejudicou foi assinar contrato com a FOX, produtora existente desde o tempo do cinema mudo e que além de sofrer o impacto da crise mundial de 1929, não soube administrar a passagem do mudo para o sonoro nos mesmos anos, encontrando-se em situação ainda mais penosa que a Metro, Paramount, United Artists e Universal. O jovem, combatente e imperial, Darryl F. Zanuck era funcionário no departamento de argumentos da FOX ao mesmo tempo, adquiria ações desvalorizadas, solapando os antigos donos. Nos primeiros cinco anos da década trinta, a produtora esteve à deriva atirando cegamente em musicais, policiais, carcerários, farwests e intimistas. Só não tentou os grandes espetáculos históricos e bíblicos, sofreada pelos altíssimos orçamentos. Em 1935 tudo consuma-se e Zanuck tornase o diretor geral de produção, terminando as experimentações de gêneros, a sarabanda de técnicos, contratos e distratos com intérpretes de teatro que sabiam falar e confrontando-se com os que provinham da escola formada automaticamente no período mudo e que não encontrava abrigo na era do microfone. Nesse campo, a FOX foi a última em continuar aceitando os hispânicos. Em 1936 eles desapareceram. Que Roulien foi, por breves momentos, figura ímpar é indiscutível. Basta ver as fotos dos jornais de
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janeiro 1933, quando de um dos seus retornos para visita, uma multidão calculada em 250.000 pessoas o aguardou no entorno da avenida Rio Branco. As dúvidas tornam-se ainda mais nebulosas quando sabemos que ele interpretava em inglês e, portanto, poderia ser assimilado. O retorno ao Brasil acontece em definitivo, em 1936, na companhia de Conchita Montenegro, segunda ou terceira esposa e que fora atriz de Assegure Su Mujer. Casaram em Paris, a 19 de setembro de 1935. Temos um documento do tabelionato do Dr. Antonio Carlos Penafiel, de 26 de maio de 1937, em que Conchita (Jacinta Andrés Picado) constitui como seu procurador o Dr. Clovis Dunshee de Abrantes com poderes para anularem seu casamento com Raul Pepe Roulien. No mesmo ano, ele casa-se com atriz Nelly Rodrigues, no México. Para se manter, adere ao jornalismo, enquanto levanta meios para filmar, O Grito da Mocidade, de 1936, produção, direção e interpretação dele sobre a vivência dos médicos brasileiros. Muitos insistem que o tema tocava na medicina social, escabroso para um governo que se houvera um ano antes com a intentona comunista e um ano depois decretava o Estado Novo. Pessoalmente, somos céticos, tanto quanto ficamos depois de Alex Viany afirmar que em Vidas Solidárias, Moacyr Fenelon também fizera menção à medicina social, coisa que sempre foi desmentida peremptóriamente por Mario Brasini, Vanda Lacerda e Roberto Machado, participantes do filme em depoimentos por nós gravados.
resolve refilmá-la. Uma semana antes da exibição, Roulien envia a todos os jornais cariocas uma mensagem afirmando que não conhece o teor do filme de Fenelon, mas que o seu meditava sobre a missão dos intrépidos pilotos que atravessavam os ares brasileiros encurtando o tempo das mensagens. Novamente Alex Viany concedeu ao filme do amigo uma temática que ele não continha. Nós o assistimos quando tínhamos 18 anos, e muita coisa pode ter-nos passada desapercebida mas, novamente, os participantes negaram qualquer intenção conteudística semelhante a aventada pelo critico e historiador. Raul foi apresentador na televisão brasileira e todas as vezes que os americanos filmavam no Brasil, ele os procurava. No final da década 70 insistimos continuadamente para que ele desse um depoimento ao Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, porém, ele sempre mostrou-se refratário, afirmando que isso poderia ser interpretado como uma estátua em vida. Faleceu inteiramente esquecido – coisa que muito o molestava - a 8 de dezembro de 2.000 aos 95 anos.
Somente em 1939, Raul consegue reunir meios para filmar Aves Sem Ninho, apesar de contar com o patrocínio explícito da esposa do ditador Vargas. Em 1949, trabalha em Jangada, filmado no Ceará, sobre uma revolução de escravos. O pesquisador cearense, Ary Bezerra Leite, que tanto nos assessorou neste trabalho tem farto material sobre o desejo de Roulien de filmar esse tema desde 1935. Infelizmente um incêndio que atingiu todos os negativos interrompeu a obra. No ano seguinte inicia Asas do Brasil, sobre as finalidades do Correio Nacional. Outro incêndio, desta vez na Sonofilmes, coprodutora, novamente interrompe a produção. Sete anos depois, na Atlântida, Moacyr Fenelon
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RELAÇÃO FILMOGRÁFICA POR ORDEM CRONOLÓGICA DE PROJEÇÃO AMERICANA. Charlie Chan Carries On – Eram 13 e Astucia de C.C. Dir: Hamilton MacFedden Elenco: Warner Oland, John Garrick, Marguerit Churchill, Warren Hymer USA, 1931 – SP. 5 de outubro de 1931, Odeon, Sala Azul- SP. Eram 13, 13-02-1933, Odeon, s/a Rio, 12 de agosto de 1931 - em inglês - 100 minutos Deliciosa ( Delicious) 1931 Dir: David Butler - Arg: Guy Bolton e Sonia Levien - Fot: Ernest Palmer Canções: George e Ira Gershwin Elenco: Jannet Gaynor, Charles Farrow, El Brendel, Lawrence O’Sullivan, Virginia Cherrill, Mischa Auer, Manya Roberti, Marvine Maazel, Jeanett Gegna, Olive Tell, Lawrence O’Sullivan. USA - 27 de dezembro de 1931 - 06-06- 1932 no Odeon Sala Vermelha – Fortaleza, no Moderno e Majestic a 24 de dezembro de 1932. - Rio, Cine Arte, 27 de julho de 1932 - 106 minutos Mulheres e Aparências – Careless Lady - 1932 Dir:Kenneth MacKena;- arg. Window´s Might, de Reita Lambert;- adap. Guy Bolton;- edic. Alex Troffey, canções de Ira e George Gershwin. Elenco: Joan Bennett, John Boles, Nora Lane, Mina Gombell, Weldon Heyburn, Fortunio Bonanova, Richard Tucker, James Kirkwood, Josephine Hall, Gino Corrado, Marcelle Corday, André Cheron. USA, 18 de abril de 1932 - SP. 09-01- 33 no Odeon Sala Vermelha - não foi exibida em Fortaleza - 78 minutos Promotor Público – State´s Attorney – Ultima Acusação - 1932 R.K.O Radio Pictures Inc.- Dir: George Archainbaud - prod: David O. Selznick- arg: Louis Stevens, Gene Fowler e Rowland Brown - edit: William Hamilton – fot: Leo Tover Elenco: John Barrymore, Helen Twelvetress, Jill Esmond, William Boyd, Mary Duncan, Oscar Apfel, Ralph Ince, Frederick Buston, Ethel Sutherland, Leon Waycoff, C. Henry Gordon, Paul Hurston, Raul Roulien (como Señor Alvarado) USA- 5 de maio de 1932 – SP. Rosário, 31 de abril de 1933. - Fortaleza no Moderno em 04 de fevereiro de 1936 - Rio, inicio de junho de 1933. 79 min, 9 rolos – sonoro
A Mulher Pintada – The Painted Woman – 1932 Dir: John Blystone - arg: peça “After the Rain”, de Alfred C. Kennedy - adap: Guy Bolton e Leo Gordon - ediç : Alex Troffey – mus: Hugo Friedhofer – fot: Ernest Palmer . Elenco: Spencer Tracy, Peggy Shannon, Irving Pichel, Raul Roulien, William Boyd, Irving Pichel, Murray Kinnell, Laska Winters, Chris-Pin Martin, Paul Porcasi, Stanley Fields, Wade Boteler, Jack Kennedy, Dewey Robinson. USA – 21 agosto de 1932 - SP. 5 de junho de 1933, no Odeon Sala Vermelha Fortaleza no Moderno 10 de julho de 1934; reprisado no Majestic em 22 de abril de 1936 - 73 minutos. O Último Varão Sobre A Terra - El Ultimo Varon Sobre la Tierra - It´s Great to Be Alive 1933 Dir: James Tiling - arg: “The Last Man of Eath” de John D. Swan - arg: Paul Perez e William Kernell – adap: José Lopez Pubio - fot: Ray Jimme – Letras e Mùsicas de William Kernell - José López Rubio - Canções: “Good Bye Ladies” (Adiós a las Mujeres), “I´ll Build a Nest” (Un Nido Haremos para los Dos), “Women” (Mujeres), e “It´s Great to Be the Only Man Alive” (Un Moderno Barba Azul) Elenco: Raoul Roulien e Rosita Moreno, Mimi Aguglia, Carmem Rodrigues, Romualdo Tirado, Hilda Moreno, Antonio Vidal, Luiz Segovia, Ligia de Golconda, Lita Santos. USA-8 de julho de 1933 - SP.05-06-1933 no Odeon - Fortaleza simultaneamente nos Cinemas Moderno e Majestic no dia 25 de dezembro de 1933 1933 – EUA – comédia musical - 7 rolos 69 minutos Voando Para O Rio – Flyng Down To Rio 1933 R.K.O. Radio - prod: Merian C. Cooper - 89 min Dir: Thornton Freeland –- estoria original de Lou Brock e da peça de Ann Caldwell e Lou
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Brock – cen: Cyril Hume, H.W. Hanneman e Erwin Gelsey - fot: J. Roy Hunt - mus: Max Steiner - canç: “Flying Down to Rio”, “Carioca”, “ Orchids in the Moonlight” – ed:: Jack Kitchin –dir arte: George Nichols Jr. Elenco: Dolores Del Rio, Gene Raymond, Raul Roulien, Ginger Rogers, Fred Astaire, Blanche Friderici, Etta Moten, Walter Walker, Paul Porcasi, Reginald Barlow, Roy D´Arcy, Maurice Black, Armand Kaliz, Eric Blore, Joel Mc Crea, Mowita Castenada, Reginald Barlow, Alice Gentle, Franklin Pangborn, Luis Alberni, George Chandler.
USA, 29 de dezembro de 1933 – SP. Broadway- 9 de julho de 1934 – Fortaleza, no Cine Moderno, em 19 de maio de 1935. Rio; 25 de maio no Império e Gloria – 5 de junho em Santos, no Colyseu – 5 de junho em Recife, no Moderno – 8 de junho em Porto Alegre, no Apolo.
FOX - A Primavera de Outono 1933 Dir: Eugene Forde - prod: John Stone - arg: peça de Gregorio Martínez Sierra- adap: John Reinhardt e José López Rubio - fot: Robert H. Splank - Elenco:
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Raul Roulien, Catalina Bárcena, Antonio Moreno, Luana Alcañiz, Julio Peña, Mimi Aguglia, Hilda Moreno, Romualdo Trado, Juan Martínez Plá, Adrienne D’Ambricourt, Ada Lozano, Primo Brunetti, Rudolph Anders. 2 de janeiro de 1934 no Odeon Sala Azul – Fortaleza, no Moderno em 9 de maio de 1935.
FOX -Não Deixes A Porta Aberta – No Dexes la Puerta Abierta - Don´t Leave the Door Open: Dir: Miguel de Zárraga– arg: peça de Austen Allen –adap: Guy Boltón, José López Rubio e Paul Perez – mus: Samuel Kaylin –canções: Raul Roulien fot: L. William O’Connell – Elenco: Rosita Moreno, Raul Roulien, Mona Maris, George J. Lewis, Romualdo Tirado, Ralph Navarro, Rosita Granada, Alfred Sabato, Martin Garralaga, Tom Patricola, Manuel Noriega, Blanca Vischer, France Drake, José Peña “Pepet”, Fred Martens, Carlos Villarías USA, 5 de novembro de 1933 SP. 23 de abril de 1934 no Odeon s/v. - Fortaleza no Cine Majestic, em 19 de abril de 1936. - 76 min FOX - Granadeiros do Amor – Granaderos Del Amor Prod: John Stone - Dir: López Rubio e John Sreinahardt - mus: Sam Kaylin e Troy Sanders - fot: Robert H. Planck - Canções (Música de William Kernell, letras de Raul Roulien): “Que es Hotchacha?” , “Granaderos de Napoleon”, “Babette”, “La Mujer fue inventada Para Obedecer” e “Bailemos, Pues”.Elenco: Raul Roulien, Conchita Montenegro, Valentín Parera, Andrés de Segurola, Romualdo Tirado, María Calvo,Carlos Villarías, Lucio Villegas, Paco Moreno, Fred Malatesta, Tito Davidson, José María Sánches García, Francisco Marán, Lita Santos, José Peña “Pepet”, Anita Camargo . USA, 5 de novembro de 1933 - SP. 01-09-1934 – Odeon, Sala Vermelha Fortaleza no Cine Moderno em 20 de agosto de 1936. FOX - A Marcha do Século- The World Moves On prod: Winfield Sheehan - Dir: John Ford – arg./rot./ dial: Reinald Berkeley - mus: Arthur Lange – fot: George Schmeiderman – ed.: Paul Weathermax Elenco: Raul Roulien, Franchot Tone, Madeleine Carroll, Reginald Denny, Siegfried Ruhman, Louise Dresser, Marcelle Corday, Dudley Digges, Lumsden
Hare, Frank Melton, Winter Hall, Claude King, Russell Simpson, Walter McGrail, William Worthington, Stepin Fetchit, Brenda Fowler. USA- 31 de agosto de 1934 – SP. 11-031935 Odeon,- Fortaleza no Cine Moderno em 19 de setembro de 1936 - R i o , Cine Arte – 1 de agosto de 1935 drama histórico - 9.200 pés FOX - Asegure a Su Mujer - Insure Yours Wife prod. John Stone – Dir: Lewis Seiler – Elenco: Raul Roulien e Conchita Montenegro. Foi um dos últimos hispânicos da FOX. 20th Century Fox - - Te Quiero Com Locura – I´m Crazy About You R.R. e Rosita Moreno 1935 20th Century Fox - A Mágica da Música – Music Is Magic –ele tem algumas canções ao lado de Oscar Levant, Sidney Clare e Arthur Johnson. Dir: George Marshall - Alice Faye, Bebe Daniels - 66 minutos –
Maximo Barro
Maximo Barro é professor da Pós Graduação em Argumento e Roteiro da FACOM-FAAP e ministra aulas de Cinema desde 1957, sendo fundador da Faculdade de Comunicação. É responsável pela FILMOTECA FAAP e técnico de cinema desde 1953. Editou cerca de 50 longas-metragens e 200 curta-metragens.
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O Cinema para a Educação
para o Cinema para a Educação...
Luciana Rodrigues
Resumo
Abstract
Um projeto do Senado está em trâmite, visando que haja garantia de espaço obrigatório de projeção de filmes nas escolas. Esse tipo de iniciativa possui bases históricas bastante claras e sua ação demanda visões e ações que vão muito além do simples ato de assistir às obras.
A pending law project created by the Senate endorses mandatory film screening at schools. This type of iniciative bases itself on clear historic foundations, an its action demands an education concept that goes beyond the simple act of watching films.
Palavras-chave
Keywords
Projeção de filmes, Escolas, História, Cinema.
Film screening, Schools, History, Cinema.
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Introdução
Um projeto está em trâmite no Senado, de autoria de Cristovam Buarque (PDT- DF) visando obrigar as escolas brasileiras de ensino médio e fundamental a reservarem 2 horas mensais em suas grades para a exibição de filmes brasileiros. Em seu site o senador justifica: “o cinema é arte que mais facilidade apresenta para ser levada aos alunos nas escolas (...) os jovens que não têm acesso a obras cinematográficas ficam privados de um dos objetivos fundamentais da educação: o desenvolvimento do senso crítico”.1 A despeito de essa frase ter sido amplamente divulgada nas redes sociais, e de ser louvável na tentativa de formação de público para o cinema brasileiro, a ideia não é exatamente nova e podemos afirmar, aliás, que essa visão utilitária da arte, como instrumento ideológico, “educativo”, é secular.
Como minha formação é em audiovisual e não em educação, não pretendo me centrar especificamente nos ambientes escolares e no uso pedagógico cada vez mais frequente do audiovisual nas salas de aula para o ensino de diversas disciplinas. Sobre isso sugiro que sejam lidos outros textos, citados oportunamente na bibliografia, e que, em parte, serviram de base para a reflexão que lhes apresento e que oportunamente aprofundei na disciplina Linguagem, Comunicação e Educação, ministrada pelo professor Adilson Citelli na USP, durante o meu doutorado. Cumpre deixar claro que meu escopo é uma provocação sobre o cinema como instrumento de educação e propaganda, acreditando que, com isso, eu possa ofertar alguma contribuição para a discussão sobre o uso crítico do cinema dentro das escolas de primeiro e segundo grau, partindo do próprio específico da linguagem, na maioria das vezes esquecida ou colocada em último plano quando falamos do uso do audiovisual no ensino básico e fundamental. Para isso lhes proponho uma pequena viagem no tempo. A Origem na Dramaturgia
Na obra A Experiência do Cinema, Ismail Xavier diz que a partir da fruição de um espetáculo de arte o indivíduo é capaz de modificar sua percepção sobre a realidade social. Desde muito cedo ensinamos aos nossos alunos no Departamento de Cinema que o cinema é uma das mais potentes armas de transmissão de conhecimentos, seja para o “bem” seja para o “mal”. É um meio de comunicação impar, pai de diversos outros meios que surgiram e foram adquirindo cada vez mais importância no nosso cotidiano.
Como discutia Michel Foucault na famosa aula inaugural proferida no College de France em dezembro de 1970, intitulada A Ordem do Discurso, a educação é permeada pela prática política de permissão e interdição, de apropriação de discursos “com os saberes e poderes que estes trazem consigo”. Ao citar a Grécia, questionava: Como se a vontade de verdade e as suas peripécias fossem mascaradas pela própria verdade na sua explicação necessária. E a razão disso talvez seja esta: se, com efeito, o discurso verdadeiro já não é, desde os
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Gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, o que é que, no entanto, está em jogo na vontade de verdade, na vontade de o dizer, de dizer o discurso verdadeiro — o que é que está em jogo senão o desejo e o poder? (FOUCAULT. 2010:10) Na Grécia Antiga o discurso do poder já era construído através do uso da dramaturgia2 que exercia uma importância essencial na transmissão do discurso do poder estabelecido, com caráter de “educativo” para o povo grego. Ir ao teatro era uma obrigação, inserida em uma política de educação. Sua relevância era tanta que todos deveriam participar, os presos eram soltos e as mulheres, normalmente excluídas dos atos públicos, faziam parte da assistência, sendo que até o comércio era suspenso durante os festivais dramáticos. Para compreendermos melhor o grau elevado dessa atividade é importante atentar para o filósofo Aristóteles, que escreveu anotações conhecidas como Poética (Arte Poética) onde analisou as
peças do teatro grego e formulou uma série de “normas”, como a necessidade da catarse na dramaturgia, que acabaram por serem em seguidas até os dias atuais nas peças de teatro, nos filmes, nos programas televisivos, entre outros. Aristóteles define que o drama como imitação (mimesis), nascida da vontade humana de ver suas ações representadas. Assim, ao assistir uma peça teatral (trazendo para os dias atuais: um filme, uma telenovela etc.) todos buscamos nos identificar com aquelas situações, dotadas de uma grandeza ideal. Os temas das peças sempre se remetiam a mitos conhecidos, heróis e deuses, tratando de fatos relevantes, históricos e do cotidiano, através de conflitos importantes. Com o passar do tempo os homens comuns e seus dilemas foram crescendo de importância e apequenando o papel dos deuses nas peças. Projeto Cine Educação. Foto cedida pela Via Gutenberg.
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Destaca Aristóteles que as peças visavam ensinar sobre a medida ideal de cada um (métron), ao representarem os reveses nas vidas das personagens, que saiam de suas medidas ideais, mostrando que a omissão ou os atos extremos eram perigosos e podiam gerar graves consequências. Mãe do clímax nos filmes, a catarse era o mecanismo mais eficaz para educar sobre o metron. Graças a ela a audiência atingia as maiores emoções, reconhecendo a si nas personagens que sofriam algum infortúnio como que perante a um espelho, e negavam esse reflexo negativo, sendo educadas para controlar seus sentimentos. Esse movimento visava que a plateia pensasse sobre seu cotidiano e problemas pendentes, atingindo a necessária racionalização, para chegar à medida ideal. O cinema aprendeu bem essa lição, seu poder de identificação (a que vários podem acrescentar: manipulação, alienação...) não foi ignorado desde os seus primórdios, pela grande eficácia na transmissão de discursos, conhecimentos e saberes. O cinema não só é o ápice do que observou Aristóteles, como é também uma eficaz forma didática de reconstruir o mundo, de refletir, revelar e omitir as suas coisas, com diversos critérios ideológicos permeando visões de mundo, construindo discursos. Em um paralelo com a educação: A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso; sabemos no entanto que, na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem consigo. (FOUCAULT. 2010:46)
O Cinema Para Educação Como sabemos o chamado pré-cinema, précinematógrafo, constituiu-se de diversos inventos, no campo da mecânica, da óptica e até bélico. Esses experimentos muitas vezes não passavam de espetáculos de feira. Todavia o mesmo não pode ser afirmado sobre o Kinetoscópio de Thomas Edison, inventado no final do século 19, que já continha elementos próprios do cinema: o celuloide rodando e histórias encenadas (curtas), muito embora dirigidas à recepção individual3, o que foi modificado com o cinematógrafo dos irmãos Lumière. O ato de assistir em silêncio e coletivamente uma transmissão de mensagens para reinterpretálas, introduzida pelo cinema do cinematógrafo, se aproxima, nesse sentido, muito mais do ambiente escolar, tal como se refere Felix Guattari em O Divã do Pobre4. Mas voltando a Thomas Edison: consta que ele teria notado o poder educativo do cinema já nos anos 1920 como cita o professor de Educação da Universidade de Stanford, Larry Cuban abrindo o seu capítulo sobre Film and Radio. The Promise of Bringing the World into the Classroom no seu livro Teachers and Machines. Teria dito Edison, sobre o cinema revolucionar à educação: I believe that the motion picture is destined to revolutionize our educational system and that in a few years it will supplant largely, if not entirely, the use of textbooks. I should say that on the average we get about two percent efficiency out of schoolbooks as they are written today. The education of the future, as I see it, will be conducted through the medium of the motion picture... where it should be possible to obtain one hundred percent efficiency. (EDISON apud CUBAN. 1986: 9)5. Deve ser um dos poucos momentos, senão o único, em que Edison, conhecido por seu empreendedorismo voraz capitalista, se aproximou de Lenin em opiniões, também da mesma época. Pode-se atribuir a Vladmir Ilich Ulianov, Lenin, maior expoente do governo revolucionário soviético, as primeiras defesas arrebatadas sobre a importância do cinema como instrumento pedagógico e de conscientização, refletindo-se no agikti, cinema inserido no processo de agitação e
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propaganda (agit-prop). Nos movimentos de agikti realizadores cinematográficos e de outras artes como teatro, saíam em comboios de propaganda nas zonas rurais onde captavam, revelavam e exibiam as imagens lá filmadas e as do regime, principalmente, a fim de educar as massas analfabetas camponesas. Em 1917, foi criado o Comissariado do Povo para a Instrução Pública (Narkomprost), sob a direção de Lunacharsky e, em 1918, foi aberta uma subseção de cinema (Kinopotdel), que ficou sob a supervisão de Nadezhda Krupskaia. Em 1922 foi criado o Goskino- Cinema do Estado e em 1923 o Proletkino. A nacionalização da indústria da “mais importante das artes”, como considerava Lenin, se deu em 1919, ano que foi criado o GIK- Instituto de Cinematografia Estatal da União, a primeira escola de cinema de que se tem registro6. O que existia neste momento era uma grande vontade política de transformar o cinema em indústria, com autonomia e pessoal capacitado. Entretanto o contexto não era dos mais favoráveis: a Revolução causou evasão de equipamentos e técnicos, principalmente estrangeiros que lá estavam trabalhando. Em face disso as primeiras atitudes a serem tomadas foram a de restauro das peças de propaganda do antigo regime para trabalhos de agikti e a implantação do ensino de cinema (GIK). O cineasta russo Sergei Eisenstein, um dos maiores realizadores e pensadores sobre cinema, materializava a unidade entre formas e conteúdos, pensando de forma didática sobre a linguagem fílmica. O cinema como gerador e propagador de conceitos, ideias e sistemas. Os agit prop inspiraram nos anos de 1960 o Centro Popular de Cultura (CPC) e a UNE Volante no Brasil, que abordaremos depois.7 Ao se falar sobre Estado, propaganda e cinema, é praticamente impossível não se referir à cineasta alemã Leni Riefenstahl. A forma revolucionária da utilização da linguagem cinematográfica, seu modo de captar e editar as imagens em prol do nazismo são exemplos incontestáveis sobre como o cinema pode construir verdades. Fazendo com suas obras o que Milton José de Almeida chamou, em 1999 em Cinema: arte da memória de “um instrumento de educação visual”.
E o cinema não adquiriu grande status como instrumento de educação de massas e propaganda ideológica apenas nos países citados. Para os Estados Unidos a indústria cinematográfica foi essencial para exportar seu modo de vida para as outras nações e seus cineastas foram arregimentados sempre que necessária a imposição de uma visão dominante dentro e fora do seu país. Outros exemplos correntes europeus: a Itália8 de Mussollini criou órgãos estatais de cinema com vistas à propaganda e educação, tal como se deu na Alemanha, e na França foi vasta a produção de “filmes científicos”. Sem perder esse trem no Brasil o primeiro órgão exclusivo de cinema foi o INSTITUTO NACIONAL DE CINEMA EDUCATIVO, o INCE, que falaremos depois. Voltando à Europa gostaria de dar destaque, nesse momento, à produção cinematográfica da Grã- Bretanha das décadas de 1930 e 1940, capitaneada por John Grierson.9 Grierson foi um dos maiores expoentes do cinema documentário inglês e via nestes filmes uma forma de poesia, verdadeiras obras de arte, o que não lhe impediu de defender que eles deveriam recortar situações da vida e reinterpretar o mundo real de forma a criar uma verdadeira intervenção social. Ao analisar a difícil situação gerada na Europa com o advento da Segunda Guerra Mundial, Grierson considerava que a sociedade não estava preparada para enfrentar as mudanças de diversos níveis que estavam se precipitando. As instituições, inclusive as escolares, estavam defasadas e não preparavam para superação da desorganização, pública e privada, que estavam atravessando. Claramente hasteava a bandeira de que só a educação, servindo a um propósito comum, poderia contribuir para a superação das intempéries, mas ela teria de ser seriamente reformulada. Para tal pregava o fim da educação voltada para objetivos privados, ansiando por uma que formasse cidadãos, com consciência de
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sua responsabilidade pública, visando um futuro melhor. Na visão desse cineasta as práticas educacionais deveriam ir além dos bancos escolares, deveriam ser estatais e em todos os níveis, incluindo, e utilizando também, os meios de comunicação, com relevância no rádio e no cinema. A propaganda serviria como instrumento pedagógico sob a égide da democracia, ressaltava, diferenciandose dos estados nazista e fascista. Os meios de comunicação, principalmente fazendo documentários, serviriam para instruírem e instrumentalizarem os cidadãos para melhor exercerem sua cidadania, estreitando as relações entre sociedade e estado, a sua compreensão é a de que esse esforço facilitaria a educação de jovens e adultos. O que nos remete novamente ao teatro na Grécia Antiga, no sentido da identificação, ao verem pessoas comuns representadas e a natureza viva. De forma a aliar cinema e educação, esse britânico dava como exemplo filmes que poderiam mostrar agentes públicos, bombeiros e carteiros, relatando para crianças seus atos de trabalho, inspirando nelas os ideais de cidadania. Contrapunha-se Grierson ao cinema de Hollywood, em sua defesa intransigente do cinema documentário: O material e as histórias extraídas da realidade em seu estado bruto podem ser mais (mais reais no sentido filosófico) que o material interpretado. O gesto espontâneo na tela tem um valor particular. O cinema possui a extraordinária capacidade de valorizar o gesto que a tradição tornou banal. Seu retângulo arbitrário revela especialmente o movimento. Valoriza o movimento no tempo e no espaço. acrescentemos a isso que o documentário permite atingir um nível de conhecimento imediato que os mecanismos artificiais dos estúdios e as interpretações ‘delicadas’ dos atores não conseguem igualar (CATELLI apud GRIERSON. 1997: 66).
O Brasil não ficou de fora desse debate sobre cinema como instrumento de educação. No início do século passado já havia discussões em torno desse tema, vindo das mais diferentes vertentes, inclusive ideológicas, da esquerda a direita, de cristãos a ateus. A igreja católica há muito participava dessas polêmicas, mas foi o ano de 1936 que marcou a manifestação oficial do Vaticano sobre o cinema, através do lançamento, pelo Papa Pio XI, da Encíclica Vigilanti Cura, curiosamente no mesmo ano em que foi criado o primeiro órgão estatal de cinema no Brasil, o INCE. A Vigilanti Cura dizia que “O cinema precisa colocar-se a serviço do aperfeiçoamento do homem” e lembrava que em agosto de 1934 foi proferida a encíclica Divini illius magistri, lamentando: “que tais poderosos meios de divulgação, que podem ser, quando inspirados por princípios sãos, de grande utilidade para a instrução e educação, são muitas vezes desgraçadamente subordinados ao fomento dos instintos maus, à avidez do lucro”. Essa Encíclica de 1936 reforçava o cinema como instrumento de educação e reconhecia o seu poder “para o bem e para o mal” (sic) e chamava os cristãos, inclusive os que trabalhavam com cinema, para assumirem um compromisso solene de proteger no futuro a moralidade dos frequentadores do cinema. Em virtude dessa promessa, comprometer-se-iam todos os envolvidos no processo cinematográfico a expressamente nunca exibirem um filme “que rebaixasse o senso moral dos espectadores, que ferisse a lei natural e humana ou que mostrasse simpatia pela violação da mesma.” (sic) Apesar de extenso, permito-me reproduzir um trecho da Encíclica, na parte em que analisa detalhadamente mecanismos fílmicos, como demonstração do que eles podem causar: Aspectos que esclarecem a força dos filmes: a) exibidos para grandes grupos 23. Estas nossas observações são tanto mais graves por falar uma representação de cinema não a pessoas separadas, e sim a grandes reuniões, e isto em condições de lugar e tempo que podem levar a um entusiasmo depravado, como também a um ardor ótimo; entusiasmo que pode chegar a uma louca e geral concitação, que pela experiência tão bem conhecemos. b) em salas semi-obscuras
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24. As figuras cinematográficas são mostradas a pessoas sentadas em meiaescuridão e cujas faculdades mentais, e mesmo forças espirituais, estão frequentemente descontroladas. Não é necessário ir longe para encontrar essas salas; estão em geral ao lado das casas, das igrejas e dos grupos escolares, levando assim o cinema ao meio da vida a sua influência suma e suma importância. c) a sedução dos atores e atrizes 25. As variadíssimas cenas no cinema são representadas por homens e mulheres escolhidos sob o critério da arte e de um conjunto de qualidades naturais, e que se exibem num aparato tão deslumbrante a se tornarem às vezes uma causa de sedução, principalmente para a mocidade. O cinema ainda tem a seu serviço a música, as salas luxuosas, o realismo vigoroso, todas as formas do capricho na extravagância. E por isso seu encanto se exerce com um atrativo particular sobre as crianças e os adolescentes. Justamente na idade, na qual o senso moral está em formação, quando se desenvolvem as noções e os sentimentos de justiça e de retidão, dos deveres e das obrigações, do ideal da vida, é que o cinema toma uma posição preponderante. 33. Os bispos do mundo inteiro, porém, devem esforçar-se para esclarecer os industriais do cinema, fazendo-os compreender que uma força tão poderosa e universal pode ser dirigida utilmente para um fim muito elevado, como seja o aperfeiçoamento individual e social da humanidade. E não é só questão de evitar o mal. Os filmes não devem somente ocupar as horas vagas de lazer, mas podem e devem, por sua força magnífica, ilustrar as mentes dos espectadores e dirigi-los positivamente para todas as virtudes. (VIGILANTI CURA. 1936) Em particular uma parte demonstra o poder maior do específico cinematográfico sobre a palavra, oral ou escrita para transmitir mensagens: 19. O poder do cinema provém de que ele fala por meio da imagem, que a inteligência recebe com alegria e sem esforço, mesmo se tratando de uma alma rude e primitiva,
desprovida de capacidade ou ao menos do desejo de fazer esforço para a abstração e a dedução que acompanha o raciocínio. Para a leitura e audição, sempre se requer atenção e um esforço mental que, no espetáculo cinematográfico, é substituído pelo prazer continuado, resultante da sucessão de figuras concretas. No cinema falado, este poder atua ainda com maior força, porque a interpretação dos fatos se torna muito fácil e a música ajunta um novo encanto à ação dramática. Se nos entreatos se acrescentam danças e variedades, as paixões recebem excitações das mais perigosas, que avultam vertiginosamente. (VIGILANTI CURA. 1936) E os católicos foram conclamados a atuarem usando o cinema como meio de transmissão de lições: A cinematografia realmente é para a maioria dos homens uma lição de coisas que instrui mais eficazmente no bem e no mal, do que o raciocínio abstrato. É, pois, necessário que o cinema, erguendo-se ao nível da consciência cristã, sirva à difusão dos seus ideais e deixe de ser um meio de depravação e de desmoralização. (VIGILANTI CURA. 1936) Assim os fiéis atenderam esse chamado e começaram um grande número de cursos livres e cineclubes. No Brasil, com a inexistência de cursos de cinema longa duração, que só começaram com atividades regulares nos anos de 1960, os primeiros debates sobre filmes se deram dentro dos cineclubes e o movimento cineclubista cresceu muito dentro das escolas, como explica o professor André Gatti ao falar sobre o cineclube São Paulo: Manteve uma série de atividades, como exibições cinematográficas,
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cursos e seminários, que influenciaram toda uma geração, quando serviu, também, de modelo para os futuros cineclubes. Estes funcionaram como uma verdadeira escola de cinema para os frequentadores, num período em que não existiam cursos similares no país. (GATTI. Cineclube. In RAMOS e MIRANDA, 2000: 128) O Cine Clube Universitário, após movimento liderado por Plínio de Arruda Sampaio, foi inaugurado em 1952 e em 1954, Saulo Pereira de Melo e Joaquim de Pedro Andrade fundaram o Centro de Estudos Cinematográficos na Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro. No ano de 1960 a Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro efetuou cursos de iniciação cinematográfica em dez escolas de segundo grau, criando cineclubes consagrados. Outro cineclube importante, mineiro, foi o Cine-clube Belo Horizonte, que iniciou formalmente suas atividades em 3 de fevereiro de 1959, ligado à Igreja Católica: A orientação católica, no período aqui considerado- da criação do Cineclube da ASA10, em 1957, e do CineClube de Belo Horizonte- CCBH, em 1961- sofreu alteração radical passando de uma visão moralista, vinda da Vigilanti Cura, a uma visão compromissada com o homem brasileiro, segundo a orientação da Encíclica Mater et Magister e acompanhando as mudanças sociais ocorridas no país, na década de 60. (RIBEIRO. 1997: 48) A Igreja Católica, como já dito, possuía grande interesse no uso do cinema para educação ministrando seminários em escolas de segundo grau e em universidades, para formação de público e educação das crianças, jovens e adultos. Em 1952 André Ruskowski e Fernand Cadieu vêm ao Brasil onde orientam católicos a praticarem trabalhos de cultura cinematográfica. Em São Paulo orientam os jovens
Hélio Furtado do Amaral e Álvaro Malheiro, que iniciam um Curso de Iniciação Cinematográfica integrado no currículum do curso secundário do Colégio Des Oiseaux11. Este curso será repetido anualmente. (ANDRADE, 1962: 14) Desde 1953 a Conferência Nacional de Bispos, CNBB, havia criado o Centro de Orientação Cinematográfica, presidido pelo padre Guido Logger. Desse movimento nasceu, em 1962, a Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais12, fundada pelo frei Urbano Plentz, Carmem Gomes, militantes do cineclubismo católico e pelo padre Edeimar Massote que: (...) no início da década de 60, juntamente com o padre José Lopes, que, também, iria criar uma Escola de Cinema em São Paulo13, participou de um curso de quinze dias em São Leopoldo (RS)14 ministrado pelos professores Hélio Furtado do Amaral e padre Guido Logger. (RIBEIRO. 1997: 161) Assim, além da criação de diversos cineclubes pelo país, principalmente nos anos 60, a igreja católica seria responsável por significativas atividades de educação ligadas ao cinema, a partir de um movimento regido pelos padres Logger, Massote e José Lopes, alem de Hélio Furtado do Amaral e Humberto Didonet15. Logger e Amaral iniciaram uma série de cursos: Belo Horizonte e Ribeirão Preto em 1956, Vitória em 1958, Porto Alegre e Campinas em 1960. Este grupo também inspiraria a constituição da Equipe de Formação Cinematográfica, integrada pela Confederação das Famílias Cristãs em São Paulo, que de 1955 a 1958 deu aulas de iniciação cinematográfica em oito colégios católicos de São Paulo. Neste período a Liga Independente das Senhoras Católicas convidou o professor Paulo Emílio Sales Gomes para ministrar um Curso de Formação Cinematográfica, o que efetivamente ocorreu no ano de 1957, utilizando filmes clássicos da Cinemateca Brasileira. Os alunos do Curso de Formação Cinematográfica organizado por Hélio Furtado do Amaral, participaram da fundação, em 1958, do Cineclube Dom Vital de São Paulo, instituído pelos pesquisadores Rudá de Andrade e Carlos Vieira16. Uma nova orientação da Igreja Católica, mais flexível, se deu em função da Encíclica do Papa PIO XII, Miranda Prorsus , Sobre a Cinematografia, o Rádio e a Televisão, de 1957
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Em face ao tema a que me propus discutir, acrescento sua parte sobre ensino e meios de comunicação: Ensino O mesmo se pode dizer e com mais razão do ensino, ao qual o filme didático, a rádio e mais ainda a televisão escolar, oferecem possibilidades novas e inesperadas, e não só para os jovens mas também para os adultos. Todavia a utilização no ensino destas novas e prometedoras técnicas, não deve opor-se aos imprescritíveis direitos da Igreja e da família no campo da educação da juventude. Em especial ousamos esperar que as técnicas de difusão, - quer estejam nas mãos do Estado, quer se encontrem confiadas à iniciativa particular - não se venham nunca a tornar responsáveis dum ensino sem Deus. Bem sabemos infelizmente que em certas nações, dominadas pelo comunismo ateu, se usam até nas escolas os meios audivisivos para propaganda contra a religião. Estas formas de opressão das consciências juvenis, que se privam da verdade divina, libertadora dos espíritos, (28) são um dos aspectos mais ignóbeis da perseguição religiosa. Quanto de Nós depende, desejamos que no ensino católico sejam oportunamente usados os meios audivisivos para completar a formação cultural e profissional, e “sobretudo ... a formação cristã: base fundamental de todo o progresso autêntico”. (29) Queremos até manifestar o Nosso agrado a todos os educadores e professores que utilizam devidamente para tão nobre fim o filme, a rádio e a televisão. (MIRANDA PRORSUS. 1957) Este papel instrumental do cinema, como educador, permeou as atividades da Igreja Católica nas escolas do ensino fundamental e médio nas décadas de 1950 e 1960 e a formação de mão- de obra nos cursos de cinema nas Instituições de Ensino Superior para os canais educativos em décadas posteriores. Voltando um pouco no tempo: tal como se deu internacionalmente, com os Estados e a Igreja reconhecendo a força do cinema para educar, no Brasil em 1936, foi criado o INCE - Instituto Nacional
de Cinema Educativo, que teve Humberto Mauro como diretor técnico e principal responsável pela realização de cerca de 350 filmes, científicos e pedagógicos, a fim de atingir o público escolar, dentro do espírito do cinema como instrumento de educação, em consonância com o projeto do antropólogo Edgar Roquete Pinto. O primeiro órgão oficial no Brasil especificamente planejado para o cinema, possuindo uma função estritamente pedagógica [...], tendo como definição principal [...] fornecer um programa geral para a educação das massas que valorizasse, principalmente, os aspectos variados e desconhecidos da cultura brasileira. ( VIEIRA. in RAMOS. 1987: 149-150). O Brasil dos filmes do INCE era um Brasil da paz e da beleza, algo para termos orgulho, construindo os alicerces que definiriam nossa identidade nacional, no ufanismo necessário para que a ideia de Nação fosse difundida e consolidada, dentro da necessidade do projeto político do Estado Novo. Um país único com o poder federal, centralizado em Getúlio Vargas, e não mais apenas um agrupamento de estados e regiões. Dentro desse projeto, as políticas para cultura e educação foram intensificadas, dirigida para iletrados, criando marcas e símbolos unificadores das regiões, como bem detalha a professora Monica Rugai Bastos em sua tese O espelho da nação: a cultura como objeto de política no governo de Fernando Henrique Cardoso. Cria-se um paradoxo: por um lado os meios de comunicação e as artes sofriam censura, acentuada de 1934 a 1945, por outro, intelectuais e artistas participavam dessa cruzada de resgate (criação?) de uma identidade nacional. Não incorretamente os filmes do INCE era criticados por serem correias de transmissão de uma visão artificial/estatal. Marília Franco, em seu artigo Cinema e Educação, discorre sobre tal condição e conclui que isso acabou por afastar do cinema brasileiro muitas gerações de educadores, que não viam nele
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algo de valor a ser usado pedagogicamente. Somente em meados dos anos de 1980 é que o audiovisual começa, ainda que de forma tímida, a vencer os preconceitos, para ser utilizado nas salas de aula. A resistência dos educadores de ensino básico e fundamental no uso do cinema dentro das escolas ainda existe se estendendo do espaço escolar para outros meios de comunicação, tais como a televisão e a internet, tratados como meros instrumentos de reprodução de uma ideologia dominante e/ou alienação e/ou simples fruição passiva, considerando a escola como a única instituição legítima de transmissão de saber. Todavia se as escolas resistiram, durante muito tempo, a verem o cinema como um aliado, os estudantes nunca deixaram de incorporá-lo nas suas lutas. Uma espécie de agit prop foi criado pela UNE durante o início dos anos de 1960, que teve seu fim com a ditadura militar. Esse movimento, inspirado no pernambucano Movimento de Cultura Popular - MCP, de Miguel Arraes, gerou a criação do Centro Popular de Cultura (CPC) e a UNE Volante, multiplicados em diversos grupos ao longo do Brasil, que pretendiam promover a educação popular através da cultura, unindo artistas, estudantes e intelectuais. O CPC tinha uma produção artística própria e dentro do cinema realizou o emblemático filme Cinco Vezes Favela, em 1962, com direção de Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias, Miguel Borges e Cacá Diegues. Apresentavam-se em bairros, sindicatos, escolas, associações e portas de fábrica. Consideraram, entretanto, que foi uma experiência vitoriosa na classe média, intelectuais e estudantes, mas que haviam fracassado junto aos operários. Segundo a avaliação do movimento isso se deu porque os operários, sufocados pela opressão do sistema, não tinham atração por atividades que lhes pareciam lúdicas. Nesse sentido pretenderam fazer uma mudança de curso, para associar as atividades culturais, em especial o teatro, para o alfabetizado ou a
formação técnica, todavia tiveram de concluir suas atividades em decorrência do Golpe, em 1964. Outro destaque, a despeito de toda a inegável repressão da época, foi a união de diversos jovens cineastas, como Sergio Muniz, Geraldo Sarno, Maurice Capovilla e Paulo Gil Soares, que realizaram documentários de 1968 a 1970, na conhecida Caravana Farkas, nome que se deveu ao principal aglutinador do grupo, o produtor e fotógrafo Thomaz Farkas. A caravana partiu do Nordeste brasileiro, registrando a cultura popular nas suas mais diversas manifestações, modificadas fatalmente pela ação da modernização acelerada. Seguia uma linha de “dar voz” ao povo (ao “dono” dela), como analisa Jean- Claude Bernardet em seu livro Cineastas e Imagens do Povo. Dentro desse pequeno esboço histórico do uso do cinema como ferramenta de transmissão de discursos, que aqui procurei apresentar, resta a pergunta: quais os desafios que hoje se colocam para a consolidação e o reconhecimento da importância do CINEMA e do AUDIOVISUAL na educação? A Educação para o Cinema No texto Heredando el futuro. Pensar la educación desde la comunicación., Martín-Barbero nos traz uma importante lição acerca dos debates culturais enfrentados pela escola na contemporaneidade, o desafio “que torna visível a distância cada dia maior entre a cultura ensinada pelos professores e aquela aprendida pelos alunos”. (1995:19). Para esse autor a escola é o espaço a priori de reinvenção imaginativa e criativa do espaço público, mas há um abismo cultural entre os docentes e discentes. De fato ouvimos as mais diversas queixas de professores acerca das dificuldades em ensinar os jovens de hoje, dizem que eles não leem, não se interessam pelas matérias, não se concentram, não têm paciência para as palestras e para o aprendizado gradativo... debrucei-me sobre esse assunto na minha tese de doutorado e incorporei-o em parte em minha Comunicação no XVI Encontro da Sociedade Brasileira de Pesquisadores, a SOCINE, permitindo-me, em maior ou menor grau, reproduzi-la no presente artigo. A dificuldade de diálogo muitas vezes reside na incompreensão de que uma nova geração
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vem ocupando as salas de aula, dotada de peculiaridades sem par com situações anteriores. Em razão dos impactos, inclusive psíquicos, que as tecnologias de informação causaram, em velocidade e emergência, muitos estudiosos defendem que esta nova geração, nascida na era digital, é completamente diversa de quaisquer outras na sua forma de pensar e agir. Os chamados “nativos digitais” vêm sendo estudados de diversas teses internacionais. Atribui-se tal termo a Marc Prensky, especialista em tecnologia e educação, que também cunhou a denominação de “imigrantes digitais”. Em diversos trabalhos o autor procura definir quais as características de um e de outro. Nativos digitais seriam os que nasceram em tempos de linguagem digital, dos computadores, videogames e da internet. Usam instantaneamente o hipertexto, ao mesmo tempo mandam mensagens em celulares, twitam, postam, baixam músicas e leem e-books. Cresceram sob o signo da circulação audiovisual, não só estão cercados por produtos audiovisuais que podem ser vistos em qualquer tempo e local como fazem filmes com seus celulares, os editam e postam em canais de vídeos, tudo sem sair de suas casas. Nos anos de 1990 já constatava Orozco Gomes que os meios de comunicação estavam adquirindo cada vez mais importância na formação das crianças, que “aprendem mais e mais rapidamente dos diversos meios de comunicação, e em especial da TV, que do professor na escola” (1997:60). Nessa mesma linha Adilson Citelli nota a existência dessa cultura apreendida pelos alunos, que se adquire nessas escolas “paralelas”, que pressionam “o sistema educativo, requisitando dele práticas e compreensões já não mais circunscritas ao discurso pedagógico, segundo tradicionalmente veiculado pelas instituições escolares” (2000: 136137). Os professores seriam os “imigrantes digitais”: todos os que conheceram o digital em outros momentos de suas vidas e, de alguma forma, foram adotados e adotaram-no, ficando por este, no todo ou em parte, fascinados sem, entretanto, nunca agirem da mesma forma que os nativos, como fala Prensky. Não é possível ignorar que esta geração nativa digital imprime uma nova realidade dentro das escolas e cria quase um paradoxo: se por um lado
um número grande de estudantes já tem contato com equipamentos de captação de vídeo e edição por outro, muitos simplesmente não frequentam as salas de cinema e são completos analfabetos na compreensão das linguagens audiovisuais. Em face desses e de outros estudos começou a ser discutida a essencialidade e a urgência de convergir educação com a comunicação, em um novo campo teóricoprático. Esses estudos vêm crescendo nos últimos anos e se aperfeiçoando. Na década de 1980 começou a ser usado, crê-se que cunhado pelo comunicador da Argentina Mário Kaplun, o termo Educomunicação, como estudo e prática que agrega duas áreas, para dar conta desses desafios contemporâneos. As reflexões sobre Educomunicação, ou comunicação educativa, cresceram e começaram a ser reformuladas, via diversas instituições de ensino. Defende Ismar Soares, no texto Ecossistemas Comunicativos, que a criação e fortalecimento de “ecossistemas comunicativos” devem abolir as formas autoritárias de comunicação, com a criação de espaços abertos e democráticos entre professores e alunos e escola e comunidade. Para ele a Educomunicação pode ser definida como: ... o conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e avaliação de processos, programas e produtos destinados a criar e a fortalecer ecossistemas comunicativos em espaços educativos presenciais ou virtuais, tais como escolas, centros culturais, emissoras de TV e rádio educativos, centros produtores de materiais educativos analógicos e digitais, centros coordenadores de educação a distância ou ‘e-learning’, e outros... (SOARES. 1999: 115) Segundo o que apresenta Citelli, sistematizado no texto que encaminhou
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para o encontro da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación, ALAIC, na Argentina em 2004, a Educomunicação possui quatro grandes eixos: 1- Como campo de dimensão teóricoprática 2- Como campo de reflexão que decorre de novas formas de organizar a informação e o conhecimento, tornando convergente em amplo sentido os termos educação e comunicação, não só como interpessoalidade mas também naquela mediada pelas novas tecnologias 3- Em termos teórico- práticos: para se levar as novas tecnologias e os meios de comunicação para instituições de ensino faz-se necessárias definições sobre objetivos, planejamento de ações comunicativo- educacionais, incorporando “uma nova maneira de organizar a sociedade e reconhecer outra dinâmica da cultura, agora marcada por forte urbanização e distintas relações com o tempo e espaço. Vale dizer, falamos numa quase redução do conceito de instância pública e ao de meios de comunicação” . A necessidade de “modernizar o discurso pedagógico”, para além da simples, e ineficaz, utilização de “vídeo, jornal ou televisão na sala de aula como manifestações de circunstância ou apoios técnicos impostos à dinâmica escolar” 4- Com respeito a esses pressupostos o ingresso das novas tecnologias e da comunicação nas escolas torna-se um dever para criação e ampliação da democracia e da cidadania. Ou seja, os meios de comunicação e as tecnologias devem ser incorporados criticamente às salas de aula, para além do simples, mas importante, ato de assistir a uma obra audiovisual. Todos esses meios devem ser entendidos além de sua função de meio, mas como linguagem em toda a sua totalidade. Como diz Citelli, ao
falar sobre televisão, mas que pode ser aplicado a qualquer outro meio e linguagem: Ao que parece, não há um domínio conceitual da televisão que corresponda plenamente ao peso que ela possui como fenômeno social. Assim, o trabalho com a televisão em sala de aula tende, no máximo, a tratá-la como meio técnico que cumpre determinadas funções simbólicas e ideológicas. (CITELLI. 2004: 24) O mesmo se pode afirmar sobre o cinema: as escolas necessitam entender e trabalhar o cinema como Linguagem, dotada de sintaxes, signos, significantes e significados, como discurso dotado de particularidades que são somente suas e o projeto do senador Buarque apesar de um passo importante, não pode ser considerado o único. A escola tem papel fundamental para orientar os alunos a compreenderem criticamente os filmes que assistem, a saberem distinguir as mensagens que eles transmitem, a construção do seu “discurso” e o seu “ritual”, utilizando os termos trabalhados por Michel Foucault em A Ordem do Discurso. Vem ser tornando necessário, assim, imprimir uma nova realidade dentro das escolas, e nesse sentido o estudo de cinema e audiovisual tem muito a contribuir e a ganhar. O cinema cresceria e se qualificaria com uma formação para o estudo da linguagem e estéticas em todos os níveis de ensino. Além de divulgar o cinema brasileiro, de “formar público”, são necessárias políticas que trabalhem na formação de um olhar crítico sobre o audiovisual e suas diversas manifestações. Ressalte-se que um número cada vez mais expressivo de filmes vem sendo utilizado nas salas de aula brasileiras. Embora através de observações empíricas é possível notar que normalmente são utilizados como objetos descolados de sua linguagem e estética, meros suportes para disciplinas como língua portuguesa, história, geografia etc. Ademais o cinema brasileiro ainda é pouco conhecido pelos próprios professores, que acabam exibindo, muitas vezes com recursos e equipamentos audiovisuais precários, filmes considerados blockbusters. Hão de ser estabelecidas ações para que os professores das escolas de primeiro e segundo grau sejam orientados para o entendimento de como se
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dá esse processo de produção de sentidos pelo cinema, desvendando os potenciais da linguagem cinematográfica. Isso não se dará de forma espontânea ou individual, é necessário que haja uma formação continuada destes profissionais. Para tanto vale salientar uma experiência emergente, um novo curso na Universidade Federal Fluminense que é uma licenciatura que objetiva a formação de professores especialistas em audiovisual para ministrarem disciplinas nas escolas ensino fundamental e médio. É importante que o estudo do cinema e audiovisual faça parte dos currículos das escolas de segundo grau, como formação do olhar e como formação de público para o cinema brasileiro. Os estudantes e professores devem ser dotados de habilidades reflexivas e críticas no uso e apropriação desses dispositivos midiáticos como ferramentas para educação. Esse é um grande desafio que devemos enfrentar, como pesquisadores, educadores, profissionais da comunicação e cidadãos. Vale destacar algumas experiências estão sendo desenvolvidas para suprir esta lacuna, como o Programa Cine-Educação, criado em 2005 entre a Cinemateca Brasileira/Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, a Via Gutenberg e a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Este programa está estruturado e em expansão em diversos estados do País: “A proposta do Programa Cine-Educação nasceu da percepção de que o cinema é bem mais do que entretenimento e diversão. Capaz de propor discussões sobre qualquer tipo de questão, seja ela social, histórica ou de comportamento, a partir de uma diversidade e originalidade absolutas, o cinema propicia a ampliação da visão de mundo e o conhecimento de outras realidades. Dessa forma, o cinema contribui fortemente para a inserção ativa do aluno na sociedade e na sua formação como cidadão”, conforme nos informa a equipe da Via- Gutenberg. Uma equipe de professores universitários da área de cinema na qual fiz parte vêm trabalhando com o Cine-Educação em diversos projetos, como a implantação de materiais didáticos e salas de exibição em 76 escolas públicas do Distrito Federal, agregando aos materiais pedagógicos reflexões essenciais acerca da linguagem audiovisual. Encerro esse trabalho da mesma forma que o comecei: o projeto de exibir filmes brasileiros nas
escolas é muito importante, mas os filmes, para serem usados como recursos didáticos precisam, como ensina Ismail Xavier em A Experiência do Cinema, serem tomados com uma “empresa epistemológica”. Usar a projeção de filmes como material educativo necessita da retirada de seus espaços de circulação mais imediatos, retira-los do seu conceito normal de exibição, do seu status de entretenimento, para o estabelecimento de debates planejados a priori, para que o cinema possa qualificar a escola e a escola possa qualificar o cinema.
NOTAS: 1 - http://cristovam.org.br/portal3/ acesso em setembro de 2012 2 - Começo pelo tema da dramaturgia grega dadas suas estruturas típicas, tais como foram estudadas por Aristóteles, Hegel e outros, que mantém sua inconteste influência sobre o chamado cinema hegemônico clássico. 3 - Alguns estudos apontam que o ato de ver filmes na atualidade aproxima-se do kinetoscópio no sentido da assistência individual geradas pelos filmes nos computadores, tablets e nos celulares 4 - Link: http://www.oestrangeiro.net/index. php?option =com_content&task=view&id= 50&Itemid=51 acesso em março de 2008 5 - Provavelmente estas afirmativas seriam meramente comerciais e não pedagógicas. 6 - Existente até hoje, chamada de VGIK. 7 - Também nos parece clara a inspiração à Caravana Farkas, tratada no presente artigo. 8 - Não por acaso é da Italia a segunda escola superior de cinema mais antiga do mundo, chamada de Scuola Nazionale di Cinema, ex- Centro Sperimentale di Cinematografia (CSC). 9 - Existem muitos estudos sobre Grierson, como ponto de partida há artigo de Rosana Catelli chamado de Cinema e Educação em John Grierson in http://www.mnemocine. com.br/aruanda/cineducemgrierson.htm acesso em fevereiro de 2010.
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10 - Ação Social Arquidiocesana. Em 1963 o Pe. Logger inicia na ASA uma série de cursos de cinema. 11 - Dirigido pelas Cônegas Regulares de Santo Agostinho, importante instituição religiosa de Ensino da cidade de São Paulo. 12 - Que foi, de fato, o primeiro curso de cinema dentro de uma instituição de ensino superior. O curso da UNB só foi criado depois. 13 - Escola Superior de Cinema São Luiz, em São Paulo, que formou importantes cineastas como Carlos Reichenbach e Ana Carolina. 14 - Foi o primeiro curso de formação cinematográfica da América do Sul em um seminário católico, no Colégio Cristo Rei dos padres jesuítas. 15 - Didonet criou, em 1954, o Cine Clube Pro Deo que tinha como padroeira oficial, conforme estatutos, a Imaculada Conceição. 16 - Vieira também criou, em 1956, o Centro de Cineclubes do Estado de São Paulo. BIBLIOGRAFIA: ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Cinema contra Cinema. São Paulo: Editora Ltda., 1931. Almeida, Milton José de. Cinema arte da memória. Campinas-SP: Autores Associados, 1999 ANDRADE, Rudá. Cronologia da Cultura Cinematográfica no Brasil. São Paulo: Fundação Cinemateca Brasileira, 1962. ARISTÓTELES, Arte Poética. http:// www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ DetalheObraForm.do?select_action=&co_ obra=2235 acesso em setembro de 2012 BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva; Porto Alegre: Fundação Iochpe, 1991. ____________. Arte-educação Contemporânea: Consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005. CITELLI,
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em
Cinema
Luciana Rodrigues
Professora da FACOM-FAAP, Doutora pela ECA-USP onde defendeu a tese O CINEMA DIGITAL E SEUS IMPACTOS NA FORMAÇÃO EM CINEMA E AUDIOVISUAL e é presidente do Forcine - Forum Brasileiro do Ensino de Cinema e Audiovisual)
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O cinema e a
redemocratização
do Brasil e
da América do Sul
Luiz Alberto Machado
Resumo
Abstract
O artigo tem por objetivo mostrar como o cinema focalizou o regime autoritário vigente no Brasil e em diversos países sul-americanos nas décadas de 1960 e 1970 e, a partir daí, chamar atenção para a impropriedade da expressão “década perdida”, como é conhecida a década de 1980 na região, quando a análise deixa de ser feita com base na ótica econômica e passa a ter por base a perspectiva política.
The Article aims to show how the movies focused on the authoritarian regime then in place in Brazil and other South American countries during the 60´s and 70´s, and to attract the attention to the wrong expression “The Lost Decade“, as the 80´s came to be known in the region, a time when the analysis was made under a political and not an economic perspective.
Palavras-chave
Keywords
Democracia, Cinema, Transição, Autoritarismo.
Democracy, Movies, Authoritarism.
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Introdução
A motivação para escrever sobre esse tema e de incluílo na programação de um curso ministrado na Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá, intitulado Cátedra Brasil1 e realizado em novembro de 2008, deveuse a uma inquietação que já existia em mim diante da constatação de que parcela significativa dos estudantes que ingressam na universidade ou desconhece ou possui um conhecimento muito reduzido dos anos em que o regime autoritário predominou na política latino-americana e do processo de redemocratização que se seguiu ao longo da década de 1980. Constatei que muitos deles têm, bem registrada na memória, a expressão “década perdida”, associada à década em questão, resultado da acentuada ênfase dada a ela em seus estudos no ensino médio e nos cursinhos. Tal expressão, como será visto a seguir, é mais do que justificada quando se olha para essa década a partir de uma perspectiva econômica, mas profundamente injusta se a perspectiva for política, uma vez que essa década foi marcada pela transição para a democracia de todos os países do continente, com exceção de Cuba, que se encontravam sob regimes autoritários na(s) década(s) anterior(es). Minha inquietação vinha se intensificando nos últimos anos diante da constatação de um aparente desinteresse crescente
dos jovens pela política, fato que, de acordo com o professor Marcos Paulino, titular da cadeira de Ciência Política na Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), só se justifica pela combinação de dois fatores, a ignorância e o preconceito. Em razão do primeiro, os jovens, por desconhecerem o próprio significado da política – “a tomada de decisões através de meios públicos, em contraste com a tomada de decisões pessoais, adotadas particularmente pelo indivíduo...”, segundo Karl Deutsch (1979, pág. 21) – acabam por associá-lo exclusivamente ao cotidiano da vida política nacional, do qual tomam conhecimento de forma superficial e repleta de clichês através do noticiário a que têm acesso. Em decorrência desta visão estereotipada do que seja a política, caracterizada em grande parte pela excessiva ênfase dada pelos meios de comunicação aos episódios negativos do cotidiano da mesma, com sucessivos casos de desmandos e corrupção por parte de alguns integrantes dos quadros da política nacional, surge o segundo fator, qual seja, o preconceito, manifestado pela extensão a toda a política da imagem negativa associada aos políticos envolvidos nos casos de corrupção. Dois episódios recentes contribuíram para acentuar ainda mais minha preocupação. Um deles foi a redução relativa, verificada em várias partes do Brasil, do número de jovens de 16 e 17 anos interessados em obter seu título eleitoral para se habilitarem a votar nas eleições municipais de outubro último. Depois de um interesse crescente observado nas primeiras eleições que tornaram possível o voto facultativo desses jovens, em 2008 houve um declínio relativo considerável em muitas localidades, fato que chamou a atenção de integrantes dos tribunais eleitorais e de analistas especializados.
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O segundo episódio que acentuou minha preocupação teve origem no Seminário “A importância do voto”, uma iniciativa do Instituto da Cidadania Brasil (www.institutocidadania.org. br), realizada a princípio isoladamente antes das eleições de 2002, e posteriormente em parceria com os poderes Executivo, através da Secretaria Estadual da Educação, Legislativo, através da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, e Judiciário, através do Tribunal Regional Eleitoral. O referido seminário, que teve suas edições iniciais integralmente presenciais, a seguir presenciais e virtuais, e a partir de 2008 apenas virtual, é destinado a estudantes de ensino médio das redes pública e particular que têm idade para votar pela primeira vez. Dividido em três partes, começa com uma abordagem conceitual sobre a liberdade e a democracia. Na sequência, um representante do Tribunal Regional Eleitoral mostra aos participantes o funcionamento da urna eletrônica e esclarece dúvidas a respeito da sistemática eleitoral e do processo de apuração dos votos. Na parte final (inexistente quando o seminário é apenas virtual), representantes dos institutos de estudos vinculados a todos os partidos políticos têm a oportunidade de apresentar aos estudantes a visão geral e os princípios defendidos por sua agremiação partidária. Tenho participado dessa feliz iniciativa do Instituto da Cidadania Brasil desde a primeira edição apresentando a primeira parte do seminário, voltada à parte conceitual. Costumo concluir minha exposição sobre liberdade e democracia apresentando um trecho do filme Titanic, no qual o personagem representado por Leonardo DiCaprio (Jack), depois de jantar na primeira classe e de sofrer todo tipo de humilhação por parte do noivo e da mãe da personagem representada por Kate Winslet (Rose), despede-se dela deixando em sua mão um bilhete com a frase “faça a vida valer a pena”. Procuro, na conclusão, fazer uma analogia com as eleições, de tal forma que fique a mensagem “faça seu voto valer a pena”. Na última edição do seminário, transmitida em videoconferência pela Rede do Saber para 92 escolas do estado de São Paulo, prontifiquei-me – diante da impossibilidade de esclarecer todas as dúvidas durante a própria videoconferência – a responder por e-mail as questões que me fossem endereçadas. E, das dezenas de perguntas que me foram encaminhadas, boa parte questionava se diante de tantas notícias envolvendo
escândalos e corrupções de políticos, seguidas quase invariavelmente da absolvição de quase todos nos processos eventualmente instalados2, valeria mesmo a pena se preocupar em escolher e votar conscientemente. Esse volume significativo de perguntas e depoimentos com o mesmo tipo de argumentação foi decisivo para me levar a escrever algo sobre o tema. A inspiração, por sua vez, veio de um artigo – já transformado em livro – do Prof. Ricardo Vélez Rodriguez, atualmente vinculado à Universidade Federal de Juiz de Fora, sobre a literatura e o populismo na América Latina. Desde o momento que ouvi pela primeira vez o relato do próprio autor, num colóquio promovido pelo Liberty Fund, fiquei imaginando como fazer alguma coisa parecida utilizando o cinema, pois, a meu juízo, este é um recurso extremamente subutilizado por professores dos diferentes níveis de ensino. Uma vez apresentadas as razões, preocupações e fontes de inspiração, segue o artigo propriamente dito, com um capítulo inicial sobre a transição política verificada em boa parte dos países sulamericanos nas décadas de 60 e 70. O capítulo seguinte mostra porquê a expressão “década perdida” é plenamente justificável para a década de 80 sob a ótica econômica, mas amplamente discutível a partir da perspectiva política. Em seguida, faço um breve relato da resistência da classe artística ao autoritarismo, mostrando que o cinema, até compreensivelmente a meu ver, tardou a dar sua contribuição à oposição aos governos autoritários. Nos capítulos finais, então, procuro mapear – sem a pretensão de esgotar o tema – alguns dos principais filmes que abordaram os regimes autoritários no Brasil e em alguns outros países sul-americanos, destacando lamentáveis subprodutos desse período, entre os quais a violência, a arbitrariedade, a censura e o desrespeito aos direitos humanos.
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1.
Rumo ao autoritarismo
Desde que o mundo se reorganizou ao final da Segunda Guerra Mundial, tornouse clara a divisão do mesmo em dois grandes blocos: de um lado, os países capitalistas e, de outro, os socialistas, liderados, respectivamente, pelos Estados Unidos e pela Rússia, que logo se transformou em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Esse período, conhecido genericamente como “Guerra Fria”, estendeu-se até o final da década de 80/início da de 90, tendo seu término simbolizado pela queda do Muro de Berlim, acompanhada, quase imediatamente, pela queda dos líderes dos governos centralizados dos países da Cortina de Ferro, como Alemanha Oriental, Bulgária, Tchecoslováquia, Hungria, Polônia, Romênia e Albânia. Ao longo das quase cinco décadas da Guerra Fria, a disputa entre as duas grandes potências alternou momentos de maior ou menor tensão política, atingindo alguns momentos de clímax nos quais o mundo esteve muito próximo de uma terceira guerra mundial, de consequências imprevisíveis, tal a capacidade de destruição dos aparatos bélicos desenvolvidos por soviéticos e norte-americanos. Essa disputa se desenrolou em várias frentes e uma delas – talvez a mais relevante – foi o esforço empreendido de parte a parte para ampliar sua esfera de influência no mundo, o que acabou resultando na adesão a um ou outro bloco de países espalhados por todos os continentes, restando apenas um número relativamente reduzido de países imune a uma dessas linhas de influência, os chamados não-alinhados. Em decorrência da Guerra Fria e do clima de permanente tensão por ela provocado, dada a acirrada disputa pela hegemonia por parte dos dois grandes blocos, o fator ideológico tornou-se um componente decisivo, atuando tanto no plano teórico como no plano real. Nesse sentido, nas universidades, a questão dos
sistemas econômicos comparados assumiu papel preponderante, com um sem número de pesquisas e teses acadêmicas procurando demonstrar a superioridade de um ou outro sistema. Nos planos político e diplomático, por sua vez, muitos dos acontecimentos verificados tiveram origem – declaradamente ou não – nessa disputa entre as superpotências. É exatamente nesse contexto que se inclui a tomada de poder por regimes políticos autoritários, não raras vezes sob influência direta ou indireta de alguma das superpotências, em países da África, da Ásia e da América Latina. Foi o que aconteceu no Brasil e em diversos dos nossos vizinhos sul-americanos. Antes ou depois, mas quase sempre tendo por justificativa a necessidade de afastar a ameaça iminente do socialismo ou do comunismo, regimes autoritários acabaram assumindo o poder na Argentina, na Bolívia, no Brasil, no Chile, no Equador, no Peru, no Uruguai e na Venezuela, fazendo com que essa parte do mundo ficasse famosa pela sucessão de golpes de estado. O Paraguai não entra nessa lista porque lá o general Alfredo Stroessner já havia se antecipado, tirando Federico Chávez da presidência com um golpe de estado militar em 1954. Stroessner tornou-se presidente e foi reeleito, em pleitos marcados pela fraude, por 7 mandatos consecutivos (em 1958, 1963, 1968, 1973, 1978, 1983 e 1988), desfrutando por 35 anos do mais longo governo na América Latina, no século XX, depois de Fidel Castro. Uma vez no poder, os regimes autoritários – quase sempre liderados por militares – permaneceram por mais ou menos tempo e praticaram violências e arbitrariedades mais ou menos severas, até o retorno à democracia, durante a década de 80.
2.
A “década perdida”
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a necessidade de reordenar as relações internacionais, foram criados diversos organismos cuja influência foi decisiva para o futuro funcionamento da economia e da política. Nesse contexto, cabe destacar a criação das Nações Unidas (e de diversos organismos do chamado Sistema ONU) , do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), da Organização
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do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e até, de certa forma, do Plano Marshall. Graças, em parte, à existência desse arcabouço institucional, o mundo ocidental atravessou um período, que se prolonga até os anos 70, marcado pelo crescimento econômico moderado mas constante, tendo como exceções a Alemanha, o Japão (que embora esteja no Oriente, é considerado integrante do chamado bloco ocidental), os Estados Unidos, o Brasil, o México e a Venezuela que tiveram crescimento superior ao da média. As duas crises do petróleo da década de 70 (1973 e 1979), que elevaram consideravelmente o preço do barril com sérias implicações para a balança comercial de inúmeros países, acompanhadas por mudanças importantes na política monetária dos Estados Unidos, modificaram sensivelmente as condições de funcionamento da economia mundial, pondo fim às décadas de crescimento que haviam prevalecido até então. A tabela que se segue, reproduzida do livro Qual democracia?, de Francisco Weffort (p. 67), explica por si só o significado da expressão “década perdida”.
A DÉCADA PERDIDA
1981 – 1989 Crescimento do PIB por Habitante América Latina* Bolivia Equador México Peru Venezuela Argentina Brasil Colômbia Costa Rica
(8,3) (26,6) (1,1) (9,2) (24,7) (24,9) (23,5) (0,4) 13,9 (6,1)
Chile Haiti Honduras Nicarágua Panamá Paraguai Rep. Dominicana Uruguai Guatelmala El Salvador
9,6 (18,6) (12,0) (33,1) (17,2) 0,0 2,0 (7,2) (18,2) (17,4)
(*) O índice geral, elaborado pela CEPAL, inclui todos os países latino-americanos, não apenas os aqui listados. Não considera os dados de Cuba porque o conceito de produto social é diferente dos demais.
Como se pode observar, e deixando de lado o
“economês”, cada cidadão latino-americano estava, no final da década de 1980, 8,3% mais pobre do que se encontrava no início da mesma. Nesse período, apenas três países, República Dominicana, Chile e Colômbia tiveram desempenho positivo. Todos os outros apresentaram desempenhos que vão de medíocres, casos de Paraguai, Brasil e Equador, a lastimáveis, casos de Argentina, Bolívia, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru e Venezuela, passando pelos que tiveram performance muito fraca como Costa Rica, México e Uruguai. Em vários desses países, e no Brasil em particular, que havia tido segundo Angus Maddison, um dos melhores desempenhos econômicos do mundo entre 1870 e 1986, assistiu-se à substituição do clima positivo que envolve os países com crescimento econômico por um clima completamente distinto, decorrente da perversa combinação de estagnação prolongada, inflação crônica e crise das dívidas, externa e interna. Se, no entanto, no plano econômico os anos 80 não deixaram saudade, no plano político foi um período de grandes avanços, uma vez que quase todos esses países, incluindo os da América Central que também foram governados por regimes autoritários na(s) década(s) anterior(es), elegeram novos governos por meio de processos eleitorais livres, numa clara tendência de mudança em direção à democracia e ao fortalecimento de suas instituições.
3.
A resistência da classe artística
No período em que os países sulamericanos estiveram sob o domínio de governos autoritários, que apresentaram como uma de suas características mais marcantes a forte perseguição a pessoas ou organizações que lhes quisessem fazer oposição, três segmentos da sociedade se destacaram pelo fato de tentarem manisfestar de alguma forma
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sua insatisfação com a situação: os estudantes, parte da igreja e a classe artística. Os estudantes, como acontece quase sempre em situações dessa natureza, saem às ruas e “botam a cara pra bater”, combinando o vigor e o entusiasmo da juventude (todos) com idealismo e ingenuidade (alguns). A igreja católica, como será evidenciado no exame dos filmes que se seguirá, apresentou uma divisão bastante clara, com a omissão complacente de uma parte diante dos acontecimentos, e o forte engajamento de outra com as diversas facções da subversão. Esse segundo grupo se alinhou sob a chamada Teologia da Libertação. A classe artística, por sua vez, desempenhou papel importante nas diversas manifestações da arte, com destaque para a literatura, o teatro e, principalmente, a música. A produção literária surgida nas décadas de 60 e 70 reflete, como não poderia deixar de ser, o momento histórico caracterizado pelo autoritarismo e pela rígida censura imposta pelos militares, que teve seu período mais crítico entre os anos de 1968 e 1978, durante a vigência do Ato Institucional nº 5 (AI - 5). As adversidades políticas, porém, não fizeram com que o País mergulhasse numa calmaria cultural. O que se observou foi uma produção cultural bastante intensa em todos os setores.
Celso Martinez Corrêa (no exílio de 1974 a 78), e o Arena, em torno de Augusto Boal (no exílio a partir de 1969), viu a boa fase ser bruscamente interrompida pelo AI – 5, que deflagrou o terror de Estado e exterminou aquilo que fora, de acordo com Vasconcellos (1987), o mais importante ensaio de socialização da cultura jamais havido no País. Num elogiável trabalho de pesquisa, o professor Carlos Aparecido dos Santos destaca algumas iniciativas relevantes ocorridas durante os primeiros anos do período autoritário, quando o teatro mais artístico se viu obrigado a refugiar-se em pequenas companhias que, com orçamentos reduzidos e sem muito apelo ao público, ocupavam espaços alternativos, não mais experimentais e, por vez, tentavam suscitar uma dramaturgia nova. Nessa linha, são dignos de menção o Grupo Tapa, que encenou repertório clássico internacional e ocupou o posto de mais premiada companhia do País, Antunes Filho que congregou uma trupe experimental, com oficina de formação de atores, destacando-se pelas notáveis encenações de Nelson Rodrigues, objeto de uma verdadeira descoberta, e Gerald Thomas, que comandou a Ópera Seca, de caráter mais vanguardista. Houve ainda experiências idealistas e bem intencionadas, como o CPC do movimento estudantil. A UNE, através do CPC (Centro Popular de Cultura), que procurava levar a arte ao povo, sem temor da mão-de-ferro e a vontade do governo militar de dificultar esse contato “inapropriado” a seus objetivos.
Vale destacar, nesse aspecto, o que se verificou na poesia, onde se percebe a constante preocupação em manter uma temática social e um texto participante, com a importante contribuição de nomes consagrados como os de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar, entre outros.
O clima reinante no País, porém, continuava cada vez mais adverso, chegando ao climax, segundo Elio Gaspari, em 1968, quando a censura assume papel de protagonista na cena nacional, declara guerra contra a criação teatral e torna-se incomodamente presente no cotidiano dos artistas. Em janeiro o general Juvêncio Façanha que no ano anterior mandou o ameaçador recado para os artistas “Ou vocês mudam, ou acabam”, dá uma estarrecedora declaração, que define com clareza a atitude do regime com a atividade cênica: “A classe teatral só tem intelectuais, pés sujos, desvairados e vagabundos, que entendem de tudo, menos de teatro”.
O teatro brasileiro, que passava por um grande momento, graças, em especial, ao trabalho realizado por dois grupos, o Oficina, em torno de seu diretor José
A dura relação com a censura e outras áreas do governo não intimidou figuras importantes do teatro brasileiro que, durante todo o tempo, manifestaram seu repúdio à situação vigente. Mesmo estando
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certo de cometer injustiças pela omissão de alguns nomes, faço questão de destacar os nomes de Tônia Carrero, Paulo Autran, Norma Benguel, Oduvaldo Vianna Filho, Osvaldo Loureiro, Flavio Rangel, Norma Blum e Cecil Thiré. A continuidade do clima pesado e as perseguições a intelectuais e artistas acabaram, inevitavelmente, agravando ainda mais as coisas, uma vez que o público, compreensivelmente receoso, se afastou cada vez mais dos teatros. Como bem observa Gaspari (2002), o medo da inteligência instalava-se como um vírus na população. A classe média se afastou de vez do teatro, influenciada pela campanha que o esquema dominante havia desfechado contra ele, fazendo-o aparecer perante a opinião pública como um antro de perversões, violências e subversão. O mais prudente para o potencial espectador era passar longe das bilheterias. Não há como negar que a barulhenta arte do chamado teatro de agressão assustou bastante o público tradicional e, em vez de fazer de tudo para não perder o espectador e forçá-lo a participar ativamente dos acontecimentos cênicos, fizeram o inverso, assustando-o ainda mais e tornando as salas de teatro mais vazias do que nunca. Mesmo reconhecendo, porém, a importância da literatura e do teatro como focos de resistência ao autoritarismo, não há como deixar de destacar o papel relevante protagonizado pela música, que teve a seu lado o fato de ocupar considerável espaço na televisão, o que faz com que a repercussão seja muito mais ampla. O País chegou ao final da década de 50 sob o impacto do sucesso da bossa nova, que foi muito além das nossas fronteiras e deu oportunidade para que diversos nomes ganhassem rápida projeção no cenário artístico, entre os quais João Gilberto, Tom Jobim, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Nara Leão, além do já bastante conhecido Vinícius de Morais. Embalada, de certa forma, pelo fulgurante sucesso da bossa nova, a música brasileira viveu, na década de 60, uma de suas fases mais ricas em termos de aparecimento de cantores e compositores de excepcional qualidade. Foi também a época de ouro da TV Record, que organizou festivais que ficaram gravados na memória de várias gerações de brasileiros e que monopolizavam a atenção de enorme contingente da população nas semanas em que as finais eram realizadas. Encontram-se entre os que surgiram ou se projetaram nessa época
nomes como os de Edu Lobo, Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Capinam, Sergio Ricardo, os Mutantes e tantos outros. Além de organizar os festivais, a TV Record tinha o programa de maior sucesso na época, chamado O Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, intérpretes de canções ganhadoras de diferentes edições dos festivais. Elis Regina conquistara o primeiro lugar, interpretando, com um estilo todo pessoal, a música Arrastão, de Edu Lobo; e Jair Rodrigues, interpretando a música Disparada, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, num festival em que o primeiro lugar foi dividido com A Banda, de Chico Buarque, interpretada por Nara Leão. Duas coisas precisam ser ressaltadas então. De um lado, a divisão que existiu dentro da própria categoria dos músicos envolvendo, de um lado, os integrantes do núcleo que se considerava mais diretamente herdeiro da bossa nova e que havia permanecido no Brasil (já que João Gilberto e Tom Jobim encontravamse, a essa altura, desfrutando de enorme sucesso nos Estados Unidos), e, de outro, dois grupos que surgiram separados por pequeno intervalo de tempo: o primeiro foi a Jovem Guarda, liderado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, criticado pelos que se consideravam autênticos representantes da música brasileira por se deixarem influenciar pelo rock dos Estados Unidos e da Inglaterra, cujos maiores ídolos eram Elvis Presley e os Beatles; o segundo foi o Tropicalismo, liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, e que contava ainda com as presenças importantes de Maria Bethânia e Gal Costa, também criticado por misturarem diferentes estilos e ritmos nacionais e estrangeiros, afastando-se, dessa forma, da genuína música brasileira. A segunda coisa a destacar foi, a exemplo do que ocorreu na literatura e no teatro, a influência do autoritarismo do governo militar, que não demorou a se fazer presente no meio musical, causando uma série de transtornos3 que foram se avolumando até chegar à prisão e ao exílio de compositores e intérpretes que se encontravam em fase
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de grande projeção em suas carreiras. É interessante notar que com a divisão existente dentro da categoria, a ação da censura e dos órgãos de repressão chegou por vezes a surpreender até os próprios músicos, que ficavam atônitos diante da falta de critério observada por exemplo entre os censores, que viam praticamente em todo intelectual ou atrtista um “inimigo da Pátria” em potencial.
de medo: “É melhor você levar sua escova de dentes”. Ainda tentei pedir explicações para esse conselho, mas eles deram mostras de que já não queriam perder tempo. (pp. 340 – 1) Pouco adiante, refletindo claramente a divisão existente entre os diferentes grupos da música brasileira, Caetano Veloso relata: É claro que nem Gil nem eu imaginávamos que seríamos presos. Não havia expectativa de que nada de grave pudesse acontecer conosco. Exceto o comentário (privado) feito pelo humorista Jô Soares e aquela profecia saída da boca de um conhecido supostamente em transe e que nos tinha sido relatada meses antes por Roberto Pinho (profecia esta que afinal se revelou assustadoramente precisa quanto às datas e às circunstâncias), nós não tínhamos muito por que pensar que os militares quereriam nos prender. Estávamos tão habituados a hostilizações por parte da esquerda, éramos tantas vezes acusados de alienados e americanizados, que quando me vi diante daqueles policiais, imaginei que me estavam levando para alguma conversa com algum oficial de São Paulo, o qual nos trataria como rapazes interessados apenas em divertir o público, e, no máximo, exigiria explicações sobre nossa participação na famosa passeata dos 100 mil. Essa passeata contara com a quase-totalidade da classe artística brasileira, de modo que não nos seria difícil explicar nossa adesão como resultado de uma natural pressão de grupo. (p. 342)
Esclarecedor dessa situação é o depoimento de Caetano Veloso em seu livro Verdade Tropical (2008), reproduzido a seguir: Hilda, a empregada paraibana de quem tanto gostávamos, veio até a porta do nosso quarto para dizer, confusa e embaraçada, que havia uns homens querendo falar comigo. O sentimento que me dominou, ao chegar à sala e encontrar os policiais, foi de impaciência: vime diante de um incômodo que prometia durar um bom par de horas. Havia algo estranho no modo nervoso como aqueles homens sorriam, e a amabilidade exagerada não deixava de trair uma promessa de agressão. Pouco depois entendi que eles estavam na dependência da minha reação para decidir sobre sua conduta: qualquer tentativa de fuga ou resistência encontraria resposta imediata numa destreza e numa violência que estavam apenas cobertas por um tênue verniz de polidez. Eles diziam que as autoridades militares queriam me fazer algumas perguntas, e eu, muito mais ingênuo do que eles podiam imaginar, acreditei. Parecialhes pouco provável, no entanto, que alguém levasse tal eufemismo ao pé da letra, e, enquanto eu tentava conseguir detalhes sobre o que ia se passar, eles iam abandonando relutantemente a expectativa de que talvez eu reagisse a uma prisão que nem sequer sabia que estava se efetuando. Um deles, então, fez uma sugestão que primeiro me pareceu estapafúrdia mas logo me encheu
Apesar da dura repressão e do exílio ou auto-exílio de muitos dos nomes aqui citados, a contribuição da categoria primeiro na resistência à ditadura e depois na luta pela redemocratização foi extraordinária e contou, à medida que o tempo foi passando, com a participação de outros nomes que foram se juntando àqueles primeiros, entre os quais Milton Nascimento, Jorge Ben, Toquinho, Gonzaguinha e Tom Zé.
4.
O papel do cinema
O cinema representou um papel diferente dos outros segmentos artísticos aqui analisados.
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Depois do impacto do cinema novo, cujo principal expoente foi, sem dúvida, Glauber Rocha, e do sucesso de alguns filmes produzidos no final dos anos 50 e início dos 60, ganhadores até de prestigiados prêmios internacionais, o cinema brasileiro entrou numa fase de prolongada decadência, durante a qual a produção nacional se limitou, com as exceções de praxe, a comédias e pornochanchadas de baixíssima qualidade. Não é muito difícil entender as razões desse fenômeno. Além da evidente pressão da censura, havia o problema do financiamento das produções, que evidentemente era negada a qualquer projeto que fosse minimamente considerado uma ameaça aos interesses dos que estavam no poder. Em razão disso, a contribuição do cinema para o processo de redemocratização do Brasil e da América do Sul foi, em grande parte, posterior à dos demais segmentos artísticos, mas, nem por isso, menos importante, como pretendo mostrar a seguir, dividindo essa contribuição em três partes: os filmes pioneiros, produzidos ainda na primeira metade da década de 70, portanto, ainda em plena vigência dos momentos mais opressivos dos regimes autoritários; os da segunda geração, produzidos na década de 80, durante a fase de transição para a democracia, que no Brasil foi chamada de “abertura”; e os da terceira geração, produzidos já sob a vigência dos governos eleitos democraticamente nas décadas de 1990 e 2000.
4.1. Os pioneiros Tendo uma contribuição posterior à época de maior endurecimento dos regimes autoritários, muitos dos filmes que serão citados no presente artigo são das décadas de 80 e 90. A grande exceção, nesse sentido, foi o filme Estado de Sítio, do diretor grego, naturalizado francês Konstantinos Gravas, mais conhecido como Costa-Gravas, que se notabilizou por produzir filmes de denúncia política e de ficção social. Produzido em 1973, o filme retrata a participação direta dos Estados Unidos nas ditaduras militares da América Latina nas décadas de 1960 e 1970. Baseado na história do sequestro de um norte-americano e um brasileiro pelo grupo guerrilheiro uruguaio Tupamaro, CostaGravas denuncia o papel repressivo do governo norte-americano nas ditaduras latino-americanas. No filme, o grupo guerrilheiro Tupamaro sequestra o embaixador do Brasil no Uruguai, Roberto Campos,
e o funcionário da polícia norte-americana Philip Michael Santore. O grupo então exige que o governo solte os presos políticos em troca dos seqüestrados. O caso gera uma crise política internacional que coloca em evidência a participação criminosa do imperialismo norte-americano na estrutura repressiva dos regimes militares. Costa-Gravas manteve, em Estado de Sítio, o nome do grupo guerrilheiro mais conhecido do Uruguai, Tupamaros, e do embaixador brasileiro, alterando-se os restantes para nomes fictícios. Em razão da censura vigente no Brasil na época em que foi produzido, o filme só foi exibido no Brasil muitos anos mais tarde. Além de Estado de Sítio, gostaria de destacar outro filme produzido quase na mesma época, mas de qualidade nitidamente inferior e que teve repercussão bem menor. Trata-se de Chove sobre Santiago, que retrata a preparação e o momento do golpe no Chile, quando o governo de Salvador Allende, estando isolado na área militar, é derrubado. Allende é vitorioso nas eleições presidenciais em 1970 e a Unidade Popular assume o governo. Mas não o poder, pois o aparelho de Estado, a organização burocrático-militar é mantida, no fundamental, intacta. O processo de nacionalização imposto pelo governo de Allende teve seu ponto máximo com a nacionalização das minas de cobre. Esta foi a bomba que detonou o mal-estar definitivo entre as forças armadas que, com o apoio de Washington, desencadeou o golpe de estado de 11 de setembro de 1973. Mesmo sem a repercussão de Estado de Sítio, trata-se de um ótimo testemunho da rápida experiência socialista da Unidade Popular no Chile.
4.2.
A segunda geração
Os três filmes dessa geração têm em comum o fato de abordarem o desaparecimento de pessoas que, real ou supostamente, estavam envolvidas em atividades subversivas ou em
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movimentos políticos de oposição ao governo. Dois deles, Missing e Prá frente Brasil, enfatizam o total desprezo pelos direitos humanos, evidenciado pelas frequentes prisões de indivíduos aos quais não era dada qualquer possibillidade de defesa. De forma brilhante, ambos revelam o desespero das familias desses indivíduos diante da ausência de informações quanto ao seu paradeiro. Em Missing, merece destaque o fato de ser o protagonista do filme de nacionalidade norte-americana e, em consequência disso, o empenho de seu pai que, alertado da gravidade do quadro, viaja ao Chile e exige a efetiva participação da embaixada de seu país no esclarecimento do caso. Já em Prá frente Brasil, o que mais chama a atenção, em minha opinião, é o contraponto entre a euforia da maioria do povo com as vitórias da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo do México, e o inconformismo de uma minoria mais engajada diante, de um lado, do uso descarado das conquistas esportivas e do bom desempenho da economia pelo governo liderado na época pelo presidente Emílio Garrastazu Mediici, e, de outro, da completa alienação de parte significativa de seus conterrâneos. O grande destaque, porém, fica com o filme A História Oficial, que foi contemplado inclusive com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Com um desempenho extraordinário, Norma Aleandro, a grande dama do cinema argentino, vive um terrível impasse que envolve suas vidas pessoal e profissional, tendo por fios condutores a dúvida sobre a origem de sua filha adotiva e a crescente constatação do envolvimento de seu marido com setores do governo autoritário da Argentina. Gostaria de destacar, também, a omissão da igreja católica numa sequência de cenas em que, procurado pela protagonista do filme em busca de esclarecimento e, por que não, paz de espírito, um padre lava as mão dizendo a ela que como está praticando uma boa ação, ela não precisa se preocupar em descobrir a origem da menina.
4.3.
A terceira geração
Os filmes dessa geração foram produzidos numa época em que as instituições democráticas já haviam se consolidado no Brasil e em quase todos os países sul-americanos, o que garantia aos produtores e diretores uma tranquilidade muito maior para trabalhar. Outro fator favorável é que em diversos países da região muitos documentos até então mantidos em absoluto sigilo foram colocados à disposição do público, facilitando sobremaneira o trabalho de pesquisa de filmes baseados em fatos reais, como são os casos de O que é isso, companheiro? e Zuzu Angel, que conseguiram grande êxito de bilheteria nâo apenas pela qualidade dos filmes, mas também pela popularidade dos elencos, repletos de atores do primeiro time das novelas brasileiras. Se O que é isso, companheiro? toca numa questão delicada que é o conflito interno vivido por diversos personagens, Zuzu Angel tem, a meu juízo, dois grandes méritos:o primeiro é o fato de mostrar o filho da estilista como alguém que tinha plena consciência do que estava fazendo, evitando a armadilha do maniqueísmo presente em muitos filmes dessa natureza, nos quais os terroristas e subversivos aparecem sempre como figuras ingênuas e bem intencionadas, enquanto que os policiais civis e militares aparecem como brutais e violentos assassinos; o segundo é o fato de mostrar, sem qualquer subterfúgio, o apoio explícito de parte da igreja católica ao regime autoritário, aspecto muitas vezes “deixado no ar” em outros filmes. O outro filme brasileiro desse período, que mostra exatamente o outro lado, ou seja, o da participação ativa de uma facção da igreja católica com os grupos subversivos é Batismo de Sangue, baseado no livro de mesmo nome escrito por Frei Betto, que, aliás, é um dos principais personagens. O filme mostra o envolvimento de Frei Tito e outros frades dominicanos de um convento de São Paulo que dão total apoio ao grupo de guerrilheiros liderado por Carlos Marighela no combate à ditadura militar. Vigiados e presos, sofrem terríveis torturas até revelarem o segredo que custou a vida do líder subversivo. Frei Tito é mandado para o exílio na França, porém, mesmo fora da prisão, ele acaba se enforcando por não conseguir se livrar da tormenta constante provocada pela lembrança de seus carrascos. Também um grande sucesso de público foi De Amor e de Sombras. Com direção de Betty Kaplan,
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o filme faz, em 1994, uma adaptação para o cinema do romance A Casa dos Espíritos, escrito por Isabel Allende, sobrinha do presidente deposto Salvador Allende, dez anos antes. No filme, uma alienada repórter chilena que trabalha para uma revista de moda namora um militar e ignora a repressão política vigente em seu país. Quem lhe abre os olhos para as atrocidades cometidas pelo regime liderado pelo General Pinochet é um fotógrafo anarquista, interpretado por Antonio Banderas, por quem ela acaba se apaixonando. Juntos, descobrem uma mina abandonada onde os militares escondem cadávares, tornando-se assim, eles próprios, alvos do regime militar. A habilidade da diretora em combinar momentos de pura tensão com outros de grande ternura explica o êxito alcançado pelo filme, apesar do tempo relativamente longo que o separa do livro que lhe deu origem.
4.4.
Aos olhos das crianças
Eu não consideraria este artigo completo se não reservasse um espaço, mesmo que limitado, para três filmes que procuram mostrar como o duro período de repressão foi visto, na Argentina, no Chile e no Brasil, por crianças que tinham, na época, idades de aproximadamente 10 anos. Kamchatka, Machuca e O ano em que meus pais saíram de férias são filmes que têm o mérito de revelar de maneira singela os duros e rudes momentos em que os três países sulamericanos eram governados por ditaduras militares. Enquanto Kamchatka mostra como a política mudou a vida de uma família argentina geográfica e emocionalmente, O ano em que meus pais saíram de férias retoma, de certa forma, o contraponto já apontado em Prá frente Brasil entre a euforia da conquista futebolística e o clima de repressão reinante no País, só que a partir dos olhos angustiados de um garoto que vê, de uma hora para outra, sua vida mudar completamente, obrigando-o a se adaptar a uma família e a um lugar com os quais não tem a menor intimidade. Já Machuca, o representante chileno deste fantástico trio, mostra a improvável amizade de duas crianças de classes sociais diferentes em tempos de ditadura, tendo por pano de fundo os conflitos verificados num colégio de
elite em função das mudanças propostas pelo diretor, vivido por um padre com ideias “progressistas”. Considerações finais Como afirmei na abertura do artigo, além das preocupações referentes ao desinteresse e à desilusão pela política evidenciadas por parte considerável de nossa juventude, incomoda-me também o pouco uso feito pela esmagadora maioria dos professores de um recurso extremamente eficiente como estratégia pedagógica, desde que bem utilizado, que são os filmes comercias. Outra inquietação, também já salientada, diz respeito à despreocupação em realçar a importância da década de 1980 no Brasil e na América do Sul, quando analisada a partir do prisma político. Foi nessa década que regimes autoritários extremamente violentos foram substituídos por regimes democráticos, o que, a meu ver, merece ser destacado, a fim de que a referida década não seja lembrada apenas como a “década perdida”, expressão que se justifica, é bom frisar, quando o exame se limita à ótica econômica. Dessa combinação de preocupações e inquietações nasceu a ideia de escrever este artigo. Espero que a leitura do mesmo produza, pelo menos em alguns leitores, o mesmo efeito produzido em mim pelo excelente artigo do Prof. Ricardo Vélez Rodríguez sobre o populismo na literatura latino-americana.
NOTAS: 1 A Cátedra Brasil é resultado do trabalho conjunto entre a Embaixada do Brasil na Colômbia, o Instituto Cultural Brasil Colômbia (IBRACO), e o Centro de Estudios Sociales de la Universidad Nacional de Colombia. Em 2008 realizouse a terceira edição da Cátedra Brasil, com o tema Brasil: Historia, Economia y Política. A primeira edição, realizada em 2006, teve por tema Brasil: El nacimiento
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de uma nación, tendo como convidada especial a professora Alcida Rita Ramos. A segunda, com o tema La Amazonía: Una región de importância geopolítica mundial, teve como convidado especial o professor Luis Eduardo Aragon. Nesta terceira edição, os convidados especiais foram os professores Luiz Alberto Machado e Luiz Alfredo Salomão. A coordenação da Cátedra Brasil esteve a cargo do professor Gerardo Ardila. 2 O artigo foi elaborado antes do julgamento, pelo STF, dos envolvidos no episódio do mensalão. 3 Recomendo a leitura do excelente livro de Zuza Homem de Mello, A era dos festivais (Editora 34), onde ele mostra que até na definição dos resultados dos festivais de música popular brasileira os militares procuraram intervir.
BIBLIOGRAFIA: CASTILHO, Áurea (coordenadora). Filmes para ver e aprender. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2003. CASTRO, Celso. Visões do golpe de 1964. São Paulo: EDIOURO, 2004. DEUTSCH, Karl. Política e governo. Brasília: UnB, 1979. GASPARI, Elio. A Ditadura envergonhada. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2002. MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais. São Paulo: Editora 34, 2003. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 2008. SANTOS, Carlos Aparecido dos. O Teatro na época da ditadura. Disponível em http:// www.historianet.com.br/conteudo/default. aspx?codigo=716.
VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de teatro. Porto Alegre: L&PM, 1987. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. WEFFORT, Francisco. Qual democracia? São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Referências cinematográficas: Título: Titanic Direção: James Cameron Elenco: Leonardo DiCaprio, Kate Winslet, Billy Zane, Gloria Stuart, Bill Paxton Ano de produção: 1997. Duração: 194 min Título: Estado de Sítio Título Original: État de Siege Direção: Costa-Gavras Elenco: Yves Montand, Jacques Weber, Renato Salvatori, Jean-Luc Bideau, O.E. Hasse, Evangeline Peterson, Mario Montilles, Jacques Perrin, Maurice Teynac, Harald Wolff Ano de produção: 1973 Duração: 119 min Título: Chove sobre Santiago Título Original: Il Pleut sur Santiago Direção: Helvio Soto Elenco: Jean-Louis Trintignant, Anne Girardot, John Abgey, Bibi Anderson Ano de produção: 1974 Duração: 109 min Título: A História Oficial Título Original: La Historia Oficial Direção: Luis Puenzo Elenco: Héctor Alterio, Norma Aleandro, Chela Ruiz, Chunchuna Villafane, Hugo Arana, Analia Castro, Patrício Contreras Ano de produção: 1985 Duração: 113 min Título: Desaparecido, um Grande Mistério Título Original: Missing Direção: Costa-Gravas Elenco: Jack Lemmon, Sissy Spacek, John Shea, Melanie Mayron
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Ano de produção: 1982 Duração: 122 min Título: Pra frente Brasil Direção: Roberto Farias Elenco: Reginaldo Faria, Antonio Fagundes, Natália do Valle, Elizabeth Savalla, Cláudio Marzo, Neuza Amaral, Carlos Zara, Flávio Migliaccio, Ivan Cândido, Rogério Blum Ano de produção: 1983 Duração: 104 min Título: De Amor e de Sombras Título Original: Of Love and Shadows Direção: Betty Kaplan Elenco: Antonio Banderas, Jennifer Connelly, Stefania Sandrelli, Camilo Gallardo, Diego Wallraff, Patrício Contreras Ano de produção: 1994 Duração: 112 min
Título: Kamchatka Direção: Marcelo Piñeyro Elenco: Ricardo Darin, Cecília Roth, Héctor Alterio, Matías Del Pozo, Milton De La Canal, Fernanda Mistral, Tomás Fonzi, Mónica Scapparone Ano de produção: 2002 Duração: 105 min Título: O ano em que meus pais saíram de férias Direção: Cão Hamburger Elenco/Vozes: Michel Joelsas, Germano Haiut, Daniela Piepszyk, Simone Spoladare, Eduardo Moreira, Caio Blat, Paulo Autran Ano de produção: 2006 Duração: 103 min
Título: O que é isso, companheiro? Direção: Bruno Barreto Elenco: Alan Arkin, Fernanda Torres, Pedro Cardoso, Luis Fernando Guimarães, Cláudia Abreu, Matheus Natchergaele, Marco Ricca, Selton Mello, Alessandra Negrini, Du Moscovis, Milton Gonçalves, Othon Bastos, Fernanda Montenegro Ano de produção: 1997 Duração: 105 min Título: Zuzu Angel Direção: Sergio Rezende Elenco: Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Luana Piovani, Alexandre Borges, Leandra Leal, Ângela Vieira, Flávio Bauraqui, Aramis Trindade, Othon Bastos Ano de produção: 2006 Duração: 104 min Título: Batismo de Sangue Direção: Helvecio Ratton Elenco: Caio Blat, Daniel de Oliveira, Cassio Gabus Mendes, Ângelo Antônio Ano de produção: 2006 Duração: 110 min Título: Machuca Direção: Andrés Wood Elenco: Matias Quer, Ariel Mateluna, Manuela Martelli, Aline Küppenheim, Federico Luppi Ano de produção: 2004 Duração: 120 min
Luiz Alberto Machado
Economista, Mestre em Criatividade e Inovação, é Vice-Diretor da Faculdade de Economia da FAAP e Vice-Presidente do Conselho Federal de Economia (COFECON).
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O Inquilino
Hitchcockiano
notas a respeito da aproximação entre Hitchcock e Polanski
Hugo Harris
Resumo
Abstract
Alfred Hitchcock é um dos cineastas mais citados no mundo. Desde o final dos anos 1930, revolucionou a linguagem cinematográfica e a forma de trabalhar a narrativa. Com isso, outros realizadores buscaram inspirar-se nele, tanto no que se refere à forma, quanto ao conteúdo. Um dos cineastas que inseriu elementos hitchcockianos em sua obra foi Roman Polanski. Este artigo visa investigar algumas aproximações entre as obras destes dois cineastas. Por meio da indicação de trechos de filmes e sua análise, busca-se demonstrar que os temas e a forma de conduzir a narrativa do mestre inglês está presente na produção de Polanski. Ao mesmo tempo, diferenças serão notadas, o que permite identificar o traço autoral do cineasta polonês.
Alfred Hitchcock is one of the most coted filmmaker in the world. Since the end of the 1930’s, he has revolutionized the cinematographic language and how to create the narrative. Then, other directors sought to be inspire by him, regarding the form or the content. One of the filmmakers who used hitchcockians elements in his work was Roman Polanski. This article aims to investigate some approaches between the works of these two filmmakers. By means of indication of excerpts from films and their analysis, it’s aimed to demonstrate that the themes and English master narrative conduction are present in the Polanski’s production. At the same time, differences will be noted, what allows to identify the autoral trace of this Polish film director.
Palavras-chave Alfred Hitchcock, Cinematográfica
Keywords Roman
Polanski,
Linguagem
Alfred Hitchcock, Roman Polanski, Cinematographic Language
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Uma trama
hitchcockiana: um cirurgião americano viaja para uma conferência em Paris acompanhado de sua esposa. Logo após chegar ao hotel onde ficará hospedado, sua esposa desaparece. Rapidamente descobre indícios de que sua esposa foi raptada, mas tem dificuldade em convencer as autoridades, que sugerem que a mulher trocou o marido por um amante (“coisas que acontecem em Paris”). A partir daí, o médico investigará por conta própria o que aconteceu a ela, vendo-se obrigado a entranhar-se no submundo parisiense e envolver-se com pessoas muito perigosas, que colocam a sua vida em risco. O cirurgião descobre posteriormente que o rapto está relacionado à troca da mala de sua esposa com a de uma bela moça que, naquela ocasião, contrabandeava um dispositivo atômico escondido dentro de uma miniatura da Estátua da Liberdade. Muitos dos elementos utilizados pelo cineasta inglês Alfred Hitchcock podem ser observados no decorrer desta trama. A mulher que desaparece, o objeto furtado (e, neste caso, contrabandeado) que caracteriza o MacGuffin e o herói desacreditado e fragilizado e que recebe o suporte de uma mulher com mais atitude e iniciativa que o estimula e, por vezes, acaba por realizar ações em seu lugar. São características conhecidas dos filmes do mestre inglês, e que facilmente poderia ter sido feito por ele. Mas neste caso,
trata-se de um filme existente, realizado no ano de 1988 pelo cineasta franco-polonês Roman Polanski – Busca Frenética (Frantic). Por sinal, a referência é tão direta, que o fato do dispositivo atômico estar escondido dentro de uma miniatura da Estátua da Liberdade e o clímax do filme ocorrer próximo a uma réplica da mesma estátua à margem do rio Sena também remete à obra de Hitchcock. Vide Sabotador (Saboteur, 1942), quando a resolução da trama também se dá no alto da americana Estátua da Liberdade, de onde o vilão despenca para a morte. Roman Polanski notabilizou-se nas décadas de 1960 e 1970 com uma série de filmes de grande intensidade psicológica e de trabalho narrativo refinado. Títulos como Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965), Armadilha do destino (Cul-de-sac, 1966), O bebê de Rosemary (Rosemary’s baby, 1968), Chinatown (idem, 1974), O inquilino (The tenant, 1976), dentre outros, ainda são muito comentados por cinéfilos e estudiosos devido a suas características formais e narrativas. A hipótese levantada neste ensaio é a da presença de elementos hitchcockianos nos filmes de Polanski, no que se refere a conteúdo, estratégias narrativas, linguagem cinematográfica e referências audiovisuais. Não se trata de buscar apenas referências diretas dentro de seus filmes, como pode-se fazer em diversas obras de diversos cineastas – vide os óbvios títulos de Brian de Palma, como Vestida para matar (Dresser to kill, 1980) ou Dublê de corpo (Body double, 1984), ou remakes como Um crime perfeito (A perfect murder, 1998), de Andrew Davis – refilmagem de Disque M para matar (Dial M for Murder, 1955) –, Janela indiscreta (Rear window, 1998), de Jeff
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Bleckner e Psicose (Psycho, 1998), de Gus Van Sant. A intenção é traçar paralelos entre aquilo que foi criado e construído por Hitchcock no decorrer de sua carreira e seus reflexos num cineasta de grande expressão como Polanski. Roman Polanski não é o único influenciado pelo mestre inglês, sendo que desde os anos 1950 poder-se-ia indicar alguns cineastas que buscavam trabalhar o suspense nos moldes notabilizados por Hitchcock. Desde Ascensor para o cadafalso (Ascenseur pour l’échaufaud, 1958), de Louis Malle, até os filmes de Claude Chabrol – como O açougueiro (Le boucher, 1970) e O grito da coruja (Le cri du hibou, 1988) –, François Truffaut – em Um só pecado (La peau douce, 1964), Domicílio conjugal (Domicile conjugal, 1970) e A mulher do lado (La femme d’à côté, 1981) – e John Frankenheimer em O segundo rosto (Seconds, 1966), elementos podem ser apontados como claras referências ao estilo de Hitchcock, com exibição de fachadas de prédios populares, imagens em espiral, planos-sequência bem elaborados e uma gama de situações dramáticas, como as que foram resumidas no rápido argumento de “Busca frenética” no início deste artigo. Na realidade, essa influência se tornou cada vez mais abrangente e intensa após a publicação, e consequente valorização de Hitchcock, do livro “Hitchcock / Truffaut: entrevistas”, desenvolvido pelo cineasta francês no decorrer de anos de conversas com o inglês e que permitiu que este último deixasse claro que não era apenas um moneymaker, como muitos o rotulavam, mas alguém com extrema consciência formal e uma dedicação narrativa infindável. François Truffaut trava aqui, para vencê-la em definitivo, a principal batalha da jovem crítica francesa dos anos 1950, tentando realizar uma proeza: fazer o gênio de Hitchcock ser reconhecido através das formas que ele mesmo criou e organizou na tela. Pois é justamente o inventor de formas que Truffaut pretende revelar. Fará isso de maneira
Emmanuelle Seigner e Harrison Ford, em Busca Frenética, de Roman Polanski.
bastante pedagógica (visa explicitamente o público americano), com um trabalho preciso e minucioso em torno da palavra do mestre falando de sua técnica e revelando seus segredos. De fato, Truffaut procurará realizar uma espécie de autópsia das formas hitchcockianas (sequências de filmes, planos, gestos de atores que adquiririam força de fetiche aos seus olhos). Essa ambição passa pelos recursos do livro ilustrado: trata-se de transcrever a fala de Hitchcock em palavras e encarnar as formas cinematográficas por meio de imagens e, mais precisamente, fotogramas, vestígio visual desse “amor pela película” mencionado por Truffaut em sua carta a Hitchcock, base formal original, fetiche primitivo. A maneira como Truffaut trabalha em cima dessas falas/ palavras e dessas formas/ imagens é absolutamente determinante: é ela que inspira ao livro sua estrutura tão original, é ela que criará o livro de cinema mais famoso do mundo. (BAECQUE, 2010, p.149) É fundamental salientar que a estética dos dois cineastas é bem diferente. Hitchcock possui elegância, uma certa pureza nas imagens que, na sua superfície, não agridem o espectador, mesmo quando mostra assassinatos terríveis, como os existentes em Festim diabólico (Rope, 1948), Pacto sinistro (Strangers on a train, 1951) e especialmente em Psicose (Psycho, 1960) e Frenesi (Frenzy, 1972). Há uma agressividade muito grande nas cenas de violência, mas em sua maioria estão envolvidas por um véu narrativo que restringe aquela situação a um momento único que não poderia ser literalmente vivenciado pelo espectador. No caso de Polanski, há uma perversão intensa, fazendo com que os personagens sejam
Faye Dunaway, em Chinatown, de Roman Polanski.
Catherine Deneuve, em Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski.
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inseridos num mundo mais real e menos idealizado do que o de Hitchcock. Essa perversão aproxima o espectador da situação vivida pelo personagem, colocado num mundo mais verossímil, mesmo que o que é vivido seja completamente surreal ou uma representação dos surtos psicóticos do protagonista, como o que é visto em Repulsa ao sexo e O inquilino. Essa perversão de Polanski pode ser devida à influência de um outro cineasta importante dos anos 1950, o Samuel Fuller. Alguns planos de Repulsa ao sexo são claramente devidos ao filme O beijo amargo (The naked kiss, 1964). Não se trata de dizer que uma estética seja melhor que a outra. Apenas são diferentes. Ambas funcionam dentro das estruturas narrativas criadas para comportá-las e possuem seu sentido conforme o tema abordado no filme. Polanski, poderia ser dito, é mais sujo, mais visceral. Ruas sujas e personagens grotescos serão vistos em Hitchcock com mais intensidade nas obras finais, como é o caso de Frenesi. Em Busca Frenética, a personagem Sondra, esposa do Doutor Richard Walker é raptada. Eis aqui um primeiro elemento comum que ocorre nos filmes de Hitchcock. Um personagem que desaparece ou é claramente sequestrado passa a ser o estímulo inicial do protagonista do filme rumo à aventura. Isso é chamado de catalisador, algo que impulsina o herói a partir à aventura, à enfrentar um mundo que ele não conhece, cheio de perigos e riscos para a sua vida. Walker tem que se arriscar, enfrentar o submundo de Paris, pois quer sua mulher de volta. Esta é a maior motivação do personagem no filme. A importância deste catalisador é diferente da importância do MacGuffin. No caso de Busca Frenética, o MacGuffin é o dispositivo nuclear escondido dentro da miniatura da Estátua da Liberdade. Acaba por se mostrar um objeto fundamental, mas que não tem a mesma relevância direta para o protagonista do que havia o personagem raptado. Ele é a justificativa dos vilões em cometerem suas maldades
com o personagem central. Em O homem que sabia demais (The man who knew too much, 1956), o personagem de James Stewart, que também é um médico, tem algo sussurrado em seu ouvido e, para que ele não revele nada, seu filho é sequestrado. A motivação do médico não é, novamente – a priori –, revelar a trama, mas recuperar seu filho. Se for possível impedir que o mal seja feito, também o fará, mas a sua motivação principal é reencontrar seu filho. Essa situação é diferente daquela vista no caso mais claro de desaparecimento de alguém num filme de Hitchcock. Em A dama oculta (The Lady vanishes, 1938), a trama toda gira em torno do desaparecimento da Mrs. Froy. Já em Janela indiscreta (Rear window, 1954), o desaparecimento da esposa de Thorwald é o que motiva a curiosidade de L. B. Jeffries quanto àquela janela específica, o que guiará a trama até o seu final, com a confirmação das suspeitas do fotógrafo voyeur. Por sinal, a apresentação de Janela indiscreta também é relembrada no início de O inquilino, o que será analisado posteriormente. Na trama de Chinatown, a suposta amante do Sr. Mulray desaparece. Não se trata de algo fundamental na trama, mas motiva algumas das ações do detetive J. J. Gittes, pois por meio dela ele acredita que poderá solucionar algumas das dúvidas a respeito do caso em que foi envolvido. Numa outra modalidade da mulher desaparecida, há a mulher que, apesar de não estar presente, fazse presente pela lembrança, pela marca deixada por ela. Um dos exemplos mais notáveis na filmografia de Hitchcock está em Rebecca, a mulher inesquecível (Rebecca, 1940), no qual a presença da falecida esposa de Maxim sempre perturba a jovem que se casa com ele. Esta presença não é sentida por meio de um fantasma, mas por meio da percepção da marca de Rebecca tanto nos objetos da mansão quanto na conduta da governanta, Mrs. Danvers. Em Marnie, confissões de uma ladra (Marnie, 1964), os crimes e o comportamento da personagem central são explicados pelos traumas ocorridos no passado, relacionados à sua mãe. Já em Um corpo que cai (Vertigo, 1958), a morte de Madeleine assombra Scottie, ainda mais quando aparece a figura de Judy. No filme O inquilino, Trelkovsky passa o filme inteiro com a sombra da antiga moradora a incomodá-lo / fasciná-lo. No início, apenas pelo interesse de pegar a sua vaga dentro do edifício, mas posteriormente torna-se uma obsessão, a ponto dele absorver a persona da moça, travestir-se e ter o mesmo fim que ela.
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Outro tema a percorrer grande parte da obra de Alfred Hitchcock está nas loiras glaciais construídas por ele por meio do figurino e comportamento. Estas mulheres intocáveis podem ser vistas em Um corpo que cai, Os pássaros (The Birds, 1963), Marnie, Ladrão de casaca (To catch a thief, 1954), dentre outros. Essas mulheres, com seus cabelos compactos, presos ou curtos, suas roupas elegantes, sóbrias e quase masculinizadas, impõem-se sobre os homens, deixando-os perplexos, à mercê de sua condução no desenrolar dos acontecimentos. A Sra. Evelyn Mulray, interpretada por Faye Dunaway, em Chinatown, na primeira cena em que aparece, encarna de forma literal este conceito – trata J. J. Gittes de forma superior, e deixa no ar uma certa curiosidade a respeito de si. Ela mesma será quem revelará diversos aspectos sombrios dentro da trama, mostrando que por trás daquela aparência havia alguém cheia de segredos inconfessáveis. A personagem de Catherine Deneuve em Repulsa ao sexo é uma outra modalidade de loira glacial, pois esta assume uma patologia que a transforma neste tipo de mulher, exatamente por ter aversão (a tal “repulsa”) ao contato carnal, ao sexo, ao beijo. Curioso que esta mesma atriz participaria alguns anos depois de um filme pontual onde a personagem que interpretou se prostituia para sair do tédio do casamento. Em A bela da tarde (La belle de jour, 1967), Luis Buñuel transforma-a ironicamente numa mulher cheia de volúpia, com fantasias sexuais permanentes. Em Busca frenética não há uma loira glacial. Nele há um total inversão, pois a mulher de atitude que auxilia o personagem é a contrabandista que de misteriosa somente tem sua origem e objetivos. Ela utiliza roupas extravagantes e coladas, comporta-se de forma sexy – há uma cena de dança entre ela e Walker em que isso fica bem claro –, porém com aquela vulgaridade que diferencia as estéticas de Alfred Hitchcock e Roman Polanski.
O Inquilino, de Polanski Caso haja alguma dúvida sobre a relação que há entre a produção hitchcockiana e a polanskiana, permaneceremos numa análise mais detalhada do filme O inquilino. Lembremos da abertura de Janela Indiscreta. As cortinas sobem uma a uma enquanto os créditos aparecem na tela. Quando termina, a janela se abre e a câmera sai por ela, a observar
o ambiente interno dos prédios onde o personagem central mora. Após um corte, a câmera preocupa-se em mostrar as janelas dos apartamentos, com cada vida transcorrendo da forma cotidiana de sempre. A câmera se estabelece num sutil contra-plongée, mas depois muda para câmera frontal, apenas por razão de um enquadramento mais plástico e clássico. Várias informações aparecem, desde o suor que escorre da testa de Jeffries e o termômetro que marca mais de 90ºF, até um gato que passeia despercebido pelo pátio, as pombas sobre o telhado de um dos apartamento. Cada morador tem sua vida a iniciar naquele momento. A câmera para de um em um, apresentando tudo para o espectador. O plano termina com a imagem de Jeffries sentado em sua cadeira de rodas, com a perna engessada, prostrado. As cores desta cena são quentes, com o sol que arde e os tijolos terrosos dos edifícios. O som ambiente toma conta da trilha, auxiliando na contextualização de cada um dos apartamentos, conforme a câmera enquadra cada um. Ao ver um homem escutar rádio, é o som deste rádio que domina a trilha. Quando a câmera vai para o apartamento de um casal, são os sons deles que escutamos. E assim sucessivamente. Em O inquilino, Polanski também inicia o filme enquadrando uma janela e sua cortina, porém esta de correr lateralmente. Quando resolve movimentar a câmera, não atravessa a janela, pois já se encontra do lado de fora. A câmera percorre a fachada do prédio onde, nas janelas, vê-se a imagem de Trelkovsky – o personagem central, interpretado por Polanski –, a qual logo é substituída pela imagem de uma personagem feminina. No caminhar pelas outras janelas, repete-se essa presença fantasmagórica em cada uma delas, com algumas repetições de Trelkovsky. A câmera percorre em diagonal, em certos pontos em plongée e outros em contra-plongée, causando uma alteração constante de ponto de vista do espectador e, consequentemente, transmitindo uma certa sensação de desconforto. O prédio torna-se gigantesco, opressor. A música toma conta da cena, numa melodia lenta
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e triste. Além disso, as cores do prédio são acinzentadas, o que contribui para a impressão melancólica da cena. Após mostrar toda a fachada, vira numa panorâmica para a direita, para mostrar a entrada do condomínio, de onde Trelkovsky surge para conversar com a zeladora. Estes dois inícios têm grande proximidade, porém se diferem de uma forma interessante, pois em Janela indiscreta Hitchcock quis demonstrar os atrativos que existiam do lado de fora do prédio e do apartamento de Jeffries. O interesse do personagem estaria naquelas vidas que são mostradas no plano-sequência. No filme de Polanski a situação é inversa. A câmera já inicia do lado fora, sempre voltada para o lado de dentro do prédio. Aqui, Roman Polanski demonstra um interesse maior pelo que está dentro do prédio, pelas suas entranhas, pela inserção do personagem de Trelkovsky neste edifício. Esse local se mostrará no decorrer do filme como uma continuação psicológica do macabro edifício do filme O bebê de Rosemary. Logo descobriríamos que Trelkovsky ainda nem é inquilino no prédio, pois no final da cena chega ao condomínio para se candidatar a alugar o apartamento que está vago. Apesar de mostrar também diversas janelas de um edifício, a multiplicação do personagem central, com as estranhas transformações dele em outras figuras, anuncia o que será o desenvolvimento da trama e o arco do personagem. A somatória de posicionamento da câmera, angulação, utilização de música, trucagens e movimentação transmitem uma sensação que dá o tom do filme desde estes instantes iniciais. O contraste com Janela indiscreta fica mais claro ainda quando algumas cenas depois, a Roman Polanski interpreta um personagem multifacetado em O inquilino.
zeladora apresenta o apartamento para Trelkovsky. Eles se aproximam da janela, ela mostra que de lá dá para ver o banheiro que utilizam no andar e solta uma afirmação de escárnio: “Esta é uma visão que vale a pena olhar!”. As formas circulares também estão presentes em O inquilino. Além da escada vertiginosa que sobe o prédio por dentro e que é mostrada por meio de um contra-plongée extremo que incomoda, um outro plano fundamental da trama se baseia na noção do círculo. Quando Trelkovsky vai visitar a antiga inquilina – Simone – no hospital, acaba por conhecer Stella. Enquanto conversam, os dois tentam se comunicar com Simone. A composição da cena vem por meio de planos ponto-de-vista (PPV), com a câmera lateralizada, como se estivesse a observar a cena ao lado dos personagens. Simone, toda enfaixada, começa a soltar gritos medonhos, arregalando o único olho que está exposto pelas frestas das ataduras. Enquanto grita, a câmera faz um zoom agressivo e truncado, deixando a boca de Simone em evidência, em superclose. No final do filme esta cena se repete, agora em outro contexto. Trelkovsky, após se jogar da janela do apartamento – assim como Simone fizera –, está na posição de enfaixado. Encontra-se exatamente da mesma forma que Simone estivera. Ao compor a cena agora em plano e contraplano, temos a possibilidade de vivenciar a cena a partir do plano subjetivo de Trelkovsky enxergando a ele mesmo conversar com Stella, como num dejà vu do início do filme. O grito gutural é emitido, dando uma melhor compreensão de seu motivo, com o mesmo zoom que se aproxima da boca escancarada. Trelkovsky, para seu horror, percebe que ele também se transformara em Simone, num círculo fatal e, aparentemente, infindável. As formas circulares também podem ser vistas em Hitchcock, sendo em Um corpo que cai a presença mais importante. A vertigem que Scottie sente é representada pelos zooms agressivos na escadaria do campanário e pelas diversas indicações de espirais no decorrer do filme, como na abertura desenhada por Saul Bass, o coque de Madeleine, o formato das flores do buquê de Carlota Valdez e as mesmas escadas do campanário. A aproximação entre os dois filmes se mostra mais intensa se analisarmos sua estrutura narrativa. A condução de O inquilino busca envolver o espectador num espiral de percepções que o faz questionar o quanto de realidade existe naquilo que é contado. O dispositivo cinematográfico, neste caso, está por ludibriar o
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espectador, pois conduz o seu ponto de vista em direção ao incerto, à dúvida, à incompreensão dos destinos. Se citar Ismail Xavier a respeito de Um corpo que cai, é possível aprofundar a discussão: Ele é uma trama da simulação por excelência, como já foi observado pela crítica. Trago um aspecto novo à consideração: o do espelhamento que existe entre o estratagema que envolve as personagens do drama e o próprio princípio da narração do filme. Tal como em outras obras de Hitchcock, o cinema clássico aqui opera com eficiência máxima e, ao mesmo tempo, oferece a metáfora viva para o seu próprio processo. Interessado nessa metáfora, acentuo nesta análise a mecânica da simulação, o funcionamento exterior do aparato, não o que, nas personagens, é desejo do estratagema e disposição para a vertigem da imagem. (XAVIER, 2003, p.52) Esta afirmação pode ser adequada a O inquilino, com exceção da presença do cinema clássico. O filme foi produzido quase vinte anos depois de Um corpo que cai, portanto já tendo passado por outras influências. Como dito anteriormente, Polanski absorveu muito do cinema independente de Samuel Fuller e aqui posso acrescentar John Cassavetes – que trabalharia como ator em O bebê de Rosemary –, com filme fundamentais como Sombras (Shadows, 1959) e Faces (Faces, 1968). A arte destes dois, somada aos ensinamentos trazidos pela Nouvelle Vague, já podem ser vista desde Repulsa ao sexo, até mesmo desde Faca na água (Nóz Wodzie, 1962), seu longa-metragem de estreia. Uma câmera mais solta e rebelde, com movimentos em diagonal, por se tratar de câmera na mão. Sai a dependência do travelling e entra esta câmera livre, que possibilita uma montagem mais fragmentada e desconexa, causando ruído entre os cortes. Parte do horror contido em O inquilino está na somatória de utilização de objetivas grande angulares, câmera na mão, posicionamento de câmera não convencional e cortes abruptos, algo já realizado em filmes americanos dos anos 1960, como Uma rajada de balas (Bonnie e Clyde, 1967), de Arthur Penn, na cena do fuzilamento da dupla criminosa. Assim, já houve a ruptura com a cinema clássico – promovida por Hitchcock, em especial, mas também por outros cineastas, inseridos em “escolas” ou “movimentos”, como Nouvelle Vague, Cinema Novo e Cinema Independente Inglês e Americano – o que Polanski demonstra neste filme em especial. Mas era uma questão de opção, pois ele mesmo utiliza a linguagem clássica ao filmar Chinatown. A realização deste filme vem no esteio
de toda aquela produção hollywoodiana dos anos 1960, que veio realmente a revolucionar a indústria americana, remodelando o star system e abrindo portas para experimentações de linguagem no conservador Estados Unidos. Voltando a O inquilino e a relação com a citação de Ismail Xavier, nele também pode-se perceber o espelhamento entre o que ocorre psicologicamente com o personagem central e a estrutura fílmica escolhida pelo cineasta. Desde os primeiros planos – em especial o já estudado percorrer da câmera pela fachada interna do edifício – pode-se perceber o estranhamento contido no conteúdo e, principalmente, em sua exposição. De acordo com ARAÚJO (1984: págs. 75-6), Um corpo que cai é o filme sobre a criação de uma imagem, [...] desenvolve a hipótese de reconstituir um objeto imaginário idêntico ao real. Filme de exploração dos limites, evolui no sentido de apagar a linha que separa o real e o imaginário, fendendo (e negando) o universo que captamos ordinariamente pela introdução de um acontecimento extraordinário. (ARAÚJO, 1984, p.75-6) O inquilino nada mais é do que uma outra possibilidade de recriação de uma mulher e, com isso, um passaporte para a observação desta mencionada linha que separa o real e o imaginário. Trelkovsky vira Simone, se traveste como se fosse ela, joga-se do apartamento e, como ela, também sofre o horror de ser atacado pelos moradores do prédio e de ver-se no hospital observada por ela mesma. Não esqueçamos que outra situação marcante de substituição ou recriação de uma mulher acontece no filme Psicose, quando Norman Bates se coloca no lugar de sua própria mãe. O texto buscou percorrer algumas aproximações entre o cinema de Alfred Hitchcock e Roman Polanski. Muitas referências ainda podem ser encontradas. Neste ensaio não foram contemplados três de seus filmes que têm elementos a contribuir, que são Lua de fel (Bitter Moon, 1992), A morte e a donzela (Death and
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the maiden, 1994) e O último portal (The ninth gate, 1999), que são considerados menores. A perversão de Polanski é uma transformação do suspense de Hitchcock. O inglês fazia com que o espectador médio ficasse envolvido com a história a partir da perspectiva de que algo perigoso pudesse acontecer. Enquanto isso, Polanski busca a atenção do espectador estritamente por meio do psicológico. Quando tentou se aproximar um pouco mais do estilo de Hitchcock, o resultado veio por meio de Busca frenética, que demonstra estas referências mas não possui o brilhantismo do mestre inglês. A sujeira que Polanski expõe não está em Hitchcock, nem mesmo em filmes voltados à classe trabalhadora, como Frenesi. Mesmo em
Alfred Hitchcock/Divulgação
O inquilino, já pode-se ver a sujeira de Paris. Em Busca Frenética ela é evidente e até mesmo faz parte das necessidades dramáticas da trama, pois os vilões se encontram embrenhados no submundo parisiense. É fundamental perceber a possibilidade que há de se encontrar a influência do cineasta inglês numa obra tão particular e forte como a de Polanski. Como dito no início deste ensaio, muitos são os diretores que, de alguma forma, citam Hitchcock. Polanski está entre os principais, assim como Truffaut e Chabrol, mas se treinarmos o olhar e ficarmos atentos, Hitchcock não é apenas um divisor de águas no cinema mundial, mas uma pedra de Roseta, a partir do qual pode-se encontrar os caminhos para todas as expressões dentro da arte cinematográfica.
Roman Polanski/Divulgação
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Bibliografia ARAÚJO, I (1984). Alfred Hitchcock. São Paulo, Brasiliense. BAECQUE, A (2010). O caso Hitchcock – escândalos, polêmicas e revelações na cinefilia francesa (1949-1966). In: Cinefilia. São Paulo, Cosac Naify. BISKIND, P (2009). Como a geração sexodrogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood. Rio de Janeiro, Intrínseca. BRANIGAN, E (2005). O plano-ponto-de-vista. In: RAMOS, F (org.). Teoria contemporânea do cinema – volume II – documentário e narratividade ficcional. São Paulo, Editora Senac São Paulo. DANCYGER, K (2007). Técnicas de Edição para Cinema e Vídeo. Rio de Janeiro, Elsevier. DELEUZE, G (2009). A crise da imagem-acção. In: A imagem-movimento. Lisboa, Assírio & Alvim. MOTTA, L (2006). Profecias galopantes de Hitchcock. In: Revista Galáxia, São Paulo, n. 11, p. 27-36, jun.. PAGLIA, C (1999). Os pássaros. Rio de Janeiro, Rocco. POLANSKI, R (1984). Roman. Rio de Janeiro, Record. TRUFFAUT, F (2004). Hitchcock / Truffaut: entrevistas. São Paulo, Companhia das Letras. VANOYE, F e GOLIOT-LÉTÉ, A (1994). Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas, SP, Papirus. VOGLER, C (2011). A jornada do escritor. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. XAVIER, I (2003). A representação clássica, do melodrama à ironia de Hitchcock. In: O olhar e a cena. São Paulo, Cosac Naify. ZIZEK, S (2010). Alfred Hitchcock, or, The form and its historical mediation. In: ZIZEK, S (ed.). Everything you always wanted to know about Lacan (but were afraid to ask Hitchcock). London, Verso.
Hugo Harris
É professor da FACOM-FAAP, da Fundação Escola do Comércio Álvares Penteado (FECAP) e do Mackenzie. É graduado em Cinema pela FAAP e em Jornalismo pelo Mackenzie. Atualmente, é doutorando no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP.
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Semi贸tica: a multiplicidade do olhar Neiva Pitta Kadota
Resumo
Abstract
Uma breve leitura da questão sígnica, sob a ótica de Charles Sanders Peirce, colocando em destaque o processo da autogeração de signos a partir do interpretante.
A brief study on Semiosis as defined by Charles Sanders Peirce, highlighting the self-generation of signs by the interpretant.
Palavras-chave
Keywords
Semiótica, interpretante, autogeração de signos.
Semiotics, interpretant, self-generation of signs.
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“Em segredo, uma voz conhecida ensaia palavras desconhecidas; e as figuras implícitas que preexistem na minha estrutura e na minha substância atenta se desenham, se deixam buscar.” “A voz de um fala no outro, e o outro não a pode impedir de fazer-se ouvir.” Paul Valéry
São inúmeras
as linguagens utilizadas pelo homem no processo de exteriorização de suas ideias, sensações e sentimentos porque complexa e ilimitada é a capacidade criativa dos seres humanos que, de gerações em gerações, renovam as formas simbólicas de representação de mundo. E a melhor prova dessa afirmação se encontra na arte, essa competência do homo sapiens que nos eleva a um plano superior, se um paralelo se fizer com outros seres vivos que, embora também se comuniquem, não o fazem de forma sofisticada e inventiva como nós. E para a intelecção adequada desse produzir humano no espaço da comunicação surgiram mecanismos teóricos na segunda metade do século XIX e início do XX como a Semiótica, do norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), a mais nova e competente ferramenta conceitual para se ler o mundo em sua teia labiríntica de significados. É uma ciência que envereda por trilhas inusitadas, mas capaz de desnudar os signos e seus mistérios surpreendendo assim seus pesquisadores na busca de intelecção de códigos muitas vezes herméticos para os habituados a uma análise menos “invasiva”. Uma ciência pautada por uma metodologia que parte “do pequeno para chegar ao grande”, diria dela Flaubert, ou seja, parte de detalhes para revelar o todo.
A sua teoria, tão bem aceita pelos estudiosos de linguagens, parte do princípio de que os signos representam sempre alguma coisa, seja através de palavras, isto é, o verbal; seja através de cores, formas, sons, odores, texturas, e outros e outros elementos, isto é, de elementos não verbais. É uma ciência muito ampla, por isso a sua complexidade teórica, apoiada toda ela no número três porque é uma visão triádica que lhe dá sustentação. Senão, vejamos. O signo, para Peirce, comprende uma imagem triangular, em que na base dessa figura temos o Signo e o Objeto, ligados ambos por uma linha pontilhada, que já indicia a arbitrariedade dessa relação. Unindo esses dois elementos, encontramos o Interpretante, grafado por linhas cheias, que também é simbólica, porque faz a mediação entre os dois primeiros, isto é, interpreta a relação entre o Signo e o Objeto, produzindo simultaneamente imagens em nossa mente, relativas à nossa vivência com esse objeto que o signo está representando. E, uma vez desencadeado o processo, as imagens começam a se reproduzir de forma autônoma, independentes da nossa vontade, porque o Interpretante é dinâmico e uma imagem leva a outra imagem e a outra mais e assim sucessivamente. Para ilustrar esses conceitos, vamos pensar que o rádio ou a TV nos dão uma notícia sobre um acidente aéreo, grave ou não, ocorrido em nossa cidade. Imediatamente nos vêm à mente imagens já conhecidas de outros desastres, com essa ou outra companhia aérea, em nosso país ou fora dele, às vezes com um grande número de vítimas, com pessoas do nosso relacionamento ou seus familiares... Enfim, as lembranças de fatos ligados
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a esse tipo de tragédia passam a povoar a nossa mente a partir desse instante, ininterruptamente, sem que nada possamos fazer para que elas deixem de se multiplicar. É um processo mental que independe de nós e que se prolonga até que um elemento interferente se oponha a essa produção contínua de imagens com a presença de um novo signo, ainda mais forte que aquele. Por exemplo, o toque do telefone que, ao resgatar a voz de alguém, irá interromper esse processo e produzir uma nova cadeia de signos, originários eles do diálogo que se desenvolverá a partir daí.
a cena de Psicose, imortalizada por Alfred Hitchcock num filme de 1960, em que o elemento sonoro é o ponto alto de sua película. O som estridente e repetitivo se colou de tal forma à imagem da faca e do banho que é impossível dissociálos e basta ouvi-lo para que esse cenário fílmico ocupe o espaço de nossa mente, substituindo toda e qualquer imagem que ali se tivesse instaurado.
A literatura de modernidade também opera, desde o início do século passado, nessa linha de junção de elementos aparentemente díspares que assim afloram à nossa memória, como no uso do fluxo de consciência, que se constitui numa geração independente de signos, sem relação com a narrativa em curso, o que pode ser demonstrado num recorte de Virginia Woolf em que o toque das mãos da personagem na suavidade da seda verde leva a lembranças outras, naquele momento desconectadas da realidade ficcional: “A paz baixava sobre ela, e a calma, o contentamento, enquanto a agulha, atraindo suavemente a seda ao seu leve compasso, juntava-lhe as pregas verdes e as sujeitava, facilmente à cintura. Assim, num dia de verão, as ondas se juntam, balançam e tombam; e o mundo inteiro parece dizer: ‘Isso é tudo’...” (WOOLF, 1980, p. 41). Pelo exemplo de Virginia Woolf, percebemos que não só uma notícia ou uma conversa são capazes de produzir essa geração de signos em nosso cérebro. Um perfume, uma cor, um som, um toque em determinado tecido, podem também desenvolver um encadeamento recorrente de imagens ligadas àquele signo. Aqui, as pregas do vestido e as ondas do mar são atraídas por um mesmo movimento: o de ir e vir da agulha que rege a coreografia artesanal. Alfred Hitchcock. Psicose (1960).
A música é também uma fonte de exemplos. E já em seus primeiros acordes poderá trazer de volta à nossa memória um passado próximo ou distante: aquele primeiro encontro, aquele momento especial ou aquela situação que sensações raras provocaram em nós. Poderá ainda a música despertar sentimentos de medo e angústia como
Não só a música tem o poder de produzir imagens, mas o perfume usado por alguém poderá nos fazer lembrar de um outro alguém a quem queremos tanto, ou de quem queremos esquecer. Perfumes
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Pelé: símbolo do futebol brasileiro.
Os cheiros permeiam a nossa realidade e existem cheiros bons e maus. Todos deixam lembranças. E lembranças são signos. Em determinados espaços, em que os odores são extremamente desagradáveis, como nas tragédias em que o número de vítimas fatais é elevado, e as pessoas cuja presença ali é imprescindível, chegam a usar máscaras para não senti-los com intensidade, mas eles poderão se fixar na memória ligados às imagens daquele momento e, aos senti-los de novo em um outro espaço, as imagens daquele primeiro contato com aquele odor virão de forma brutal, sem que nada se possa fazer para impedir seu retorno. Contudo, não podemos esquecer de como eles, os odores, podem nos proporcionar instantes de felicidade
que depois se eternizam para nós. E, então, é impossível não nos lembrarmos de Marcel Proust e de sua memória olfativa e gustativa. O chá de tília e o seu perfume. Este, acompanhando as famosas “madeleines”, mesclava-se à infância do escritor, complementando assim o quadro de reclusão e nobreza em que vivia. Proust conviveu com as ausências, com o interminável passar das horas em completa solidão já em sua infância. Mostrou-se, por isso, uma criança melancólica e assombrada por sonhos e angústias, em seu mundo imagético. A carência de afeição, resultante da enfermidade que marcou sua existência, o levou a criar a obra que melhor resgata a sociedade de uma época e de refletir sobre o tempo que nos consome. “E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. (...) Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.” (PROUST, 1987, pág. 51) Foto de Cristina Lunardeli de Oliveira.
são signos. Melodias são signos. As cores são signos. O verde e o amarelo são as cores do nosso país. Elas o representam, elas nos representam. A cor verde-amarela é um signo brasileiro. Está em nossa bandeira, na faixa presidencial e na camisa de nossos jogadores de futebol. E se esse jogador for Pelé, ou um outro esportista famoso da atualidade, estaremos, então, diante de dois signos que reunidos no mesmo objeto (o atleta) representam as cores e o esporte de nosso país. E se a disputa é interna, a camisa de cada jogador será também a representação de seu clube. É por ela que ele é reconhecido pelo público. São signos estes especiais, pois se tornaram símbolos, segundo as categorias peirceanas.
Madeleines.
Em busca do tempo perdido não é apenas um romance de uma vida, mas o registro de uma transposição poética de uma vida para a arte.
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Um retrato vivo de fragmentos de imagens que se colam para produzir significados. É uma cadeia sígnica que projeta imagens, em nossa mente, de refúgios em que se escondia o escritor para melhor nos revelar seus espaços íntimos: o quarto, os recantos outros da casa, o jardim, e neles todas as sensações corpóreas: dos cheiros ao toque; das cores e formas ao sabor. Nada escapava à observação visual e sensorial de Proust. E nada o impedia, ainda que por devaneios, de visualizar o universo no pequeno espaço de seu quarto de jovem enfermo. “Mesmo na primavera, encontrar nalgum livro o nome de Balbec era o suficiente para me despertar o desejo das tempestades e do gótico normando: mesmo num dia de tempestade, o nome de Florença ou de Veneza me dava o desejo do sol, dos lírios, do palácio dos Doges e de Santa-Maria-dasFlores.” (PROUST, apud HARVEY, 2007, pág. 74). Assim, podemos perceber que os nomes, e também outros elementos não verbais, como visto acima no exemplo do chá de tília ou das madeleines, despertam imagens que se autorreproduzem, se desdobram em outras formas, lugares, pessoas, ainda que estas sejam apenas fruto de uma imaginação sensível, como ocorre em vários momentos da obra proustiana. E percebemos, então, que a ciência que se propõe a desvendar essa multiplicidade de imagens desencadeadas por um elemento qualquer: um odor, uma forma, ou seja, um signo, buscando explicitar esse processo evolutivo e ininterrupto de nossa mente, é a Semiótica. E a Semiótica é uma ciência investigativa que está a serviço do fenomenológico, de várias áreas do conhecimento, para o deciframento das representações simbólicas não só dos fenômenos objetivos e subjetivos do mundo, mas também das alegrias e angústias que sem aviso prévio se apropriam da alma humana.
BIBLIOGRAFIA: HARVEY, Vera Azambuja. Marcel Proust: realidade e criação. São Paulo: Perspectiva, 2007. KADOTA, Neiva Pitta. A construção da linguagem. São Paulo, LCTE, 2009. PANTIER, George D. Marcel Proust: Les années de jeunesse -1871-1903. Paris: Mercure de France, 1967. PROUST. Marcel. No caminho de Swann, Rio de Janeiro, Globo, 11ª edição, tradução Mário Quintana,1987. SANTAELLA, Lucia e NÖTH, Winfried. Imagem – Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998. SANTAELLA, Lucia. O que é Semiótica, São Paulo, Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 1983. WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway, Trad. Mário Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
Neiva Pitta Kadota
Professora de Língua Portuguesa na FACOMFAAP. Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Autora de A construção da linguagem, entre outras obras.
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Impactos da Comunicação
Humanizada
da Saúde Valdir Cimino
Resumo
Abstract
Uma abordagem sobre a necessária comunicação entre os sujeitos envolvidos no campo da saúde e seus possíveis impactos, no sentido de humanizar o ambiente hospitalar. É peremptória a ampliação do diálogo entre os profissionais da área com a população, administração e entre si, a fim de obter o melhor alinhamento estratégico entre as lideranças e colaboradores na área de saúde com o objetivo de promover a Política Pública – Humaniza SUS (Sistema Único de Saúde).
An approach on the necessary communication between the subjects involved in the field of health and its possible impacts, to humanize the hospital environment. Vigorously expanding dialogue between the professionals of the area with the population, administration and among themselves, in order to obtain the best strategic alignment between leaders and employees in the area of health with the aim of promoting public policy – Humanizes SUS (Unified Health System).
Palavras-chave
Keywords
Comunicação Corporativa na Saúde, Liderança Humanizada, HUMANIZA SUS.
Corporate Communication in health, Humane Leadership, HUMANIZA SUS.
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Introdução
Em 2001
quando o então Ministro da Saúde, Sr. José Serra lançou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar, ficou oficializado que o então sistema de saúde pública do Brasil funcionava com carências graves. Através de uma pesquisa realizada nos hospitais do SUS – Sistema Único de Saúde, na época detectou-se que não só a falta de médicos, de espaços nos hospitais e medicamentos eram as questões que geraram as principais críticas aos serviços de saúde, caminhando no sentido oposto as determinações da Constituição Federal de 1988 que reconheceu o direito de acesso universal à saúde para toda a população brasileira, mas também, e principalmente, a baixa qualidade da atenção ao usuário do serviço. “Evidentemente, todos esses aspectos são importantes para a qualidade do sistema; porém, as tecnologias e os dispositivos organizacionais, sobretudo numa área como a da saúde, não funcionam sozinhos – sua eficácia é fortemente influenciada pela qualidade do fator humano e do relacionamento que se estabelece entre profissionais e usuários no processo de atendimento.”. (SERRA, 2001, p.05)
Neste documento, o Ministério da Saúde propôs como objetivo fundamental do programa: “[...] aprimorar as relações entre profissional de saúde e usuário, dos profissionais entre si e do hospital com a comunidade.”. (SERRA, 2001, p.07) E reconheceu ainda que para a implantação do PNHAH na realidade hospitalar do sistema público de saúde brasileira, era preciso uma nova cultura de administração do sistema e modernização das relações de trabalho, repensar o processo educacional e de capacitação para os profissionais da saúde focado em valores e cidadania, incluir a troca de informações entre a rede hospitalar como ferramenta para estimular e fortalecer as ações positivas de atenção ao usuário e ainda, criar indicadores na saúde, que são fundamentais para detectar a competência do sistema. Ou seja, desde então, soubemos que a melhora da saúde no Brasil dependia da vontade política e dos processos e ações dos dirigentes do sistema. Ao analisarmos as carências e problemas da saúde pública brasileira em 2001, chegamos à conclusão que naquela época as organizações hospitalares tinham um grave problema de comunicação em todos os níveis. Dizem que nas questões gerenciais da organização a comunicação ainda funcionava bem, mas era deficitária nas questões de integração e relacionamento entre os profissionais para a troca de experiências e interpretações das situações do dia-a-dia. Três anos depois, em 2004, o então Ministro da
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Saúde Humberto Costa, transforma o “programa” em uma Política Nacional de Humanização, com o argumento de que como política transversal, a humanização poderia se infiltrar nas rígidas barreiras do poder e interferir nos processos de produção da saúde para mobilizar os sujeitos sociais. Entende-se, portanto, que os resultados do PNHAH não foram satisfatórios, tanto que no documento da PNH, encontramos as mesmas necessidades de mudanças e algumas análises preocupantes nas questões da implantação dessas mudanças. “É neste ponto indissociável que a Humanização se define: aumentar o grau de co-responsabilidade dos diferentes atores que constituem a rede SUS, na produção da saúde, implica mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho. Tomar a saúde como valor de uso é ter como padrão na atenção o vínculo com os usuários, é garantir os direitos dos usuários e seus familiares, é estimular a que eles se coloquem como atores do sistema de saúde por meio de sua ação de controle social, mas é também ter melhores condições para que os profissionais efetuem seu trabalho de modo digno e criador de novas ações e que possam participar como co-gestores de seu processo de trabalho”. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2004, p.07)
palavras: o exercício da comunicação se dá entre os pares (chefes com chefes, médicos com médicos, enfermeiros com enfermeiros, e assim por diante), dificultando a emergência de processos instituintes”. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2009, p. 29) A organização ainda é avessa a mudanças e teme os conflitos e seus ruídos, com processos engessados e despreparados para a democratização dos processos de decisão.
A Organização da Saúde Assim posto, sabemos que os serviços ligados a saúde são realidades hipercomplexas1, por se tratar de uma atividade cheia de riscos, angústias e frustrações. Por isso mesmo e sendo este trabalho fundamental para a sociedade, é que seus sujeitos precisam de cuidados. Como “cuidados”, entendemos exatamente o que o conceito de Humanização traz em sua concepção, que é a valorização dos todas as pessoas envolvidas no processo de produção da saúde: usuários, trabalhadores e gestores – como destacou o Ministro Humberto Costa, no documento base do HUMANIZASUS.
Para terminar o apelo histórico deste estudo, apontamos uma cartilha editada pelo HUMANIZASUS sobre Gestão Participativa e Cogestão, que diz que a produção de saúde de forma integral, é uma prática conjunta de gestão, atenção e política, e provoca ainda nos sujeitos envolvidos, a possibilidade de se descobrir novas fórmulas e experimentar novas práticas de “organização dos serviços e circulação do poder” (BRASIL, Ministério da Saúde, 2009, p. 04)
Desta forma, lidamos com três grandes conjuntos diferentes de públicos, mas que seguem interdependentes: o usuário, ou seja, o paciente e seus familiares; o profissional da saúde, o que envolve todos e todas as variáveis ligadas ao exercício da produção da saúde, e o gestor em todos os níveis, que administra efetivamente os dois sujeitos acima, as estruturas físicas e a máquina pública.
Nesta cartilha encontramos ainda algumas análises muito importantes como a que diz que na saúde ainda há práticas do modelo de trabalho fordista, que gera a incapacidade de entender o sistema como um todo, pois a ação mecânica descontextualiza o indivíduo de seu meio e torna seu trabalho sem sentido. Diz ainda que as organizações de saúde possuem uma gestão centralizadora e que verticaliza as relações de trabalho. “Em outras
Cada célula é independente, com suas características e possui papel fundamental na construção de um sistema de saúde público humanizado. O importante é entender que a intersecção entre eles é que mantem o sistema funcionando, e a qualidade dessa relação é que, de certa forma, garante o atendimento na saúde que todos queremos.
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Percebemos pelo histórico da última década, que desde a implantação do programa de humanização, conseguimos dar apenas alguns passos para a melhora do atendimento da saúde pública, e por isso mesmo, existe ainda muito a fazer. Hoje, ao entrarmos, via internet, no Portal da Saúde do SUS2, encontramos uma pergunta fundamental: o que precisamos fazer para implementar a PNH? Mais abaixo seguem as respostas, e citaremos apenas duas delas, que na análise deste estudo, compreendem o principal aspecto do que acreditamos ser o caminho para a real melhora das relações dentro da saúde brasileira.
das telecomunicações, incluindo aqui, as redes sociais, a mídia humana:
“Ampliar o diálogo entre os profissionais, entre profissionais e população, entre profissionais e administração, promovendo a gestão participativa”.3
A segunda forma é tudo aquilo que não é a palavra, em que o significado está nele mesmo, no corpo, pois os movimentos do corpo podem expressar emoções, seja de forma involuntária ou planejada, e desencadear do local ou da tribo especifica.
“[...] que passa informação e orienta a realização das conexões de várias formas interdependentes. A primeira é por meio de suas palavras, em que a dificuldade está nos diferentes graus de abstração e sentido que a mesma palavra pode ter. O significado das palavras não está nelas mesmas, mas nas pessoas.”. (CIMINO, Valdir, 2007, p. 93)
Soma-se a isso o excesso de informação disponível. O desafio é fazer-se entender.
e “Implementar sistema de comunicação e informação que promova o autodesenvolvimento e amplie o compromisso social dos trabalhadores de saúde”.4
O restante dos itens apresenta palavras como estimular, reforçar o conceito, sensibilizar, promover, enfim, palavras de ordem ligadas à principal forma das pessoas se relacionarem, que é o processo da Comunicação.
A Comunicação que humaniza O primeiro aspecto que devemos entender sobre a Comunicação como conceito, é que ela é um processo de troca de informações e que realiza essa troca através de vários suportes. Encontramos neste processo, no mínimo, duas pessoas utilizando a fala face-a-face, ou através do gestual, ou pela escrita ou ainda através
Os valores de uma pessoa estão em seu corpo, em constante transformação, e a cada momento é completado por algo novo, mas que representa o que se é. Ao compreender a Comunicação como um sistema democrático, consideramos que a troca de informações que a identifica, deve ser um processo que entende como legítima as diferenças dos saberes, os conflitos para a tomada de decisões e aquilo que acreditamos como verdade. Não queremos aqui discutir a ignorância, no sentido de “não saber alguma coisa sem saber que não sabe”, pois “achamos que sabemos tudo o que há para saber” (CHAUI, Marilena, 2000, p. 111), mas sim a forma e a qualidade da informação sendo emitida por pessoas que encerram em si mesmas a verdade, como um médico, por exemplo, dizendo aos seus pacientes o que devem saber, fazer e assim, eles se sentem seguros e confiantes, pois não há dúvida porque há ignorância. Não podemos criar um mundo paralelo, fora da realidade, pois continuando o exemplo, o que o médico diz tornase legítimo e lei que rege o dia-a-dia de quem acredita nele. A troca de informações, portanto, deve ser feita de maneira clara pelo emissor para que o receptor possa decodificar os dados nela contidos com o significado adequado à sua verdade e vice-
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versa, já que hoje a comunicação não é mais um via de mão única. Podemos afirmar, então, que a construção do conhecimento nada mais é do que a apreensão de informações, e que por serem verdadeiras, possuem certamente um propósito5. Ora, nos interessa neste momento enfatizar que sem Comunicação não há conhecimento, e sem produção de informações apropriadas, não há força mobilizadora onde a Comunicação se realiza. Veja, o conhecimento é indestrutível, seu uso não o desgasta quando é consumido6, portanto há de se pensar na saúde mais pelo lado da abundância de conhecimento e consequentes resultados, do que pelo lado obscuro da gestão desses mesmos conhecimentos. No documento Monitoramento e Avaliação na Política Nacional de Humanização na Atenção Básica Hospitalar, Serafim Barbosa Santos-Filho7, afirma que a informação tem seu potencial de reduzir a alienação dos trabalhadores, na medida em que possa permitir reflexão sobre seu fazer cotidiano, sendo utilizada como norte para pensar sua prática e os resultados de seu trabalho. Ou seja, a falta de informação sobre o resultado do trabalho dentro das organizações hospitalares, por exemplo, contribui para a desmotivação e sofrimento dos trabalhadores, tornando-os descompromissados com o acolhimento dos pacientes e atitudes colaborativas. A Comunicação, portanto, deve ser utilizada como uma ferramenta que possa traduzir com clareza o alinhamento estratégico entre as lideranças e seus colaboradores na área da saúde, para que traga resultados concretos de desempenho, que chamamos de indicadores, e transforme a saúde pública em algo que se possa ter como garantia, todos os dias. A presença da Comunicação é tão importante nas relações entre os sujeitos envolvidos na saúde, que as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina instituído pelo MEC8, apenas para citar um exemplo, incluem como uma das competências e habilidades do profissional os itens: “Comunicação: os profissionais da saúde devem ser acessíveis e devem manter a confidencialidade das informações a eles confiadas, na interação com os outros profissionais da saúde e público em geral. A Comunicação envolve comunicação
verbal, não verbal e habilidades de escrita e leitura; o domínio de, pelo menos, uma língua estrangeira e de tecnologias de comunicação e informação.”. 9 e “Conhecimento, Competências e Habilidades Específicas: comunicar-se adequadamente com os colegas de trabalho, os pacientes e seus familiares; Informar a educar seus pacientes, familiares e comunidade em relação à promoção da saúde, prevenção, tratamento e reabilitação das doenças, usando técnicas apropriadas de comunicação; Atuar em equipe multiprofissional.”.10
O profissional da saúde, em última análise, deve ser o elo fundamental para a não doença. Ele deve prezar pela saúde integral da sociedade, e não apenas participar da cura das enfermidades quando elas já estão instaladas ou dos métodos paliativos quando não há mais solução. Um país sadio é onde sua população está em equilíbrio com seu corpo, sua mente e o ambiente, e a saúde pública deve cuidar deste equilíbrio na sua essência.
Liderança – Comunicação
Palavra
chave
da
A importância da Comunicação passa antes pela qualidade de quem tem o poder de aplicar os métodos e estratégias que a comunicação pode oferecer. Entendase qualidade, a capacidade e autonomia dos líderes e gestores da área da saúde pública, para implantar diretrizes eficazes e em busca de uma saúde humanizada. É importante enfatizarmos os aspectos da administração e da liderança, pois as relações que se percebe na área da
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saúde são baseadas em autoridade, estruturas verticalizadas e, portanto, de pessoas de perfil individualista e sem comprometimento a longo prazo e ausência de visão empreendedora (por Ana Paula Martins - Colaboração no setor de saúde passa por liderança). É evidente que o exercício do atendimento à saúde, ainda mais em um país como o Brasil, doente e ignorante, é altamente complexo e intenso, e as relações de trabalho acabam por serem conflituosas devido à agilidade inevitável da tomada de decisões, é o agir-executar, em alguns ou em quase todos os casos dentro de um hospital público por exemplo. Somase a isso, a ineficiente relação médicocliente, principalmente, a falta de tempo do médico, que tenta conciliar suas atividades em mais de uma instituição de Saúde11. Assim, o trabalho cooperativo em equipe fica desgastado, os procedimentos muitas vezes descontínuos e é neste ponto que aparece os resultados de uma liderança desqualificada ou omissa. (AZEVEDO, Creuza da Silva, 2002) Quero citar novamente as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba, que descreve sobre o aprendizado da liderança: “Liderança: no trabalho em equipe multiprofissional, os profissionais de saúde deverão estar aptos e assumirem posições de liderança, sempre tendo em vista o bem estar da comunidade. A liderança envolve compromisso, responsabilidade, empatia, habilidade para a tomada de decisões, comunicação e gerenciamento de forma efetiva e eficaz.”.
Portanto, a liderança deve ser a forma que transforma o dia a dia do ambiente da saúde, sabe detectar, aproveitar e envolver a energia dos seus liderados para o jogo do ganha-ganha, ou seja, divide a responsabilidade e comprometimento do
resultado entre todos. “Ele partilha o poder, até porque o seu poder emana delas; o que, aliás, é um princípio básico de convivência democrática. O líder com esse tipo de visão (que é estratégica), vê o futuro e está pronto para ele. Ou, em outra hipótese factível, sob o olhar de Lao Tsé: ‘O melhor de todos os líderes é o aquele ajuda seus seguidores para que eles não precisem mais dele’.”.(COMPAGNOLI, Sérgio, 2004).
Conclusão O princípio deste estudo foi detectar as falhas e consequente oportunidade para o avanço da melhora das relações multiprofissionais dentro da saúde pública. Queremos um SUS que dê certo, e não apresentamos qualquer exemplo do SUS que dá certo, por acreditar que a Comunicação pode ser o ferramental necessário para que essas experiências se multipliquem com mais eficácia. Queremos sim, um PPHS – HUMANIZASUS que dê um melhor acolhimento ao paciente, que aplique a gestão participativa e que valorize o profissional da saúde, conforme mandam todas as bibliografias sobre humanização. Queremos a melhora do ensino nas faculdades de medicina, queremos professores comprometidos, pois são exemplo e os multiplicadores das boas ideias que precisamos implantar no Brasil para os próximos anos. Precisamos melhorar o IVH-S (Índice de Valores Humanos de Saúde) com a redução das filas e do tempo de espera nos hospitais e a garantia da aplicabilidade dos princípios básicos da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. Mas, todo esse discurso de querer um SUS humanizado não se sustenta se não houver nos profissionais ligados às atividades de gestão, atendimento à saúde e Educação, a capacidade de se comunicar se fazendo entender e ser entendido, seja através de uma comunicação verbal e não verbal, mas com o objetivo de transformar esse querer em algo palpável e que melhore o bem estar de quem precisa de atendimento médico. Para terminar, citamos um aspecto fundamental da comunicação nas palvaras da Professora Maria
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Júlia Paes da Silva, em seu artigo “O papel da comunicação na humanização da atenção à saúde” 12 : “[...] os pacientes não conseguem avaliar os profissionais de saúde pela sua competência técnica (por não possuírem esse código), eles avaliam os profissionais pelo código de ser humano que é expresso principalmente por essa linguagem não-verbal. Para humanizar a assistência, portanto, precisamos tornar mais consciente esse código não-verbal que fala da essência do ser humano.”.
NOTAS: 1. BRASIL, Ministério da Saúde, 2009, p. 29 2. http://portal.saude.gov.br/saude/ area.cfm?id_area=391 3.
Ibid.
4.
Ibid.
5.
Ver mais em: Cimino, Valdir, 2011.
6. Sobre essa matéria, ver “O Imaterial na Economia e no Trabalho” (Langer, André, 2009) 7. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/manual_avaliacao_5.pdf
Ilustração: Paulo Zilberman
8. http://portal.mec.gov.br/cne/ arquivos/pdf/CES04.pdf, 9.
Ibid.
10.
Ibid.
11.
CIMINO, Valdir, 2011.
12.
SILVA, Maria Julia Paes da, 2002.
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BIBLIOGRAFIA: AZEVEDO, Creuza da Silva. Liderança e processos intersubjetivos em organizações públicas de saúde. Rio de Janeiro, 2002. BRASIL, Ministério da Educação e Cultura/MEC. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Brasília, 2001. http://portal.mec. gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf BRASIL, Ministério da Saúde. Cadernos HUMANIZASUS – atenção básica. Brasília, 2011. BRASIL, Ministério da Saúde. Formação de Apoiadores para a Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção à Saúde. Brasília, 2006. BRASIL, Ministério da Saúde. A Humanização como Eixo Norteador das Práticas de Atenção e Gestão em Todas as Instâncias do SUS – HUMANIZASUS. Brasília: Série B. Textos Básicos de Saúde, 2004. BRASIL, Ministério da Saúde. O HUMANIZASUS na Atenção Básica. Brasília: Série B. Textos Básicos de Saúde, 2009. BRASIL, Ministério da Saúde. Monitoramento e avaliação na política nacional de humanização na atenção básica e hospitalar manual com eixos avaliativos e indicadores de referência. Brasília, 2009. BRASIL, Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: Documentobase para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília, 2006. BRASIL, Ministério da Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Brasília: Série C. Projetos, Programas e Relatórios, 2001 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/pnhah01.pdf
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000 http://pt.scribd.com/ doc/6580781/Marilena-Chaui-Unidade-3 CIMINO, Valdir. Aspectos éticos e humanísticos na formação do estudante de medicina do primeiro ao quarto ano da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo – FCMSCSP. São Paulo, 2011 CIMINO, Valdir. O Papel do Educador na era da interdependência: como incrementar as entre educadores e alunos por meio de uma comunicação ética e solidária. São Paulo: Clio Editora, 2007. COMPAGNOLI, Sérgio. Liderança é poder compartilhado. São Paulo, 2004 http://www. portalcmc.com.br/lid_art09.htm LANGER, André. Mutações no mundo do trabalho. A concepção de trabalho de jovens pobres. Curitiba, 2009. SILVA, Maria Julia Paes da. O papel da comunicação na humanização da atenção à saúde. São Paulo, 2002.
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http://www.fcmscsp.edu.br/posgraduacao/cursos/ teses.php?ref=2 http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/ handle/1884/24969/TeseAndre.pdf?sequence=1 http://www.ciape.org.br/matdidatico/enfermagem/ anadias/papel.pdf
Valdir Cimino
Professor na FACOM e ADM FAAP, Presidente Fundador da Associação Viva e Deixe Viver e Sócio Diretor da Cimino Eventos/Comunicação.
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Um olhar
antropo lógico Beatriz Santos Samara , Adélio Gonçalves Brito e Roberto Bertani.
Resumo
Abstract
O texto introduz três antropólogos que de forma diferenciada estudaram povos e com estes estudos entenderam civilizações diferentes, primeiramente apresentamos estes estudiosos, para depois compreender o que fizeram e analisamos as metodologias aplicadas a seus estudos.
The text introduce three anthropologists, who studied people in different ways, and with these studies, understood different civilizations. First of all, we present these scholars, and then understand what they did and after that, we analyze the methodologies applied to their studies.
Palavras-chave
Keywords
Cultura, etnografia, metodologia, raça.
Culture, ethnography, methodology, race.
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I - Conhecendo os autores
A metodologia abordada neste artigo demonstra a possibilidade de um olhar diferente, que resultou em algumas conclusões por meio da análise de circunstância e fatos próprios de determinadas culturas. Os autores abordados neste paper identificaram a possibilidade de investigação diferenciada, com analises precisas e identificação de características próprias das culturas, possibilitando aos leitores de suas obras um mergulho profundo nas características das culturas por eles estudadas, levantadas de maneira preciosa. Pretende-se conhecer os autores um a um e, em seguida, descrever suas metodologias de estudo nos casos dos livros mencionados a seguir. Começando por Franz Boas que nasceu em Minden em 9 de julho de 1858 e morreu em Nova Iorque em 21 de dezembro de 1942, tendo sido considerado um antropólogo teutoamericano. Era de família judia liberal, foi influenciado pela Revolução de 1848 que o levou a idéias pioneiras sobre raça e etnicidade. Boas era físico com doutorado pela universidade de Kiel em 1881, sua tese de doutorado “Contribuições para o entendimento da Cor da Água” tentou demonstrar como os domínios da experiência humana não eram explicáveis quantitativamente. E
em uma viagem para Baffinland para trabalhar com um grupo de esquimós foi que Boas primeiro vivenciou a experiência de campo e começa seu trabalho como antropólogo. Em 1887 Boas vai para os Estados Unidos e após sua primeira publicação torna-se referencia como antropólogo. Em 1892, tornou-se professor de antropologia na Universidade Clark, em Worcester. Em 1896, foi indicado curador assistente de Etnologia e Somatologia do Museu Americano de História Natural. No mesmo ano, foi nomeado leitor de Antropologia Física da Universidade Columbia, e promovido a professor de Antropologia em 1899. Cria então o programa de PhD em antropologia que seria o primeiro da América. Boas argumentava que as raças de índios do Peru e da América Central desenvolveram civilizações similares àquelas nas quais as européias tinham sua origem, embora ainda tivesse um pouco de racismo reflexo de sua era, foi entretanto o pioneiro nas idéias de igualdade racial que levaram aos estudos de Antropologia Cultural dos nossos tempos, tendo ficado conhecido como o pai da Antropologia contemporânea. Boas formulou o conceito de etnocentrismo e criou a necessidade de estudar cada cultura por seus próprio termos que exercem, sendo que isto influenciou muitos estudos antropológicos, pois se contrapôs aos evolucionistas, que consideravam as culturas não caucasianas como inferiores. Boas apontava que cada cultura é uma unidade integrada, fruto de um desenvolvimento
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expressão de espiritualidade humana, compreensão da mente primitiva, alem de pensar sobre a vida e a morte. A crítica contra os antifuncionalistas feita por Malinowski, deve-se o influencia da obras de Durkheim, portandose juntamente com Radcliffe-Brown, os percursores do funcionalismo na antropologia.
histórico peculiar, afirma ainda que a dinâmica da cultura está na integração entre o indivíduo e a sociedade em que vive. Afirma ainda que todas as culturas são dinâmicas sofrendo alterações no transcorrer do tempo, e se posiciona contrário às leis gerais dos evolucionistas. Bronisław Kasper Malinowski, nascido na Cracóvia em 7 de abril de 1884 e morto em New Haven em 16 de maio de 1942, tratou-se portanto de um antropólogo polaco considerado um dos fundadores da antropologia social, tendo sido influenciado por James Frazer e Ernest Match, notabilizou-se como fundador da escola funcionalista. A principal contribuição à antropologia foi a maneira de investigação de campo por ele executada, com experiências de pesquisa na Australia, primeiramente com o povo Mailu (1915) e depois com os das Ilhas Trobriand de 1915 até 1918. Malinowski, que se formou em Ciências Exatas, acabou se dedicando a ler The Golden Bough de James Frazer que o direcionou a maneira de executar sua pesquisa de campo que determinou como seria sua obra com
Quando chega em Mailu, Malinowski desenvolve o método Etnográfico de pesquisa através do funcionalismo na observação. Em 1927 dedica-se a lecionar na Universidade de Londres, mas volta a realizar etnografia na Africa do Sul em 1934 onde permanece por 3 meses e volta aos Estados Unidos e falece em 1942. Ruth Bendict nasceu em Nova Iorque em 6 de julho de 1887 e morreu também em Nova Iorque em 17 de setembro de 1948, sendo portanto uma antropologia americana. Na sua graduação em 1919 na Universidade de Columbia entrou em contato com Boas e se tornou PhD.
II - Comentando os livros Conhecendo o percurso destes autores será comentado a seguir suas metodologias definidas em suas obras, seguindo a ordem já elaborada iniciando por Franz Boas. Antropologia Cultural é o livro que será, dedicado a Raça e progresso de 1931, e segundo Boas: “ O primeiro ponto em relação ao qual necessitamos de esclarecimento refere-se ao significado do termo raça. No linguajar comum, quando falamos de uma raça, queremos denotar um grupo de pessoas que têm em comum algumas características corporais e talvez também mentais. Os brancos, com
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pele clara, os cabelos lisos ou ondulados e narizes afilados, são uma raça claramente distinta dos negros, com pele escura, cabelos crespos e narizes achatados...” (Antropologia Cultural pág. 68).
Boas faz um exercício de descrição repleto de detalhes para construir o contexto que pretende abordar, de forma a levar o leitor a interiorizar conceitos até então não pensados. No mesmo texto, Boas diz que “os traços raciais hereditários deveriam ser compartilhados por toda uma população, para que se pudesse realça-los em contraposição a outras populações” (pág. 70), isto é de maneira enriquecedora ao pensamento sobre raça e sobre naturalmente o orgulho de pertencer a uma determinada raça. Posteriormente, ele menciona que “todas as observações que temos podem ser melhor e mais facilmente explicadas pelas diferenças no ambiente social” (pág. 79.), incluindo desta forma a sociedade como fundamental em seus diagnósticos sobre a raça e progresso. Continuando a introduzir pensamento, ele afirma que:
seu
“Tudo que podemos afirmar com certeza é que o fator cultural é da maior importância e poderia bem ser responsável por todas as diferenças observadas, embora isso não exclua a possibilidade de existirem diferenças biologicamente determinadas. A variedade de respostas de grupos da mesma raça, porém culturalmente diferentes, é tão grande, que provavelmente qualquer diferença biológica existente tem importância menor.” (Antropologia Cultural pág. 81).
E, é assim que Boas introduz de maneira clara e objetiva a cultura como preponderante a biologia na determinação da raça. Neste texto aparece claramente a idéia de racismo, “Obrigações sociais estritas entre membros de uma tribo, mas todos os estrangeiros são inimigos” (pág. 83). Falando sobre sociedade, Boas afirma que: “ Os princípios que mantêm as sociedades unidas variam enormemente, mas a todas elas são comuns as obrigações sociais dentro do grupo e o antagonismo contra outros grupos paralelos.” (Antropologia Cultural pág. 83).
Assim, fica claro que a sociedade necessita das obrigações sociais e do antagonismo a grupos diferentes. Data de 1932, o texto de Boas “Os objetivos da pesquisa antropológica” que será comentado. E, com este parágrafo será iniciado a abordagem. “Talvez possamos definir melhor o nosso objetivo como uma tentativa de compreender os passos pelos quais o homem tornou-se aquilo que é biológica e culturalmente. Desse modo, fica claro desde de logo que nosso material precisa necessariamente ser histórico, no sentido mais amplo do termo. Cumpre que ele inclua a história do desenvolvimento da forma corporal do homem, de suas funções fisiológicas, sua mente e sua cultura”. (Antropologia Cultural pág. 88).
Com isto, é sabido que há uma conjunção de fatores que nos leva a compreender o homem, estando todos interligados, unidos de maneira a formar uma só coisa, o homem. Quando Boas fala sobre raça, encontra-se no seu livro o seguinte parecer: “A solução desses problemas precisa ir alem da descrição morfológica da raça como uma totalidade. Desde que estamos
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lidando em grande medida com formas determinadas por hereditariedade, parece indispensável fundamentar o estudo da raça sobre o das linhagens genéticas que compõem e de suas variantes, e em investigações sobre a influencia do meio ambiente e da seleção sobre formas e funções corporais. A raça precisa ser estudada, não como uma totalidade, mas em suas linhas genotípicas, que se desenvolvem sob condições variáveis.” (Antropologia Cultural pág. 92). Com isto exposto, pode-se verificar que sua posição quanto ao entendimento da raça se aprofunda, tornando mais complexa do que poderia ser devido anterior a ele. Continuando neste processo esclarecedor, constrói-se o seguinte pensamento: “Os investigadores facilmente se deixam enganar pelo fato de que a dotação hereditária e biologicamente determinada de um indivíduo está intimamente associada ao funcionamento de seu corpo. Isso aparece mais claramente nos casos de deficiência corporal ou de desenvolvimento corporal extraordinariamente favorável....” (Antropologia Cultural pág. 94).
Com isto, reafirma seu parecer, o que leva a entender que a raça esta diretamente associada o cultura e a sociedade em que o indivíduo vive, uma vez que afirmou Boas que as experiências são determinadas pela cultura em que o indivíduo vive. Indo mais a frente, Boas afirma que: “Nos poucos casos em que se tem investigado a influencia da cultura sobre as reações mentais de populações, pode-se observar que a cultura é um determinante muito mais importante do que a constituição física, mas que ela estará completamente ausente no caso das populações. Nessas circunstâncias, precisamos basear a investigação da vida mental do homem sobre um estudo da história das formas culturais e das interrelações entre vida mental do indivíduo
e cultura.” (Antropologia Cultural pág. 97). Aparece então a história como uma conjunção ao entendimento de uma raça em união a cultura, sem a qual para Boas não pode ser compreendida a raça. Para Boas existe a possibilidade uma assimilação de uma cultura por outra, levando uma sociedade a assimilar a outra num contato estreito onde os traços de uma disseminam no de outra, isto pode acontecer devido a distribuição geográfica de fenômenos culturais que levam uma difusão. “A dinâmica das sociedades existentes é um dos campos mais calorosamente controversos da teoria antropológica. Ela pode ser observada a partir de dois pontos de vista: o das inter-relações entre diversos aspectos de forma cultural e entre cultura e ambiente natural; e o da inter-relação entre indivíduo e sociedade”. (Antropologia Cultural pág. 104).
Esta é a maneira de ver de Boas apresentando um dinamismo diferente na percepção da raça e de como entender numa forma mais ampla, diferenciada. Ainda, Boas afirma que “os fenômenos culturais são de tal complexidade, que me parece duvidoso que se possa encontrar qualquer lei cultural válida” (Antropologia Cultural pág. 107). Entende-se, então que segundo sua visão não é possível a generalização que leve uma lei universal para compreensão da raça. E ele vai alem dizendo que “parece um esforço vão procurar leis sociológicas que desconsiderem o que poderemos chamar de psicologia social, isto é, a reação do indivíduo à cultura”. (Antropologia Cultural pág. 109). E, é com esta passagem que se encerra a introdução ao pensamento de Franz Boas.
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Passa–se agora a Bronisław Kasper Malinowski em seu livro Argonautas do Pacífico Ocidental em que estuda o Kula.
Malinowski não identificou uma autoridade geral, sendo que os mais velhos exercem este papel nas aldeias, ainda descreve que as mulheres exercem muito poder, podendo até dizer que elas tem muita influência.
Logo no inicio Malinowski diz que: “Ao meu ver, um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro as inferências do autor, baseadas no próprio bom-senso e intuição psicológica.” (Argonautas do Pacífico Ocidental. pág. 18). Isto posto, será descrito a seguir as experiências de Malinowski. Devido a região estudada ter uma parte de fácil acesso e outra de difícil acesso isto pode ter sido fator influenciador na distribuição racial. Neste caso especifico, Malinowski estudou o povo Massim que fica numa região geográfica sem obstáculos, a região reconhecida como Kula ou a cultura do Kula, sendo esta uma uma atividade intercomunitária Os Massim tinham as canções mais suaves e as danças mais bonitas, foram
A moral sexual é livre, segundo Malinowski, não existem praticas anormais ou perversão sexual. Realizam grandes festas em cerimonias funerárias ou nas transações do Kula. Existem muitas lendas entre suas tribos que são totêmicas e divididas em clãs e subclãs. Sem existir sistemas hierárquicos ou de castas, consideram ainda a feitiçaria como um grande instrumento de poder. Ao falar sobre os nativos da Ilha Trobriand, como descrevendo a belezas naturais da região e a emoção de estar no local onde realiza a pesquisa, só depois é que Malinowski, vai descrever o povo da região e diz que há a existência de classes e diferenciação social, mesmo entre as mulheres, os plebeus se curvam na presença os chefes que exercem o poder sobre a aldeia e as vezes sobre o distrito. Descreve que a vida sexual começa com jogos infantis e que o casamento não esta associado a nenhum cerimonial especifico, a mulher mudase para a casa do marido, e a família da esposa deve contribuir para o novo lar, existe divisão de trabalho e cabe a mulher a horticultura. As mulheres solteiras tem liberdade sexual, os adolescentes moram em casas de solteiros, agrupados de dois a seis pessoas. A agricultura é fundamental para este povo, sendo que um quinto do total da ilha é cultivada, produzindo assim mais do que o necessário, contam com o feiticeiro agrícola com poderes sobre a produção, executando ritos e encantamentos influenciadores que regulam, sistematizam e controlam o trabalho agrícola.
Malinowski em 1922 entre os Massim.
considerados por Malinowski como tímidos e desconfiados, mas não eram hostis, podendo ser considerados quase servis, sendo também cuidadosos com a higiene pessoal. No passado foram canibais.
Existe competição no cultivo, pois este dá prestigio ao nativo por sua capacidade de produzir e pela quantidade de área cultivada. O chefe deste povo detém a autoridade da aldeia e a chefia dos clãs totêmicos, existindo sempre alguém que exerce a autoridade máxima, mas isto tem muita relevância, pois os nativos
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só agem em consonância com as convenções tribais e as tradições, sendo o líder reconhecido como um mestre de cerimonias, podendo ter uma posição elevada ou não. Este líder pode ter muitas esposas, de acordo com isto sendo que o nativo tem de dar grande parte da colheita para família da irmã, o líder pode acumular muita riqueza e isto lhe dá poder. O poder da feitiçaria é incontestável, existindo um grande medo do feiticeiro e dos seus feitiços. Após esta observações sobre o povo, inicia-se propriamente no Kula. Segundo Malinowski: “O Kula é uma forma de troca e tem caráter intertribal bastante amplo; é praticado por comunidades localizadas num extenso círculo de ilhas que formam um circuito fechado.” (Argonautas do Pacífico Ocidental. pág. 71).
Ao descrever o Kula, refere-se a um grande sistema de expedições marítimas que são realizadas em círculos por todas as ilhas da região com tribos que participam do sistema, sendo que em cada parada trocam-se presentes entre si, estes presentes são diversos objetos, mas os maiores relevâncias são os braceletes e os colares. O Kula é um meio de socialização. A seguir a última autora aqui abordada: Ruth Bendict, com seu livro O Crisântemo e a Espada. O Crisântemo e a Espada foi escrito durante a segunda guerra mundial e descreve de forma criteriosa a cultura japonesa. O treinamento dos japoneses envolvia a alma, e quando ocorriam derrotas as palavras eram aquilo já estava previsto e que providencias haviam sido tomadas e ainda que não havia motivos para preocupações. A pessoa do Imperador era venerada, sendo que no Japão bastava uma ordem do Imperador para por fim a guerra. Os japoneses não queriam ser salvos pelos americanos, pois a morte representava a vitória do espírito, consideravam a rendição uma vergonha.
Os japoneses tem profundo respeito a hierarquia. O devotamento filial esta relacionado a família convivente, sendo que o patriarca idoso tem uma liderança muito forte e as mulheres são inferiores em sua hierarquia. Foi muito comentado no livro a reforma Meiji, como grande diferencial no comportamento dos japoneses. Existem palavras que só tem sentido para o povo japonês, assim Ruth Bendict faz entender comportamentos que para nós causa estranhamento como o “On” empregado como devoção sem limites para o Imperador e também entre pais e filhos, sendo considerado uma divida que não tem fim. O “Giri” é mais difícil de suportar e abrange desde a gratidão até a vingança, e neste momento que Ruth fala sobre os samurais que praticavam suicídio quando a morte era certa, pois para os japoneses o suicídio é realizado de acordo com seus princípios limpando o nome e reabilitando a memória. Os japoneses consideram os prazeres físicos bons e que devem ser cultivados, o homem casado frequenta prostíbulos, e a esposa está ciente e cordata a este comportamento, ainda dormir, comer e beber diferem dos nossos conceitos, eles gostam de dormir, mas conseguem se privar do sono se necessário, comem para viver, sem abusos e não bebem junto com a refeição, somente depois dela. Para o herói japoneses não existe a escolha entre o bem e o mal, a escolha é entre duas obrigações e a morte pode ser a solução. A moderna ética japonesa tem a mesma base da ética feudal. A cultura japonesa é considerada a cultura da vergonha, pois desconhecem o sentido de pecado e a vergonha é a raiz da virtude, os atos são julgados pelo publico, não existe o conceito de sacrifício dos pais pelos filhos, ou da esposa pelo marido, suas ações são apenas permutas reciprocas.
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Ruth Bendict discorre também sobre a criança japonesa, afirma que o homem a deseja pelo prazer de amar a criança, pela importância em continuar a família e para assegurar seu papel; e a mulher devido a satisfação emocional e para manter sua posição social. Ruth Bendict explica todo o desenvolvimento da criança e aculturação na sociedade japonesa, a importância de carregar o bebe nas costas da mãe, o berço utilizado no seu nascimento, as regrar para o aprendizado do tirar a frauda, e assim leva nossa imaginação ao conhecimento desta cultura tão diferenciada. Os casamentos no Japão são arranjados e os casos extra-conjugais dos maridos não são mal vistos. O Imperador termina com a guerra e o Japão se rende, os americanos resolvem manter a estrutura japonesa, o que os japoneses aceitaram como forma de compensar o erro, o Imperador vai visitar o general vencedor e encaram a necessidade de reconstruir o Japão com a volta a suas origens e o Japão ”reconhece o militarismo como uma luz que se apagou”. (O Crisântemo e a Espada. pág. 264.).
III – Conclusões Os três antropólogos estudam a cultura de povos que analisaram em seus livros de forma a fazer com que o
leitor se aproprie de seus ensinamentos de forma tal que sentimos inseridos nestas culturas e nos colocamos como não apenas espectadores, mas participantes dos eventos por eles descritos. Boas faz uma análise precisa de raça e cultura, fazendo-nos pensar que estão ligadas de forma que é impossível separa-las, não esquecendo que como etnógrafo suas descrições são precisas e abrangentes. “ Os dados antropológicos padronizados que nos informam sobre o comportamento costumeiro não nos fornecem pistas sobre a reação do indivíduo à sua cultura, nem sobre o entendimento de sua influência sobre ela. No entanto, aí estão localizadas as fontes para uma verdadeira compreensão do comportamento humano.” ( Antropologia cultural. pág. 108.) Assim, Boas pensava para determinar como analisaria os focos de seus estudos, falando também sobre a psicologia social como a reação do indivíduo à cultura. Malinowski em Argonautas do Pacífico Ocidental passa a viver por longo período entre os nativos, sem o apoio de outro homem branco com objetivos científicos e para conhecer uma etnografia moderna. O seu relacionamento com os nativos ajuda a conhecer os costumes e crenças fazendo que com o tempo não seja mais um estranho para a comunidade, pretende em seus estudos não ter idéias pré-concebidas, e afirma que cada fenômeno deve ser estudado a partir do maior número de manifestações. Criou o diário de campo como instrumento para captar as informações e só depois descrevelas de forma a conduzir seus seguidores a uma viagem profunda na cultura de um povo. Já Ruth Bendict, em O Crisântemo e a Espada, tem por objetivo estudar uma cultura através de livros, filmes, história, famílias japonesas que viviam nos Estados Unidos e povos asiáticos semelhantes, pois eram tempos de guerra e não havia possibilidade de ir até o Japão para vivenciar esta cultura. Apesar deste empecilho, a sua descrição é
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precisa e seus relatos envolventes, levando-nos uma vivência única na leitura de seu livro. Seus relatos são de tal maneira que possibilitanos vivenciar as diferenças espantosas para os ocidentais da forma de pensar e viver dos japoneses. Os três autores com seus olhares antropológicos nos levam a verdadeiras viagens a mundos diferentes dos nossos, fazendo-nos entender culturas que desconhecemos, e passamos a conhecer.
BIBLIOGRAFIA: BENDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002. BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Ed Jorge Zahar Editor, 2010. MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1978.
Beatriz Santos Samara
Especialista no Master em Tecnologia Educacional, Mestre em Turismo (Unibero), Mestre em Comunicação e Semiótica (PUCSP), doutoranda em Ciencias Socias (PUC-SP). Professora da FAAP e PUC-SP. É co-autora dos livros Pesquisa de Marketing - Conceito e Metodologia e Comportamento do Consumidor Conceitos e Casos (vencedor do prêmio Jaboti).
Adélio Gonçalves Brito
Publicitário, Doutorando e Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), MBA (Universidade Anhembi Morumbi). Professor dos cursos de Relações Públicas (FAAP) e Publicidade e Propaganda (PUC-SP).
Roberto Bertani
Especialista em Comunicação (ECA-USP), Mestre em Artes Visuais (UNESP) e doutorando em Ciências Sociais (PUC-SP). Superintendente Geral e Curador Artístico da Fundação José e Paulina Nemirovsky, Delegado por São Paulo no Conselho Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, Professor da FAAP e Membro do ICOM - International Council of Museums.
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Vera
Vicente
de
Azevedo Aracy Amaral
Resumo
Abstract
Tentativa de retraçar a biografia aventurosa de Vera Vicente de Azevedo, russa de origem, retratada por modernistas como Antonio Gomide e Flavio de Carvalho. Sua unica filha, Verinha, foi retratada por Tarsila do Amaral em 1937, em óleo hoje na coleção do Museu de Arte Brasileira da FAAP.
Attempt do register the trajectory of Vera Vicente de Azevedo, a Russian born, who lived in São Paulo in the 1920´s and 1930´s and was portrayed by several modernist artists such as Flavio de Carvalho and Antonio Gomide. The portrait of her only daughter Verinha, painted by Tarsila do Amaral in 1937, now belongs to the collection of Museu de Arte Brasileira, FAAP.
Palavras-chave
Keywords
Modernismo Brasil século XX, anos 1920/30, Movimentos culturais seculo XX, São Paulo.
Modernism Brasil XXth. century, 1920´s and 1930´s in São Paulo cultural milieux.
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Vera Vicente
de Azevedo foi retratada por Antonio Gomide em duas telas, por Flavio de Carvalho (um óleo e um desenho), e em fins dos anos 40, segundo ela, por Aldemir Martins em um desenho. Já Tarsila do Amaral faria em 1937 o retrato de sua filha Verinha, hoje no Museu da FAAP. Mas afinal quem foi Vera Sgouridis Vicente de Azevedo, essa figura de mulher retratada por pintores de seu tempo? A resposta ela própria deu-me ao vir a meu encontro espontaneamente a 4 de agosto de 1979, na Pinacoteca do Estado, então sob minha direção. Minha surpresa foi enorme ao vê-la , posto que já então tinha muita curiosidade sobre quem ela seria, modelo de tantos artistas conhecidos. E atribuo o privilegio desse depoimento a publicações sobre o modernismo, que eu produzia regularmente nos últimos tempos, e de que ela, provavelmente, tomara conhecimento. Mas até agora nada publiquei especificamente sobre sua personalidade por não ter tido acesso direto a eventuais herdeiros seus a quem considerava que deveria ter consultado. A pessoa que vi diante de mim na Pinacoteca do Estado era uma mulher
maltratada pelo tempo e pelas dificuldades lembro-me de suas mãos rudes, por duras vivencias. Contou-me, com simplicidade, durante nossa conversação, que nascera na Rússia e perdera sua mãe em Constantinopla, Istambul de hoje. Graças a uma recomendação, foi viver na Côte d´Azur, sul da França, numa sede da Y.W.C.A. (Young Women Christian Association) onde realizava trabalhos domésticos para pagar sua hospedagem. Jovem de reconhecida beleza, teve um certo envolvimento com um casal francês ligado aos Rothschild, sendo por eles contratada como governanta, e com eles embarcando para a América do Sul. Quando o navio toca no Rio de Janeiro muda de idéia quanto a seu destino e decide permanecer no Brasil, onde nasce sua única filha. Na então capital federal tudo lhe pareceu extremamente difícil, mas consegue trabalho como balconista. Conhece pouco depois o acadêmico Graça Aranha, figura importante à época, como poeta e literato, e trava contato com Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, que lhe oferece a possibilidade de assinar uma crônica. Em seguida vem para São Paulo, casandose com Raul Vicente de Azevedo, em 1923, de tradicional família paulista, e quem aparentemente responsabiliza-se por sua filha também Vera de nome, e cuja descendência não conseguimos contatar. Passa a freqüentar o meio artístico da capital, sendo retratada por Antonio Gomide (1896-1967), em duas ocasiões, no melhor período art déco do
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Antonio Gomide. Retrato de Vera Vicente de Azevedo
ato da policia”, revoltados pelo fechamento do Teatro da Experiencia de Flavio de Carvalho, conforme noticia o Diário da Noite de 9 de dezembro de 1933, embora com omissão de nomes que depois o critico Sergio Milliet resgataria em seu Diário Critico (ao lado de Tarsila do Amaral, Siqueiros, Brasil Gerson, Eduardo Maffei, Baby e Guilherme de Almeida, Honório de Silos, Galeão Coutinho, Camargo Guarnieri, Gregory Warchavchik, Pedro de Alcântara, Jorge Amado,Franchini Neto, Balmaceda Cardoso, Rubens do Amaral, entre outros). Assim, vemos Vera Vicente de Azevedo em atitudes rebeldes que nada têm em comum com a alta burguesia da sociedade paulistana tradicional. De todos modos, em 1937, por ocasião do I Salão de Maio, organizado por Quirino da Silva no Esplanada Hotel de São Paulo, paralelamente à exposição de obras são registradas várias conferencias, entre elas a de Vera Vicente de Azevedo, sobre “Interpretação da arte pela psicologia moderna”.1 pintor, em inícios dos anos 30. Numa das telas, de densa melancolia e tons suavizados, está sentada à mesa de um café, e noutra, o artista aborda somente seu rosto de finas feições. Já em junho de 1934 o retrato de Vera Vicente de Azevedo, a óleo por Flavio de Carvalho (1899-1973), datado de 1933, constaria da primeira individual deste artista revolucionário de nosso modernismo, em exposição realizada no Edifício Alves de Lima, à rua Barão de Itapetininga 10. Mas Flavio, segundo nos disse Vera Vicente de Azevedo , faria também um desenho tomando-a como modelo. Quando alguns ex-modernistas e personalidades da nova geração da década de 30 tentam se reorganizar como grupo (que se auto intitularam “O Quarteirão”, e foi de breve duração), “algumas poucas reuniões foram promovidas em altas horas da noite na casa de Vera Vicente de Azevedo e o grupo acabou se dissolvendo de vez...” (ver em J.Toledo, Flavio de Carvalho, o comedor de emoções, Edit. Unicamp/Brasiliense, 1994) . Sabemos, igualmente, pelo registro de J. Toledo na publicação acima citada, que ela assina o “Protesto dos intelectuais de S. Paulo contra o
Vera Vicente de Azevedo nos conta nesse depoimento pessoal de 1979 que chegou a possuir nessa época uma tela de Vicente do Rego Monteiro, nosso modernista de Recife, e que hospedou Tarsila em sua casa quando a artista regressou do Rio, ocasião em que tinha sua fazenda sob moratória, em processo durante a década de 30. Relatou-me ainda que, tendo passado a ser uma militante socialista, esteve pela ultima vez na União Soviética em 1968, época em que conheceu Nicolai Bulganin (até 1958 poderoso politico na URSS, e destituído por força de Kruschev, tendo ficado praticamente aposentado desde 1960), em tratamento, como ela, no mesmo hospital do Estado.
Antonio Gomide. Retrato de Vera Vicente de Azevedo.
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Contou-me ainda que em fins da década de 40 foi presa por três meses e a única pessoa a visitá-la foi Lilóca (Alice de Aguiar Souza Amaral), cunhada de Tarsila, casada com seu irmão Milton Estanislau do Amaral, e aos quais estava vinculada por amizade desde a década anterior, pois enviara presente de casamento para o casamento de sobrinha de Tarsila, Helena Galvão Bueno, em 1947. Por ocasião dessa visita solicitou à Lilóca, diante da possibilidade de ser extraditada como presa política para Portugal ou Espanha, que recolhesse seus livros mais preciosos - em sua casa? - aqueles encadernados com suas iniciais. Logo depois, foi solta e seu processo arquivado, não tendo obtido, contudo, por parte da cunhada de Tarsila, noticia sobre a devolução de seus livros. E ignoro se voltaria a ver a pintora do pau-brasil, a quem fora ligada nos anos 30.
1930 e por Flavio de Carvalho, em 1934, focalizando uma bela mulher pese sua melancolia, no caso dos dois retratos de Gomide, e os estragos do tempo no caso de Flavio de Carvalho, retrato quase cruel de Vera Vicente de Azevedo. Assim, me dou conta de que o retrato do acervo da FAAP só pode ser de sua filha, Vera, ou Verinha2, como era chamada, em 1937 uma adolescente. Outros indícios de que se trata de sua filha é o vestido vaporoso, juvenil, da retratada, apesar de sua expressão dura, de grande estranhamento, em contraste com o suave fundo azul celeste. Relatou-me ainda nessa entrevista pessoal em 1979 que desenvolvia atividade comunitária em Vila Formosa, aqui em São Paulo, através da Sociedade de Amigos dos Bairros, ensinando as mulheres dessas comunidades a costurar e aos homens a construir equipamentos para crianças. NOTAS:
Um retrato feito por Tarsila em 1937, hoje no acervo do Museu de Arte Brasileira da FAAP, sempre foi intitulado “Vera Vicente de Azevedo” (e assim constava quando organizei sua retrospectiva em 1969, e nessa época de propriedade de Benjamin Steiner). No entanto, colhendo estas notas observo comparativamente os retratos feitos por Antonio Gomide no limiar de
1 - Também fizeram palestras Flavio de Carvalho, Álvaro Moreyra, Julieta Barbara, então mulher de Oswald de Andrade, Carlos Pinto Alves, Irene de Bojano, Elias Chaves Neto, tendo sido o ápice da atenção o “renovador da cenografia moderna, Anton Giulio Bragaglia, que em duas conferencias, abordou assuntos do mais alto interesse cultural, falando sobre “As tendencias modernas na cenografia”. E “Conversação”, sobre o mesmo tema. Paulo Mendes de Almeida, “De Anita ao Museu”, Editora Perspectiva, S.Paulo, 2ª. Ed., 1976, p.89-90. 2 - Verinha casou-se com um dirigente sindicalista, que faleceu em São Paulo por volta de 1962. Depoimento de Guilherme Augusto do Amaral, 22 out.2012. Por volta de 1952, segundo esse depoimento, Vera Vicente de Azevedo solicitou a Milton Estanislau do Amaral e sua mulher, irmão e cunhada de Tarsila, que fossem fiadores de imóvel que alugara na zona norte de São Paulo para fins de reuniões ou “comitê”.
Aracy Amaral
Tarsila do Amaral, retrato de Verinha, filha de Vera Vicente Azevedo.
É curadora e critica de arte. Prof. titular depto. História da FAU-USP (aposentada).Tem publicado livros sobre o modernismo no Brasil, arte contemporânea, e arte na América Latina. Coletânea de seus trabalhos foi publicada em 2006, pela Editora 34 sob o titulo “Textos do Tropico de Capricórnio”(3 vols.). Trabalha e reside em São Paulo.
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