ESPECIAL
A origem do mundo por Filipe Chagas
A representação explícita dos genitais – independente do gênero – ainda possui um efeito perturbador sobre a maioria da sociedade, como se o confronto com sua própria sexualidade fosse uma batalha perdida para a censura moral de tempos arcaicos que se mantém enraizados e irrigados por ideologias religiosas. No meio do puritanismo do século XIX – bem semelhante ao de hoje –, o quadro “A origem do mundo” (L’Origine du monde, 1866), de Gustave Coubert (1819-77), veio para chocar: o sexo em close de uma mulher deitada sobre uma cama.
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Esse enquadramento provocava as regras acadêmicas vigentes que toleravam apenas os nus inscritos nos contextos das grandes cenas mitológicas, oníricas ou exóticas, sem se confrontarem diretamente ao real em sua crueza mais extrema. A obra fora encomendada pelo diplomata turco Halil Serif Pasha – conhecido como Khalil Bey –, um colecionador de arte erótica que queria eternizar sua amante, a dançarina da ópera de Paris, Constance Quéniaux. Durante o período em que o pintor esteve vivo, o quadro se manteve clandestino. O óleo chegou a passar pelas mãos do psicanalista Jacques Lacan, antes de finalmente chegar ao Museu d’Orsay, em 1995, onde se encontra exposto (e é o segundo cartão postal mais vendido). Considerada pornográfica, Courbet quis, na verdade, fazer a representação mais fiel da origem do mundo, da origem da vida tal qual como nos conhecemos, seguindo os preceitos do Realismo francês. O artista dizia:
Quando eu morrer, deve-se dizer de mim: não pertenceu à escola alguma, à nenhuma igreja, à nenhuma instituição, à nenhuma academia, sobretudo à nenhum regime, senão o da liberdade. Em 1989, a artista francesa ORLAN – Mireille Suzanne Francette Porte (1947-), conhecida por suas incursões na body art e sua posição política feminista –, criou sua versão do quadro de Courbet, na qual mostra um torso masculino com o falo em ereção, intitulando-o, significativamente, como “A origem da guerra”. Sua ideia foi contrapor as genitálias das pinturas e, assim, atribuir às mulheres o poder criativo, enquanto aos homens restava a carga da destrutividade. Com o título contundente, ORLAN retirou o significado convencional do falo como símbolo de fertilidade e escancarou a violência machista. Mais atual, impossível.