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O TEMA GERADOR NA RELAÇÃO COM A
CONSTITUIÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS Solange Toledo Von Onçay1 RESUMO: O presente texto faz uma reflexão do processo de sistematização que busca investigar, até que ponto a proposta educacional desenvolvida como uma das dimensões do Projeto Vida na Roça no município de Dois Vizinhos/PR, incorpora os ideários e os princípios da proposta freireana do tema gerador, trazidas e recriadas no contexto da educação do campo e quais as possibilidades de, por meio desta experiência, constituir políticas públicas. Nesse sentido, aponta caminhos inovadores para a escola na perspectiva de realimentar o processo, não apenas educacional, mas, sobretudo, social e político nas comunidades do campo. Palavras-chave: política pública - tema gerador - educação. ABSTRACT: The current text makes a though of the systematization process that tries to investigate, until what point the educational proposal developed as one of the Projeto Vida na Roça dimensions in the county of Dois Vizinhos/PR, incorporate the ideas and the principles of the generator topic of the Freire’s proposal that was brought and recreated in the context of country education and which the possibilities through this experience to form public policies. In this way, point out innovators ways for the school in an outlook of refeeding the process, not only educational, but overall, social and politic in the communities of the country. Key words: public policy; generating topic; education.
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Solange Todero Von Onçay é Pedagoga, Mestre em Educação pela UPF - Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo/RS. Doutoranda em Antropologia Social pela UNAM - Universidad Nacional de Misiones Facultad de Humanidades y Ciencias Sociales- AR. Como Educadora Popular tem uma trajetória junto aos Movimentos Sociais, e atualmente atua junto a Assesoar/Francisco Beltrão-PR.
91 1. INTRODUÇÃO O objeto de investigação, que busco compreender e analisar, tem como base imediata as práticas pedagógicas identificadas com a proposta freireana do tema gerador, trazidas e recriadas no contexto da educação do campo2 e no seio do Projeto Vida na Roça3 desenvolvido no município de Dois Vizinhos-PR. Por meio da formação continuada embasada na proposta do Tema Gerador, Educadores e Educadoras, coloca em diálogo a prática pedagógica com a prática social, percebendo neste instrumental metodológico, uma ferramenta capaz de gerar e realimentar o processo, tanto educacional, como social e político, na perspectiva da emancipação das comunidades do campo. Neste sentido, tem-se por objetivo principal neste ensaio, investigar4: até que ponto a Educação do Campo, incorpora os ideários e os princípios da educação popular e quais as possibilidades, de por meio desta experiência, constituir políticas públicas; ou seja, é possível articular e construir políticas públicas através da escola, por meio da metodologia do tema gerador, quais as condições necessárias e como acontece este processo.
As principais indagações que motivam a investigação são as seguintes: O tema gerador pode tornar-se um instrumento de geração ou articulação de políticas públicas? Que condições são necessárias para isso? Em que tempos e espaços acontecem essas práticas? Tais processos pedagógicos, tornam-se suficientemente consistentes para mobilizar a participação ativa das comunidades? Em que grau a metodologia do tema gerador, permite a constituição de políticas públicas? Como a escola pode estabelecer a relação com o poder público, o qual vem se 2
A noção de Educação do Campo em estudo neste trabalho origina-se a partir das formulações desenvolvidas pelos movimentos sociais, de bases populares, envolvidas nas lutas políticas em torno da questão agrária no Brasil. Relaciona-se na esfera das políticas públicas entre as lutas que expressam a hegemonia e contra-hegemonia na relação entre Estado e Sociedade Civil. A Educação do Campo desse modo é compreendida como um direito social, aos camponeses pobres, tendo seu fundamento jurídico nas garantias e direitos individuais e sociais, assegurados na Constituição Brasileira e previsto na Lei 9394/96. (COSTA, 2007: 6) 3 O Projeto Vida na Roça – PVR - trabalha com uma concepção de desenvolvimento integral no qual busca desenvolver as diferentes dimensões que fazem parte do mesmo dentre elas a produção, a saúde, o lazer, o saneamento e a educação que o texto se propõe aprofundar. Uma significativa experiência que vem sendo capaz de gerir desenvolvimento a partir dos Sujeitos locais, imprimindo mobilização e capacidade organizativa nas comunidades do campo. Por meio da escuta da fala coletiva, vem possibilitando que os sujeitos envolvidos (que vivenciam a dinâmica), instaurem processos de compreensão da situação em que estão inseridos, e, ao analisar a mesma, ao estabelecer prioridades coletivas de ação, as negociam nos aportes das políticas públicas, intervindo assim, inclusive nas concepções e rumos da gestão pública. 4 Tomo como referência o período em que a educação passa ser uma dimensão debatida junto ao Projeto Vida na Roça. Compreende o recorte temporal de 2006 até o momento atual. Momento em que encontram-me organicamente ligada à experiência.
92 apresentando como agente que encaminha as decisões resultantes da correlação de forças estabelecidas junto à sociedade civil? Há na essência do processo em questão, um caráter político transformador, seja na forma escolarizada, seja no processo de educação popular desenvolvido no contexto? Neste contexto, compreende-se que é fundamental potencializar estas experiências, sistematizando processos que podem constituirem-se em referenciais para uma pedagogia que atue na perspectiva da emancipação das classes populares. Uma escola que se constitua num espaço de conhecimento e aprendizagem, em que a construção de sujeitos autônomos seja o central, contribuindo também para a discussão e elaboração de um projeto que expresse e sintetize necessidades e vontades do ser humano enquanto ser da práxis. Assim, busca-se reconhecer a singularidade dessas práticas, confrontando-as com outras também singulares, sem contudo esgotar a discussão construtiva do emergente, mas registrar e sistematizar proposições que possam contribuir para a construção de uma experiência construtora de novos caminhos e de novas possibilidades de carácter educativo.
2.1 Os Fundamentos teóricos do Tema Gerador: tecendo caminhos Durante os últimos tempos acumulamos produções relevantes nas diversas áreas de pesquisa em educação, entretanto, o diálogo entre o pensar e o fazer pedagógico, ainda é escasso e necessário. De outro lado, temos visto emergir processos educativos que na interfase com a escola, apontam para novas pedagogias construídas por diferentes Sujeitos, dentre eles, os educadores críticos, que fazem de suas práticas objetos de estudo e reflexão. Trata-se de gestar a pedagogia das classes populares, preocupada em aproximar as tarefas do campo político `as do campo pedagógico, por meio das quais e conscientes de sua situação social e histórica, educadores e comunidade educativa, refletem e agem para superar os limites que impossibilitam de fazer da escola, um espaço verdadeiramente a serviço da emanciapação do povo. Busca-se, por meio do pensar-fazer da escola, “jogar pedrinhas no campo da transformação”(Falkembach, 1985), num devir de uma luta a favor das classes populares5, para a 5
Pensa-se, na experiência fundada numa outra cultura econômica, social, política e cultural, capaz de criar uma identidade de classe; nas palavras de Thompson (1987), “fazer-se da classe”. A classe acontece quando homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produções em que os homens nasceram – ou entraram
93 qual, segundo Gramsci6 (1978), “a escola é uma das mais importantes trincheiras”. A sistematização tem sido uma das principais ferramentas capazes de permitir o traçado deste caminho, elevando a consciência de estarmos inseridos em nossas práticas, em razão de uma maior compreensão que passamos a ter sobre a mesma, e sobre o contexto onde ela se desenvolve. Segundo Falkembach (1995), sistematizar é aprender com nossas experiências. Isso implica colocar-nos em situação de aprendizagem frente ao nosso fazer e predispor-nos à problematização, circulando conscientemente e intuitivamente, entre os limites do novo e do já vivido. Todavia, ao falarmos do Tema Gerador como suporte teórico-metodológico do ensinar e do aprender tendo como ponto de partida a relação dialógica, torna-se imprescindível referendar o pensamento de Paulo Freire. Para isso buscarei revisar principalmente o III Capítulo da obra “Pedagogia do Oprimido” (1969), onde Freire fundamenta o trabalho com os Temas geradores de forma mais sistematizada do que havia feito antes em outros escritos, especialmente em “Educação como prática da liberdade” (1965). Neste bojo, é importante entender que Freire ao indagar sobre os conteúdos doutrinários e ideologizados, coloca o Sujeito e não o conteúdo no centro do processo educativo, e por isso, ao referir-se ao conteúdo, “inaugura o diálogo com as classes populares, dando base para a concepção de educação libertadora”. Poderíamos dizer que é com a mesma veemência com que Gramsci polemizara as estruturas e conteúdos da escola burguesa, que Freire condena a “concepção bancária da educação”, porém cabe destacar que entre Gramsci e Freire, há diferenças no modo de conceber a “busca construtiva dos novos conteúdos”. Enquanto para Gramsci, na escola unitária que vinculava cultura e trabalho, a questão era “ ensinar dogmaticamente (sempre de forma relativa) os primeiros elementos da nova concepção de mundo...” (Manacorda, 1977, 178), para Freire, voltado ao oprimido e seu mundo, o
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involuntariamente. A consciência de classe é formada como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais (Thompson, 1987, p.10). Antonio Gramsci tornou-se um dos mais famosos pensadores de esquerda da Europa por procurar renovar conceitos do marxismo e responder aos problemas para os partidos comunistas e socialistas no período fascista e após a segunda guerra mundial. Italiano, nasceu em Ales, na Sardenha, em 1891. Preso em 1926, passou dez anos nas prisões fascistas de onde saiu para morrer, logo em seguida. Mesmo sob controle carcerário rigoroso, desenvolveu uma grande atividade intelectual, expressa na obra “Cadernos do Cárcere”: vinte e seis cadernos que enviou para fora da prisão. Dentre o legado, encontra-se fundamentos de uma proposta educacional a serviço da emancipação do proletariado – classe trabalhadora.
94 conteúdo da educação “como prática da liberdade” não poderia ser “doado” pelo educador ou político, sob pena de estar reeditando, a concepção “bancária” narrativa e dogmática. Surgem então as questões: Como buscar o “pensar verdadeiro” do povo? Diante do conjunto de idéias e opiniões desagregadas e histéricas encontradas no senso comum, qual o caminho? Como alicerçar a educação às situações concretas de opressão vivenciada pelos oprimidos? Ao tecer relações entre o mundo e os homens e destes entre si, Freire desafia-nos para a busca de uma nova concepção metodológica nos fazendo perceber outro ponto de partido para a busca dos conteúdos: “É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos educadores do povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação”. (1987:87) Considera que “o momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do que chamamos de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores.” (1987:87. A investigação, nesta concepção, passa ser a possibilidade de apreensão da temática significativa e a tomada de consciência em torno desta temática. Argumenta: “Esta investigação implica, necessariamente, uma metodologia que não pode contradizer a dialocidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione, ao mesmo tempo, a apreensão dos 'temas geradores' e a tomada de consciência dos indivíduos em torno dos mesmos”. (1987: 87) Temos assim o Tema Gerador, presente no “universo temático” do povo, cujo (...) conjunto de temas em interação, constitui o 'universo temático' da época”. (1987:93) “Os temas se encontram, em última análise, de um lado, envolvidos, de outro, envolvendo as 'situações-limites', enquanto as tarefas que eles implicam, quando cumpridas, constituem os 'atoslimites' ao quais nos referimos”.(1987:93) Situações limites, segundo Freire, são as que “(...) se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em fase as quais não lhe cabe alternativas senão adaptar-se”. (1987: 94) É o limite de compreensão que este grupo possui de sua realidade. “Limítrofe, que se apresenta de forma estanque e que permitem apenas soluções isoladas”.
95 Argumenta Freire: Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política. O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhes exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação. ( 1987:86)
Para Freire, este é o esforço que precisamos realizar, propor ao povo sua situação existencial
concreta, como algo que o desafia e para isso, precisa ser entendida dentro da
totalidade. Isto exige uma metodologia cuja análise crítica, possibilita reconhecer a interação das partes. A questão fundamental, neste caso, está em que faltando aos homens uma compreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em pedaços nos quais não conhecem a interação constituinte da mesma totalidade, não podem conhecê-la. E não podem porque, para conhecê-la seria necessário partir do ponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter uma visão de totalidade do contexto para, em seguida, separarem ou isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto, através de cuja visão voltariam com mais claridade à totalidade analisada. (1987: 96)
Assim, a captação e a compreensão da realidade se perfazem ganhando um nível não existente antes. “Os homens tendem a perceber que sua compreensão e que a 'razão' da realidade não estão fora dela, como, por sua vez, ela não se encontra deles dicotomizada, como se fosse um mundo à parte, misterioso e estranho, que os esmagasse”. (1987: 96). Desta forma, não há como surpreender os temas históricos isolados, soltos, desconectados, coisificados, parados, mas a relação dialética com outros, seus opostos. Como também não há outro lugar para encontrá-los que não seja na relação homem-mundo. O conjunto dos temas em interação constitui o “universo temático” da época.” (1987:93). Esclarece Freire: Ao educador do povo, dialógico, a tarefa é, “(...) trabalhando em equipe interdisciplinar este universo temático recolhido na investigação, devolvê-lo, como problema, não como dissertação aos homens e quem recebeu. Se, na etapa da alfabetização, a educação problematizadora e da comunicação busca e investiga a 'palavra geradora', na pós-alfabetização, busca e investiga o tema gerador.” (1987:102) No contexto educacional de Dois Vizinhos, o debate do Tema Gerador implicou num estudo de seus fundamentos. Procurava-se respostas às seguintes indagações: O que queria Paulo Freire ao
96 anunciar essa ferramenta ao campo da educação popular? Como a escola poderia estabelecer vínculos com o Projeto Vida na Roça que gerava processos de desenvolvimento no contexto onde a escola estava inserida? Que ferramenta teórico-metodológica poderia tornar a escola um espaço/tempo de vivência e partilha de uma cultura, que ressignificada, iria construindo identidades, re-avivando “o ser sócio-político-cultural” dos sujeitos envolvidos? Como vincular a escola à prática social, ou seja, s experiências, saberes, vivências presentes na comunidade educativa? As
escolas do campo de Dois Vizinhos, tem instaurado um movimento reflexivo, permitido
voltar um olhar investigativo, problematizador, sobre as tarefas da escola, que passou-se a abrir mais para comunidade. Um processo, caracterizado pela auto-formação e formação do coletivo de educadores, tendo como referência o 'método da práxis' fundamentada na reflexão no registro e na sistematização da prática pedagógica, à luz de contribuições teóricas. Nas palavras de Benincá e Caimi (2002). o método da práxis, porém, não se constrói ao longo do trabalho; ele é o coração de uma teoria. Não é o método, mas a prática pedagógica que se explicita e passa a ser compreendida ao longo do processo de investigação. [...] Diferentemente de um curso de atualização, que oferece conhecimentos já construídos e que rapidamente podem ser superados, o método da práxis mantém o investigador sempre em ação, já que trabalha com uma realidade sempre nova. A prática do professor, por isso, é uma fonte permanente de geração de conhecimentos. [...] Trata-se de um processo metódico de observação da prática, está registrada e refletida de forma sistemática. (Benincá e Caimi, 2002, 104)
A formação continuada, no pensamento de Paulo Freire, tem como pressuposto a existência de um processo político-pedagógico capaz de ir permitindo que o coletivo de educadores faça de sua prática educativa, objeto de estudo, refletindo-a coletivamente, a luz de teoria. É isso que foi permitindo re-criar o processo pedagógico, a luz dos princípios do tema gerador. Este é o processo que vem se perfazendo, um percurso que se fecunda no cotidiano pedagógico, num devir da necessidade de re-pensar a escola que se coloca a serviço da classe trabalhadora.
97 2.2 O Projeto Vida na Roça e a relação com a Educação Pública do campo7
Desde 2003, quando iniciou-se o PVR em Dois Vizinhos8, tinha-se presente que a educação era uma das dimensões9 importante a ser desenvolvida, e que a escola pública do campo não poderia ficar de fora desses debates. Sendo assim, aproveitando o movimento que vinha sendo impulsionando pelos debates da Educação do Campo, iniciou-se o trabalho pela problematizando a escola, confrontando aproximações e distanciamento desta concepção, primeiramente junto aos educadores pois entendíamos que eles precisavam primeiro re-conceber a escola, o campo, o papel da escola neste novo contexto de campo, percebendo dentro disso o PVR como um dos instrumentos capazes de proporcionar um outro debate e, frente a tudo isso, fazer a opção de repensar suas práticas educativas.
A escola precisava ser re-concebida como um núcleo de expansão do próprio projeto. Ao comungar de um projeto único, (escola e comunidade) a escola precisava dialogar com o projeto.
Antes de descrever o processo que vem sendo vivenciado, é importante destacar que a concepção de escola pública do campo está assegurada pelas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo publicada em 2002. O parágrafo único do art.2º explicita: A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes a sua realidade, ancorando-se na sua temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de Ciência e Tecnologia disponível na Sociedade e nos Movimentos Sociais em defesa de projetos que associem as soluções para essas questões à qualidade social da vida coletiva no país. (MEC, 2002:37)
Mediante este contexto, que vinha também sendo instigados pelos debates da educação do campo, partimos da escuta do coletivo de educadores, os quais tinham desejos de expressar um conjunto de limites e dificuldades, as quais, mesmo com muita dedicação e esforço da parte das escolas, ainda se faziam presentes. Assim, o grupo foi compreendendo a necessidade da formação 7
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A noção de Educação do Campo em estudo neste trabalho origina-se a partir das formulações desenvolvidas pelos movimentos sociais, de bases populares, envolvidas nas lutas políticas em torno da questão agrária no Brasil. Relaciona-se na esfera das políticas públicas entre as lutas hegemonia e contra-hegemonia na relação entre Estado e Sociedade Civil. A Educação do Campo desse modo é compreendida como um direito social, aos camponeses pobres, tendo seu fundamento jurídico nas garantias e direitos individuais e sociais, assegurados na Constituição Brasileira e previsto na Lei 9394/96. Ver publicação Volume I - “Projeto Vida na Roça – resgatando valores”. Mastergraf, Dois Vizinhos, 2006. O PVR trabalha com uma concepção de desenvolvimento integral no qual busca desenvolver as diferentes dimensões que fazem parte do mesmo dentre elas a produção, a saúde, o lazer, o saneamento e a educação que o texto se propõe aprofundar.
98 continuada. Garantiu-se, então uma agenda de encontros mensais de estudo e planejamento do trabalho escolar, onde além da rede pública municipal incluiu-se a participação dos educadores da Rede Estadual. Os encontros, num primeiro momento, tinham como intencionalidade fazer com que os educadores fossem fazendo de suas práticas educativas objeto de estudo e reflexão, desconstruindo as formas transmissivas e conteudistas normalmente utilizadas nas escolas, ao tempo de ir construindo outras possibilidades teórico metodológicas que permitissem a ponte com a realidade do campo. Após alguns estudos, definimos que “o ponto de partida do processo de construção do conhecimento seria a prática social concreta, entendendo dentro de sua complexidade histórica, política, social, econômica e cultural”. A partir desta compreensão, passamos a re-afirmar alguns fundamentos que entendíamos importantes para dar conta do que estávamos nos propondo para o processo educativo, quais sejam: a) a concepção pedagógica que defendemos é aquela que dá conta de compreender o sujeito humano em sua totalidade, portanto, precisa ser problematizadora; b) precisa trazer presente as representações das situações vivenciadas e suas análises; c) ser capaz de realizar o movimento dialético de construção do saber, ou seja: “parte-se da prática concreta, teoriza-se esta prática e constrói-se uma nova ação que já não é a mesma, é nova, re-fundamentada”. Foi a partir disso que fomos ao encontro dos estudos e experiências do Tema Gerador, a reinvenção teórica metodológica do Educador Pernambucano Paulo Freire que nos ajudaria fazer o estudo da realidade, problematizar, e assim trazer esta realidade vivida para dentro do mundo da escola. Compreendeu-se que o Tema Gerador, tinha este nome pois permitia que o trabalho ia sempre gerando novos diálogos, problematizações, novos temas que iam dando origem a outros conhecimentos, buscando novas questões a serem aprofundados. Trabalhar com o Tema Gerador é permitir que um núcleo de contradições, problemas ou necessidades vivenciadas pela comunidade, faça parte do debate da escola. Chegou-se a compreensão do que propunha Paulo freire quando aponta que o Tema Gerador busca a transformação das “situações limites” diagnosticadas no processo.
99 Estudaram-se as quatro dimensões que fundam a proposta do Tema Gerador e que expressam como Freire concebia a educação, as quais consideram importantes destacar. Uma primeira dimensão é a epistemológica que diz respeito a construção do conhecimento. Nesta, Freire afirma que todos nos somos capazes de construir conhecimento, e é “a realidade que proporciona as pontes, as conexões que permitem ao homem/mulher enunciar o mundo”. Ao interagir, movimentar o espaço onde estamos inseridos incorpora aprendizagens. Uma segunda é a dimensão antropológica – Toda ação educativa deve necessariamente estar precedida de uma reflexão sobre as pessoas e de uma análise do seu meio de vida concreto. Na medida em que o Ser Humano, integrado em seu contexto, reflete sobre o mesmo, e se compromete com a mudança, constrói a si mesmo e chega a ser sujeito. Uma terceira é a dimensão teleológica – que é o que se objetiva com o processo educativo, onde Freire trabalha a conscientização. Diz: “conscientização, este é o conjunto central de minhas idéias sobre a educação”. A conscientização, que se apresenta como um processo num determinado momento, deve continuar sendo processo no momento seguinte, durante o qual a realidade transformada mostra um novo perfil. E, por último, a Concepção metodológica - que é método, o modo de fazer, na perspectiva de atingir as demais dimensões. Parte-se do conhecimento do senso comum – para a produção coletiva do conhecimento de forma crítico - contextualizada. A investigação é a grande ferramenta metodológica. Nas palavras de Freire “Investigar o tema gerador é investigar, repitamos, o pensar dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis,” (1987:98) Foi a partir destes fundamentos que realizamos encontros nas escolas envolvendo toda a comunidade. Em pequenos grupos, todos eram convidados a comunicar suas idéias, por meio de dinâmicas que envolviam as diferentes faixas etárias e níveis de participação. O importante era que todos (crianças, pais, mães, avós, lideranças) se sentissem sujeitos pensantes, refletindo sobre o seu mundo, sobre a realidade do campo. Essa idéia funda-se nas palavras de Freire (1987:66) quando diz: “o sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. Não há um ‘penso’, mas um 'pensamos’ que estabelece o ‘penso’ e não o contrário”. “Pela primeira vez estamos sendo chamados para dizer o que pensamos da escola, o que achamos importante para os filhos e filhas de Agricultores, e não para nos dizerem que nosso filho/a tem nota baixa, que não aprende que atrapalha”. (Fala de um pai)
Estes momentos davam subsídios para os educadores extraírem as “falas significativas” que faziam parte do planejamento por tema gerador, bem como permitia ir comunicando para a comunidade o método desenvolvido pela escola, e até as questões que iam constituindo o tema
100 gerador. Outro momento importante de afirmação desta proposta, foi um trabalho de “escuta” junto as Comunidades do PVR. Este foi o momento mais rico onde as comunidades puderam dizer o que pensam sobre a escola pública do campo, a escola das comunidades do PVR, e como gostariam que esta escola fosse. Concordando com Paulo Freire, re-afirmamos: “Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos. Quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando.” (1987:102). Este trabalho com as escolas vem dando conta de articular o currículo e as ações pedagógicas, com o projeto de desenvolvimento que está em debate. Os educadores estão motivados, percebe-se que começam refletir suas práticas, que as mesmas os inquietam, que geram pesquisas, estudo e que o planejamento vem tomando um novo sentido. A formação continuada, conforme era concebida por Freire, permite que o educador faça de sua prática, objeto de estudo, reflita-a coletivamente e a luz de teoria, re-crie-a permanentemente. Apoiando-se em Freire, escrevem Benincá e Caimi (2002, p.100-101): A formação continuada, no pensamento de Paulo Freire, tem como pressuposto a existência de um processo político-pedagógico e, ao mesmo tempo, de uma antropologia fenomenológico-hermenêutica. Isto implica um passado que se faz história, um presente em permanente transformação e um futuro a ser construído. O passado se faz história e realidade, embora seja sempre uma determinada leitura dos acontecimentos e textos já construídos. O futuro, porém, é sempre um presente em transformação, enquanto desejo e utopia.
A formação continuada foi constituindo uma metodologia muito própria, que se distribuia em diversos momento10: partia-se do investigado, das falas significativas identificava-se a “situação limite”, definia-se o Tema Gerador. Deste, constitúia-se uma rede temática, onde as
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a) inicia-se com uma mística preparada pelos educadores; b) socializa-se uma leitura do campo pedagógico; c) retoma-se a memória do encontro anterior; d) re-elabora-se a pauta, previamente pensada; e) traz-se presente o processo desenvolvido através do relato, no qual cada educadora faz a leitura de sua memória ou relata oralmente como foi desenvolvido o seu planejamento (o que o processo gerou, o que desencadeou, quais as reflexões construídas), destacando as falas significativas e os componentes da realidade local de sua comunidade. Geralmente são trazidas para serem socializadas algumas atividades desenvolvidas pelas crianças, estas são expostas e visualizadas por todos; f) organiza-se o planejamento, tendo presente a investigação, as falas significativas, a 'situação limite' identificada; g) define-se o tema gerador. O planejamento que procura garantir uma visão de totalidade integradora desenvolvido dentro de quatro áreas do conhecimento: 1) sócio-histórica, que abrange história, geografia e cultura religiosa; 2) comunicação e expressão, que abrange linguagem, artes, educação física; c) lógico-matemática d) ciências físicas humanas e biológicas.
101 quatro áreas do conhecimento tinham o papel de ajudar na decodificação11 das questões que se queriam desocultar, dando elementos para que cada um pudesse construir sua análise sobre os fatos. Assim, os conteúdos que integravam as áreas do conheciemento, eram abordados à medida que se tornam importantes para compreensão da temática. O grupo de educadores elabora um “contra tema”, ou seja, projeta a concepção desveladora que pretende atingir com o tema gerador que, em outras palavras, passa a explicitar a intencionalidade de por que trabalhar tal temática, o elemento formativo a ser aprofundado, o qual foi identificado como necessário a ser atingido pela investigação, dando origem ao tema. Utilizo-me das palavras de Marta M. Pernambuco (1993) para explicitar a forma que o grupo concebe o “contra-tema” Muitas vezes, optou-se por caracterizar coletivamente a diferença de concepção em relação a fala da comunidade com a explicitação de um “contra-tema”, uma síntese do contraponto analítico que se opõe ao tema gerador. Se podemos considerar o tema como ponto de partida pedagógico, o “contra-tema” seria uma bússola norteadora da síntese analítica, desveladora da realidade local, que se pretende construir com os educandos. Para orientar a organização programática das atividades, procura-se relacionar temas, relações de rede temática e “contra-temas”, em uma única questão, referência recorrente para os encaminhamentos, ou seja, a questão geradora.
Realiza-se, inicialmente, uma análise das relações que foram recebidas nas falas significativas da comunidade. O tema gerador provém, na maioria das vezes dessas falas significativas, a qual apresenta uma contradição, uma “situação limite”, um problema imerso no senso comum que, ao grupo (comunidade-educandos) cabe adaptar-se pois pensa-se ser impossível contrapor-se. Esta contradição é o tema gerador selecionado. Geralmente é expresso pelas chamadas “falas significativas” as quais sintetizam as concepções de mundo recorrentes na comunidade, contradições e limites explicativos dessas visões. Uma segunda rede é construída propondo as relações entre elementos da organização social que os educadores envolvidos no processo qualificam como sendo as mais consistentes para analisar os problemas locais. Parte-se do micro para a representação da macro-estrutura social buscando-se as relações sociais entre ambas. Na concepção de Freire o principal objetivo da redução temática, é estabelecer um diálogo entre os Sujeitos detentores de diferentes conhecimentos, ou seja, transformar a rede de relações que 11
Em nota de roda pé Freire (p.109) esclarece: As codificações, de um lado, são a mediação entre o 'contexto concreto ou real', em que se dão os fatos, e o 'contexto teórico', em que são analisadas; de outros, são o objeto c
102 o grupo (educadores - comunidade) produziu, a partir da leitura crítica da realidade local, em material didático-pedagógico, organizado metodologicamente para o diálogo em sala de aula. Para uma maior comparação entre as duas concepções, a do real vivenciado pela comunidade, e a que se pensa construir, reorganiza-se as redes de relações (da comunidade e dos educadores) numa só rede temática, procurando enfatizar as diferenças entre as duas análises. Procuram-se representar, lado a lado, as duas leituras da realidade. Junto, procura-se dispor os “contra-temas”, e os elementos da estrutura sócio-econômica a eles relacionada. Esse processo permite avaliar quais são os objetivos dos conteúdos programáticos frente às questões problematizadoras e que recortes do conhecimento deverão ser feitos, ou seja, que conteúdos específicos precisam ser pinsados na programação para construir uma nova visão sobre o tema e, sobre a problemática local. Ao educador cabe perceber que conhecimentos diferenciam as duas visões considerando tais conhecimentos como conteúdo escolar. A programação precisa considerar as duas visões de mundo apresentadas na rede temática.
Passado o mês, o tema é re-planejado, incorporando novas dimensões ou reconstruindo relações para com uma nova temática. Esse ordenamento favorece o trabalho coletivo e individual dos educadores, dinamizando e enriquecendo o planejamento das atividades. Nesse sentido, é preciso perceber que os temas extraídos de uma totalidade12 jamais podem ser tratados isoladamente. Ao invés disso, o processo de redução do tema deve constituir-se em núcleos que se integram em unidades, estas, por sua vez, estabelecem uma seqüência entre si. Desta forma, “reduzir” um tema significa partir do todo indo para as partes, voltando-se a ele como totalidade É fundamental estabelecer dialeticamente as relações, percebendo, assim, que o local está relacionado ao global, o passado ao presente e ao futuro, assim por diante. Em geral o processe assume as seguintes etapas significativas: a) Investigação da realidade 'escuta densa' (ouvindo os educandos, suas famílias, a comunidade em geral, as lideranças , os antigos moradores..., os novos, o ponto de vista das crianças, dos jovens, 12
Tomo o conceito de totalidade na perspectiva de Kosik (1976:35-36), ou seja, “[...] totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético [...]. Sem a compreensão de que a realidade é totalidade concreta – que se transforma em estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos – o conhecimento da realidade concreta não passa de coisa mística, ou coisa incognoscível em si”.
103 dos adultos, dos idosos sobre a temática a ser investigada. Este resgate pode dar-se de muitas maneiras: escutas, conversas, entrevistas, desenhos, dramatizações, que expressem o vivido, o imaginado, o sonhado, o sofrido, o que é reprimido, oprimido... Registro desses fatos e falas significativas. b) Apreensão e explicitação das contradições – construção coletiva de uma rede temática a partir do tema e do contra tema escolhidos: a)análise dos dados coletados pelo conjunto dos envolvidos b) rede de relações entre falas que justificam a temática escolhida; c) caracterização e justificativa do contra- tema a partir da visão dos educadores; d) relações entre fatores físicos e ambientais e características dos segmentos sociais locais; e) relação entre as duas visões (comunidade e dos educadores) considerando tais conhecimentos na programação; f) definição dos conteúdos específicos que serão abordados na programação para construir uma nova visão sobre o tema; g) distribuição das falas significativas selecionadas nas relações apresentadas na parte superior da rede temática; Um processo que vai sendo aos poucos compreendido, re-criado, re-afirmado. A formação continuada dos professores e o planejamento participativo são ferramentas indispensáveis no conjunto do processo. Outro elemento essencial, é a atitude do educador-pesquisador que vai sendo firmada. Um educador aberto ao diálogo problematizador, o qual deve envolver-se pelo tema, o que significa estar imerso na aventura de fazer ciência, criar, recriar, refletir, teorizar. Freire (1987) alerta que só se deve iniciar a busca interventora, quando aceito pela população, isto é, após conversas formais com um número significativo de pessoas, para que seja apresentado o objetivo, convidando as pessoas a participarem como investigadores, constituindo uma relação de simpatia e confiança. A proposta freireana do tema gerador veio permitido trazer presente estes componentes sociais. Com uma clara concepção político-pedagógica e uma dinâmica própria, a realidade foi sendo desocultada, não dentro de uma visão passiva, mas como uma ação comprometida, assumida pelos sujeitos que buscam, através de suas intervenções, desencadear novas ações sociais, reconstruindo, desta forma, a dimensão política do município, ao fortalecer as políticas públicas. Estas proposições colocam-nos bem perto do pensamento de Freire, e a ligação entre política e educação, educação e conscientização, estabelecida por ele. Nesse sentido, nos perguntamos: A educação está relacionada com os princípios conceituais e metodológicos da educação popular? Acreditamos ser essa uma das possibilidades educacionais capazes de fortalecer a consciência e a
104 organização das camadas populares. Poderia gerar políticas públicas ao trazer a tona temáticas concretas pertimentes as comunidades camponesas, explicitando-as e encaminhando-as rumo ao poder público? Se formos capazes de garantir tempos e espaços permanentes de diálogo e, havendo vontade e a competência política, seria possível, o conjunto da sociedade civil, a partir da escola, gerar um núcleo de debates, de diálogos, de definição das políticas? A educação não pode ser apenas instrumental para os setores oprimidos, afirma Freire em seu legado, mas uma área de lutas ideológicas que devem ser empreendidas, tendo em vista a transformação das estruturas opressoras. Contudo essa escola necessária às classes subalternas deve forjar ao mesmo tempo a construção de uma nova hegemonia e a formação dos atores aptos a vivenciarem o processo revolucionário, buscando consolidar projetos emancipatórios. O processo coletivo da busca dessas condições de existência humana precisa garantir, entre outras coisas, a adesão de uma nova cultura ética e política.
Algumas palavras (in)conclusivas Nessa experiência, a relação dialógica presente entre os diferentes sujeitos seja do âmbito da educação ou das esferas sociais do município, colocam em debate práticas educativas escolares, práticas sociais não escolares e a ação política. Esta metodologia veio gerando novos conhecimentos e novos tempos e espaços escolares e, aprendizagens a um número bem maior pessoas do que geralmente o contexto escolar abrange. Pode-se perceber ainda se a mesma possibilita procedimentos inusitados no âmbito da educação e da política. Acredita-se estar dando passos na construção de uma cultura revolucionária que se fundamenta na capacidade de sonhar coletivamente e constituir-se numa atitude de formação permanente, na qual os sujeitos conscientes da sua situação social e histórica refletem e agem para superar os limites que os impossibilitam de serem sujeitos. Essa é a luta pela consolidação de uma hegemonia das classes populares para a qual, segundo Gramsci (1978), “a escola é uma das mais importantes trincheiras”, e que toda “relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”
A escola é, acima de tudo as envolvidas com a prática social, vida. É parte fundante de uma cultura enquanto modo total de vida. Um dos elementos importante a destacar na consolidação deste processo é a metodologia da formação continuada. Através de registros, sistematização e análise da
105 realidade emergem o tema gerador, que é expressão da realidade e explicita suas contradições e resulta na sistematização e construção de conhecimentos. Esse processo de elaboração crítica do conhecimento, fortemente influenciado pelas contribuições de Paulo Freire, possibilita construir novos caminhos sócios educacionais, fundamentalmente emancipatório. É possível perceber que na escola pode-se encontrar brechas para a construção de uma cultura ético - política, com vistas a outro projeto de sociedade, forjada a partir dos sujeitos concretos da escola e do processo educacional. A escola, nessa perspectiva, passa a ser entendida como uma das instâncias de organização dos sujeitos, de construção permanente de consciências críticas, propositivas, revolucionárias. Essa é entendida como local de construção de uma contrahegemonia, na perspectiva gramsciana, num contexto social da luta de classes. Assim, a escola passa a ser entendida como núcleo cultural fundamental onde se cruzam diferentes olhares, diferentes culturas, diferente visão de mundo e nessa diversidade de cores e de opiniões, pode-se construir consensos, definir caminhos, apontar alternativas. Nesse sentido, a educação enquanto processo coletivo de construção de uma outra cultura assume a condução do processo, afinal, como afirma Paulo Freire (1987), “a educação sozinha não transforma o mundo, mas sem ela o mundo não se transformará”. Os escritos de Freire (1971), principalmente os primeiros, nos quais a educação era concebida como um instrumento para ajudar o “homem e a mulher a refletir sobre sua condição ontológica”, ou seja, para ajudar a criar uma consciência crítica da realidade confrontada ao contexto do PVR, levam-me a acreditar que é possível estabelecer uma ligação entre práxis educacional e práxis política.
A escola tem como campo a pedagogia e não a política, no sentido mais estrito. Ela não pode substituir a ação política revolucionária, porém a escola necessita se voltar para o conhecimento necessário às classes populares na transformação das estruturas. A escola das classes populares e o educador popular podem pela construção de uma pedagogia da libertação, construir uma política popular, democrática e conscientizadora que ajude os sujeitos a compreenderem criticamente as estruturas sociais, desde o início da escolarização. É preciso ainda afirmar que, construir uma pedagogia que se contrapõe à ideologia neoliberal, é construir a pedagogia da resistência, a pedagogia do desvelamento das contradições
106 sociais, da compreensão dos interesses de classe e, por último, da capacidade de sentir-se sujeito na construção de mecanismos de intervenção sobre as estruturas opressoras, tendo presentes os objetivos sociais da classe popular. É assumir um caráter revolucionário e transformador das estruturas opressoras. Transformação esta, que vai além da consolidação de um discurso crítico, mas, pelo contrário, é a que se gesta no bojo dos contextos concretos das lutas sociais, fruto da ação e da reflexão comprometida sobre a realidade mutável, em busca da libertação humana. Buscar a autonomia dos sujeitos é primordial à educação que queremos construir. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia precisa reconhecer e potencializar as experiências estimuladoras de tomadas de decisões, construindo-se coletivamente, onde um esteja para todos e todos para um, onde o exercício da cidadania ativa, da democracia, da solidariedade, da amorosidade, do respeito mútuo e da cooperação esteja presente. Em síntese, esta é a tarefa deste estudo e sua pesquisadora, que organicamente vinculada a experiência, ao investigá-la também se compromete com o avanço da mesma.
Trata-se de
desvendar as possibilidades, revelar os processos emergentes, situar o ser humano em sua totalidade, no movimento, na luta de classes. Daí a escola deixa de ser uma instituição estranha ao meio onde está situada para se transformar num espaço de reflexão e empoderamento dos sujeitos nela envolvidos e também nas instâncias políticas mais amplas de poder, que também, certamente, incorporaria componentes de poder popular, ou seja, também se transforma pela ação transformadora.
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