ELIZABETH LABAN “Voltei cambaleando para meu quarto, esfregando o lado dolorido e sem me importar com o fato de que a coisa piorava a cada minuto. Foi quando comecei a me perguntar se era isso, se a ordem tinha sido restaurada. Já passamos e repassamos esse assunto, mas continuo voltando ao mesmo ponto: havia a ordem, depois o caos, seria aquilo novamente a ordem? E, se era, o que significava para mim?” Elizabeth LaBan vive na Filadélfia, Pensilvânia, Estados Unidos, e desde a infância imagina histórias e sonha em escrever um livro. Como Tim e Duncan, em seu último ano na escola também teve que escrever o próprio ensaio sobre a tragédia, e foi relendo-o muitos anos depois que resolveu transformar parte daquela experiência na matéria-prima de seu primeiro romance, Da ordem ao caos.
ISBN 978-85-8277-068-9
9 788582 770689
ELIZABETH LABAN Em seu primeiro dia como terceiranista do Colégio Irving, Duncan cruzou o portão que dava acesso aos dormitórios ansioso por descobrir que quarto ocuparia e qual seria seu presente de boas-vindas. E então vieram duas grandes decepções: o pior quarto da ala dos meninos e um presente nada emocionante, uma pilha de CDs gravados pelo antigo ocupante, Tim. O ex-aluno era um jovem albino que, no ano anterior, acabou se envolvendo em um episódio obscuro para o qual havia muitas perguntas e poucas respostas. A partir dos CDs, Duncan inicia uma jornada entre as revelações do passado nebuloso, seus próprios conflitos e as relações que tudo isso guarda com o já tradicional trabalho de conclusão do ensino médio no Irving, o ensaio sobre a tragédia.
DA ORDEM AO CAOS
ELIZABETH LABAN
DA ORDEM AO CAOS Tradução de Maria do Carmo Zanini
Copyright © 2013 do texto: Elizabeth LaBan Copyright © 2015 da edição brasileira: Farol Literário Todos os direitos reservados ao autor. Título original: The Tragedy Paper Publicado mediante acordo com a Random House Children’s Book, uma empresa da Random House, Inc.
DIRETOR EDITORIAL: EDITORA: TRADUÇÃO: REVISÃO: EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Capa: Imagem de capa:
Raul Maia Vivian Pennafiel Maria do Carmo Zanini Simone Zac Carmen T. S. Costa Claudio Tito Braghini Junior Equipe DCL © shattart / Dollar Photo Club
Texto em conformidade com as novas regras ortográficas do acordo da língua portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação (CIP) LaBan, Elizabeth Da ordem ao caos / Elizabeth LaBan; tradução [de] Maria do Carmo Zanini. — São Paulo, SP: Farol Literário, 2015. 320 p.; 21 cm. Título do texto original em inglês: The tragedy paper ISBN 978-85-8277-068-9 1. Relações interpessoais. 2. Encontros (costumes sociais) – Infantojuvenil. 3. Histórias – Infantojuvenis. I. Zanini, Maria do Carmo, trad. III. Título. L112e
CDD 808.899282
1a edição • fevereiro • 2015 Farol Literário Uma empresa do Grupo DCL — Difusão Cultural do Livro Rua Manuel Pinto de Carvalho, 80 — Bairro do Limão CEP 02712-120 — São Paulo — SP Tel.: (0xx11) 3932-5222 www.farolliterario.com.br
Para Alice e Arthur
CAPÍTULO 1 DUNCAN ENTRE PARA SER E ENCONTRAR UM AMIGO
Ao cruzar o arco de pedra que levava ao dormitório dos terceiranistas, Duncan pensava em duas coisas: qual seria o “tesouro” que haviam deixado para ele e seu ensaio sobre a tragédia. Bom, talvez fossem três coisas: ele também se preocupava com o quarto que lhe caberia. Tentava se convencer de que, não fosse o segundo item da lista, ele seria quase cem por cento feliz. Quase. Mas o tal ensaio, o equivalente a uma monografia de conclusão de curso do Colégio Irving, sorvia no mínimo uns trinta por cento de sua felicidade, o que era uma pena num dia tão importante como aquele. Em suma, ele passaria boa parte dos nove meses seguintes tentando definir uma tragédia no sentido literário. Tipo: o que fazia de Rei Lear uma tragédia? E quem ligava? Ele era capaz de responder ali mesmo: uma tragédia era quando uma coisa ruim acontecia. Coisas ruins aconteciam o tempo 7
todo. Mas o professor de literatura do terceiro ano, o sr. Simon — que por acaso também era o adulto encarregado de monitorar a ala dos meninos naquele ano —, ligava. E muito. E adorava soltar palavras como caráter elevado e húbris. Duncan preferia os números às palavras e já tinha ouvido falar de um ou outro terceiranista do Irving que conseguira passar sem muito esforço. Talvez ele só precisasse de um C. Não deixaria o ensaio estragar seu último ano. Não depois dos erros cometidos no ano anterior. Mas, ao pensar nisso, ele se deu conta de que talvez fosse bom ter algo para distraí-lo: certamente era melhor que remoer o passado. Duncan se esforçou para passar direto pelo arco... A tentação de parar e ler a mensagem gravada na pedra era grande. Mas já fazia três anos que ele frequentava o colégio e sabia muito bem o que estava escrito lá. Pareceria um tolo se parasse para ler a inscrição e, por isso, apenas sussurrou a frase para si mesmo: “Entre para ser e encontrar um amigo”. Ele já tinha passado sob esse lema muitas vezes: era preciso, para ir ao refeitório ou à sala do diretor. E nunca prestara muita atenção. Mas agora... Bem, agora ele torcia para que houvesse um pingo de verdade nisso, para que as pessoas ali fossem amigas de fato, fosse lá o que isso quisesse dizer. Depois da provação pela qual passara, mais do que nunca ele precisaria de apoio. Os terceiranistas ficavam hospedados no átrio, o belo pátio delimitado pelos principais edifícios do colégio. E os quartos duplos, semelhantes àqueles que Duncan compartilhara com Tad nos últimos três anos, eram todos divididos ao meio, para que os formandos morassem sozinhos. Seria a primeira vez 8
em sua vida de estudante que ele não compartilharia o quarto com outra pessoa. Naturalmente, os quartos eram minúsculos. Mas Duncan viveria muito bem e feliz dentro de um guarda-roupa, desde que fosse no átrio e ele pudesse ficar sozinho. Ele entrou no prédio, aspirando o aroma familiar de comida que vinha do refeitório e o que ele sempre imaginara ser o cheiro de papel, tinta e cérebros a todo vapor, e seguiu na direção da escadaria. Hesitou, sabendo que a dúvida e a expectativa em torno do quarto que lhe caberia — coisas que o haviam atormentado o verão inteiro — seriam finalmente resolvidas, da melhor ou pior maneira possível. Ele sabia o que o faria feliz: um dos quartos com vista para o átrio, bem no meio do corredor e, se tudo corresse bem, perto de Tad. Sentiu a mão de alguém em seu ombro e se virou. — Qual é, cara? O que tá esperando? — Tad perguntou com um sorriso enorme estampado na cara. Duncan se inclinou para apertar a mão do amigo, mas Tad recolheu a sua no último segundo, desafiando Duncan a correr atrás dele, subindo a escadaria dois degraus por vez. Duncan fez menção de segui-lo, mas se deteve. Era chegada a hora, e ele quase desejava não saber. As únicas pessoas que recebiam a informação de qual quarto caberia a cada terceiranista eram os alunos do ano anterior, e eles tinham de jurar que não contariam a ninguém (literalmente: faziam uma promessa solene que, se fosse quebrada, implicaria a perda de um ou dois pontos em suas médias ponderadas e uma notificação enviada a suas futuras universidades). No último dia de aula, cada aluno colava na porta do quarto um papel com o nome do futuro 9
ocupante e deixava um “tesouro” para o novo morador encontrar no primeiro dia de aula do ano letivo seguinte. Depois disso, as alas eram trancadas e permaneciam assim até agosto1. Não foram poucos os novos terceiranistas que tentaram pôr os pés naquele andar, chegando até mesmo a oferecer suborno às faxineiras que entravam lá, uma semana antes de as aulas começarem, para arejar os quartos e tirar o pó. Até onde ele sabia, ninguém tinha conseguido. E o tesouro à sua espera podia ser qualquer coisa. — Ei, Dunc — Tad chamou lá de cima. — Se você não subir logo, vou roubar seu tesouro. Duncan teve vontade de perguntar aos berros qual quarto lhe coubera, mas não conseguiu. Qual era o problema? Não era nada de mais. Não importava o quarto onde ele ficaria ou o que haviam deixado para ele: por acaso faria alguma diferença em sua vida? Mas ele adoraria ter uma história interessante para contar durante o jantar naquela noite. No mínimo, ajudaria a desviar a conversa para bem longe do assunto que ele temia ser o que todos iam querer discutir. Os tesouros de outros anos já haviam variado de pedaços de pizza estragados — depois de quase três meses esquecidos num quarto — a um cheque no valor de quinhentos dólares. Corria o boato de que alguns terceiranistas sortudos haviam recebido dois ingressos para um jogo dos Yankees, ações de uma empresa famosa e um vale para ser usado num dos resNos Estados Unidos, o ano letivo geralmente começa no final do verão, perto do fim do mês de agosto. (N. do T.) 1
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taurantes mais sofisticados do condado de Westchester. E, certa vez — anos atrás, segundo a lenda —, um terceiranista encontrara um filhote de buldogue inglês (a mascote do colégio). Aparentemente, a administração pediu que ele encontrasse um novo lar para o bichinho, mas no fim acabou deixando o cachorro ficar e deram-lhe o nome de Irving. Havia uma foto do cão na biblioteca, mas, toda vez que Duncan perguntava se era mesmo verdade, os professores se recusavam a responder. Também havia várias histórias de tesouros sem graça: saquinhos de M&M’s e livros nada a ver. Duncan foi subindo lentamente os degraus. Outros terceiranistas passaram voando por ele, dando-lhe tapinhas nas costas. Era a escadaria usada por meninos e meninas, mas as terceiranistas viravam logo adiante para entrar em seu corredor comprido, que dava vista para a mata atrás do colégio. Escutou o gritinho de uma garota, que afirmava haver um coelho em seu quarto. Seria possível? Alguém devia ter combinado com as faxineiras para trazerem o animalzinho mais cedo, a mesma coisa que provavelmente acontecera com o misterioso buldogue. Torceu para não ganhar um bicho. Era a última coisa que ele queria. Estava quase no alto da escada. Se quisesse olhar, conseguiria ver as portas ainda fechadas; talvez conseguisse adivinhar qual seria a dele. Mas o corredor era comprido. A maioria das portas naquela extremidade estava aberta e, sendo assim, os ocupantes já haviam encontrado seus quartos. Dava para ver as portas ainda fechadas na outra ponta do corredor: algumas tinham pedaços de cartolina colados com fita adesiva, outras tinham letras recortadas formando o nome das pessoas. Seu 11
nome não estava à vista. Ele já chegara ao meio do corredor quando o desânimo o pegou de jeito. Foi neste exato momento que Tad saiu correndo de um dos quartos. — Fiquei com o antigo quarto do Hopkins. E adivinhe só o que ele me deixou? — O quê? — Duncan perguntou, nada interessado. Como ele queria se livrar daquele medo besta! Não havia nada de anormal no comportamento de Tad; talvez ninguém estivesse pensando no que acontecera no ano anterior. De um jeito ou de outro, qualquer que fosse o quarto onde Duncan ficaria, qualquer que fosse o tesouro que receberia, ninguém mais lembraria dali a um ou dois dias. Apenas os tesouros realmente fabulosos ainda seriam o assunto da escola depois disso. E, quanto ao quarto, ele se acostumaria com qualquer coisa. Só havia um quarto que ninguém queria. — Entre — disse Tad, trazendo Duncan de volta ao presente. Relutante, Duncan entrou no quarto de Tad e deu uma olhada. Não era tão pequeno quanto ele esperava. Na verdade, parecia bem grande. Havia uma cama — mais estreita que uma bicama, por incrível que pareça — e uma escrivaninha minúscula, mas ninguém fazia os trabalhos no quarto: todos estudavam no Centro de Convivência. Tad abriu a porta do guarda-roupa e apontou para dentro. Duncan viu uma garrafa — parecia algum tipo de bebida alcoólica — enfeitada com um grande laço dourado, bem no fundo de uma das prateleiras. Tad estendeu a mão para apanhá-la. — Burbom — Tad falou, todo orgulhoso. — E é do bom. Aqui diz ser reserva especial da família. Envelhecido vinte anos! 12
— Ah, é? — Quer um pouco? — Não, agora não. Quero achar meu quarto — Duncan disse, mas acrescentou em seguida: — Quem sabe mais tarde. — Ainda não encontrou seu quarto? — Tad perguntou incrédulo. — Vá lá procurar. Duncan voltou para o corredor. Havia gente por toda parte, correndo para lá e para cá, de quarto em quarto, jogando bola, tocando música. No dia seguinte, estaria tudo tranquilo, mas naquele momento quase tudo era permitido, embora talvez não o burbom. Dessa vez, Duncan foi direto até o fim da ala. Sabia o que o incomodava: tinha a sensação de que ia ficar com o quarto do canto, o quarto que ninguém queria. E tinha razão. Em garranchos num pedaço de papel branco e pautado, lá estava seu nome. Ele abriu a porta e lembrou na mesma hora por que ninguém queria o tal quarto: era mal iluminado, tinha só uma janelinha redonda e minúscula que, lá de baixo, parecia muito maneira, mas não ali de cima. E era muito menor que o quarto de Tad. Duncan deixou-se afundar em sua cama diminuta e desfeita. Todas as suas coisas estavam empilhadas direitinho num canto, haviam sido enviadas com antecedência e trazidas ali para cima naquele mesmo dia. Estava tão decepcionado que quase esqueceu o tesouro. Por mais incrível que parecesse, tão logo viu a coisa, começou a se sentir ainda pior. Sobre a escrivaninha diminuta havia uma pilha de CDs. Grande. Música. Era quase pior que a pizza estragada, porque sequer era interessante. E quem é que ainda escutava CDs? Duncan sabia quem tinha ocupado 13
o quarto no ano anterior: o garoto albino. Não dava para acreditar em tamanha má sorte. Ele se inclinou na direção da escrivaninha: o lugar era tão pequeno que era possível alcançar qualquer ponto do quarto sem precisar se levantar ou deslocar. Os CDs formavam uma pilha perfeita e havia um bilhete. Ele desdobrou sem pressa o papel: digitado e assinado com os mesmos garranchos. Caro Duncan, Sei no que provavelmente está pensando neste exato momento. Bom, aposto que está pensando num monte de coisas, mas a primeira da lista deve ser que este quarto é uma droga. Não é. No guarda-roupa, há um compartimento secreto que ninguém mais tem igual, e ali você pode esconder de tudo: na terceira prateleira, basta empurrar as duas pontas da prancha de madeira ao mesmo tempo e ela vai se mover. É difícil ver dentro do quarto pela janela (ou por baixo da porta, por falar nisso), daí que você pode deixar a luz acesa até mais tarde, sem neuras. E o sr. Simon vai ter tanta pena de você por ter ficado com o quarto ruim que vai lhe trazer comida extra. Isso posto, no geral eu diria que o tempo que passei aí foi uma droga e acho que você sabe por quê, mas quero explicar. Quando me contaram que você ficaria com o quarto, para ser sincero, não 14
acreditei. Talvez você já esteja adivinhando, mas vou contar mesmo assim. É importante que você saiba por que e como exatamente tudo aconteceu. Alguém precisa saber, alguém talvez possa aproveitar a informação para não cometer os mesmos erros que eu. Talvez. Sei lá. Escute minha história. Pode ser que você ache uma pilha de CDs um presente idiota, mas, considerando como reagi quando encontrei você no refeitório no ano passado e o fato de que só me resta imaginar como você está se sentindo, torço para que goste. Não é difícil reproduzi-los no seu notebook. Não sei se você chegou a conhecer bem a Vanessa, mas ela é a única pessoa neste mundo, além de você, a ter uma cópia destes CDs, e não tenho como saber se ela vai querer escutá-los ou se já o fez. Espero que sim. Ou pode ser que não. Deixe-me só dizer uma coisa importante antes de você curtir seu último ano (aposto o que quiser que por esta você não esperava): o que está prestes a ouvir — as palavras, a música, minha ruína e também o papel que você teve ou acha que teve nisso — vai ser muito mais proveitoso do que imagina. Em suma, vou dar a você o melhor presente, o melhor tesouro que poderia pedir. Vou dar a você a matéria do seu ensaio sobre a tragédia. Cordialmente,
Tim 15
Dava para ouvir todo mundo lĂĄ no corredor. Duncan queria estar lĂĄ fora com eles, mas era preciso admitir que estava curioso e, se fosse absolutamente sincero, um tantinho assustado. Tirou o notebook da mala, colocou-o sobre a escrivaninha e enfiou o primeiro CD. PĂ´s os fones de ouvido e apertou o play.
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