ELO, de Imoge Howson

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ELOOLE IMOGEN howsOn



TRADUÇÃO DE MARIA DO CARMO ZANINI

ELOOL

IMOGEN howsOn



1UM1 QUANDO ELISSA e a mãe entraram na sala de espera, o céu sobre a cidade do Canyon Central tinha aquele tom gélido e cinzento que antecedia a aurora, e o espaçoporto era um clarão descorado no horizonte. Linhas e pontos de luz se elevavam do fundo do canyon lá embaixo. Elissa foi até a janela, tentando ignorar o aperto no peito e o fato de a palma das mãos estarem tão úmidas que até deixavam impressões na borda de vidro do peitoril. Diante de seus olhos, enquanto ela lutava para não ceder à ansiedade sorrateira, o céu se transformou. Primeiro, passou de cinzento para um rarefeito lusco-fusco verde, que ia perdendo a nitidez ao acompanhar a curvatura do planeta, logo após o espaçoporto; em seguida, com o sol se elevando o suficiente para iluminar o chão do deserto, assumiu a infinitude de um azul tão profundo que era possível se afogar nele. A luz marejou os olhos de Elissa. Ela piscou e desviou o olhar, e, neste exato momento, as luzes da sala de espera se recolheram e ela deduziu, pela sensação de frio na nuca, que


6 • HOWSON os condicionadores de ar haviam sido ligados, preparando o ambiente para o calor escaldante do final da primavera ali na cidade. Elissa estremeceu. Nunca acertavam a temperatura ideal para ela. Quatro anos antes, uma vida inteira, Carlie e Marissa costumavam brincar que ela tinha o mesmo sangue frio dos minúsculos lagartos-de-vidro que subiam correndo as paredes da escola para ficar nos telhados planos e aquecidos pelo sol. Afastando essa lembrança, Elissa se virou para pegar o suéter de malha que deixara na cadeira atrás dela. Do outro lado da sala, estava sentada sua mãe, de costas eretas, magra e elegante, com uma bibliotela nas mãos. No canto ali perto, luzes cor de âmbar iluminavam por trás uma cachoeira nanica que caía de uma pilha de seixos e se derramava num pequeno tanque. Ao fundo, a música — sinos e harpas — saía baixinho de caixas de som invisíveis, e o aroma de lavanda e camomila pairava no ar. Tudo projetado com a intenção de acalmar e fazer relaxar. As mãos de Elissa ainda estavam molhadas de suor. Ela as enxugou discretamente no suéter de malha ao vesti-lo. Se esse cara não conseguir me curar... Ninguém havia comentado, mas Elissa sabia muito bem que este era seu último recurso. Quantas vezes já estivera em consultórios médicos, esperando que lhe dissessem como iam curá-la, como fariam dela uma pessoa normal? Quantos tratamentos tinham tentado? Os remédios para dormir, os analgésicos, o aparelhinho eletrônico projetado para interferir nos sinais que o cérebro enviava ao corpo. Esse parecera funcionar, no começo, e suas esperanças chegaram às alturas, mas então se espatifaram no chão quando, de repente, os sintomas voltaram. Aí veio a hipnoterapia e a esquisita máquina de ruído branco que instalaram em seu quarto, supostamente para ajudá-la a dormir, mas que só fez preencher o cômodo com uma sensação exasperante,


ELO • 7 uma espécie de zumbido que ela escutava não só com os ouvidos, mas também dentro da cabeça. A música de fundo deu lugar a um tema ligeiramente diferente: um pouco mais de sopro, menos cordas. A iluminação suave atrás da cachoeira passou da cor do âmbar para a do ouro. A mãe de Elissa suspirou, deu uma olhada no relógio de luz na parede cor de creme e tocou de leve a bibliotela para mudar de página. Elissa mordeu a unha áspera do polegar. — Lissa, querida, não roa as unhas. Ela baixou a mão e virou para a janela, mas o aperto no peito agora se insinuava em sua barriga, enrodilhando-se atrás das costelas. Sempre que os médicos tentavam um novo tratamento, desde a primeiríssima vez, quando disseram que era só um desequilíbrio hormonal, eles prometiam melhoras. Prometeram que os sintomas não persistiriam. Prometeram que o tratamento, não importava qual fosse na ocasião, seria uma coisa temporária. Em uma semana... um mês... quatro meses... você já estará boa para a festa do pijama no aniversário da sua melhor amiga... para sair com o tal garoto... para a excursão do feriado de primavera. Você vai voltar ao normal, Elissa, eu garanto... Já não diziam mais essas coisas. Depois da última vez — a visão mais recente e apavorante, a dor que a fizera gritar sem parar, os hematomas negros feito queimaduras em seu pescoço —, não prometeram nada. Simplesmente marcaram para ela uma consulta urgente e na primeira hora do dia com um novo médico. Um especialista. Especialista no quê? Quando a campainha soou, ela quase deu um salto. Olhou ao redor e viu a porta interna deslizar e se abrir, viu o médico, o especialista, entrar na sala de espera. Era um homem mais ou menos da mesma idade de seus pais, de pele bem morena, terno cinza-claro e tão elegante quanto o resto da sala.


8 • HOWSON — Sra. Ivory? Elissa? Sou o dr. Brien. A mãe de Elissa já estava se levantando. Havia uma certa tensão em seus lábios, e a mão que segurava a bibliotela tinha algo de lívida, mas, como sempre, parecia ter tudo sob controle. — Me chame de Laine, por favor. Você vai ajudar minha filha. Não acho que precisamos nos tratar com tanta cerimônia — disse isso com um leve sorriso ao apertar a mão estendida do médico. O dr. Brien sorriu para as duas. — Maravilha de atitude. Se você também for assim, Elissa, acho que não teremos nada com que nos preocupar! Foi a vez de Elissa apertar a mão dele. A esperança desabrochou dentro dela, cálida e fulgurante. Este médico ajudaria. Provavelmente teria sido melhor que a tivessem encaminhado para ele anos antes. Anos que ela passara tentando, impotente, se aferrar a todas as coisas que constituíam sua vida, assistindo a tudo escorrer por entre seus dedos e desaparecer. Não importa. Todo o tempo desperdiçado não terá a menor importância se, de agora em diante, eu puder ser normal. Se eu conseguir salvar o suficiente da minha vida para construir uma nova. — Por favor, vocês duas, entrem. Bem, eu mais ou menos me inteirei dos problemas que Elissa vem tendo, mas, naturalmente, vocês poderão preencher as lacunas caso eu precise saber mais alguma coisa. Parece que os sintomas de Elissa não desapareceram como imaginávamos que aconteceria... A voz dele continuou, uma torrente sem esforço e tranquilizadora de palavras familiares, enquanto as duas o seguiam consultório adentro e, a um gesto do médico, sentaram-se obedientemente nas poltronas que combinavam com o sofá da sala anterior. Quando Elissa se sentou, sua poltrona se mexeu muito de leve, abraçando-a. Depois a superfície do assento e do encosto se aqueceu, envolvendo-lhe o corpo tenso num casulo de conforto.


ELO • 9 Do outro lado da sala, à direita de Elissa, a parede inteira era uma janela de vidro plano, com tratamento antirreflexo, o que dava a impressão de que ali só havia o vazio. O céu se estendia num azul infinito. Quase invisível em contraste com a claridade, um fragmento de luz subiu feito uma estrela em ascensão. Uma nave zarpando em sua jornada pelas distâncias impossíveis do espaço. E outras duas, logo em seguida, diminutas faíscas deslizantes de luz solar refletida. Parecia inacreditável que, apenas cinquenta anos antes, não houvesse vestígio de indústria aeroespacial em Secoia. Não havia a Empresa Aeroespacial. Nenhum treinamento financiado pelo governo. O que teria sido de Bruce sem uma carreira espacial em vista? Teria se dedicado aos esportes? Seguido os passos do nosso pai na polícia? O dr. Brien fez sinal para que a porta se fechasse e se sentou na poltrona de frente para Elissa e a mãe, perto da grande escrivaninha de canto onde descansava sua tela. — Bem, Elissa. — Voltou a sorrir para ela, e ela retribuiu o sorriso. — Andei dando uma olhada nos laudos de todos os seus exames. Deixe-me ver se entendi tudo direitinho. Está anotado aqui que você tinha pesadelos quando criança e que lhe receitaram um remédio para dormir. Lembra-se disso? — Sim. Eu me lembro, sim. Só que ela nunca havia se referido a eles como pesadelos. Não eram assustadores, portanto não teria feito o menor sentido. Assustadora mesmo tinha sido a reação de sua mãe quando ela os mencionou. “Às vezes acho que sou uma outra menina que não eu”, Elissa disse, e sua mãe, que estava a meio caminho de aplicar no quarto de brinquedos um assoalho limpinho, parou, levantou os olhos e a encarou com a face petrificada de susto. Ao repetir a mesma história para o médico — o primeiro ao qual a mãe a havia levado —, foi assim que ele colocara a coisa: “pesadelos”. Ela ficara com a impressão de que não era a palavra


10 • HOWSON certa, mas não sabia do que mais chamá-las, aquelas imagens que surgiam dia e noite. No fim das contas, preferiu “sonhos”, apesar de tampouco parecer a palavra correta. — E o remédio funcionou, certo? — perguntou o dr. Brien. — Sim. E tinha mesmo funcionado, bem lá no começo, mas ela não curtira nem um pouco a maneira como a faziam se sentir. Vagarosa, quase... ensurdecida, como se tivessem lhe dado tampões invisíveis para os ouvidos. Daí que, quando chegou o fim do mês e o remédio acabou e sua mãe resolveu perguntar se ela ainda tinha sonhos esquisitos — se ainda os tem, Lissa, você precisa me dizer —, ela respondeu que não. E, quando os sonhos voltaram, simplesmente não comentou nada. Aprendeu a ignorá-los. Aprendeu a isolar as imagens durante o dia, aprendeu a esquecer os sonhos tão logo a manhã apagasse as trevas do quarto. Ela foi crescendo e os sonhos se tornaram cada vez menos frequentes, até que esquecer que um dia existiram não exigiu mais nenhum esforço. Pouco antes, ela chegara a pensar como aquilo parecia ter acontecido numa outra vida. Antes dos sintomas. Ah, se eu soubesse. Se soubesse que não me restava muito tempo, eu não teria me submetido ao incômodo de surtar por causa de todas as coisinhas que costumavam me indispor. Por exemplo, quando entrei no ensino médio e o Bruce e a droga do Cadan continuaram me tratando feito criancinha. Não ter encontrado sandálias que combinassem com o maiô para o début de Marissa à beira da piscina. Não ter pedido ajuda quando não entendi equações simultâneas e levei uma espinafrada na frente da classe inteira. Quando dei por certo que Simon me convidaria para ir com ele ao Baile dos Calouros, e nada. Ela chegara a ter amigos, duas melhores amigas e mais um bando de gente. Tinha sido convidada para boa parte das festas que realmente importavam. Não chegara a ter um namorado oficial, mas sabia, por causa das risadinhas e conversas com Car-


ELO • 11 lie e Marissa, do tipo “pelo amor de Deus, não vá contar para ele que eu contei o que ele falou”, que havia pelo menos três garotos criando coragem para convidá-la para sair. Suas notas até que eram boas. Haviam lhe prometido aulas de direção e seu próprio baratinhamóvel se ela passasse no exame de primeira. Ela tivera tudo ao alcance das mãos e nunca percebera. Até... — Até... — disse o dr. Brien, e ela quase pulou da poltrona de repente, apavorada com a possibilidade de ele ter lido seus pensamentos. Mas ele olhava para a tela. — Até mais ou menos um ano depois da sua primeira menstruação, certo? Argh. Ela já devia ter se acostumado com perguntas desse gênero àquela altura, mas mesmo assim sentiu o rosto arder. — Sim. Ele apanhou uma caneta universal e desenhou um quadrado tosco sobre a escrivaninha. As linhas emitiram uma breve luz verde, aí o verniz clareou, revelando uma superfície para anotações, lisa e translúcida. — Vamos falar dos sintomas, como foi que começaram? Outra vez. Ter de passar por tudo isto outra vez, médico após médico... Mas aquele era o médico que iria curá-la. Ela se empertigou um pouco na poltrona, decidida a não deixar de fora nada que pudesse ajudá-lo a descobrir o que era preciso fazer. Se funcionar... Ah, meu Deus, se desta vez funcionar, pode ser que eu consiga ir à formatura. Metade da minha vida na escola, eu fui a esquisita, mas se isto funcionar, se puderem me ver normalzinha quando nos formarmos... — Tudo bem. — Ela engoliu em seco. — As imagens... Elas voltaram. Durante anos, não passaram de instantâneos em sua mente, fugazes e indistintas, fáceis de ignorar. Mas, ao voltar, mostraram-se claras, vívidas e minuciosas, aparentemente iluminadas


12 • HOWSON por lampejos em seu cérebro. E, dessa vez, eram parecidas com pesadelos. Pessoas usando máscaras brancas, agulhas e seringas, máquinas enormes que emitiam um zumbido e dentro das quais eles a prendiam com enormes pinças... E ela acordava mordendo o lábio para não gritar. E também eram acompanhadas pela dor. Uma dor que a atingia feito um raio, branco e quente, do nada. Se fossem só as imagens, ela teria conseguido disfarçá-las. Mas, mesmo que a dor não fosse tão forte a ponto de fazê-la berrar, desmaiar ou, pior ainda, vomitar, ela não teria conseguido esconder que a sentia. Porque, da mesma maneira que as imagens eram acompanhadas pela dor, esta vinha acompanhada de hematomas. Manchas escuras que, partindo de sua nuca, iam se esgueirando para a mandíbula ou, às vezes, contornavam inesperadamente suas têmporas ou deixavam marcas semelhantes a impressões digitais nos dois lados do seu pescoço. A cada manhã, ao se olhar no espelho, ela se encolhia ao ver as novas marcas. Ela falava e o dr. Brien balançava afirmativamente a cabeça, fazendo anotações de vez em quando com sua caligrafia ilegível, num tom escuro e cintilante de verde, como se estivesse usando tinta de verdade. Elissa contou ao médico tudo o que lhe ocorreu que ele talvez precisasse saber. Contou que suas notas haviam despencado e faltava pouco para ser reprovada. Que vivia desmaiando na escola. Que às vezes a dor acabava com sua noção de equilíbrio e ela caía, acrescentando machucados totalmente explicáveis aos misteriosos hematomas. Mas não contou tudo de fato. Ele não precisava saber que muitas vezes ela não conseguia esconder os hematomas sob a maquiagem, que muitas vezes, na escola, as pessoas falavam dela pelas costas, nem sempre de muito longe. Não precisava saber que, depois de inúmeras ocasiões em que ela deixara de aparecer nos eventos sociais, cancelara idas às compras e estragara fes-


ELO • 13 tas do pijama com acessos de gritos e telefonemas urgentes no meio da noite para que seus pais fossem buscá-la, até mesmo Carlie e Marissa deixaram de convidá-la para fazer qualquer coisa. Ou que os tais três garotos acabaram saindo com outras meninas. Tampouco mencionou que, no começo, seus pais deixaram a própria vida social de lado, mas, passado um ano, sem sinal de que ela fosse melhorar, tinham voltado a sair, deixando-a em casa com os remédios, o número que deveria usar para chamá-los e um travesseiro para abafar os gritos. Sinto muito, dissera-lhe a mãe. Sinto mesmo, de verdade, Lissa. Não quero que se sinta abandonada, e basta você telefonar. Mas não há nada que possamos fazer aqui com você, e os contatos profissionais do seu pai... O dr. Brien girou a caneta, usou a ponta que não escrevia para tocar a superfície onde estavam as anotações e as transferiu para a tela vertical, esvaziando o quadrado. — Vejamos: alucinações... “imagens”, como você as chama, dor­‑fantasma e hematomas. Tudo junto de uma vez? — Sim. — Todas as vezes? Os hematomas não aparecem, digamos, sem você sentir a dor antes? Ou as imagens sem a dor, como acontecia quando você era criança? Ele se pôs a observar o rosto de Elissa e esperou. Não mais. — Não. E foi aí que lhe ocorreu. — Elissa? — Eu... nunca pensei nisso antes, era tudo tão nebuloso... Ele esperou. O sinal de prontidão da caneta piscava, uma diminuta faísca cor de esmeralda na ponta. — A dor... Sim, ela normalmente acompanha as imagens. Mas às vezes tenho só uma... Bem, acho que é uma alucinação, mas nunca cheguei a pensar...


14 • HOWSON — Por que não? — Ela... elas... às vezes aparecem à noite e lembram mais um sonho. Quando não doem, não me lembro direito delas. Nunca pensei... Ela olhou para o médico cheia de culpa. Se tivesse pensado nisso antes, se tivesse contado a alguém, teria ajudado em alguma coisa? Ele sorriu brevemente. — Não se preocupe, Elissa. Então você tem alucinações sem dor que podem ser apenas sonhos. Como, por exemplo... Como, por exemplo, acordar aos gritos no meio da noite, tremendo e soluçando, soluços que não parecem seus, quase se desfazendo de fúria e angústia... sentimentos que tampouco parecem seus e se desvanecem quase instantaneamente, deixando em seu rastro apenas perplexidade e um cansaço que volta a arrastá-la para o sono profundo. Ela estava olhando para as próprias mãos, que mantinha retorcidas sobre as coxas — era mais fácil falar sem ver que ele prestava atenção —, mas aí ergueu os olhos. O dr. Brien baixara a caneta e fazia suas anotações na tela vertical. Tinha virado a tela de tal modo que, de onde Elissa e a mãe estavam sentadas, não era possível ver o que ele escrevia. — Essas alucinações em particular, Elissa... São meras sensações, emoções? Só isso? Ela piscou. — Eu... Como eu falei, não são acompanhadas por dor nenhuma... — Mas quero dizer: você vê alguma coisa? Tem ideia de onde está? Quando recebe as tais “imagens”, elas estão associadas a pessoas usando máscaras brancas, presumivelmente cientistas. Nas tais imagens noturnas, nos sonhos, é a mesma coisa? — Não. Não creio que eu realmente veja alguma coisa. Acho que... simplesmente estou na cama.


ELO • 15 — Na sua própria cama? Ela o encarou, confusa. Eram alucinações, caramba. Que diferença fazia a mobília? — Não sei. É uma cama. Está escuro. — Tudo bem. — Ele sorriu. — Não se preocupe, Elissa. Está se saindo muito bem. Só estou reunindo o máximo possível de informações. As coisas que acontecem no seu cérebro se baseiam em vários tipos de dados: filmes que já viu, músicas que já ouviu, conversas que você nem sequer sabe que escutou. E, às vezes, o tipo de dado utilizado nos ajuda a traçar um diagnóstico mais preciso. Bem, se é só disso que se lembra, passemos ao reaparecimento mais recente dos sintomas. — Ele baixou os cantos da boca. — Parece ter sido bem feio, a julgar pelo que me informaram. Que tal você me contar como foi? Ela obedeceu e sentiu uma pontada no estômago. Desde que acontecera, no fim da tarde do dia anterior, ela passava mal só de pensar na possibilidade de ocorrer outra vez, tamanho era o medo que sentia. A dor tinha sido... Deus do céu, simplesmente horrível. Ela estava em casa na ocasião, ainda bem, e foi tudo tão repentino, tão violento, que ela perdeu o equilíbrio. Caiu enquanto subia a escada que levava ao quarto e soltou o suco de laranja que segurava, curvou-se e vomitou bile no carpete clarinho. — E as imagens? — Máscaras brancas. E uma máquina. Uma máquina enorme, muito maior que as outras. E cabos. Estavam enfiando cabos na minha cabeça. Alguma coisa... Meus cabelos, acho que pegaram fogo. Tinha um cheiro horrível. O cheiro ainda estava em suas narinas quando ela voltou a si, o que a deixou ainda mais enjoada e a levou a pensar, num instante de insanidade, que seus cabelos haviam de fato sido queimados, mesmo que parecessem macios e intactos ao tocá-los. — Então dessa vez a dor foi pior que antes?


16 • HOWSON — Sim — ela disse, sem querer pensar naquilo. — Tudo bem — ele digitou a última informação, meneando de leve a cabeça para a tela, como se tivesse passado todo aquele tempo somando valores que teriam levado ao resultado esperado. — Isso foi ontem. E desde então, nada... nem dor nem imagens? Ela começou a concordar, aí parou. Não tinha lhe passado pela cabeça: depois daquela dor horrível, nada chegaria a ter o mesmo impacto, e, de qualquer maneira, ela sempre pensava nas imagens como sonhos... — Eu vi uma outra imagem, sim. Ontem à noite. O dr. Brien ergueu os olhos e a encarou bruscamente. — Ontem à noite? — Sim. Eu... Quer saber como foi? Não sei se... — Sim. — Em seguida, uma pausa de duração infinitesimal. — Por favor, Elissa, se você puder. Alguma coisa ali — a velocidade da reação dele, o movimento brusco da cabeça quando ele a encarou — deixou Elissa nada à vontade. De repente, ela não queria contar mais nada ao médico. Principalmente a respeito do sonho. O que era besteira. Ela já tinha combinado consigo mesma que contaria ao médico tudo o que pudesse ser útil, qualquer coisa que o ajudasse a curá-la. — Eu... Tudo bem. Começara com algo que não era dor nem imagem. Uma sensação de calor, de eletricidade nas mãos, uma explosão de luzes, feito fogos de artifício na cabeça. Uma sensação quase familiar, algo com que talvez ela tivesse sonhado antes. Só que dessa vez tinha sido algo parecido com uma explosão focal de fogos, a sensação de que ela a provocara, de que ela a controlava. E aí veio a sensação de que ela direcionava a coisa para fora. De que algemas se partiam em seus pulsos. De triunfo. E, em seguida, o incêndio.


ELO • 17 — Um incêndio? — A voz dele saiu inesperadamente aguda. — Onde? — Num prédio. Um prédio grande, parecido com um hospital. Ou uma escola, acho. E, como já fizera pouco antes, ela pensou: Que diferença isso faz? É uma alucinação. — Tudo bem. E você, o que estava fazendo? — Correndo para bem longe do lugar. O médico tamborilou o teclado com os dedos. — Então temos um prédio em chamas, e você estava... fugindo de lá? — Sim. — E esse sonho foi vívido, como os outros que descreveu? Não foi o que se poderia chamar de um sonho normal? — Foi vívido. E foi mesmo. Quando fechava os olhos, ainda enxergava as labaredas elevando-se no céu escuro feito breu. Ainda conseguia evocar a lembrança de pessoas fugindo, gritando, e dela mesma correndo descalça na relva molhada de chuva, resistindo ao cansaço que, como a escuridão, ia se avolumando dentro de sua cabeça. Lembrava-se de ter enfiado os dedos nos elos de arame do alambrado, de ter se levantado mais e mais, sabendo que a corrente elétrica fora cortada, mas ainda assim com medo de segurar o metal. De ter lutado para tirar o abrigo que vestia e cobrir a concertina no alto da cerca e, mesmo assim, de ter rasgado o braço numa ponta cruel, de mal ter sentido a dor, com tanta adrenalina correndo-lhe nas veias. De ter pensado que, depois de todo aquele tempo, conseguira, estava do lado de fora, estava livre. Quando saiu do sonho e do sono, quando acordou totalmente, em plena luz do dia, estava exausta, os vestígios de uma enxaqueca persistiam feito vapores tóxicos em sua cabeça, o cheiro de fumaça continuava em suas narinas. Como se aquele sonho


18 • HOWSON também tivesse deixado hematomas, só que dentro de sua cabeça, e não em seu corpo. Mas ela não suportaria contar tudo aquilo ao dr. Brien. Descreveu o sonho por alto, deixando os pormenores de fora: a fumaça que cheirava a produtos químicos e metal quente, a sensação da relva fria sob seus pés. A sensação maravilhosa e apavorante de triunfo. De liberdade. No entanto, era óbvio que o médico tinha a impressão de que ela revelava muita coisa. Ele a escutava atentamente, com os olhos fixos em seu rosto e os dedos em disparada sobre o teclado. Ao lado de Elissa, a mãe continuava sentada e imóvel, com as mãos entrelaçadas no colo. — Só isso? — perguntou o dr. Brien. — O sonho acabou aí, quando você subiu no alambrado? — Sim. Os elos haviam se enterrado em suas mãos, lembrou. E do outro lado da cerca e a meio caminho do chão, ela pisou em falso e caiu, estatelando-se com um baque de deixar qualquer um tonto. Mas aí o sonho foi interrompido. Ela não se lembrava de mais nada. — Nada mais? Nem mais tarde, nada? — Não. — Nem para que lado você foi? Para que lado? Elissa foi tomada pela apreensão, como se água gelada se insinuasse em cada uma de suas veias. Não havia como aquela informação ser necessária. Tudo bem, ele tinha explicado por que fazia aquelas perguntas, mas não havia a menor possibilidade de o médico precisar saber em qual direção imaginária ela teria seguido depois de escapar de um prédio imaginário e pular uma cerca imaginária. — Não sei — ela disse. — Não me lembro de mais nada. — Tudo bem, Elissa. — Ele sorriu para ela, com uma expressão amigável e relaxada no rosto. — Você se saiu muito, muito


ELO • 19 bem. Sei que deve parecer fora do comum ter de me dar todos esses detalhes. Mas, pode acreditar, quanto mais informações eu tiver, mais proveitoso será o diagnóstico. Ela devolveu o sorriso. Relaxou os dedos que esquecera sobre o colo. Até então, não tinha se dado conta de que cravara as unhas na palma das mãos. O dr. Brien voltou a usar o teclado e olhou mais uma vez para Elissa. — Ah, sim, uma última coisa. Se não souber a resposta, tudo bem. Mas, se souber, repito, são informações que podem ser muito úteis. — Tá legal. — Nas alucinações, você chega a ver bem que roupas está vestindo? — Roupas? Ele voltou a sorrir, o mesmíssimo sorriso terno e tranquilizador. — O que as nossas identidades oníricas vestem diz um bocado a respeito de nosso estado mental. A gente se vê vestindo roupas que chegamos a usar na vida real, ou então algo nada a ver. Às vezes falta uma peça de roupa, ou é algo incomum... constrangedor. — Ele deu uma risadinha. — Acredite, mesmo que não estivesse vestindo nada, você não seria a única a ter sonhado com isso. — Ah. Tudo bem. Eu... Não, nada esquisito. Calças, acho. Tipo... legging? Claras... Não sei se eram brancas ou simplesmente de uma cor clara. E uma camiseta, mesma cor... Acho. — Certo. E você vestia a mesma coisa na sua última alucinação? A lembrança voltou, um lampejo que foi revelando os detalhes no cérebro de Elissa. Ela corria no escuro, mantendo-se nas sombras, pois sabia que as roupas ajudariam a escondê-la. Também sabia que nunca teria chegado tão longe se não tivesse descolado aquelas roupas e voltou a agradecer à funcionária descuidada que deixara uma ponta dos seus trajes “civis” presa


20 • HOWSON no canto da porta do armário, tendo ido embora sem se certificar de que a trancara direito... Não estava usando as roupas claras. Usava preto. Calças pretas e um abrigo com capuz que ela usara para cobrir a cabeça. Elissa ergueu os olhos para contar isso ao médico... e viu que ele a observava, aguardava uma resposta. Ele ainda sorria, mas era um sorriso ligeiramente rígido, como se mantido deliberadamente. E lá estava a esperteza de volta ao rosto dele, um ar de quem somava os valores que ela lhe fornecia: alguns resultados eram esperados, outros nem tanto. Ela não costumava mentir. Nunca mentia, na verdade. Nem para seus pais, nem para os médicos. Mas ali, não mais que de repente... Acatando um impulso tão súbito que ela nem teve tempo de pensar a respeito, Elissa firmou o olhar e manteve as mãos sobre as coxas, para garantir que não fizesse nenhum gesto revelador e que indicasse culpa. — Sim. Era o que eu estava usando. — Obrigado, Elissa. — Ele acionou mais uma ou duas teclas e fez um gesto com a mão, para cima, abrindo uma nova página. — Certo. Depois de dar uma olhada em todos os laudos dos seus exames e nos informes que seu médico me mandou, depois de saber que os sintomas pioraram, acho que é evidente que já passamos do ponto onde ainda seria possível tratar o problema com medicação. Está entendendo? — Sim. Ele se inclinou ligeiramente para a frente e pousou uma das mãos sobre a escrivaninha, com a palma voltada para baixo, como se fizesse menção de consolar Elissa. — Bem, eu não disse para você não se preocupar? Vamos tentar um método mais definitivo, Elissa. Ele girou a tela, apertou uma tecla e uma imagem apareceu. — Veja só. Há uma anormalidade aqui. — Olhou para ela, sorrindo. — Não se preocupe. Não é câncer nem nada do gê-


ELO • 21 nero. Trata-se de uma área do cérebro que, na imensa maioria das pessoas, fica inativa. Neste mapa, é esta área cinzenta. Mas aqui, está vendo estas linhas finas? É um sinal de que, no seu cérebro, esta área tem demonstrado um excesso de atividade. Provavelmente estimulada por um pico hormonal, como os outros médicos já mencionaram. Não vou tentar confundir você com toda uma terminologia científica — ele voltou a sorrir —, mas, em resumo, esta área está ligada à memória, à imaginação e aos sonhos. Está se apoderando de um monte de dados externos: televisão, filmes, notícias, coisas que talvez você nem tenha percebido que absorveu e transformando-os numa espécie de filme ultravívido e em reprodução constante na sua cabeça. E, quanto mais esse filme é reproduzido, mais seu corpo é forçado a dar uma resposta física. Daí a dor. É como a dor que você acha que sente nos sonhos, só que é tão vívida que acaba afetando você fisicamente. Faz sentido para você? Ele lançou um olhar cheio de expectativa para Elissa, com as sobrancelhas levemente erguidas. Fazia sentido, mas... Minhas roupas. Por que ele queria saber que roupas eu estava vestindo? — Elissa? Ela se livrou das perguntas que se repetiam em silêncio em seus ouvidos. Pelo amor de Deus, ele estava explicando como ia fazê-la melhorar. Ela precisava prestar atenção. Fez que sim. — Desculpe. Sim, faz sentido. — É complicado, eu sei! Dei uma explicação bem básica, mas é óbvio que não é só isso. Bem, o que vamos fazer é uma operação relativamente simples. É uma cirurgia cerebral e, de certo modo, não tem como ser simples, mas posso garantir que, com a minha equipe, você estará em ótimas mãos. Claro que existem riscos, mas vamos reduzi-los a um mínimo. Vamos usar um laser muito preciso para matar alguns neurônios desta área, abafando sua atividade potencial, por assim dizer. Dê uma olhada nesta imagem...


22 • HOWSON Ele explicou tudo muito bem, pontuando suas palavras com ilustrações escolhidas a dedo e nada assustadoras, mas, no fim das contas, o resultado era um só: ele ia abrir a cabeça de Elissa e extirpar alguma coisa. E agora que ela tivera um minutinho para pensar, não fazia sentido. Ela não compreendia. Entendia o procedimento. Mas as imagens... Se brotassem sempre de informações recolhidas ao acaso, elas certamente teriam de variar, não? Por que é que, nos sonhos, ela era sempre uma outra pessoa... a mesma pessoa, diferente dela? E por que ele queria saber a respeito dessa outra pessoa? — Muito bem, Elissa. Alguma pergunta? Ah, mas que inferno. Tinha de fazer sentido. Ele era o médico, afinal. O que ela sabia sobre cérebros e como eles funcionavam? Chacoalhou a cabeça e, recompondo-se, respondeu educadamente. — Acho que não, obrigada. — Muito bem, então. — Ele sorriu, dispensou a tela com um gesto e cutucou a barra de ferramentas para exibir outra, que apresentou uma sucessão de páginas de texto. — Aqui está o termo de consentimento, Elissa. Seus pais já consentiram, naturalmente, por intermédio de seu médico de sempre, mas na sua idade precisamos do seu consentimento também. Minha sugestão é você dar uma lidinha, para ter certeza de que concorda com tudo. E, de repente, Elissa se viu congelada, petrificada na poltrona. Como se tivesse acabado de ouvir as palavras pela primeira vez, ela as ouviu se repetirem em sua cabeça. Cirurgia. Cirurgia cerebral. E: existem riscos; relativamente simples... Apenas relativamente. — Se... se eu assinar... — Se assinar o termo ainda hoje, podemos interná-la em quatro dias, na segunda-feira... Ela o interrompeu antes mesmo de saber que estava prestes a abrir a boca.


ELO • 23 — Quatro? Quatro dias? — Sim. Temos uma vaga, por isso já a reservei para você provisoriamente. Amanhã é a véspera do feriado de primavera, certo? Você vai passar uma semana sem aulas? Então nem vai precisar de licença médica. E quanto antes acabarmos com isto... — Ele se deteve, estudando o rosto de Elissa. — Elissa, você tem consciência de que sua condição está piorando? Não quero assustá-la, mas posso garantir que não é bom adiar nem mais uma semana. Manteve os olhos fixos nos dela, a expressão franca, as sobrancelhas franzidas de preocupação. Uma parte de Elissa queria obrigá-lo a dar mais informações. Quais eram os riscos? E a probabilidade de algo dar errado? Mas uma outra parte parecia ter se encolhido no canto, tapado os ouvidos com as mãos, sem querer saber. Afinal de contas, que escolha ela tinha? — Eu... Tá legal. Me desculpe. Eu só... Tão em cima da hora. A sra. Ivory estendeu a mão para cobrir a de Elissa. A filha virou a palma para cima e apertou a mão da mãe com a força do desespero. Não conseguia soltá-la. — Eu sei — disse o dr. Brien. — Mas, como eu já disse, quanto antes acabarmos com isto, melhor, certo? Ele tirou um tablet fininho de uma fenda em sua mesa e o entregou a Elissa. Na tela, o mesmo texto. Ela foi direto para o fim do documento. Seu nome já tinha sido inserido logo abaixo de uma linha pontilhada, aguardando sua assinatura. — Leia tudo, sim? Aceitam algo para beber? Elissa balançou a cabeça, deixando a educação de lado, e voltou a percorrer o documento. Era tudo muito confuso, termos médicos e legais que ela nem sonhava compreender. Sabia muito bem que não se deve assinar algo que não se compreende. Mas seus pais já tinham assinado — lá estavam as assinaturas digitais, ao lado do espaço reservado para ela —, então não podia ser algo ruim, e ela jamais entenderia boa parte daque-


24 • HOWSON le jargão, mesmo que passasse o dia inteiro tentando, e estava obrigando o médico a esperar... Por que ele queria saber que roupas eu estava vestindo? Que diferença faz? Ah, Lissa, pelo amor de Deus. Depois de todo aquele tempo, alguém lhe dizia que era capaz de fazê-la melhorar. Não talvez, nem provavelmente, sem remédios e tratamentos idiotas ou máquinas de hipnoindução, que, no fim das contas, de nada adiantaram, e sim com algo concreto. Cirurgia. Da mesma maneira que curavam o câncer ou uma apendicite e a lesão que Bruce certa vez tinha sofrido jogando antigravibol. Um tratamento de verdade, um tratamento que funcionaria. Que faria dela uma pessoa normal. Ela foi direto para o fim do documento e o assinou. Elissa Laine Ivory. — Excelente. O dr. Brien sorria mais uma vez, tranquilo e amável, e a ansiedade de Elissa se desfez com um suspiro. Era só paranoia, fundada apenas no nervosismo e na falta de sono e no fato de que ela agora tinha ainda mais hematomas que no dia anterior, e não havia a menor chance de o pessoal na escola não reparar nisso. — Então, fica para segunda de manhã, certo? — Agora ele falava mais para a mãe. — Gostaria que as duas estivessem aqui às oito... e naturalmente o sr. Ivory também, se for possível... Bem, antes de irem, bebem alguma coisa? Beberam: Elissa, água; e a mãe, café com leite e sem açúcar. E o dr. Brien e a sra. Ivory conversaram a respeito do programa meteorológico em execução, das medidas que as autoridades municipais haviam tomado para conter o mais recente surto de supergripe elorana e da notícia fresquinha de que um casal não só conseguira ter um terceiro filho na ilegalidade, como também dera um jeito de esconder esse fato durante impressionantes seis anos.


ELO • 25 Cerca de vinte minutos depois, ela e a mãe agradeceram ao médico, despediram-se e saíram para esperar o elevador que as levaria à recepção lá embaixo. Dentro do elevador, a mãe tocou o braço de Elissa. — Tente não pensar muito nisso. Logo vai terminar. Ao contato da mãe, Elissa teve vontade de encostar a cabeça no ombro dela e chorar. Mas já bastava estar atrasada para a primeira aula... e coberta de hematomas que não existiam no dia anterior. Ir para a aula de olhos vermelhos, nem pensar. Ela simplesmente fez que sim, fechando-se em si mesma para se proteger das lágrimas que queriam brotar. Atravessaram a recepção e saíram na plataforma ampla e delineada por árvores onde ficava o consultório. A luz do sol filtrada pelas copas salpicava o chão de verde, e a calçada estava pegajosa por causa das gotas de visgo que haviam caído das folhas. Era a parte afluente do canyon, apenas plataformas residenciais, em cima e embaixo. Não havia sequer as esteiras rolantes que, nos últimos cinco anos, tinham se disseminado por praticamente toda parte. Para se locomover, as pessoas usavam os baratinhamóveis ou os elevadores particulares dos poços internos ao paredão, ou então não saíam do lugar. Esse médico, ele deve ganhar muito mais dinheiro que os médicos comuns. Bem, ele era um especialista, ela sabia disso. Mas, mesmo assim, toda aquela infraestrutura estava muito fora dos padrões da família de Elissa. Seu coração batia mais rápido que o normal. Dava para senti-lo na boca do estômago. — Mãe? A sra. Ivory havia chegado ao largo no fim da plataforma, onde o baratinhamóvel cintilava escarlate à luz do sol. Gotículas de visgo salpicavam a capota abobadada. Ela apontou a chave para o veículo e as laterais se abriram para deixá-las entrar.


26 • HOWSON — Oi? — Aquele médico... o dr. Brien... Por que ele estava tão interessado nos meus sonhos? A mãe se sentou no banco do motorista e olhou para ela, de sobrancelhas erguidas. — Doçura, ele explicou. Toda e qualquer informação... — Não, eu sei. Mas perguntar sobre as roupas que eu estava usando? Para que lado eu fui? É simplesmente... Não entendi por que ele me perguntou essas coisas. — Lissa, sério, não adianta nada você me perguntar como essas coisas funcionam. Se eu achasse que chegaria aos pés do dr. Brien, teria continuado a estudar medicina depois que você nasceu. Não sei nada sobre doenças neurológicas, não sei por que precisam dessas informações. Mas, sinceramente, doçura... Entre, você já está atrasada. Pode ter certeza de que, se ele pediu a informação, é porque precisava dela. — Ela sorriu para Elissa e estendeu a mão para lhe dar um tapinha no joelho antes de ligar o carro. — Ele não perguntou à toa! — É. Eu sei. O baratinhamóvel alçou voo, e o zumbido da hélice emitiu uma vibração que, feito um calafrio, percorreu o banco e a espinha de Elissa, e então o veículo se lançou no espaço aéreo desimpedido, arremessando-se da beirada da plataforma. — Mãe... A pergunta pairou no ar: E se eu não for operada? — Que foi, Lissa? Não conseguiu dizer. A voz do médico ecoava em sua cabeça. Sua condição está piorando. Não é bom adiar nem mais uma semana. — Só estou... É assustador. Sem desviar os olhos da teia reluzente que era o cruzamento logo abaixo delas, cada vez mais próxima, a mãe se esticou para tocar o braço de Elissa.


ELO • 27 — Eu sei, doçura. Se os tratamentos anteriores tivessem funcionado... Mas esta é a nossa chance. Temos que aproveitá-la. Você não pode passar o resto da vida desse jeito. O baratinhamóvel estabeleceu contato com o cruzamento e se prendeu ao monotrilho. Com o canto do olho, Elissa viu a sombra da hélice desaparecer quando a coisa se recolheu dentro da parte superior do carro. Aí já estavam imersas no espaguete de aço dos níveis superiores da cidade, com outros baratinhamóveis e aerociclos passando estrondosamente por elas e as esteiras rolantes cheias de pedestres lá embaixo. — Vou deixar você no telhado, tudo bem? Achei que escaparíamos do horário de pico, mas olhe só para este trânsito... Não vou passar meia hora no nível térreo. — Tudo bem. Elissa pegou a bolsa que estava a seus pés. Se a abraçasse bem forte, quase dava para acalmar seu estômago embrulhado. Pouco antes, quando ela conhecera o médico, a cirurgia tinha parecido a resposta para tudo. Mas naquele instante... Minha condição está piorando. Vou passar por uma cirurgia cerebral daqui a quatro dias. As linhas refletoras amarelas que delimitavam as zonas de pouso pareciam ir ao encontro delas. E agora... Deus do céu... A escola.


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