O herdeiro encantador

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Prólogo

Monte

dos

J

Espinheiros, Brasil

onah despertou sob um calor sufocante e ao som de gritos. Ergueu-se abruptamente, os lençóis enchar-

cados de suor, o coração batendo rápido. Os gritos vinham de fora, pela janela que havia deixado aberta para acolher a brisa noturna. Uma luz pálida e cinzenta penetrava pelas persianas. Dentro do dormitório, os outros Setes gemiam, e o som se alastrou por todas as camas ao redor de Jonah. Forçou a vista na escuridão, mas sua visão tremeluzia e oscilava como numa das pinturas nos livros da mamãe. — O que está acontecendo? — sussurrou ele, com voz rouca e estranha. Quando deslizou as pernas para a lateral da cama, foi atingido por um forte cheiro de doença.

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Permaneceu sentado até que a agitação em seu es-

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tômago se acalmasse um pouco. Não iria vomitar. Tinha quase sete anos — adulto o bastante para não dar trabalho a outras pessoas. Fora isso que a mamãe dissera, pelo menos. As pessoas sempre estarão dispostas a fazer coisas por um encantador como você, por causa dos seus dons de empatia, carisma e persuasão. Mas isso é errado, Jonah. Precisa aprender a fazer as coisas por conta própria. O peito ardia, queimando como se alguém houvesse acendido um fogo dentro dele. Apertou as mãos contra a camiseta, como se pudesse apagá-lo. Alguém em uma das outras camas chamava sem parar: — Papai? Onde estava Jem, o supervisor do dormitório? Ele saberia o que fazer. Jonah saiu da cama, os pés descalços batendo no chão com um ruído surdo. Por um momento, permaneceu parado, sentindo vertigens, a chama no peito ardendo ainda mais. Então, cambaleando e se apoiando nos suportes das camas, tateou o caminho até a porta. Quando a alcançou, quase tropeçou num corpo estendido na soleira. Era Jem, os olhos revirados para trás, a língua enegrecida para fora, as mãos em punhos. Como se ainda estivesse lutando. — Jem — sussurrou Jonah, ajoelhando-se a seu lado. Jonah não conseguia mais sentir a mistura de amor e exasperação que era Jem.

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Jem estava morto, mas alguns dos Setes ainda esum curandeiro. E mamãe, papai, Kenzie e Marcy. Abriu a porta, passando cuidadosamente por cima do corpo de Jem — e entrou num pesadelo. Pessoas

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tavam vivos. Um curandeiro. Jonah precisava encontrar

em roupas de dormir enchiam a ocara, tropeçando pela praça, esbarrando nas coisas como se estivessem cegas ou fora de si. Havia corpos por todos os cantos, como bonecas quebradas jogadas de lado. Alguns Jonah reconheceu. Foster, que trabalhava na serralheria e lhe dava pedaços interessantes de metal para brincar. E Lilith, que ajudava a fazer os remédios que os curandeiros utilizavam. Ela jazia de rosto para baixo junto à porta do prédio do laboratório, os cabelos claros espalhados ao redor da face como um halo. Alguém trombou com ele, quase o derrubando. Era Patrice, que construía os cenários para o teatro. Ela ainda estava de camisola. Era o primeiro adulto que Jonah encontrava que não estava morto. — Patrice! — gritou Jonah, agarrando-lhe a manga. — Você viu a mamãe e o papai? Patrice perdeu o equilíbrio e se apoiou em Jonah para não cair. A saliva borbulhava em seus lábios e lhe escorria pelo queixo. Ela o fitou com olhos arregalados, como se não o reconhecesse, depois cambaleou para trás e prosseguiu com esforço em direção ao lago. As pessoas corriam em todas as direções, algumas para o lago, talvez na esperança de se refrescar em suas águas. Outras, para os salões de cura. Algumas corriam,

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berrando, sacudindo os braços, como se fossem perse-

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guidas por monstros. Jonah viu um homem se chocar com outro. Ambos caíram no chão, esmurrando e chutando um ao outro. Apavorado, Jonah correu para o conjunto de domicílios, chamados ocas, que abrigavam os que trabalhavam em artes cênicas. Até o mês anterior, Jonah morara ali com os pais, o irmão mais novo e a irmã caçula. Então, como o espaço estava ficando abarrotado e Jonah já tinha quase sete anos, mudou-se para o dormitório dos Setes. Todas as crianças de sete anos ficavam lá, não importando a que ordem pertenciam. Algumas das ocas estavam escuras, sob um silêncio inquietante. Outras incandesciam com tantas luzes. Cães latiam para Jonah pelas portas abertas enquanto ele seguia o caminho bem conhecido até a habitação de sua família. Teve que parar uma vez e vomitar nos arbustos. A casa estava escura, mas pelas janelas da frente Jonah viu uma estranha luz bruxuleante. Como uma chama, mas mais azul do que laranja e vermelha. Ele irrompeu na casa, chamando: — Mamãe? Papai? Nenhuma resposta. Empurrou a tela que dividia o quarto dos pais da sala principal. Ainda estavam deitados. Viu as formas familiares na rede de casal, mas nenhum afluxo reconfortante de afeto lhe chegou. Jonah chegou um pouquinho mais perto. A mãe estava deitada de costas, com um pano sobre a

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testa, o rosto da cor do leite, os lábios azuis. Havia uma de bruços ao seu lado. Estavam mortos. Certa vez, Jonah recebera um soco no estômago — tão forte que se sentiu incapaz de puxar o ar para den-

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xícara no parapeito da janela mais próxima. O pai jazia

tro de si. A sensação agora era bem parecida. Abanando a cabeça, recuou para fora do quarto, as mãos erguidas à frente. Ao chegar à sala principal, detectou o cheiro de fumaça. Algo com certeza estava queimando, e o odor parecia vir do espaço agora compartilhado por Kenzie e Marcy. Jonah empurrou a tela que levava ao seu antigo quarto. Marcy estava de pé no berço, rindo e apontando, a luz das labaredas pintando-lhe o rosto num estranho tom de azul. A parte do quarto que pertencia a Kenzie ardia em chamas, e de vez em quando uma flama partia do fogaréu como se alguém estivesse soltando rojões. No centro do fogo, o irmão de cinco anos de Jonah, Kenzie, queimava com fulgor maior, como um sacrifício humano aos antigos deuses de que a curandeira Jeanette às vezes lhe falara. Queimando e queimando, mas sem se consumir. Tonto, nauseado e confuso, Jonah queria se deitar no chão, fechar os olhos e voltar a dormir. Queria que mamãe o acordasse daquele pesadelo, lhe acariciasse os cabelos e lhe dissesse que era tudo um sonho. Queria que um adulto decidisse o que fazer. Mas só havia Jonah, e ele tinha quase sete anos; se não fizesse alguma coisa, ninguém o faria. Secando

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as lágrimas, apanhou um cobertor que fora deixado na

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lateral do berço e envolveu Marcy com ele. Baixou o lado do berço e a ergueu no colo. Marcy apontou por sobre o ombro de Jonah e gritou: — Kee! Era como ela chamava Kenzie. — Venha, Marcy — disse Jonah. — Vamos sair daqui antes que o lugar todo pegue fogo. Ela se debateu nos braços dele quando cruzaram a soleira. — Kee! — berrava ela. — Kee! Marcy continuou a chutar e a se contorcer, e as forças de Jonah diminuíam rapidamente. — Marcy — implorou ele ao deixarem o abrigo das árvores. — Fique quieta. Não consigo carregá-la se ficar se remexendo. — Kee! — ela repetiu. — Eu sei — replicou Jonah. — Não me esqueci dele. É só que não consigo carregar os dois de uma vez. Duas crianças do dormitório dos Doze vinham caminhando penosamente na direção dele, meninas que costumavam ajudar nos salões de cura. Pareciam quase mortas, movendo-se como sonâmbulas em meio a um pesadelo. A pele de uma delas estava coberta de bolhas de queimaduras. Jonah tentou não ficar olhando. — Vamos nos reunir na ocara — disse uma delas lentamente. — Vá para lá. — Leve a minha irmã — pediu Jonah. — Vou buscar o meu irmão.

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— Jonah! — protestou Marcy, agarrando-lhe a ca— Está tudo bem — respondeu ele. Inclinou a cabeça e lhe beijou a face. — Volto logo. Os olhos azuis de Marcy se arregalaram, depois se

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miseta do pijama.

cerraram. Um sorriso lhe curvou os lábios. Como uma rosa surpreendida pelo inverno, a cor lhe desapareceu do rosto no momento em que ela morreu.

Jonah não sabia dizer por quanto tempo oscilou entre o sono e a consciência. Estava amarrado de tal forma que não conseguia se mover; tubos e agulhas o espetavam por toda parte, e luvas grossas lhe cobriam as mãos e o impediam de arrancá-los. Quase ninguém entrava, e, quando o faziam, partiam com pressa. De todo modo, ele dormia a maior parte do tempo. Então, certo dia, acordou afogando-se no próprio vômito. Quando os curandeiros finalmente chegaram, pareciam zangados, como se fosse culpa dele. Depois disso, desamarraram-no o suficiente para que pudesse usar a bacia ao lado da cama. Soltaram todos os tubos, mas deixaram as luvas e a grande corrente clangorosa presa ao tornozelo. Era longa o suficiente para lhe permitir ir ao banheiro e andar pelo quarto, mas nada além disso. Jonah sabia de algumas coisas. Por exemplo, sabia onde estava — numa das salas de aula da escola. Mas por que estava ali, sozinho, em vez de no salão de cura?

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Provavelmente tinham lhe dado algo que o fazia dor-

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mir quase o tempo todo, pois agora se sentia mais desperto. Acordado, podia ver quem entrava. Havia dois em especial — estranhos que talvez fossem curandeiros, mas diferentes de qualquer outro que Jonah já houvesse conhecido. Nada parecidos com Jeanette, que cuidara dele desde bebê. Esses curandeiros nunca o tocavam a menos que precisassem, e mesmo assim somente com as mãos enluvadas. Sempre que se aproximavam, o medo que sentiam se derramava sobre Jonah como uma névoa fria. Muitas vezes paravam à porta e conversavam entre si em voz baixa. Jonah supunha que falavam sobre ele. Ele os chamava de Troço Um e Troço Dois. Jonah não estava acostumado a ser temido. Estava habituado à afeição. Queria que Jeanette tivesse permanecido — quando ele adoecia, ela sempre sabia como fazê­ ‑lo se sentir melhor. Ela deixara o Monte dos Espinheiros antes que tudo aquilo acontecesse. No entanto, se houvesse permanecido, provavelmente teria morrido como todos os outros adultos. Traziam-lhe comida, deixando-a na mesa de cabeceira, mesmo que na metade do tempo a náusea não o deixasse comer. Sempre que um deles entrava, Jonah perguntava algo, juntando informações como peças de um quebra-cabeça. A água dos poços havia se estragado, disseram. Mamãe, papai, Kenzie e Marcy estavam todos mortos. Não, ele não tinha nada contagioso. Não, ele não podia tirar as luvas.

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Seu sétimo aniversário passou despercebido. O que que todos morreram. Jonah descansava, comia, usava as luvas e se perguntava por que ainda estava vivo. Quanto mais descansava, mais forte se tornava e mais

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significava que dois meses haviam se passado desde

via e ouvia, querendo ou não. Os ouvidos pareciam captar mais do que antes. E se olhasse pela janela, entre as grades, enxergava até o lado oposto do lago, onde tendas brancas haviam brotado como cogumelos após a chuva. O mais importante era que agora conseguia escutar as conversas murmuradas entre Troço Um e Troço Dois. Troço Um era quem mais falava. Troço Dois não falava muito. — Ele não nos paga o bastante para fazer este trabalho — reclamou Troço Um. — Ninguém nos avisou que precisariam de cuidados de enfermagem vinte e quatro horas por dia. — Mm-hmm — concordou Troço Dois. — Eles mesmos criaram esta situação, você sabe. — Troço Um coçou o pescoço. — Acharam que a Ordem dos Magos ia deixar que fabricassem um arsenal? — Mas isso não é culpa das crianças. Além do mais, Mandrake alega que não estavam fabricando armas. — E você acredita nisso? — Troço Um bufou. — Parece que as Casas dos Magos não acreditaram. Agora os pais estão todos mortos, e ninguém sabe que tipo de monstros as crianças vão ser quando crescerem. Estão agonizando, quase todas, e é provável que morram de

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todo jeito. Muitas delas morrem a cada dia. Eu diria que

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a coisa mais generosa a fazer seria acabar com o sofrimento delas. — O que você está sugerindo? — Troço Dois replicou com severidade. — Preciso deste emprego. Não tenho planos de ir embora até a mina se esgotar. Mais alguns meses no Brasil e nunca mais vou ter que trabalhar. Considero isso pagamento por combate. — Só estou dizendo que seria mais fácil se não fossem tantos. — Os moleques mutantes ou os diamantes? Os risos foram diminuindo à medida que se afastavam pelo corredor. Jonah sentiu o medo lhe alfinetar a nuca. Ele e os outros iriam morrer? Tocou o próprio peito, que ainda ardia de vez em quando, até despertá-lo de seu sono. Às vezes ainda precisava utilizar a bacia que haviam deixado ao lado da cama. Às vezes suava sangue. Mas pelo menos agora estava forte. Forte o suficiente para fazer explorações. Ao deslizar da cama para o chão, vislumbrou a si próprio no espelho sobre a pia. Não se parecia com um monstro. Parecia o mesmo de sempre — cabelos pretos desgrenhados, olhos azuis, a tatuagem de uma flor no braço, como todos os outros tinham. Talvez mais magro e mais triste do que antes. Jonah segurou o grilhão que lhe envolvia o tornozelo, tentando fazer o pé deslizar pelo aro. Não passava. Só o que conseguiu foi esfolar a pele. Frustrado, puxou com

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força a tornozeleira, que se despedaçou em suas mãos. olhou em volta, mas, obviamente, ninguém havia visto. Se soubesse que seria tão fácil, teria feito aquilo antes. Foi de mansinho até a porta, apenas para descobrir

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Surpreso, deixou os pedaços caírem sobre a colcha e

que estava trancada. Irritado, forçou a maçaneta, e conseguiu arrancar a porta das dobradiças. Caiu de traseiro no chão, a porta em cima dele. Em pânico, levantou-se com dificuldade. Foi sem querer, pensou ele. Não tive intenção de quebrar a porta. Eles não deviam ter me trancado. No fim do corredor, no que havia sido o ginásio de esportes, encontrou dezenas de crianças deitadas em fileiras e mais fileiras de camas. Algumas ele reconheceu, outras não. Algumas estavam cobertas por feridas e queimaduras, outras por escamas e penas. Algumas eram bonitas, frágeis, com uma luz pulsante, como as crianças fadas das histórias de Jeanette. Outras nem se pareciam com crianças. Todas estavam ligadas a máquinas e bolsas de fluidos que gotejavam para dentro de seus corpos. Era um lugar horrível. Um quarto horrível. — Jonah? Jonah estremeceu, assustado. A voz vinha de uma cama próxima. Era Alison Shaw, outra dos Setes. Parecia mais magra do que ele se lembrava, e pálida, com olheiras. — Alison! — respondeu ele, eufórico por finalmente encontrar alguém conhecido. — Você está…? — Psiu! — Alison pôs o dedo contra os lábios. — Não deixe que o escutem.

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Ela ergueu as mãos, e Jonah viu que lhe haviam

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posto luvas também. E correntes que a prendiam à armação da cama. — Como você escapou? — indagou ela. — Disseram que você estava trancado. — Quebrei a porta — admitiu Jonah, simplificando a história. — Por que eles a acorrentaram? — Deixe pra lá. Consegue me soltar? Jonah segurou a corrente e a quebrou. — Como fez isso? — inquiriu Alison, estreitando os olhos na direção dele, parecendo impressionada. — Mostre-me. Jonah deu de ombros. — Essas correntes não são muito boas, acho. Onde estão todos os outros? E quanto ao Rudy? E a Miranda? — Não sei. Nunca me deixaram sair deste quarto. Você viu o Kenzie? — Morreu — disse Jonah com um nó na garganta. — Você não sabia? — Não morreu, não — retrucou Alison. — Eles o trancaram também. O coração de Jonah titubeou. Depois acelerou de novo, batendo forte e veloz. — Onde? Onde ele está? Alison deslizou da cama para o chão. — Acho que é por aqui. Esgueiraram-se para fora do Quarto Horrível e seguiram pelo corredor. Viraram uma esquina e praticamente colidiram com Troço Um e Troço Dois. Com eles

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vinham dois auxiliares de enfermagem. Jonah poderia eles se interpunham entre ele e Kenzie. — Jonah! — Troço Um recuou um passo. Era a primeira vez que chamava Jonah pelo nome. — Como saiu

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ter corrido de volta na direção de onde viera, mas agora

do seu quarto? — Onde está o Kenzie? — interrogou Jonah, com as mãos cerradas. — A gente estava mesmo indo buscar você — respondeu Troço Um com um olhar rápido para Troço Dois. — Gostaria de vê-lo? Alison e Jonah se entreolharam. — Por que vocês me disseram que ele estava morto? — A gente não queria dar falsas esperanças — retrucou Troço Dois, os olhos voltados para as mãos enluvadas de Jonah. — Ele tem estado muito doente, assim como você. Achamos que era melhor aguardar. Ele gesticulou em direção ao fim do corredor. — É por aqui. Troço Um bloqueou o caminho de Alison quando ela o tentou seguir. — Você, não. Precisa voltar pra cama. — Quero ir com o Jonah. Troço Dois fez um gesto com a cabeça para os auxiliares de enfermagem. Cada um tomou um dos braços de Alison e, juntos, arrastaram a menina, que ainda protestava, na direção oposta. — Porque a Alison não pode vir também? — perguntou Jonah.

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— O seu irmão ainda está muito doente. Um visi-

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tante por vez. Você vai ver. Jonah foi tomado de medo. Acabara de ganhar Kenzie de volta, e agora talvez o perdesse novamente. Depois de muitas curvas e voltas, Jonah percebeu que seguiam para o salão de jantar. Por que o salão de jantar? Passaram por ele e atravessaram o pátio em direção à cozinha, situada num prédio separado. Ao longe, Jonah ouviu helicópteros se aproximando velozmente. Estranho. Helicópteros iam e vinham frequentemente, trazendo remédios e suprimentos, mas nunca àquela hora do dia. Troço Um e Troço Dois pareciam não os ouvir. Jonah passou os olhos pela porção de céu turvo acima, mas os Troços o apressaram para dentro do prédio da cozinha e, em seguida, para os fundos, onde se encontravam as despensas e as câmaras frigoríficas. — O Kenzie está aqui? — É o local mais seguro — argumentou Troço Dois, destrancando a porta de um gigantesco frigorífico de aço inoxidável. A voz de Jonah saiu num guincho apavorado: — Ele está dentro do frigorífico? — Não está ligado — assegurou Troço Dois, impaciente, abrindo a porta com um empurrão. Acendeu a luz, o que não era necessário, pois o próprio Kenzie iluminava todo o espaço. Estava sentado no chão a um canto, os joelhos erguidos até o queixo,

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os braços envolvendo as pernas. Chamas tremeluziam de que Jonah se lembrava da noite em que seus pais e Marcy morreram. — Ele ainda está pegando fogo! — gritou Jonah. —

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sobre sua pele — as mesmas chamas azuis e brancas

Por que não o apagam? — Não conseguimos — explicou Troço Um. — Ele mesmo gera as chamas. Não parou de queimar desde a noite do massacre. Kenzie estava sem roupa. Talvez fosse por isso que não haviam deixado Alison ir junto. Jonah se aproximou devagar. Embora Kenzie estivesse em chamas, tremia e tiritava sem parar, os dentes batendo, os olhos se revirando para trás. De vez em quando, a cabeça se chocava com a parede. — Por que não dão um capacete para ele? — sugeriu Jonah, pois não conseguia pensar em outra coisa para dizer. — A gente gostaria de ajudá-lo — afirmou Troço Dois, sacudindo os ombros. — Quero dizer, temos deixado comida e água. Mas, infelizmente, não conseguimos chegar perto dele. — Kenzie — chamou Jonah. — Sou eu, Jonah. O som da voz de Jonah pareceu atrair a atenção de Kenzie. O tremor diminuiu, e o irmãozinho se inclinou para a frente, com as mãos nos joelhos, os olhos arregalados de medo. — Jonah? Ajude-me! Por favor, me ajude! Estou com tanto f-frio... E com fome.

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Jonah estava desesperado para ajudar.

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— Não podem pelo menos trazer um cobertor? — indagou. — Eles simplesmente pegam fogo — informou Troço Um. Os dois Troços se entreolharam, e Troço Um continuou. — Mas você pode ajudá-lo. — Eu? — Jonah pestanejou para o homem alto. — Como? — Você pode apagar o fogo, Jonah — respondeu Troço Dois com tom suave. — Há muitas crianças aqui que você pode ajudar. Vai ajudar? — Acho que sim — disse Jonah, cauteloso, fitando o rosto do Troço Dois. — Eu quero ajudar. Troço Dois apresentou um par de reluzentes tesouras. Troço Um segurou os pulsos de Jonah enquanto Troço Dois cortava e retirava com cuidado as luvas do menino. Depois, recuaram rapidamente. Jonah flexionou os dedos, contente por estar sem as luvas, mas ao mesmo tempo perplexo. A porta do frigorífico estava levemente aberta. Jonah ouvia pessoas falando do lado de fora e passos se aproximando. Troço Um e Troço Dois pareciam não escutar, talvez porque a audição de Jonah fosse melhor que a deles. — Vou esperar lá fora — anunciou Troço Dois, virando-se. — Você vai esperar aqui mesmo. Você concordou com isso, agora seja homem — rosnou Troço Um baixinho. Ele se voltou para Jonah. — Escute, Jonah. É só segurar a mão do Kenzie. Isso vai apagar o fogo.

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— Por que isso apagaria o fogo? — Quando não resvou me queimar? — A gente acha que o fogo vai se extinguir na hora. Tente — encorajou Troço Um.

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ponderam de imediato, Jonah fez outra pergunta. — Não

Por que o estavam encorajando? Ele não era curandeiro. Jonah ergueu o olhar para Troço Um e viu a mentira por trás de seus olhos. — Não — rebateu, dando as costas para Kenzie e encarando os dois Troços. — Olhe para ele — pediu Troço Dois. — Acha que ele está feliz assim? Deu um passo na direção de Jonah, que ergueu as duas mãos para se defender. Para sua surpresa, Troço Dois recuou, o rosto tão pálido quanto a barriga de um peixe. Troço Dois tinha medo de Jonah. Por quê? Queriam que ele tocasse em Kenzie. Por quê? — Não podemos ajudar o Kenzie — reiterou Troço Um a Jonah, a voz enrouquecendo ao passar da suavidade da seda para a aspereza da juta. — Precisamos nos concentrar naqueles que têm chances reais de sobrevivência. — Não — respondeu Jonah. — Eu falei para você que não ia funcionar! — queixou-se Troço Dois. — Ele vai mudar de ideia — assegurou Troço Um. — É um menino inteligente. Ele vai compreender. — Esse é o problema. Ele já compreendeu — Troço Dois esbravejou. — Por que você não…

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A porta do frigorífico se escancarou. À entrada sur-

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giu um dos professores de música de Jonah, um homem chamado Gabriel, que passara somente parte de um ano no Monte dos Espinheiros. Que não estivera lá na noite em que todos morreram. — Quem você pensa que é? — Troço Um gaguejou, bloqueando o caminho de Gabriel. — Isto aqui é propriedade privada, e se você acha que… — Sou Gabriel Mandrake, dono desta propriedade, e aquele que paga os seus salários, creio eu. — Mandrake! — Troço Um pareceu encolher diante dos olhos de Jonah. — Devia ter nos informado de sua vinda. Teríamos preparado… — Era essa mesmo a ideia — Gabriel revidou. — Uma visita surpresa. Parece-me que vocês têm passado mais tempo trabalhando nas minas do que nas tarefas que lhes pago para fazer. Troço Um lambeu os lábios. — Bem, sabe como é, a gente achou que era importante mantê-la em operação, angariar fundos para as crianças… para o futuro delas e tudo mais. Gabriel empurrou os Troços para o lado e entrou no frigorífico, seguido de Alison e… — Jeanette! — gritou Jonah. Mas Jeanette não respondeu. Tinha os olhos fixos em Kenzie, a face expressando descrença e, a seguir, um horror crescente. Quando Gabriel viu Kenzie — quando o viu nu no canto do frigorífico —, estremeceu. Seu rosto a princípio

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tornou-se pálido como leite e, em seguida, se averme— Meu Deus! — Ele se voltou para os Troços. — O que deu na cabeça de vocês? São crianças! — É fácil para você dizer isso — protestou Troço Um.

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lhou de fúria.

— Elas são perigosas. Se tivesse visto o que vimos, você… — Vi o bastante — sustentou Gabriel, a voz baixa e rouca. Ele parecia diferente do que Jonah lembrava, magro, desalinhado e triste. Jeanette foi para perto de Kenzie e se ajoelhou ao seu lado, falando-lhe de forma tranquilizadora. Não estava com medo. Sob o olhar atento de Jonah, ela tirou da sacola que trazia uma garrafa marrom. Jonah se agachou junto a Jeanette, aproximando­ ‑se o mais que se atrevia. — O que é isso? — inquiriu ele enquanto ela servia uma dose de um líquido marrom lamacento numa colher. — Um remédio que talvez alivie um pouco os sintomas, reprimindo a magia. Era algo que Jonah sempre apreciara em Jeanette: ela sempre dizia a verdade. Jeanette tentou levar a colher à boca de Kenzie, mas ele se remexia tanto que ela não conseguia atingir o alvo. — Kenzie, como é aquela canção de que você gosta? — indagou Jonah. — Aquela do John Lennon? Kenzie pestanejou. — Imagine — murmurou ele através dos lábios rachados.

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Jonah começou a cantar em voz baixa. O corpo de

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Kenzie relaxou, e seus movimentos diminuíram o suficiente para que Jeanette conseguisse passar a colher por seus lábios. Os Troços ainda discutiam com Gabriel. — Tenho os números de referência — indicou Gabriel, a voz baixa e tensa. — Dois mil adultos e três mil crianças, todos mortos. Mil crianças sobreviveram. Onde estão? Quantas morreram desde que vocês assumiram? Troço Um e Troço Dois trocaram olhares. — Umas duzentas, talvez? — estimou Troço Um. — Não — Gabriel lamentou-se. Todo o seu corpo se curvou, e ele cobriu o rosto com as mãos. Lágrimas lhe escaparam entre os dedos. — Nunca pensei… Nunca sequer imaginei que pudesse ser tão ruim assim. — É, bom, pois agora já sabe — atacou Troço Um. Como de costume, Troço Dois falava pouco. Deslizou para o chão a um canto e apoiou a cabeça nos braços. O fogo de Kenzie finalmente se apagara, e ele desmoronou contra o ombro de Jeanette, exausto. Jonah pensou que ele ficaria coberto de queimaduras, mas não era o caso. Talvez as chamas que ele mesmo criava não o queimassem. — Alison — chamou Jeanette, balançando Kenzie para a frente e para trás, acariciando-lhe as costas, a voz calma como sempre. Como se ela tomasse conta de meninos em chamas todos os dias. — Pode trazer um pouco de água para o Kenzie, e também aquelas bolachas salgadas em forma de animais de que ele gosta? Estão numa caixa de caldo de galinha.

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Jonah percebeu que Alison queria ficar e ouvir, mas — Jonah — disse Jeanette, dando-lhe um sorriso cansado. — Fico tão feliz de ver você de pé e caminhando... Acha que consegue encontrar um cobertor para o seu irmão?

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ela foi mesmo assim.

Assim que Jonah se esquivou pela porta, Troço Um voltou a falar. — Pois então acho que agora você entende com o que estamos lidando aqui. Não tem sido fácil, pode acreditar. — É por isso que têm acorrentado as crianças às camas? — acusou Jeanette, a voz estalando como um chicote. Havia um novo tom de nervosismo na voz de Troço Um quando replicou: — Vocês precisam entender, havia muito a fazer, pouca mão de obra, e faltam… — Claro, não me admira que falte mão de obra quando descubro dez pessoas trabalhando nas minas — observou Gabriel. — Dez pessoas a quem estou pagando para cuidar das crianças. Jonah encontrou um cobertor ao retornar ao Quarto Horrível, onde curandeiros recém-chegados estavam ocupados desacorrentando as crianças e examinando-as, enquanto faziam perguntas em tom suave. Alguns curandeiros choravam. Quando Jonah retornou com o cobertor para Kenzie, Troço Um franzia o cenho, erguendo a voz em protesto. — Escute, algumas dessas crianças não pararam de ter ânsias de vômito desde que chegamos aqui. Outras estão tão deformadas que nós temos vontade de vomitar.

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E isso é só a ponta do iceberg. Se nos demitir, vamos em-

O Herdeiro Encantador

bora do Brasil para sempre. E aí desejo a você boa sorte para encontrar outros curandeiros que venham aqui, para esse lugar esquecido por Deus, e tomem conta daquilo. — Apontou para Kenzie enquanto Jonah punha o cobertor sobre os ombros do irmão. — Será que você percebe com o que está lidando? Está vendo o irmão mais velho ali? Menino adorável. Só um detalhe: o toque dele é letal. Os lábios, as mãos… e não sabemos o que mais. Ele matou a própria irmã. Troço Um continuou falando, mas Jonah não escutava. Marcy? Ele matara Marcy? Estendeu as mãos, examinando-as. Virou-as e olhou-as bem. Não pareciam em nada diferentes do que sempre foram. — Não se preocupe, Jonah — murmurou Jeanette, afastando-lhe os cabelos dos olhos. Inclinou-se para beijá-lo na testa. — O que quer que tenha acontecido, não foi sua culpa. Lágrimas assomaram aos olhos de Jonah. Ninguém o havia beijado — quase ninguém o havia tocado em dois meses. Jeanette não tinha medo dele. E ainda assim… Jonah sacudiu a cabeça e se afastou dela. — Não. Vou machucar você também. — A questão é que a maioria dos feiticeiros não poria o pé aqui depois do que aconteceu — finalizou Troço Um. — Não querem arriscar ter a Ordem dos Magos na cola deles. — Quem sabe algumas pessoas sejam mais corajosas do que vocês — replicou Gabriel. — Agora saiam daqui, antes que eu os mande prender.

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