cassiano ricardo 120 anos O poeta com a sua lanterna mรกgica estรก sempre no comeรงo das coisas. ร como a รกgua, eternamente matutina.
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miga, não lhe darei notícias do Rio: para quê? Vou contar-lhe apenas de vários poetas que apareceram aqui e se chamam, todos, Cassiano Ricardo. Eles publicaram de sociedade um grosso volume a que deram o título de Poesias Completas. Até agora, tal apelação costumava aplicar-se às obras de um só autor; é a primeira vez que ela designa a produção de um conjunto de poetas, reunidos sob pseudônimo comum, aspirando talvez à unidade, que de fato conseguiram. — Há no livro, que recomendo ao seu gosto de poesia, um alexandrino, isto é, um refinado, que por sugestão do nome pratica esse metro, e um bárbaro que o desarticula. Um nativo da roça brasileira e um universalista são igualmente válidos... Sem nada de didático, a poesia da firma Cassiano Ricardo oferece soluções mais variadas. Não que pretenda inculcá-las; elas é que se insinuam à admiração, pelo poder de perturbação emocional que o verso traz consigo... Mas, o que realmente lhe interessa é o princípio enigmático, a essência das coisas, e não a sátira, o protesto ou o lamento pelo espetáculo absurdo que se desenrola interminavelmente no mundo... Amiga, leia e estime os tantos Cassiano Ricardo que há neste livro grande, de uma beleza travosa. No fundo, sob a diversidade de técnicas, interesses e temas, ele é um só e admirável poeta, que nos ajuda a compreender o nosso tempo e a dele nos libertarmos pelo comovedor non-sense da poesia.” Carlos Drummond de Andrade
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stas notáveis linhas, de Carlos Drummond de Andrade foram publicadas no Correio da Manhã, em 14/04/1957. Pensamos que não haveria melhor introdução a um caderno comemorativo dos 120 anos de nascimento de Cassiano Ricardo. Nas próximas páginas, oferecemos ao leitor um ensaio analítico, uma entrevista e um perfil biográfico, bem como diversos poemas. E desejamos a todos: boa leitura!
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Surpresas de um Poeta por Luiza Franco Moreira*
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assiano Ricardo é um poeta que exige muito do leitor, mas ao mesmo tempo proporciona recompensas inesperadas. Os melhores momentos de sua poesia são notáveis pelo bom humor e a espontaneidade. Um texto bem conhecido ilustra este ponto. SERENATA SINTÉTICA Rua torta. Lua morta. Tua porta.
O último livro do poeta é reeditado pela FCCR, em 2014
Este poema breve1, simples, mas de construção complexa, lida com uma história bem convencional: o poeta busca a amada e encontra uma porta, que talvez esteja aberta, talvez não. Cassiano tira partido da técnica da poesia justamente para enfatizar a banalidade deste tema. O bom humor transparece já na escolha de versos de uma sílaba só (que o Tratado de Versificação de Bilac chama de “capricho”). As rimas também chamam atenção para a simplicidade da cena: todas as palavras rimam, e todas as rimas são óbvias. O 1. Um Dia após o Outro (1947).
Vamos Caçar Papagaios também foi reeditado pela Fundação, em 2005
* Texto adaptado da introdução de Cassiano Ricardo: Melhores Poemas, Luiza Franco Moreira (org.), Global Editora, São Paulo, 2003.
paralelismo sintático exagerado contribui, por sua vez, para criar um tom de comédia. Metro, rima e sintaxe combinam-se para evocar uma situação corriqueira, mas ao mesmo tempo — e isto é o principal — mostram, enfaticamente, como é fácil reconhecê-la. Vem desta dramatização bem-humorada da trivialidade o encanto do poema. O título “Serenata Sintética” é decisivo para que a banalidade apareça como tema, sem que o texto se esgote nela. A referência paródica à Sonata Patética2 de Beethoven pressupõe um universo cultural sofisticado, ao mesmo tempo que lhe diminui a autoridade drasticamente, criando um efeito de humor próximo do cultivado pela Antropofagia. As três estrofes do poema são uma redução mais do que imprópria da forma sonata. Há vários outros contrastes marcantes entre poema e título. Enquanto o poema mantém-se num registro cotidiano, o título tem um vocabulário mais refinado; enquanto este se vale apenas de palavras curtas, aquele prefere as longas. No interior dos contrastes, algumas semelhanças conservam-se. Mesmo que ambos insistam em aliterações e assonâncias, o título e o poema trabalham vogais e consoantes de sonoridade bem diferente, sugerindo suavidade num caso e, no outro, dureza. Ao escandi-los, verificamos ainda que o título tem o mesmo número de sílabas métricas que o 2. Sonata nº 8, Op. 13, de Beethoven, a que o compositor deu o título, em francês, de Grande sonate pathétique.
poema como um todo, criando um desequilíbrio que, de novo, tem muito de cômico. Este jogo de contrastes e semelhanças ao mesmo tempo dá relevo às diferenças e aponta para uma unidade subjacente aos dois termos. À medida que estabelece uma perspectiva mais ampla para a cena corriqueira, o título abre caminho para que o texto eleve-se além daquilo que retrata. Cassiano arriscou-se bastante neste poema. Um pouco menos de sorte, tato, ou arte e o texto poderia ter resvalado para a simples descrição de emoções fáceis. É necessário acrescentar que o poeta nem sempre foi feliz ao lidar com temas, como este, traiçoeiros. A mesma naturalidade que faz o encanto de “Serenata Sintética”, em outro poema da mesma época, “Relógio”, desemboca apenas em um lugar comum: “Desde o instante em que se nasce/ já se começa a morrer.” Estes desníveis de qualidade literária persistem por toda a obra de Cassiano. Chamo atenção para eles, aqui, porque é preciso reconhecer que sua poesia já recebeu críticas severas, e que, em parte, são procedentes. Entretanto, como o comentário de “Serenata Sintética” demonstra, os melhores momentos de sua poesia merecem, e recompensam, uma leitura mais detida.
Nos poemas mais representativos de Cassiano, desenha-se o perfil de um poeta que imita a fala brasileira com sucesso e carinho transparente, e que mostra, ainda, talento considerável para manipular os recursos do verso. (Estes traços, vale a pena anotar, aparecem também nos livros compostos antes da influência do Modernismo.) Também encontramos neles um con-
junto bem delimitado de temas e figuras, que se ligam uns aos outros e se ajustam à linguagem singela do poeta: o menino; a vida, especialmente a infância, no campo; os passarinhos; a paisagem dos trópicos, apresentada por imagens visuais fortes e em versos de sonoridade exuberante; a amada, em geral cabocla, mulata ou negra; os humildes; a cidade grande e seus cansaços; a manhã, tanto esperança como dificuldade e desilusão; o consolo da religião; e por fim o Brasil, tema que engloba a maior parte dos outros. Em um dos primeiros livros de
Cassiano em noite de autógrafos em sua terra natal, São José dos Campos
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Cassiano, A Frauta de Pã (1917), já encontramos a paisagem brasileira descrita com exuberância: Na manhã tropical, borrifada de orvalho e manchada de terra, ou nestes coloridos caminhos que percorro a pé, sem agasalho, parece que inauguro os meus cinco sentidos!
Martim Cererê teve 26 edições
Borrões de Verde e Amarelo foi publicado em 1927
Em “Luxo de Peixe”, poema incluído em Os Sobreviventes (1971), último livro de Cassiano3, discernimos um tom semelhante de entusiasmo: Nunca tanto sol (de escama) que saltou da pauta ou da flauta. Nunca tanto salmão. Nunca tanto sol na mão. Nunca um mar tão irmão Nunca tanto xaréu hipocampo, pampo, enxameando, piscando na xilogravura da rede (Por São Peixe Cristo) Neste último poema o encanto com os trópicos ganha maior complexidade e ressonância, como é de esperar em um trabalho mais maduro. Por meio da anáfora — “Nunca tanto” — Cassiano sugere que as dádivas generosas da natureza são raras e podem causar surpresa. A felicidade um pouco ansiosa do poeta aparece no contexto de uma antiga tradição por meio da referência a Cristo e da
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3. Agora reeditado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo.
alusão aos milagres narrados nos Evangelhos.4 Um exemplo mais bastará para indicar a coerência do mundo evocado pela poesia de Cassiano. No conhecido poema “Martim Cererê”, a figura de um menino serve como alegoria para o Brasil e ainda como uma das chaves estruturais do texto. No decorrer de sua obra, Cassiano retorna constantemente ao tema da infância e suas imagens. “O Elefante que Fugiu do Circo” (1950) dirige nossa atenção para as crianças acompanhando na rua o animal. Essas aparecem como “pequenos anjos falsos” em “Festa no Morro” (Montanha Russa, 1960), um poema que por sinal lembra bastante “Filhos de Posseiros”, de Elizabeth Bishop. Em Jeremias Sem-Chorar (1964), de novo o menino é uma figura central da narrativa. Um dos aspectos mais interessantes desta poesia é seu lado desagradável. Em vários momentos Cassiano se volta para emoções que a poesia raramente explora - o ressentimento, a vergonha, a humilhação. Estas lhe oferecem matéria para alguns de seus poemas mais eloquentes. Vale a pena lembrar aqui os versos iniciais de “Epitáfio”, texto que trata do insulto: Palavra que lavra e escalavra. No poema “Troféu”, por outro lado, um autoexame amargo se en4. A figura do peixe é um símbolo de Cristo pelo fato de a palavra peixe, em grego — ichthys — , ser um acrônimo para Iēsous Christos, Theou Yios, Sōtēr, expressão que se traduz por “Jesus Cristo, filho de Deus, Salvador”. O peixe também está fortemente ligado à imagem de Jesus pelo milagre da multiplicação dos peixes narrado nos Evangelhos (São Mateus, 14, 13-21; São Marcos, 6, 3144; São Lucas, 9, 10-17; São João, 6, 1-14).
cerra em uma imagem de mau gosto surpreendente, mas, no contexto muito engraçada. Tais escolhas temáticas, por certo, exigem um leitor disposto a percorrer o lado escuro e mesquinho do coração. Mas não é essa a maior dificuldade que os temas de sua poesia lançam para o leitor contemporâneo. Tais problemas mostram-se especialmente agudos no que diz respeito a Martim Cererê, o livro mais conhecido de Cassiano, que é sempre citado em histórias do Modernismo brasileiro e já chegou à vigésima terceira edição. Nesse poema, Cassiano constroi uma imagem hierárquica da nacionalidade em que se reconhecem marcas fundas de uma ideologia corporativista. Mais ainda, essa sua imagem do Brasil circulou como parte do discurso oficial do Estado Novo, em artigos de opinião que Cassiano assinava para A Manhã, jornal diário dirigido pelo próprio escritor e que era parte do aparato governamental. Para ler, hoje, Martim Cererê é necessário enfrentar diretamente os problemas que sua ideologia e seu passado nos propõem. Seria uma abstração inaceitável ler o texto sem levar em conta seu tema ou tratar desse tema em particular sem levá-lo a sério, desconhecendo suas ramificações políticas e históricas. Por isso, Martim Cererê exige do leitor contemporâneo um esforço paciente de reconstrução e crítica. Apesar de indispensável, esse trabalho de reflexão não basta, contudo, para a leitura desta obra. Pois
Martim Cererê, em seus melhores momentos, tem muito a oferecer além de sua matéria ideológica. É o caso de “Café Expresso”. Este poema elabora um contraponto entre o presente urbano do “eu” poético e a memória de sua infância no campo, aludindo com irreverência e graça a um motivo proustiano: traduzida em termos de São Paulo, a madeleine se converte em uma xícara de café. No vaivém das estrofes entre cotidiano e lembrança, as perspectivas do menino e do adulto se iluminam uma à outra, ganhando em profundidade. O resultado é um texto simples, mas rico de associações, que merece ser recolhido em antologias, como de fato tem sido. Não só neste poema, mas no conjunto do livro, Martim Cererê trabalha com a disparidade entre criança e homem, explorando esse contraste em vários níveis da composição poética: por meio da construção das estrofes, como no poema já discutido, mas também pelo tom, pelo estilo, ou pelas imagens. Apenas um percurso pelo nível temático do texto permite-nos compreender por que essa perspectiva dupla desempenha uma função central na estruturação de Martim Cererê. Como já tive oportunidade de demonstrar, menino e homem são, ambos, figuras para o Brasil, mutuamente exclusivas e necessárias uma à outra. Essa imagem dupla encontra-se no cerne do poema e lhe aflora constantemente à superfície, à medida que os vários textos de Martim Cererê buscam elaborar
No vaivém das estrofes entre cotidiano e lembrança, as perspectivas do menino e do adulto se iluminam uma à outra, ganhando em profundidade
A CANÇÃO MAIS RECENTE O poeta com a sua lanterna mágica está sempre no começo das coisas. É como a água, eternamente matutina. Pouco importa a noite lhe ponha a pena do silêncio na asa. Ele tem a manhã em tudo quanto faça. Além disso o amanhã nunca deixará de ter pássaros. A Face Perdida (1950)
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Ilustração para o poema “Moça tomando café”, de uma das edições de Martim Cererê
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diversas maneiras de lidar com suas complexidades e sutilezas. O problema formal da relação entre criança e adulto, para o qual o livro de Cassiano encontra sempre novas soluções, expressa no nível da estrutura poética as dificuldades políticas e teóricas do nacionalismo hierárquico. É por esse motivo, no caso de Martim Cererê, que a tentativa de isolar o propriamente poético da mera ideologia conduz o leitor a uma posição bem pouco produtiva. Se deixamos de lado o exame de sua ideologia, deixamos de lado também a possibilidade de compreender o papel que esta desempenha na construção de Martim Cererê, de modo tal que a própria construção do poema nos escapa. Uma vez que Martim Cererê é o mais conhecido poema de Cassiano Ricardo e o único que está no prelo desde a primeira edição, um exame detido do texto e de suas complexas repercussões corresponde
ao primeiro passo indispensável para uma retomada de interesse no poeta. A poesia de Cassiano Ricardo merece, portanto, ser percorrida sem ingenuidade, mas ao mesmo tempo sem injustiças na avaliação literária. É possível, acredito, recuperar o prazer difícil que ela pode nos oferecer. A obra poética de Cassiano Ricardo tem muito a nos dizer, até mesmo a respeito da ideologia de que está permeada. Quanto menos bem-vindas as descobertas que nos proporciona, mais atenção merecem. Por outro lado, quando bem-sucedidos, os poemas de Cassiano estão longe de se esgotar no uso de figurações ideológicas. Ao contrário, eles põem à mostra os limites e contradições de tais imagens, deixando transparecer algo da violência que as constitui e que em geral permanece oculta. Em momentos como esse, a poesia de Cassiano tem a força de uma iluminação.
Uma obra que acompanha as mudanças Ao longo dos 55 anos em que se desenrolou a atividade de Cassiano Ricardo — desde 1915, quando é publicado Dentro da Noite, até 1971, ano em que aparece Os Sobreviventes — muito mudou na poesia brasileira, e a obra de Cassiano acompanha as mudanças. Conforme a crítica costuma apontar, nos livros iniciais notase a influência do Parnasianismo, enquanto os livros da década de 1920, e especialmente Martim Cererê, deixam transparecer o impacto do Modernismo. Há uma mudança de inflexão em sua obra a partir de Um Dia depois do Outro (1947). A exuberância inicial cede lugar a uma atitude mais pausada e triste, elogiada por Manuel Bandeira na Apresentação da Poesia Brasileira como uma renovação lírica. (Datam dessa época vários poemas eloquentes sobre a desilusão e as emoções indignas.) Entre os poetas da geração de 1945, Cassiano tem afinidades com Péricles Eugênio da Silva Ramos, a quem dedica alguns poemas, e que lhe dedica um ensaio crítico interessante (recolhido no volume da coleção “Fortuna Crítica”). Nos anos sessenta, o poeta aproxima-se das vanguardas. Realiza experiências com a poesia concreta, da qual resultam os poemas “Translação” e “Gagarin”, incluídos em Jeremias Sem-Chorar (1964). No mesmo livro, renuncia ao uso do verso, e busca desenvolver uma nova forma poética, a que chama “linossigno”. Um pouco mais tarde, Cassiano afasta-se dos concretos e passa a apoiar a PoesiaPráxis de Mario Chamie. (LFM)
LADAINHA Por que o raciocínio, os músculos, os ossos? A automação, ócio dourado. O cérebro eletrônico, o músculo mecânico mais fáceis que um sorriso.
Cassiano com Monteiro Lobato (centro) e Menotti Del Picchia, na década de 1940
Por que o coração? O de metal não tornará o homem mais cordial, dando-lhe um ritmo extracorporal? Por que levantar o braço para colher o fruto? A máquina o fará por nós. Por que labutar no campo, na cidade? A máquina o fará por nós. Por que pensar, imaginar? A máquina o fará por nós. Por que fazer um poema? A máquina o fará por nós. Por que subir a escada de Jacó? A máquina o fará por nós. Ó máquina, orai por nós. Jeremias Sem-Chorar (1964)
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Conversando com Cassiano Entrevista concedida a Pedro Paulo Teixeira Pinto
As memórias de Cassiano, publicadas em 1970
Ilustração de Di Cavalcanti para edição de 1928 de Martim Cererê
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“É sempre um prêmio para o artista a certeza de que seu poema vai cumprindo bem a curva orbital na faixa do significante-significado. Então percebemos que o relacionamento leitor-poema atinge a realidade tão necessária à vida total da obra criada.” Foi o que disse Cassiano Ricardo em carta que me escreveu em 23/11/1971. Em outra, de 19/8/1972, depois de entrevistá-lo para o jornal Valeparaibano, disse o poeta: “Agradou-me sobremaneira o fato de você ter levado ao leitor a ideia de que no mundo planetário em que vivemos a estrutura do verso não tem mais lugar. Para substituí-lo, propus o ‘linossigno’.” E prossegue: “Gostaria bastante que a juventude não comprometida se conscientizasse da obsolescência das fórmulas que ‘já eram’.” O poeta agradece o recebimento do prêmio Jorge de Lima, em 1965. Por aí vemos a constante E é Carlos Drummond de Andrade procura do novo, a busca incessante de suquem diz na orelha de Jeremias Semperação da linguagem para adaptar-se a um -Chorar: “Cassiano se reveste da maior mundo que se renova e comunicar-se com o humildade e inocência, chega a assumir contexto de um novo tempo, guardando esum estilo chapliniano para surpreender o paço para a emoção. “A emoção é o que difere mistério e dele participar.” o homem da máquina”, salienta Cassiano. Arte é aquela que surpreende e transA entrevista a seguir nos foi concedida cende — por isso é sempre atual, moderna. por Cassiano em 1972 e publicada no jorÉ perene. Isso se dá com Cassiano Ricardo nal Valeparaibano. ao longo de sua extensa obra. Espírito inApresentamo-la, aqui, em versão quieto e humanista, ele nos faz lembrar o editada. Carlitos de Chaplin.
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onviver com Cassiano Ricardo é realizar o encontro com a juventude lúcida de uma visão fundamental sobre o “mundo atômico e atônito”, deflagrado em sua surpreendente obra. Recentemente, estivemos em sua residência em São Paulo, num encontro que passamos a relatar. Nascido em 1894, o “jovem poeta jovem” sempre foi um profundo
ficção.” Outro, foram as palavras de um piloto ao descer em Congonhas com dois motores parados: “Piloto não vive; sobrevive.” O tempo que duraria o encontro corre rápido. Consultamos sua esposa, jornalista e socióloga, e um gesto simpático nos colocou novamente à vontade. O poeta prossegue:
Analista de seu tempo,
“A transformação do automático que leva ao suicídio, em automático que conduza ao maravilhoso, já hoje ocorre, mas será realidade total se a criatura do século 20 se convencer de que é necessário a si mesmo, pela instauração do novo humanismo. A situação criada pela ciência e tecnologia poderá resultar na ‘robotização do homem pelo homem’. Para conter o excesso de mecanicismo contra o ‘homem da ruína total’ e da ‘loucura premeditada’, só um novo humanismo pró preservação dos valores existenciais que nos explicam como seres dotados de senso e sensibilidade.” Entre os inúmeros prêmios ganhos por Cassiano Ricardo, destacamos o último, conquistado com Os Sobreviventes: o 1º Prêmio Nacional de Poesia, entregue por ocasião da 2ª Bienal do Livro, em 1974. Diz ele de sua recente obra: “O livro é baseado na sobrevivência, mas não no sentido comum da palavra, e sim como a entende o autor de Metaphilosophie, como um ‘sistema de vida’, o do século 20.” A uma solicitação do fotógrafo notamos que o poeta não alimenta muito o prazer de ser fotografado, mas... o cafezinho chega em boa hora... Na parede, em nossa frente, há um quadro feito pela filha de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) com estas linhas de um poema de Cassiano:
e diz: Estamos vivendo uma madrugada e não sabemos do dia que está para amanhecer. “Este mundo que nos mostra a maravilha do homem chegando à Lua, ao mesmo tempo nos aterroriza com a destruição, pelo próprio homem, de milhares de vidas humanas.” Em sua sala, onde figuram quadros de pintores importantes, ao lado do grande carinho de Lourdes, sua esposa, prossegue o poeta com entusiasmo: “Hoje sinto-me como alguém que acorda todas as manhãs com a grande surpresa de ainda estar vivo, num mundo onde o botão da máquina — a um simples toque — pode determinar a qualquer momento o fim de tudo... Ao mesmo tempo que o presidente Nixon vai ao encontro da China e da Rússia para negociar a paz, vemos a ação devastadora da máquina da guerra, na luta incessante.” Em relação aos seus dois últimos livros, Jeremias Sem-Chorar e Os Sobreviventes, Cassiano confessa a influência de dois depoimentos. Um deles de Mr. Bell, responsável por experiências que coroaram de êxito a missão Apolo XI, quando disse ao jornalista que lhe perguntou sobre literatura de ficção científica: “Não leio ficção; eu sou a
A robotização do homem
ROTAÇÃO a esfera em torno de si mesma me ensina a espera a espera me ensina a esperança a esperança me ensina uma nova espera a nova espera me ensina de novo a esperança na esfera a esfera em torno de si mesma me ensina a espera a espera me ensina a esperança a esperança me ensina uma nova espera a nova espera me ensina uma nova esperança na esfera a esfera em torno de si mesma me ensina a espera a espera me ensina a esperança a esperança me ensina uma nova espera a nova espera me ensina uma nova esperança na esfera Jeremias Sem-Chorar (1964)
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O mundo poderá ser salvo se o homem desfizer a distância que o separa de sua infância. Aproveitamos para perguntar: A que idade deixa-se de ser criança? Aos seis, dezoito, trinta, sessenta anos?
A poesia tem um dever
Ilustração de uma das edições de Martim Cererê
“Se se for honesto, nunca: a curiosidade, o entusiasmo, a vontade de chorar e rir são virtudes das crianças. Um adulto incapaz de ser criança não pode sentir prazer na vida”. Na sala, repleta de cordialidade, prossegue o encontro. Mais uma pergunta e Cassiano se pronuncia: “A poesia tem um dever com sua época e está associada ao destino dos homens, e aos problemas e perplexidades de nosso instante.” O artista sempre indaga sobre sua arte; assim, se manifesta num poema de Jeremias Sem-Chorar: 1 Que é a poesia? uma ilha cercada de palavras por todos os lados. 2 Que é o poeta?
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um homem que trabalha o poema com o suor do seu rosto. Um homem que tem fome como qualquer outro homem.
Diz o poeta: “Como qualquer outra arte, a poesia deve buscar uma coerência com seu tempo. A verdadeira arte é aquela que está em permanente vigilância, atenta a tudo e a todos... Vejo a poesia, hoje, como uma ciência, e só assim pode ser para perceber o contexto cientificista que engloba o mundo.” Fizemos ver ao poeta o que pensamos de seu trabalho: um exaustivo ofício de pesquisa em seu laboratório de palavras. E chega o momento, na sala, em que se reclama
Um espaço para a emoção E as palavras são de Cassiano: “Vejo a poesia como algo que não pode existir sem emoção. A emoção é uma das coisas que diferem o homem da máquina, e deverá ser constante entre o homem e o objeto de sua observação. Em palestra que proferi no Hospital das Clínicas em 1967, dizia: ‘Um ponto que me parece muito significativo nos experimentos de vanguarda, é o que se refere à palavra ‘coração’, que foi posta à margem. O coração passou a ser coisa velha, senão pejorativa. Pareceu-me interessante aludir a esta singularidade, perante os que me ouvem e num hospital que se impõe à admiração do mundo por sua especialidade na cirurgia cardíaca; o coração humano é aqui objeto da mais alta devoção científica. “Talvez o maior defeito da experiência estética de hoje, em assunto depoesia, seja esse: o de um esteticismo quase feroz, que proclama o desprezo ao ‘coração’, sob o pretexto de combater o que ele representou de excessivamente romântico.” Cassiano faz questão de defender o que ele chama de...
Autonomia do poema, do poema que se baste a si próprio. Cada forma de arte possui seu tipo característico, e assim também acontece com a poesia. Eu defendo a autonomia do poema, que só será poema na medida em que for adequadamente trabalhado para sê-lo. O poema não pode existir, em certos casos, por fatalidade da língua, como quer Ungaretti. “Que lugar ocupo na poesia? Um lugar particular. Busco uma forma para dizer as coisas, baseado em observações tiradas de uma realidade íntima do país de onde sou e onde vivo. Quando defendo para a minha arte o sentido de ‘mais Brasil dentro do Brasil’, não se trata de ufanismo, mas de perfeita consciência de participação diante do momento em que a arte deve influir, o que não existirá sem a atuação da sensibilidade do artista, termômetro de todas as épocas.” Agora, infelizmente, interrompemos o percurso de Cassiano; metade da fita chega ao fim. A última foto foi
batida; no adeus da câmera o sorriso agradecido do fotógrafo. Lourdes lembra Eduardo Portella, crítico a quem Cassiano devota grande admiração. Nós nos preocupamos com as possíveis falhas da mini “memória” cassete. Tudo pronto, e, a propósito, perguntamos sobre
Poema e produto industrial Ao que Cassiano responde: “Um poema (a arte, enfim) difere do produto industrializado na medida em que o produto industrial desgasta-se e é substituído por outro igual ou mais moderno. A arte é aquela que resiste ao tempo. “Vocês querem saber o que penso sobre
Poesia concreta e poesia praxis e eu posso dizer que considero tanto o concretismo como a praxis elementos de grande importância na investigação da problemática da poesia de hoje. Se não chegaram a criar uma poesia legítima, trouxeram uma rica contribuição para o complexo poético. Eles provocaram o debate de assuntos de alta importância, hoje objeto de todos os livros novos que tratam do mundo atual. A arte mudou muito e eles tiveram seu quinhão nesta mudança, não há dúvida nenhuma. Não aceitei as proposições concretistas e praxistas que contrariavam o ponto de vista que defendo: o poema pelo poema, ou seja, o poema constituído por elementos novos de composição, com elementos novos que o mundo de hoje nos oferece, sem cair no ‘objeto de palavras’ puramente fenomenológico. Eu conversei muito com o Mário Chamie [instaurador da praxis], e gosto muito de discutir com aqueles
IMEMORIAL Não fui quem sou, quando nasci. Nem sou quem sou, quando amo. Nem quando sofro. Porque coexisto. Porque a angústia é uma herança. Só me aproximo de mim mesmo quando fujo, atravesso a fronteira, ou me defendo, ou fico triste. Ou quando sinto a rosa secreta e quente da vergonha subir-me à face. O mar me bate à porta, como um grito da origem. Mas como descobrir a onda imemorial que me trouxe? Um Dia após o Outro (1947)
DEPOIS DE TUDO Mas tudo passou tão depressa Não consigo dormir agora. Nunca o silêncio gritou tanto Nas ruas da minha memória. Como agarrar líquido o tempo Que pelos vãos dos dedos flui? Meu coração é hoje um pássaro Pousado na árvore que eu fui. A Difícil Manhã (1960)
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Poema táctil? “Sim. Então o Ferreira Gullar fez um último poema intitulado ‘Palavra’, espécie de túmulo onde você deveria encontrar a palavra ou poesia — quer dizer, ele mesmo enterrou seu invento.” Da Avenida Paulista a impaciência do tráfego chega-nos ruidosa. São Paulo, maior centro nervoso do país, está mais nervoso que nunca. Sua agitação permanente parece a agonia de pássaros que estão presos ao solo, sem concessão para voar. Sem tempo para “exercícios de liberdade”. Com sonoplastia da grande “cidade mecânica/timpânica” segue embalada a conversa. Lourdes informa sobre o convite recebido por seu marido para conferência em Lisboa a respeito do Modernismo daqui e de lá. “Também os dois livros a serem lançados têm consumido quase todo o tempo do Cassiano.” Voltamos a provocar alguma coisa sobre sua posição autônoma, e o poeta diz que seu trabalho é “...um ‘objeto de palavras’ com um conteúdo humano e uma grande carga de O poeta com a esposa Maria de Lourdes, no Rio de Janeiro, em 1968
que procuram soluções novas para a questão da poesia. “No Rio de Janeiro, o Ferreira Gullar propôs o
Poema objeto,
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coisa muito curiosa. Ele queria que o poema fosse um objeto, mas um objeto que você pudesse tocar, de modo que você mexia num ponto qualquer da peça/poema e obtinha transformações. Esse processo de entropia, para mim, é negativo no campo da poesia, para um trabalho de criação.” Seria a procura do
Lirismo étnico-racial, que é o traço específico de nossa cultura. De modo que o poema que escrevo é diferente dos que os outros escrevem. Tenho uma compreensão própria do que seja poema. Escrevi um artigo n’O Estado de S. Paulo, intitulado “Autonomismo”, mostrando que não era concretista nem praxista, que lutava por uma forma independente, pelo poema como ‘ser’, como entidade autossuficiente, que não se confundisse com um objeto qualquer de palavras ou não palavras. “Nos últimos dez anos tenho estudado muito o que dizem escritores
de outros países; o caminho que estão tomando, mas procurando resguardar em meu poema o que ele possa ter de tipicamente brasileiro em face do mundo de hoje. No próprio ‘verde-amarelismo’ eu pugnava contra a posição dos ‘ismos’ estrangeiros: o expressionismo alemão, o dadaísmo francês, o futurismo italiano. O poema, para mim, tem que ser fundado na realidade humana de nossos dias, aqui, e tem que dar o devido apreço ao trabalho. Com trabalho e poesia o homem poderá criar um mundo melhor.” E como o poeta vê
O anúncio e o poema? “O anúncio é uma exigência feita ao olho; o poema uma exigência do olho. “O automatismo do século 20, a microfísica, a cibernética, teriam que atingir a sensibilidade do artista, a linguagem em que ele se exprime. Daí a palavra integrada no seu instante. Atomizada, por exemplo, de modo que possa, no mundo eletrônico, se partir, se fragmentar (gráfica e semanticamente) como ‘maravilha’ fragmentada em ‘mar’ ‘ave’ ‘ilha’. “O nosso olho quer não só ler, mas ‘intraler’ (inteligenciar).
O linossigno “Penso que o verso não atende mais à poesia de hoje. De minha parte, opero com o linossigno. Um poema constituído de linossignos tem que agradar quando apenas visto, como qualquer objeto que nos agrade primeiro aos olhos e que já sob esse aspecto preferimos por ser uma festa para os olhos do leitor. Entre vários objetos que examinamos num mostruário, adquiri-
mos o que mais nos encanta pelo seu todo uno e indivisível, pela sua apresentação exterior. É aqui que o linossigno diverge de outras experiências que tentaram, analogicamente, fazer do poema uma modalidade pictográfica, ou gráfico-fenomenológica, do ideograma chinês. Descabido querer transportar para uma língua como a nossa, que nada tem a ver com a chinesa. Esvaziar o poema de seu conteúdo semântico e metafórico, para reduzi-lo a um desenho apenas gráfico, não parece arte poética, mas já outra arte.” O entusiasmo de Cassiano é revigorado a cada assunto abordado, aos quais devota aguda observação. Tudo faz parte de seu privilegiado repertório informacional. Sobre tudo ele tem opinião de quem indaga em profundidade. Cassiano é dessas pessoas a quem sentimo-nos sempre agradecidos pela dedicação de toda uma vida voltada para a análise honesta dos problemas humanos. “O poeta tem uma grave missão social a cumprir. A poesia não pode dissociar-se do destino humano. Tem que refletir, sem dúvida, a nossa época, não só quanto à estrutura do mundo, mas também a respeito dos ideais de justiça e paz, de compreensão e amor, que tornem o nosso planeta mais belo e mais habitável. “Numa hora em que a ciência e a tecnologia ultrapassam o sensível e imaginável, criando o ‘poético absoluto’, o mínimo que cabe ao poeta é explicar o ‘desespero lúcido’ do homem da pré-guerra atômica em termo de emoção tranquila. “Dentro deste pensamento, que os experimentos novos se ampliem e abram novas veredas para o poema — eis quanto desejo”.
O penúltimo livro de poesia, publicado em 1964
De fardão da ABL, em 1937
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Pequeno perfil biográfico por Reinaldo Rodrigues de Sá
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GUITARRA Onde, em que país, estão minhas raízes? Onde terei deixado um pouco de quem sou? Onde — quando cismo — me doi o estar longe? Quando a dor que eu sinto é de algo há muito extinto? Dor, não em meu corpo, mas no chão de onde vim? Dor, não em meu ser, mas em meu retrato? E eis que a noite cai. É uma solução. Poemas Murais (1950)
assiano Ricardo Leite nasceu em São José dos Campos no dia 26 de julho de 1894,4 um dia antes do aniversário da cidade. O pai era Francisco Leite Machado, dono da Fazenda Santa Teresa, no bairro da Vargem Grande e a mãe Minervina Ricardo Leite, que além de boa cozinheira escrevia versos. O menino Cassiano cresceu no meio da natureza, pescando no rio Paraíba e no rio Buquira. Nas festas juninas comandava as crianças da fazenda e distribuía tarefas: uma pendurava as bandeirinhas, outra ajudava a montar a fogueira, outra ajudava na instalação dos fogos. A família Leite tinha casa na cidade, na Praça Cônego Lima e as brincadeiras aconteciam também ali: mãe-da-rua na praça, pique-esconde na Travessa João Dias, pega-pega na Rua 15 de Novembro. Era o começo do século 20.
O menino jornalista Quando fez 70 anos de idade, Cassiano Ricardo, já famoso, escreveu seu livro de memórias, Viagem no tempo e no espaço. No livro ele conta detalhes de sua infância e da adolescência. E lembra com saudades: “na fazenda aprendi a amar a terra com cheiro de chuva, muito cedo; e o meu 4. Acreditava-se até recentemente que o poeta nascera em 1893. Pesquisa de Amílton Maciel Monteiro comprovou que o ano de nascimento foi 1894.
gosto era ver as gotas de orvalho, de manhã, presas nas teias de aranha, nas cercas e árvores. Era molhar os pés na relva primaveril.” Cassiano gostava muito de escrever. Aos nove anos de idade, em 1904, estudando no Colégio Olympio Catão ele fez um jornalzinho chamado O Ideal, todo escrito com caneta bico-de-pena, que era o que se usava naquela época. O garoto distribuía o jornal de mão em mão. A vontade de escrever começou muito cedo. Dona Minervina, a mãe, escrevia poesia; o tio Manuel Ricardo era poeta e incentivava o sobrinho; o primo Zezinho Monteiro era jornalista e dono do jornal A Cidade . Crescendo nesse ambiente Cassiano Ricardo desenvolveu sua habilidade nas letras.
As maravilhas Imagine só: um menino de dez anos de idade, inteligente, vivendo entre a roça e a cidade, aprendendo sobre a natureza, ao vivo, brincando, convivendo com a família. Ao mesmo tempo conhecendo todas as novidades do começo do século 20: eletricidade, automóvel, o cinema, gramofones, vacina contra a raiva, avião. Os mais velhos tomavam um susto! Os mais novos ficavam encantados. Seria mais ou menos o que acontece hoje. Com as crianças convivendo com computador, celular, televisão de tela plana, ônibus espacial, DNA,
satélites de comunicação, internet. Naquele início do século vinte o garoto Cassiano Ricardo viveu as mudanças todas. Já adulto, o poeta colocou na sua poesia as muitas maravilhas que o acompanharam a vida toda.
Música de flauta Num poema famoso chamado “A flauta que me roubaram”, Cassiano Ricardo se recorda da cidade calma onde passou parte da infância. O poema começa: “Era em São José dos Campos...”, cidade de “pequenas ruas tortas”. Numa parte do texto o poeta lembra do vizinho que “acordava tranquilo, tocando flauta.” Esse instrumento musical está sempre presente nos poemas de Cassiano; a flauta lembra a poesia. Em outro poema ele fala no “vento tocando flauta numa flor”. E no seu último livro chamado Os Sobreviventes, Cassiano Ricardo fala de um sabiá que canta na laranjeira. O poeta pergunta ao pássaro: “és tu mesmo/ sabiá vespertino/ ou alguém que toca/ flauta/ em teu lugar/ para enganar/ o menino?” É o poeta lembrando, numa bela mensagem, a sua infância, os pássaros, os pés de fruta e o seu vizinho flautista.
Mudando de cidade Depois de terminar o antigo curso primário, Cassiano e a família foram morar em Jacareí, onde ele estudou no Ginásio Nogueira da Gama. Nessa escola ele aprendeu o Esperanto, que é um idioma inventado pelo médico polonês Ludwig Zamenhoff no século 19. Quando a gente presta atenção no jeito de o Cassiano escrever poesia
nota alguma coisa do Esperanto, por exemplo, quando ele brinca com as palavras. De Jacareí foram morar em São Paulo, onde o poeta começou o curso de Direito. Ali estudou durante três anos. Então aconteceram duas coisas: ele foi para o Rio de Janeiro terminar os estudos e publicou seu primeiro livro de poesia, chamado Dentro da Noite. Terminou o curso e voltou para São Paulo como advogado. Dois anos depois publicou o segundo livro, A
O poeta lê Estética Futurista enquanto se recupera de problemas de saúde, em 1926
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Ilustração de Tarsila do Amaral para um dos livros do autor
Frauta de Pã, que foi bastante elogiado pelos escritores famosos da época: Olavo Bilac, Martins Fontes, João do Rio e Francisca Júlia. Aos 25 anos de idade, o agora advogado foi morar com a família em Vacaria, Rio Grande do Sul, a convite de parentes. Durante quatro anos, Cassiano Ricardo trabalhou em sua nova profissão mas também escreveu no jornal Pátria, feito por ele.
Na academia
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Em 1923, com 28 anos de idade, Cassiano Ricardo voltou para São Paulo. Um ano antes – 1922 –, acontecera um movimento que veio a mudar a cultura no Brasil: a Semana de Arte Moderna. Todos os participantes queriam escrever, pintar, fazer música – fazer arte — de um jeito diferente, mais... moderno. Cassiano não concordava muito com eles e fez uma outra proposta chamada “Movimento Verde-Amarelo”. Aí a briga começou. De um lado, os modernistas, do outro os “verde-amarelos”. Os debates foram até publicados em jornais e não se falava em outra coisa. Mas, o tempo foi passando, as coisas sempre em movimento. Cassiano Ricardo casou-se com a poetisa Jacy Gomide e foi convidado para entrar na Academia Paulista de Letras. Durante as revoluções de 1930 e 1932, das quais participou, o poeta escreveu pouco. Em 1937, entrou para a Academia Brasileira de Letras, onde tomou posse no dia 28 de dezembro.
Naqueles anos, foi também próximo do presidente Getúlio Vargas — era o editor do jornal A Manhã, órgão oficial do governo.
Brincando com as palavras Cassiano Ricardo leu e escreveu muito. Os livros que ele leu e estudou estão, hoje, no Arquivo Público do Municipal de São José dos Campos, doados pela família. Desde 1915 até 1971 ele escreveu 23 livros de poesia. De 1928 a 1970 escreveu outros 12 livros em prosa, tratando de vários assuntos: história do Brasil, problemas brasileiros, memória, estudos sobre a obra de outros escritores e estudos sobre poesia. Ele gostava de brincar com as palavras. Dizia que o poeta deve trabalhar o poema, estudar bem o som das palavras. De tanto fazer experiências ele criou o termo “linossigno”, nome dado por ele às linhas do poema feitas sem a intenção de que sejam versos. Quando escrevia, pensava quase sempre no ser humano sofredor, nas pessoas sem nome. Chamava a atenção para a guerra e inventava criaturas mágicas nos seus poemas. Os livros de Cassiano Ricardo foram traduzidos em vários idiomas e publicados em diversos países: Itália, Holanda, Inglaterra, Hungria, Espanha, França. Aos 70 anos de idade o poeta lembra-se do menino que foi, um dia. Esse menino sempre volta nos poemas que ele escreveu: “tudo quanto tenho escrito se liga ao garoto que em mim, às vezes, já não sei por onde anda”. O poeta morreu no dia 15 de janeiro de 1974, aos 78 anos de idade. Seu corpo está enterrado no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.
Bibliografia de Cassiano Ricardo Obras poéticas Dentro da Noite (1915) A Frauta de Pan (1917) Jardim das Hespérides (1920) A Mentirosa de Olhos Verdes (1924) Vamos Caçar Papagaios (1926) Borrões de Verde e Amarelo (1927) Martim Cererê (1928) Deixa Estar, Jacaré (1931) Canções da Minha Ternura (1930) Marcha para Oeste (1940) O Sangue das Horas (1943) Um Dia Depois do Outro (1947) Poemas Murais (1950) A Face Perdida (1950) O Arranha-Céu de Vidro (1956) João Torto e a Fábula (1956) Poesias Completas (1957) Montanha Russa (1960) A Difícil Manhã (1960) Jeremias Sem-Chorar (1964) Os Sobreviventes (1971) Obras em prosa O Brasil no Original (1936) A Academia e a Poesia Moderna (1939) Marcha para Oeste (1940) A Poesia na Técnica do Romance (1953) O Tratado de Petrópolis (1954) O Homem Cordial (1959) Pequeno Ensaio de Bandeirologia (1959) 22 e a Poesia de Hoje (1962) Algumas Reflexões sobre a Poética de Vanguarda (1964) O Indianismo de Gonçalves Dias (1964) Poesia Praxis e 22 (1966) Viagem no Tempo e no Espaço (1970) Ensaios “O negro da bandeira” (1938), in Revista do Arquivo Municipal de São Paulo “Elogio de Paulo Setúbal” - Discurso de Posse na Academia Brasileira de Letras (1938) “Pedro Luís visto pelos modernos” (1939), in Revista da ABL “Pedro Luís, precursor de Castro Alves” (1939), in Revista da ABL
MOÇA TOMANDO CAFÉ Num salão de Paris a linda moça, de olhar gris, toma café. Moça feliz. Mas a moça não sabe, por quem é, que há um mar azul, antes da sua xícara de café; e que há um navio longo, antes do mar azul... E que, antes do navio longo, há uma terra do sul; e, antes da terra, um porto em contínuo vaivém, com guindastes roncando na boca do trem e botando letreiros nas costas do mar... E, antes do porto, um trem madrugador sobe-desce da serra, a gritar, sem parar, nas carretilhas que zunem de dor... E, antes da serra, está o relógio da estação... Tudo ofegante, como um coração que está sempre chegando, e palpitando assim. E, antes dessa estação, se estende o cafezal. E, antes do cafezal, está o homem, por fim, que derrubuou sozinha a floresta brutal. O homem sujo de terra, o lavrador que dorme rico, a plantação branca de flor, e acorda pobre, no outro dia (não faz mal...) com a geada negra, que queimou o cafezal. A riqueza é a noiva, que fazer? que promete e que falta sem querer... Chega a vestir-se assim, enfeitada de flor, na noite branca, que é o seu véu nupcial, mas vem o sol, queima-lhe o véu, e a conduz loucamente para o céu arrancando-a das mãos do lavrador. Quedê o sertão daqui? Lavrador derrubou. Quedê o lavrador? Está plantando café. Quedê o café? Moça bebeu. Mas a moça onde está? Está em Paris. Moça feliz. Martim Cererê (1928)
O SÓSIA Dificilmente, ó amigo, você me encontrará presente, em casa. Pois eu sofro de ausência, como se houvesse, em mim, uma asa. A esperança e a saudade — o leste e o oeste do meu corpo obscuro — são duas formas de eu nunca estar em casa, quando me procuram, e eu mesmo me procuro. Vivo continuamente longe de mim, nas horas em que me decomponho num sonho; estou no outro hemisfério, que é um não sei onde, onde só ausência lavra. Só me encontro comigo, ó amigo, se me divido em dois, diante do espelho Um em frente do outro, sem nenhuma palavra. A Face Perdida (1950) Cassiano Ricardo - 120 anos • Caderno editado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo • Todos os poemas são de autoria de Cassiano Ricardo • Imagens cedidas pelo Arquivo Público do Município • Tiragem: 3 mil exemplares • São José dos Campos outubro/2014