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João Paulo Cuenca

Literatura e resistência, para uma história do possível

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João Nuno Azambuja nasceu em Braga, em 1974, e é licenciado em História e Ciências Sociais. Participou, por sua iniciativa, em diversas explorações arqueológicas pelo país ao longo de vários anos. Militou, mais tarde, nas tropas paraquedistas como comandante de pelotão, após um breve período como professor de História. Regressado à vida civil, dedicou-se à escrita e fundou, em Braga, um bar de inspiração celta, onde se realizaram concertos memoráveis das melhores bandas ibéricas desse género musical. O seu primeiro romance, Era Uma Vez Um Homem, ganhou o Prémio Literário UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) em 2016. Após o sucesso de Os Provocadores de Naufrágios, surge o seu terceiro romance, Autópsia.

Texto: João Nuno Azambuja

Ocaso do escritor brasileiro João Paulo Cuenca, perseguido pela teocracia brasileira por causa de uma frase considerada ofensiva, é paradigmático dos nossos tempos. Um relatório divulgado recentemente pela associação britânica Artigo 19 mostra que a liberdade de expressão a nível global está em declínio. Aquilo que todos pensávamos que era uma conquista progressiva revela agora um comportamento regressivo. É perante estas ameaças que todos nós — e a literatura em particular, como parte importante das manifestações do ser humano — temos de resistir. A pandemia do novo coronavírus constitui mais um motivo de luta, porque o neoliberalismo se aproveita desta doença para mais uma ofensiva contra a liberdade, fomentando a doutrinação dos indivíduos pelo medo e pela intimação, no sentido de cada um se controlar a si mesmo, servindo o esforço catequista dos governos.

João Nuno Azambuja

Nietzsche tem uma bela frase que diz: «O que é a felicidade? É o sentimento de que uma resistência foi vencida». O que se nos opõe, o que se apresenta contra nós, excita-nos a vontade de lutar, de nos sentirmos vivos, de combater a opressão. A vida, assim como o ato privado de escrever, como exteriorização da nossa força, é superação.

Há quem diga que não estamos num momento de fazer arte pela arte, considerando a opção meramente estética do artista, porque para contrariarmos as tendências impositivas temos de as denunciar abertamente nas nossas manifestações; mas eu considero que a arte pela arte é uma das realizações supremas da liberdade, e ao exercê-la estamos a demonstrar a nossa vontade de ser livres, contra essas mesmas tendências niveladoras do pensamento que pretendem eliminar a espontaneidade.

Por aqui vemos a importância resistente da literatura, que é caminho aberto, tendo o poder de falar de tudo, o que para muita gente é incómodo. Não há nada que esteja fora do seu âmbito, e a linguagem poética é a expressão mais pura desta liberdade. É emoção.

Os escritores dizem verdades dolorosas, porque esmiúçam, aventuram-se em todos os domínios da vida. Sara Jona, na Feira do Livro de Maputo, disse algo contra a corrente: afirmou que o contacto físico é essencial, é inerente à nossa condição de seres humanos. Nós agora estamos perante uma pandemia que nos dificulta o contacto, até é proibido, e eu desejo que ninguém desaprenda o gesto de dar a mão, de estar presente, de vencer a ameaça de uma doença menos castradora do que a desinformação.

Paulina Chiziane dá-nos um exemplo de resistência. Resiste a considerar-se romancista, por não querer obedecer às normas europeias do romance. É como se algo do colonialismo persistisse e ela sinta que deve ser afastado.

Veja-se o exemplo da Bolívia, país mergulhado em desavenças políticas. A população indígena deste país ainda hoje é marginalizada pelos descendentes dos europeus que lá vivem. Poderá essa população dizer que o colonialismo acabou? É muitas vezes a literatura que nos lembra que eles existem e são discriminados.

Paulina Chiziane disse certa vez que o mundo é uma morada de loucos. O escritor talvez seja verdadeiramente louco, por pretender encontrar, na sua ficção que espelha a realidade, o papel do ser humano neste mundo. Vivemos dentro de um livro de Kafka à procura da saída.

É perante estas ameaças que todos nós — e a literatura em particular, como parte importante das manifestações do ser humano — temos de resistir

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