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A literatura é o palco de criação de mundos alternativos - Ana Mafalda Leite

A literatura é o palco de criação de mundos alternativos*

Poeta, ensaísta e crítica literária, com Doutoramento em Literaturas Africanas, sua área principal de investigação. Nasceu em Portugal, mas cresceu e fez os primeiros estudos universitários na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, Moçambique. É Professora Associada com Agregação da Universidade de Lisboa, pesquisadora do ISEG do CEsA, com bolsa da FCT.

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Texto: Ana Mafalda Leite

Ana Mafalda Leite

Gostaria de começar com um agradecimento muito especial ao Conselho Municipal de Maputo e aos Organizadores desta Feira do Livro pelo convite para participar neste evento, pela primeira vez, transmitido e partilhado digitalmente. Uma partilha em directo que nos deu a oportunidade também de assistir à festa em honra de Paulina Chiziane, escritora merecidamente homenageada por esta edição da Feira do Livro de Maputo. Repensar a criação literária em tempos de Pandemia é o tema geral que orientou esta reunião de artistas, livros, adultos e crianças, lançamentos, reflexões. Literatura e Resistência, Para uma História do possível é o tema da mesa em que participei e saliento a outra presenta feminina na mesa, a da escritora Cri Essência. Gostaria de dizer que a minha intervenção se orientou entre a palavra de escritora e a de professora e crítica. A primeira parte do título temático da mesa Literatura e Resistência remete de imediato para as significações da palavra Resistência. Carregada de sentidos

predominantemente ideológicos esta palavra afirma-se como uma atitude perante a opressão, a ameaça social e individual, o status quo, o caos, o medo, a morte. Por outro lado, a palavra Literatura enquanto criação é uma das respostas à opressão, à violência, ao medo, isto porque a literatura é o palco de criação de mundos alternativos. Assim a Resistência é simultaneamente social e existencial e enquanto palavra associada ao termo Literatura pode ser também pensada como representando o acto de nascimento de todas as literaturas africanas, e refiro aqui em especial o nascimento e afirmação da literatura moçambicana. Expliquemos: a resistência a uma experiência colonial numa primeira fase, a resistência a uma guerra civil numa segunda fase, a resistência criativa das gerações mais jovens, em tempo de paz e de novos conflitos regionais e mundiais, aos desafios entre modernidade e tradição, integrando inovadoramente a construção de novas utopias e de criação de sinergias. A resistência na literatura moçambicana é também à opressão de género, de classe, de estatuto social, enquanto afirmação da palavra literária para todos e em todas as áreas temáticas, para as crianças, com a literatura infanto-juvenil, com a abertura à ficção científica e à policial para os que desejam aventurar-se em espaços da imaginação, à ficção histórica, reinventando criticamente passados culturais e históricos. Por outro lado com a expansão da ficção, que explora outros espaços geográficos, a norte, centro e litoral do país, e também às geografias das diásporas, verificamos uma resistência ao localismo e uma abertura à mobilidade dos imaginários regionais e transnacionais da literatura moçambicana. Com as diversas formas de fazer poesia, comprometida e amorosa, ou a que medita sobre as suas formas, bem como com o surgimento das vertentes do ensaio literário, filosófico, religioso, antropológico, a literatura, julgo poder afirmar, enquanto acto de resistência, é sem dúvida uma contínua meditação sobre os fenómenos culturais da contemporaneidade em Moçambique. Esta resistência como abertura mostra também que a poesia não tem fronteiras e o seu espaço, nem utópico, nem tópico, mas antes atópico, se coloca fora do espaço situável, e por isso faz sobressair a sua materialidade de escrita, o desejo de partilhas e projectos culturais e literários conjugados. Hoje mais do que nunca, por via da internet e das plataformas digitais, as fronteiras são móveis. Mas basta olharmos para uma colecção de selos dos anos sessenta ou do início do século XXI; as quedas dos muros e sua construção, que alegoricamente uma série como a Guerra dos Tronos também evoca, os atlas e mapas mostram-nos a movências fronteiriças, as alterações dos espaços. As fronteiras são assim marcas e desenhos em mutação pela História e pela política, desfazendo impérios, reconstruindo identidades, repondo e pulverizando espaços terrestres. Enquanto linha divisória, o fronteiro é o que fica defronte, e assimila a divisão com a junção. Por isso podemos afirmar: a fronteira é muito poética. É um espaço eminentemente poético porque conjuga todas as oposições, revolucionando e conflituando. A movência é assim uma característica da própria linguagem poética. Os criadores e poetas, caminham avessos a qualquer fronteira muito definida: linguística, sintáctica, de significação, de género, de imposição, de poder. Oscilam entre uma palavra profética de aúgure e o dom da transformação do sonho em sonoridades extensas. Transformam a água em vinho, e saúdam a alegria como o Rubayat de Omar Khayyam. Não há fronteiras entre a água e o vinho, a terra e o mar, o tempo e o espaço. A página branca percorrida pela tinta da escrita desnivela e transforma qualquer fronteira em espaço de transmutação. Assim, vários tipos de especificidades fronteiriças - nacional, pessoal, racial, de género (nas duas acepções) - tendem a ser dissolvidos na literatura, como acontece nos textos migrantes, sem território fixo, que exibem uma intensa porosidade de fronteiras, em diálogo multidisciplinar com diversas artes e linguagens, problematizando, dessa forma, o próprio espaço de criação literária e colocando em questão a ideia de pertencimento, especificidade e autonomia artística. Parece-me ser esta também umas das formas de resistência do tempo presente da mais recente literatura moçambicana, que expande como diria o poeta sírio-libanês Adonis “O arco-íris do instante”. Diz o poeta: “Embora seja solicitado pela busca do sentido, ou de um sentido, adivinho que a minha identidade não se estabelece no que é estável, mas no que se move. Sinto que estou do lado do vento e da vaga.” Nos dias que correm cada vez menor é a estabilidade entre os indivíduos que estão em constante deslocamento, sentindo-se “desalojados” em toda parte. O ponto de partida da reflexão é o movimento, como nova condição de nosso imaginário humano. Diríamos que, paradoxalmente, a pandemia acelerou esse movimento em termos digitais e imaginários. Os deslocamentos podem ser a chance inesperada de uma nova definição do homem, que não se reconhece apenas no território que ocupa, mas no espaço-tempo que ele liberta pela palavra, e pelas imagens, fora das fronteiras, em zonas francas da imaginação. Trata-se de um deslocamento de natureza ontológica e simbólica: deslocamento do sentido e do ser, na experiência da alteridade, que retrata fragmentariamente o mundo nómada e ambulante em que vivemos, de refugiados, de populações migrantes, que tenta escapar da morte, da miséria, da ausência de chão. E os mediterrâneos podem ser índicos, nas cidades e vilas violentadas do norte, cuja movência sobressaltada vem habitar o coração dos poetas. A Literatura moçambicana, em especial para as mais jovens gerações, parece-me também ser um campo literário de inovação, espaço de resistência, de recriação e de reescrita das formas mais antigas, necessariamente fundadoras da ideia de nação. Após o gesto inaugural no início do século XXI do escritor Rogério Manjate ao criar a primeira revista literária digital, MaderaZinco, no campo literário e cultural moçambicano assistimos hoje à proliferação de muitas novas pequenas editoras (algumas digitais), a blogs, sites, clubes de leitura em diferentes pontos do país (Clube de Leitura de Angoche, animado pelo poeta Lino Mukurruza é um exemplo entre vários), a diversas Associações Culturais, como exemplarmente o caso de Xitende, e a um número crescente de potenciais autores que ambicionam o conhecimento, a escrita, o projecto literário (cite-se neste quadro o Projecto em plataforma whatsapp Tindzila). Curiosamente também o cenário de multiplicação editorial parece ter crescido durante o tempo da Pandemia, e simultaneamente fomos assistindo à publicação virtual de diversas antologias

Cri Essencia

e livros, à criação de espaços de reflexão sobre a Literatura e outras artes, na AEMO, na Revista Literatas, nos Centros Culturais do país, como por exemplo o Português, o Brasileiro, o Francês e o Alemão, na Fundação Fernando Leite Couto, alguns exemplos entre várias instituições culturais que têm quotidiana ou semanalmente animado a discussão e apresentação de espectáculos e lançamentos virtuais. Um outro exemplo desta animação reflexiva sobre a literatura, enquanto instituição, é a recentemente criada a Festa da Literatura de Língua Portuguesa, Templos de Escrita, em que um dos curadores, Amosse Mucavele, é moçambicano; o evento que vem religando escritores, editores, professores, no espaço dos diferentes países de língua portuguesa, num esforço conjugado de criação de pontes, revela-se um espaço de troca intelectual e criativa. De forma aparentemente contraditória a Pandemia, ao mesmo tempo que nos afastou temerosamente para as nossas casas, criando distanciamento social em todas as áreas criativas, afectou também muito particularmente todo o mercado criativo, que não cessa, contudo, de reagir alternativamente, criando mobilidades inesperadas pela internet, formas de aproximar e juntar artistas e escritores, local e globalmente, criando publicações conjuntas, obras e projectos variados numa permuta diversificada. Muito autores por seu turno aproveitaram essa vivência conventual para escreverem novas obras e refletirem no gesto criativo como desobediência ou insurgência vital perante a ameaça da morte. Resistência. E fizeram-no em obras colectivas, irmanando-se em resistência e criação de uma história do possível no presente histórico. Também o apelo à leitura cresceu, em parte pelo isolamento, em parte como forma criativa, mostrando paradoxalmente que ser leitor é gostar de partir, de viajar, conhecer mundos, mesmo que seja no mais recôndito lugar, aquele que nos habita e habitamos. A leitura exige migração com retorno rápido ou sem retorno, exige tempo para uma viagem sem bagagem, à boleia do livro. As práticas de leitura dramatizada e de apresentações de livros nas diferentes plataformas digitais (youtube, instagram, facebook) foram recursos encontrados como formas de resistência ao isolamento, para a partilha de leitura e de escrita. Nunca estivemos tão imóveis e tão acelerados, tão separados e tão próximos, pura ironia! E penso que esta é uma resultante da Literatura enquanto Resistência. Hoje já não apanhamos um avião para estarmos presentes numa feira do livro, para irmos falar a uma universidade estrangeira, para partilhar conhecimento, para registar o lançamento de um novo livro. A experiência da Pandemia traz-nos uma outra história, a do Possível: estarmos presentes à velocidade da internet em qualquer espaço do planeta, deslocarmo-nos nos nossos imaginários, partilharmos escrita, anseios, alegrias, dúvidas, perplexidades. Partilharmos Literatura, mercado editorial, festa literária. A criação de estórias, poemas, filosofias, nasce neste nosso mundo actual - que dinamiza o local com o global – como um lugar de resistência e de mobilidades imprevistas, trocas e partilhas. O facto de esta Feira ser organizada digitalmente é um sinal dessa resistência como abertura e partilha. Com efeito, a organização virtual desta Feira de Maputo é mais um excelente exemplo da Resistência da Literatura e da constituição no presente histórico desta História do Possível. Felicito vivamente a coragem inovadora dos organizadores e agradeço a honra do convite em fazer parte do evento.

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