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Brincar: ler e transformar o mundo - Alda Moreira

Alda Moreira

Brincar: ler e transformar o mundo

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Nasceu no Porto no século passado. Cria e desenvolve projectos de educação, participação social, património cultural e natural em cinco continentes, numa união que se chama UCCLA. Trabalhou anteriormente no Teatro, edições e cinema - Artistas Unidos.

Texto: Alda Moreira

Os futuros ex-pequenos leitores são agora grandes em imaginação, curiosidade pelo mundo, vontade de brincar e aprender.

Os adultos dizem demasiadas vezes às crianças: quietos, calados, cada um no seu lugar, sem brincar! - e assim tentam ensinar, com um enorme desperdício do potencial de aprendizagem das crianças, silenciando a capacidade natural que toda a criança do mundo possui para aprender: questionando, experimentando, imaginando, sendo curiosa pelo mundo, aprendendo com outras pessoas e brincando.

E nós adultos, distraídos que estamos, tentamos encaixar a criança numa qualquer ordem convencional - ver a criança como um erro a ser corrigido, como alguém incapaz.

Os adultos de referência da criança - na família, na escola, na biblioteca constroem ou destroem tantas capacidades. A sua ação é memorável e marcante em toda a nossa vida futura.

No entanto a criança conserva conhecimentos que nós já perdemos: na sua relação com a natureza, descobrindo profunda e conscientemente o mundo em redor, com permeáveis fronteiras entre imaginação e realidade. Esse conhecimento deve ser reconhecido e protegido.

Cada criança, quando entra pela primeira vez na escola ou na biblioteca tem já um imenso conhecimento e cultura que deve ser escutado e respeitado para que possamos construir aprendizagens significativas, não violentas e próximas da cultura e da língua de cada um. Compreender o que nos é dito, conseguir expressar um pensamento – se isto nos é

Aluno da Escola Sec. da Lhanguene

vedado na aprendizagem, como vamos aprender a escrever e a ler?

DESENVOLVER A ORALIDADE

Primeiro, e sempre, desenvolver a oralidade e o conto oral.

A zebra nasce zebra, o leão nasce leão, o elefante nasce elefante. O ser humano é ser humano porque há outros seres humanos.

Como na filosofia africana ubuntu: “eu sou porque nós somos” ou “ser-com-osoutros”, a construção do ser humano e da humanidade não existe sem a aprendizagem cultural, que na sua base e fundamento tem a LINGUAGEM. Ninguém aprende a falar sozinho.

A linguagem é o que permite humanizarmo-nos. Escutar alguém, falar com alguém é tratar alguém como pessoa, como semelhante, sem o diminuir ou oprimir.

A construção do ser humano começa quando nos sentamos em roda e ouvimos histórias. Essa narração constrói-nos e é um prazer.

No mundo atual, repleto de voragens – de vidas humanas diminuídas e destituídas de direitos, da predação e da catástrofe ambiental e climática, sem tempo e cada vez mais sozinhos, onde

Construir, escolher as nossas palavras e textos - a nossa própria narrativa, constrói a cidadania.

a imagem, o espetáculo, a desigualdade e o lucro dominam – persistir, contar histórias é um enorme desafio.

Existir um tempo, um espaço de recolhimento e partilha, um espaço e um tempo emocional, inteligente em que nos sentamos com as crianças da nossa casa, da nossa rua, da nossa escola e não fazemos nada: apenas nos sentimos, ouvimos e vemos com atenção e… contamos histórias.

Dizem que a roda já foi inventada, que o fogo também. Mas temos de inventar de novo, todos os dias, estas rodas e estas centelhas de estímulos intelectuais, de carinho, de alegria e de aceitação - sim, porque faz falta ainda, em todos os lugares, aceitar verdadeiramente a criança.

AS PALAVRAS SÃO O CORPO DO PENSAMENTO

Valorizar as histórias que as crianças inventam e escrevem, para lá do crivo do erro, é abrir a porta ao gosto pela leitura, a um diálogo profundo com os livros. Também com os que podemos criar.

Construir, escolher as nossas palavras e textos - a nossa própria narrativa, constrói a cidadania.

Aprender e aperfeiçoar a escrita, fazêlo com gosto, motivando para uma ação que não seja penosa – expressar, superar, escrever, escrever: textos curtos, notas diárias, cartas, descrições de lugares e de horas do dia preferidas, notícias, o som da escola, o que fizemos de manhã, conversas que ouvimos no chapa, a capulana que mais gostamos e o que fazemos com ela, uma pergunta que nunca vimos respondida, autobiografias criativas, a árvore maior que conhecemos, a avó, uma recordação de quando éramos

Grupo Descendentes da Poesia, Shélsia Chiul e N’ wantshukunyani Khanyisani

mais pequenos, …

Fica para a vida: compreender, escolher palavras, reescrever, treinar, voltar atrás e escrever melhor, vencendo o “não sou capaz” e o medo do castigo, da avaliação cega que só realça o erro e tenta uniformizar “estilos”.

LER NÃO SERVE PARA NADA, SÓ PARA SERMOS LIVRES

Leitura lúdica, coletiva, descolarizada – mexer nos livros mesmo quando ainda não sei ler, familiarizar-me com os livros e a leitura, querer participar, apropriar-me desta alegria, explorar o funcionamento da língua.

Ler desenvolve a linguagem, o pensamento crítico, a cognição, as relações afetivas, a cidadania… inventar livros de qualidade que possam celebrar, reconhecer e também representar e legitimar as histórias do povo, as diversas culturas e memórias, a diversidade, autoria e criação contemporânea.

Os livros, a leitura estão ainda muito afastadas do quotidiano (em qualquer classe social, mesmo entre aqueles que podem comprar livros).

Se o acesso ao livro não começa em casa pode começar na escola, na biblioteca, na rua.

Provocar o encontro entre pessoas e livros – levar crianças a livros, levar livros a crianças, construir essa relação de mediação, provocando esse maravilhamento, essa descoberta.

Para isso: conhecer bem os livros e as suas múltiplas possibilidades criativas e críticas, preparar o ambiente: caloroso, seguro e amigo, em roda para nos sentirmos, vermos e ouvirmos melhor, descontraído e atento, o ritual do encontro (entre pessoas e livros), contar e conversar sempre no fim – fazer perguntas, estimular o diálogo, sem certo nem errado, sem ditar a “moral da história”, podendo expressar, analisar, relacionar, resumir e assim, pela nossa voz, aprender melhor acerca do que ouvimos. Também com os outros na pluralidade de ideias.

Dar um sentido individual e coletivo ao que estamos a fazer.

Persistir, pensar, refletir, construir coletivamente, apesar de todos os obstáculos, esta rotina feliz.

Animação de leitura

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