Realização: Apoio: VOL. 2 | nº 2 Março de 2019 Suplemento Gratuito ISSN 2596-1373
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
João Dummar Neto presidência
CHAPULETADAS
Os símbolos da resistência poética de Dércio Braúna
Lia Leite
RADIADORA
Zélia Sales
Bernivaldo Carneiro
Kah Dantas
Carlos Vazconcelos
Ricardo Kelmer
Léo Prudêncio
Rosa Morena
Dércio Braúna
Lia Sanders
Frederico Régis
Bruno Paulino
Nina Rizzi
Ângela Escudeiro
Nirton Venâncio
FLORES DE AÇUCENA
Quintino Cunha
Franklin Nascimento
05 10
GENTE ILUSTRADA
Klévisson Viana
CRÔNICAS
Educados para Ler Ana Miranda
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CRISTALEIRA
06 14
Francisco Carvalho: o poeta das coisas como as coisas não são
Carlos Carvalho 22
MALA DE ROMANCES
Aprendeu andar de moto, mas não sabia parar
Arievaldo Vianna e Jota Batista
TIRAGOSTOS
J.J. Marreiro
Raymundo Netto Daniel Brandão
Lene Chaves
Artista da capa Guabiras
André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira
Raymundo Netto gestão de projetos
Emanuela Fernandes análise de projetos
MARACAJÁ
Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral
Emanuela Fernandes assistência editorial
José Alberto Lovetro (JAL), Ana Miranda, Lia Leite, Carlos Carvalho, Daniel Brandão, Raymundo Netto, Lene Chaves, J.J. Marreiro e Klévisson Viana colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”)
Guabiras ilustrações
Amaurício Cortez editor de design
Giselle Fernandes projeto gráfico e editoração eletrônica
Karlson Gracie tipografia Maracajá
revistamaracaja@gmail.com contato
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores.
Este suplemento literário mensal é parte integrante do Projeto Maracajá: Vida & Arte, em decorrência do Contrato de Patrocínio celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, sob o nº 69/2018.
ISSN 2596-1373
Todos os direitos desta edição reservados à:
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Troféu HQMIX passou dos trinta Spes Unica!
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Maracajá, a publicação modernista, suplemento literário do O POVO, vai circular amanhã.
Jornal O POVO* nº 356, Ano II, página 1, Fortaleza, Ceará, 6 de abril de 1929 Deve circular amanhã Maracajá. É um suplemento literário do O POVO.
Maracajá é propaganda do nosso valor mental modernista. É publicação feita para outros centros, onde a cultura intelectual e a leitura da plateia tenham passado das baladas de Rostand. Ou mais: dos romances de Camilo com os seus estudos de genealogia.
Como se vê, Maracajá saiu antes do tempo, para o Ceará.
Por isto mesmo, aconselhamos que não a comprem: nem o menino entusiasta do cowboy, nem a melindrosa, nem o almofadinha, nem o velho viciado da francesinha.
Entretanto, se algum mortal quiser se arriscar, leia Maracajá
Mas, se vier ao leitor o arrependimento, ponha-o na cesta de suas tolices. A redação de Maracajá não é culpada.
[...]
É muita tripa por um vintém.
Outra cousa: devido à grande remessa de Maracajá, feita hoje, para o Sul e para o Norte, talvez as centenas que ficaram para Fortaleza não cheguem para ser vendidas na rua. Quem souber ler deve procurar Maracajá nas agências de jornais. Quem não souber ler não gaste o seu cruzado com a revista.
Maracajá não é para todo mundo, não.
(*) Na época o jornal O POVO era composto de 8 páginas. Localizava-se na rua Barão do Rio Branco, 239. O diretor era Demócrito Rocha e Paulo Sarasate seu redator-secretário.
oje, nós podemos dizer – graças à invenção estapafúrdia e impensável em outros tempos: a internet – que a Maracajá é, sim, PARA TODO MUNDO!
Você, leitor(a), tem em suas mãos o segundo número dessa ousada publicação que não sofre de Alzheimer e, portanto, tem boa memória, sendo capaz de lembrar-se e de reconhecer a todos: dos mais longevos aos talentos contemporâneos.
Nesta edição, continuamos a abrir a Cristaleira afetiva, por Carlos Carvalho, trazendo à luz outro poeta: Francisco Carvalho, que, como outros autores cearenses, mesmo com elevada qualidade literária, pela falta de um mercado editorial atento, tem a sua obra acolhida apenas em livros publicados em vida. Há quem jure de pés juntos: quem morre por aqui, corre o risco de morrer “de com força”. Daí, já prenunciava o Carvalho: “Quando os poetas morrem/os seus versos os acompanham.//[...] Quando os poetas morrem/ as suas almas fecham todas as portas/ e as metáforas se calam.”
Também nessa edição, a participação da escritora Ana Miranda e de José Alberto Lovetro (JAL). O microfone aberto de nossa Radiadora está tinindo e, aqui, outros mimos aos, esperamos, fiéis leitores.
Não nos esqueçam e não se esqueçam de compartilhar o nosso sítio eletrônico e lancem a Maracajá (revista e videoentrevista) ao mundo: fdr.org.br/maracaja
Raymundo Netto Curador e Editor
3 Do Alpendre
Troféu Hqmix passou dos trinta
izem que quando um evento passa dos cinco anos já está em bom caminho para continuar por pelo menos mais uma década. Passamos em 2018 dos 30 anos e chegamos agora aos 31 com o reconhecimento dos profissionais da área e da mídia, em geral. Não foi uma fácil caminhada por esse tempo todo não fosse o apoio de instituições como o Sesc, em particular o Sesc Pompeia, que possibilitou a grandiosidade de enaltecer autores, editores e profissionais desse importante segmento da cultura no Brasil.
Nesses 30 anos, foram 1.271 troféus entregues aos vencedores por uma votação nacional entre os próprios autores, editores e pesquisadores da área dos quadrinhos. Nesse período houve muitas mudanças acompanhando o movimento dinâmico do mercado editorial. Foi o primeiro troféu no mundo a reconhecer os trabalhos universitários de pesquisa e a premiar publicações digitais. Isso, além de mudar, a cada ano, a estatueta onde homenageia um personagem brasileiro de destaque na história de nossa produção, desde Angelo Agostini com o seu “As Aventuras de Nhô Quim” de 30 de janeiro de 1869.
A importância de haver uma premiação anual no Brasil não é apenas para valorizar o trabalho de milhares de artistas, mas também pela força na linguagem popular. São cerca de 20 milhões de leitores de quadrinhos ativos no Brasil, considerando que quase toda a população do país já leu algum gibi na infância ou em algum momento na vida.
Serginho Groisman, nosso padrinho desde o nascimento do evento em seu programa TV MIX 4, na TV Gazeta (SP), nos anos de 1980, todos os que participaram até hoje da Comissão Organizadora e os jurados especializados nos levaram a esses mais de 30 anos de amor à causa dos quadrinhos. Valeu a pena e sempre estaremos tentando aprimorar mais e mais o nosso Troféu HQMIX.
Um agradecimento a todos que entenderam que não importa quem vença ou quem perde, o que importa é mostrarmos para todos e para a mídia que existimos, que somos muitos profissionais e que produzimos quadrinhos da melhor qualidade.
José Alberto Lovetro (JAL)
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Artigo
Flores de Açucena
Spes Unica!
Morto, dentro da fria sepultura, Sem te poder falar?
E tu que me amas, boa criatura, Indo me visitar...
Banhada de suspiros, de soluços, Desmaiada, talvez...
Muita vez reclinada, até de bruços, Na altura dos meus pés...
Pedindo a Deus o meu viver eterno Junto das glórias suas;
Que me livre das penas do inferno, E a chorar continuas,
Lembrando nossa vida, a todo instante, Repassada de dor...
A lembrar-te que fui o teu amante — O teu único amor!
Mal pensando na horrífica caveira, Em que me transformei, Exausto de fadiga, de canseira, Imaginar não sei...
Para evitar essa hora amargurada, Esse quadro de dor, tão verdadeiro, Deus há de ser servido, minha amada, Que tu morras primeiro!...
Quintino Cunha
Verve Cearense, de Renato Sóldon, Rio de Janeiro, 1969
Cabaret
Quando eu cheguei no salão sonoro, Aparatoso, à noveau-riche, A orquestra ria um riso violento de cascata: Caracolava um maxixe.
E homens vestidos de piche, E mulheres com vestígios de vestes sobre si, Pulavam no soalho de borracha. (Ainda há pouco pisavam sobre brasas Em charlestonizações epiléticas de cabritos monteses...)
Elas tinham olheiras fumarentas, Olheiras de tardes londrinas E olhos de polimento...
Franklin Nascimento
O Canto Novo da Raça, 1927
Educados para Ler
ui uma adolescente rebelde, sofria com a falta de liberdade que a ditadura impunha a minha vida e a todo o país. Participei da luta dos estudantes em Brasília, recordo os comícios relâmpagos, as palavras de ordem, as reuniões secretas, os olhos que ardiam e derramavam lágrimas ao sentirem gases, as noites sem lua passadas em alguma pequena sala a rodarmos num mimeógrafo as nossas ideias escritas com entusiasmo e fervor. Lembro de juntar-me a colegas de escola diante de alguma instituição para gritarmos que fossem embora os “gringos”, considerados nossos inimigos. Por uma ironia da vida, talvez uma lição, meus netos nasceram nos Estados Unidos.
Dessa forma, passei a viajar todos os anos a aquele país, e passei a amar a cidade dos meus netos. Eles nasceram em Los Angeles, na Califórnia, um dos estados americanos que mais se parecem com o Brasil, talvez pela forte influência latina dos mexicanos que ali residem, numa terra que já foi mexicana, talvez pelo cosmopolitismo que se expressa numa convivência amigável entre nacionalidades e línguas. Mesmo com as experiências de minha adolescência, pude reconhecer aspectos formidáveis nessa sociedade que se guia pelo direito à liberdade. Um desses aspectos é a educação oferecida pelas
escolas públicas, na cidade onde residem os meus netos, Santa Mônica, encostada a Los Angeles.
E um dos aspectos que mais me encantam na educação das crianças é o valor dado à leitura. Em todas as salas de aula há uma estante de livros, e quando as crianças chegam, antes do início das atividades, elas sentam num tapete com almofadas, pegam algum livro na estante e o leem, ou, quando ainda não sabem ler, passam as suas páginas, olhando as imagens e as letras. A professora senta com os alunos, lê o texto, aponta as figuras, comenta, e participam todos de alguma forma de leitura. Dessa maneira, as crianças aprendem desde pequenas o que é um livro, sabem reconhecê-lo, sabem o que existe dentro dele, tomam intimidade com ele, adquirem o hábito e experimentam a sua convivência prazerosa. Por diversas vezes vi um de meus netos tomar distraidamente um de meus livros e passar as páginas, mesmo sem compreender as palavras em outra língua ali contidas.
Nas escolas há inúmeras atividades relacionadas aos livros, como feiras, quando livrarias se instalam por alguns dias dentro da sala, e os pais são sempre chamados a participar, a
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comprar, a doar exemplares, o que estende a eles o interesse e a convivência com os livros. Também são chamados a ler para os filhos pequenos, e a preencher entrevistas sobre a leitura realizada pelas crianças, anotando suas observações, e isso os leva a também lerem os livros indicados a seus filhos. Claro, em todas as escolas há uma biblioteca e as crianças são levadas a frequentá-la para emprestar livros ou para o silencioso ambiente de leitura.
Durante as férias as crianças devem ler. Lembro que meus netos, bem pequenos, traziam livros de quatrocentas, seiscentas páginas para serem lidas nos dias de férias, e precisávamos planejar o tempo e negociar, entre piscina, praia, jogos e leitura. Além dos livros de leitura obrigatória, temas de perguntas posteriores, meus netos traziam um livro para a leitura de prazer, mas que também eram depois comentados em sala, ou em formulários. Aos poucos os alunos iam sendo ensinados a escrever pequenos ensaios sobre os livros lidos, textos que eles chamam de projetos.
Observei que naquele país há um imenso valor dado aos “tijolões”, como aqui chamamos os livros com mais de quatrocentas páginas. Imagino que isso tenha uma origem religiosa, os protestantes cultivam o amor pela Bíblia, e a Bíblia é o modelo de livro para eles. Esse amor pelo livro os leva a darem forma de livro a todas as publicações em que isso seja possível. Certa vez vi um livro
de meus netos e comentei como era diferente aquele livro, com quase apenas ilustrações, e eles se surpreenderam de eu achar que era um livro. “Isto é um gibi, vovó”, disseram. O gibi deles tem o formato de livro, com lombada, capa dura e volume de páginas. No Brasil, ao contrário, procuramos dar outros formatos ao que deveria ser livro, como os livros curriculares, que são transformados em apostilas. Nas universidades a leitura também é intensa, lembro-me de uma estudante de literatura de língua portuguesa em Stanford, onde fui visitante, que tinha apenas dois ou três meses para ler e escrever uma monografia sobre o Grande sertão: veredas, de nosso Guimarães Rosa. Ela já havia percorrido as páginas maravilhosas de alguns dos nossos clássicos literários, como Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, e Os sertões, de Euclides da Cunha.
Seriam inúmeros os relatos que eu poderia fazer sobre esse grande esforço que a educação de meus netos fez em favor de criar neles o gosto e o amor pelo livro, pela leitura, pela literatura, pela ficção. Embora seja um estado que se fundamenta na força da imagem, com a presença profunda do cinema em todos os aspectos da conformação social, é a terra do cinema, eles amam cinema, respiram cinema, vivem o cinema, o estado tem um índice de leitura bastante elevado, sem comparação com os nossos discretos números de livros lidos por brasileiros.
Não posso, infelizmente, dizer que meus netos se tornaram leitores ávidos, nem que são apaixonados por livros como a vovó que, por amor aos livros, tornou-se escritora. Mas vejo que eles, quando precisam ler algum texto, compreendem perfeitamente os significados, e o leem sem hesitação, sem esforço. Adquiriram uma escrita muito bem construída, são capazes de escrever textos primorosos. E aprenderam a pensar, organizando as ideias, conectando-as, expressando-se com clareza. São os efeitos da leitura. Ana Miranda
Crônica 7
esse grande esforço que a educação de meus netos fez em favor de criar neles o gosto e o amor pelo livro, pela leitura
Chapuletadas
Os símbolos da resistência poética de Dércio Braúna
poeta Dércio Braúna estreou a sua jornada literária em 2005, com o premiado O pensador do jardim dos ossos. Nele a sua veia de historiador deixa transbordar uma linguagem plena de materialidade social, em que os sujeitos principais são o “trabalhador”, o “inventor” e o “operário” como agentes da transformação do “caos” e da miséria social. O autor transpassa duas vozes principais: uma intimista, voltada para a subjetividade e o aspecto ontológico; e outra engajada, externalizando tanto o pesar de uma perspectiva distópica quanto um convite à mudança social. Assim, mesmo que ao primeiro lançar de olhos seja tentador cair na angústia e na disforia, a realidade é que nesse jardim de “cinzas”, a esperança é tão perene quanto a relva que ressurge em “novas e titânicas flores”.
A pedra, cuja simbologia fixa um signo permanente na poesia de Braúna, enleva a labuta do escritor que constrói sua obra martelando duramente o material bruto da linguagem, até transformá-lo em beleza. A pedra novamente aparece em Selvagem língua do coração das coisas (2005), mas em outra esfera, a dos encarcerados que escrevem com pedras nas paredes do cativeiro, aludindo ao aprisionamento da alma e do próprio corpo que se vê oprimido pelas instâncias do poder, resistindo na busca por liberdade através da força da expressão artística e política.
O peso dos “destroços” do rumo desastroso a que a humanidade chegou, é confessado em Metal sem húmus (7Letras, 2008).
Num relato sobre o “tumulto da existência pequena/ no meio do mundo imenso”, a solidão cósmica está por todos os lados e se mostra com mais notoriedade numa sequência de poemas metafísicos, que diante da desolação não se resignam e convocam à resistência: “Cantem./ Sob o sol férrico do mundo/ cantem!”.
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A poesia de Braúna envolve-se com a busca constante por alteridade, marcada pelo verbo “milagrar”, referindo-se não propriamente a uma ligação mística, mas ao movimento solidário da humanidade que realiza o que o desespero nomina impossível. Em seus versos, a integração também compreende a união entre os amantes, um porto de salvação “contra o aniquilamento da beleza”, presente em “A tarde” (Selvagem língua do coração das coisas) e “Sobre a tarde, a erva” (O pensador do jardim dos ossos). O momento crepuscular é evocado para os amantes como uma fronteira no tempo, uma ponte entre o dia e a noite, um atravessamento que aponta para a transcendência do sofrimento pela experiência erótica.
Já Aridez lavrada pela carne disto (Confraria dos Ventos, 2015) é revestido pelo diálogo com inúmeros autores, indicando o sujeito referenciado nas vozes dos intelectuais que conversam com Braúna numa série homônima de poemas e solilóquios, estabelecendo um grande discurso poético, dissolvendo o ícone do autor para reverenciar a palavra, e desfazer a ideia de que “não há força nos nomes que sustentam a ordem das coisas”. Elucidando as ordens, as instâncias do poder e as suas reverberações na poesia. Em Selvagem..., Braúna já tematizava a força dos nomes, metaforizando a palavra como cavalos selvagens, tal a impossibilidade de apreender esse universo indômito através da linguagem.
Assim, em seu quinto livro de poemas, lançado em 2017, Como cavalos fatiga-
dos abrindo um mar, Braúna demonstra que a língua, apesar de exaurida pelo esgarçamento operado pela cultura, é forte e ainda muito resiste.
Seus poemas percorrem um trajeto que parte da simbologia inorgânica da pedra ao organismo vivo e impactante do cavalo bravio; vem do puro concreto e vai para a abstração da alta erudição de seus dois últimos títulos. Uma poesia existencialista, forte e combativa, erudita em suas trocas com grandes pensadores, sem derrocar em pedantismos que esvaziam o lirismo. A congregação de pensadores e símbolos libertários promovida por Dércio Braúna revigora a grande voz do mundo, e sua resistência em prol de uma vida mais poética.
pensadores e símbolos libertários pro-
Lia Leite
Editora da revista Entrelaces (Revista de Literatura da UFC) e editora-chefe da revista . Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). lia.leite@outlook.com
Para ler o autor: Metal sem húmus
Metal sem húmus (Editora
7Letras, 2008).
Aridez lavrada pela carne disto (Confraria dos Ventos, 2015).
Como Cavalos Fatigados Abrindo (Moinhos, 2017).
Gente Ilustrada
Klévisson Viana
Quixeramobim – 1972
Ceará | Brasil
Klévisson Viana é cordelista, cartunista, xilogravador, produtor cultural e editor da Tupynanquim Editora. Como autor, publicou 30 livros e quase 200 folhetos de Literatura de Cordel, sendo ganhador do Prêmio Jabuti. Além dos quadrinhos, seus trabalhos grassam pela televisão e em adaptações para o teatro. Destaca-se o folheto A Quenga e o Delegado, transformado em episódio da série Brava Gente da Rede Globo. Tem trabalhos publicados em diversas editoras nacionais e internacionais e ganhou 3 Troféus HQMIX A ilustração aqui apresentada pertence à obra As Aventuras de Dom Quixote: em versos de cordel (2005). Uma adaptação quadrinizada e cordelizada da obra original de Cervantes.
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Francisco Carvalho:
o poeta das coisas como as coisas não são
poeta Francisco Carvalho, nascido em Russas (CE), no ano de 1927, partiu para outras paragens no ano de 2013. Durante seus oitenta e seis anos de vida escreveu mais de trinta livros de poesia e alguns outros de exercícios literários. Passados quase seis anos da sua morte, sua obra poética continua despertando interesse tanto do leitor comum quanto dos leitores especializados. Desse segundo grupo, cito especificamente os trabalhos Três dimensões da poética de Francisco Carvalho (1996), de Ana Vládia Mourão Aires, e Francisco Carvalho: uma poesia de Tanatos e Eros (2000), de Maílma de Sousa. Mas ainda é muito pouco, quando levamos em consideração a amplitude poética da obra do autor, a qual se constitui como um verdadeiro argos de cem olhos no universo da literatura produzida em língua portuguesa.
A obra de Francisco Carvalho alcança a mesma qualidade poética daquela produzida por gigantes como T.S. Eliot, Seamus Heaney e Konstantinos Kavafis, por exemplo. Contudo, como se pode constatar, é mais fácil encontrar um livro do poeta grego Kavafis do que um Carvalho nas livrarias do Brasil, especificamente do Ceará. Isso não impede, no entanto, que a poesia de Francisco Carvalho se mantenha como uma das mais perfeitas representações da poesia em língua portuguesa, impactando aqueles que deitam olhos sobre seus poemas. Por outro lado, a ausência dos seus livros nas livrarias brasileiras impossibilita que mais leitores e pesquisadores possam se debruçar sobre tão rica obra.
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Cristaleira
O primeiro livro de Francisco Carvalho, Cristal da memória, foi publicado no ano de 1995. Desde lá, o poeta passou a publicar praticamente um livro a cada ano. Embora alguns desses trabalhos ainda possam ser encontrados, outros já se tornaram raros, como é o caso de Canção atrás da esfinge (1956), Do girassol e da nuvem (1960), Rosa geométrica (1990), Flauta de barro (1992) e O tecedor e sua trama (1992).
As temáticas observáveis na poesia de Francisco Carvalho abarcam aspectos populares e eruditos, resultando num fazer poético de altíssimo nível literário. Os próprios títulos dos livros do poeta já podem ser considerados verdadeiros poemas. Como: O silêncio é uma figura geométrica (s/d), Barca dos sentidos (1989), Girassóis de barro (1997), Romance da nuvem pássaro (1998) e A concha e o rumor (2000).
Como se iniciar na obra de Francisco Carvalho? Uma boa forma é se deixar abduzir pela leitura de Memórias do espantalho: poemas escolhidos (2004), uma seleção feita pelo próprio autor, englobando poemas do livro Os mortos azuis, de 1971, até Centauros urbanos, de 2003. Ao final da leitura, o leitor compreenderá, então, a razão de se afirmar que a obra de Francisco Carvalho se erige como uma obra poética de qualidade universal, prenhe de palavras, que pulsam no peito e escorrem pelas veias.
Carlos Carvalho
Professor de literaturas de língua inglesa na Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (Feclesc) da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Autor de Memória de peixe (crônicas). carlos.oak@hotmail.com.br
Para conhecer Francisco Carvalho
Nascido em Russas – CE (11.06.1927) e falecido em Fortaleza – CE (04.03.2013), Carvalho é um dos maiores nomes da poesia do estado, com profícua produção e merecedor de prêmios, como o Nestlé de Literatura, em 1982, com Quadrante solar, e o da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1997, com Girassóis de barro. Autor de mais de 30 livros, nunca trabalhou com editoras comerciais, sendo a sua vasta e original obra desconhecida ainda por muitos. Sugestão de Leitura: Memórias do espantalho: poemas escolhidos, 2004, Imprensa Universitária, Fortaleza – CE.
Poema para escrever no asfalto
Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração e o quanto sobra do naufrágio das nossas utopias.
Agora eu sei o que significa a fala dos mortos e esta parábola soterrada que jorra das veias da pedra.
Agora eu sei o quanto custa o ouro das palavras e este pacto de sangue com as metáforas do tempo.
Agora eu sei o que se passa no coração de treva e do homem que morre mendigando a própria liberdade.
Agora eu sei que o pão da terra nunca foi repartido com a nossa pobreza e com a solidão de ninguém.
Agora eu sei que é preciso agarrar a vida como se fosse a última dádiva colocada em nossas mãos.
Francisco Carvalho
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Cristaleira
Discurso da ira
Os pobres estão se evaporando à vista de todos.
O tempo vai passando os pobres vão se decompondo seus rostos são apagados pelo vento e da memória dos computadores até que ninguém se lembre mais de suas caveiras sorridentes afugentando os parasitas dos burocratas nas repartições públicas.
Os pobres estão sumindo aos olhos de todos.
O tempo os vai tornando cada vez mais parecidos com a morte. Enquanto isso, os poderosos sacodem suas nádegas fotogênicas
fazem belos discursos para a distinta plateia e afagam avidamente as orquídeas.
Francisco Carvalho
Gravura Nordestina
A Eduardo Campos
Este sol é um deus feroz que dardeja e que incendeia os esqueletos dos bois.
As redondas oiticicas são carpideiras de luto chorando a morte dos brutos.
Em voos rasantes, ao léu, os urubus mais parecem anjos expulsos do céu.
Gaviões roçam de esguelha as asas martirizadas nas costelas das ovelhas.
Cigarra, ali, devaneia. Morre de tanto cantar em sua concha de areia.
Uma rajada de vento sacode os gonzos das portas como se fosse um lamento.
Os leitos secos dos rios são tumbas de faraós ou de monarcas fenícios.
Quando o sol chega no vértice os mandacarus acendem os seus fanais de quermesse.
Os bichos magros cochilam à sombra dos juazeiros à espera de alguma brisa.
O canto da juriti trespassa as almas dos homens com seu punhal de vizir.
O balido das ovelhas assusta as aves e os ninhos que elas fizeram nas telhas.
Entre esquivâncias e astúcias jumenta se entrega ao macho que entorna o vinho das núpcias.
Ao mugido de uma rês percorre toda a paisagem um clamor de viuvez.
Nas varandas das fazendas as redes brancas desenham corpos que são oferendas.
Ninguém que ouse ou que vá toldar os sonhos de linho das moças no copiá.
Francisco Carvalho
Cristaleira 13
Radiadora
O tio tinha dedos ágeis e uma cabeça engenhosa. Consertava tudo o que via pela frente: a torneira do banheiro, o ventilador, a fechadura. Uma vez ajudou a menina a fazer uma tigelinha de barro. Seria para o gato beber leite, se gato houvesse.
Então nasceu a promessa. E tinha propósito. Trouxe um gatinho tão bonitinho...
E tinha propósito. Trouxe um gatinho tão bonitinho... Tão inocente... Gostoso o contato com a pele morna, macia. Tão
frágil... Cautela!
Depois do gato, a cama de gato. Trouxe o cordão, prendeu as duas pontas com um nó cego e começou a urdir a rede entrelaçando o fio entre os dedos. Ela não levava jeito para a brincadeira, mas ele tinha dedos hábeis. E muita paciência. Nem era Natal nem nada, e ele chegou com a televisão. De segunda mão, catorze polegadas. Arrumou a mesinha, regulou a antena e os canais. Desenho animado, novela, pregação, programa de auditório no domingo. Uma diversão para os
ção, programa de auditório no domingo. Uma diversão para os sobrinhos, um descanso para a cunhada. Um atenuante.
O tio era mesmo generoso. Trouxe uma prenda conseguida em meio às doações vindas da América para os irmãos da Assembleia de Deus. Era uma camisolinha de flanela. Que
importa o calor? Era branca com florezinhas cor de rosa. Mas ficou apertada, marcando o que seriam os seios. Ele olhou demorado, procurando o efeito. Que importa?
E os doces, a melhor surpresa, espalhados displicentemente sobre a cama. Só pra você, ele disse, como se cochilasse, já colocando um beijo em sua boca. Brigadeiro, pirulito, chiclete, maria maluca, suspiros. A porta gemeu, fechou-se. Os lábios rosados de k-suco de groselha, azedo de doer. A bala de gengibre entrou queimando, a baba viscosa acridoce, a nódoa
ficou apertada, marcando o que seriam os seios. Ele olhou dejá colocando um beijo em sua boca. Brigadeiro, pirulito, china saia, indelével.
Lá fora, o barulho da televisão abafava tudo. O gato dormia no sofá. No chão, a tigelinha, quebrada, o leite derramado. Onde estava a mãe que não via aquilo? Ora, havia o bebê e seus cueiros, os menores e seus narizes emporcalhados, o tanque e sua montanha de roupas sujas, o fogão e suas panelas cozinhando confiança em banho-maria que fumegavam, dei-
cozinhando confiança em banho-maria que fumegavam, deixando tudo coberto de fumaça.
Zélia Sales
zelia.rib.sales@gmail.com
Zélia Sales
Vingança
As duas semanas de Myckey Ronney abrindo picada para levantamento topográfico sob o escaldante sol do Piauí não podia mesmo ter deixado seu único par de meias em outras condições. Com o suor descido corpo abaixo e nada de água e sabão durante toda a jornada, o chulé era de arrancar vômito em urubu.
Até que Karynny Keytty se esforçou, mas, depois de gastar quatro baldes de água, uma barra de saponáceo “Pavão” e mantê-las um quarto de hora mergulhadas em água fervente com extrato de limão, bicarbonato de sódio e detergente, ela concluiu: “Como dizia meu pai, quando era motorista do Coronel Zenon Pedreira, catinga aqui é igual a grilo em rural velha: não tem quem acabe nem deixe pouco!”.
Com esse pensamento e os músculos fatigados de tanto puxar água do cacimbão para aquele e outros afazeres da casa e as munhecas cansadas do esfrega-esfrega, a mulher resolveu descartar o par de meias na lixeira, donde esticou a visão até o bar da esquina mais próxima e avistou o marido. Rodeado de parceiros, ele era pura faceirice. Bebia e contava vantagens sobre o seu trabalho interestadual.
Indignada com a situação, ali mesmo da calçada, ela soltou o verbo em alto e bom som para a vizinhança ouvir e comentar: “Venha já fazer o almoço, seu vagabundo, que eu não aguento mais ficar em pé! Vou me deitar com as pernas pra cima pra ver se Shakyra Ayshylla sossega. A peste da menina não para de chutar meu bucho”.
Para mostrar aos companheiros de copo que não lhe caía bem ser mandado pela esposa, o desafiado cônjuge não deixou por menos. Estendeu sua pândega por outros bairros da cidade, só retornando para casa na segunda-feira seguinte, ocasião em que réstias do sol nascente penetravam pelas frestas da janela, aquecendo a rede de sua grávida e lembrando-lhes a
hora da partida para a segunda viagem ao Piauí. Momento em que o motorista da empresa o aguardava impacientemente na calçada e Karynny Keytty se mantinha em pé de guerra. E assim, enquanto jogava de modo aleatório a pouca bagagem num saco, Myckey Ronney ouviu a cantilena da mulher. Já no meio daquela semana, ela seria submetida à cesariana para trazer a filha à luz do mundo. Precisava de dinheiro para, entre outros gastos, comprar as fraldas. Afinal, não iam bem com o “k”, os “ipsilones” e a consoante dobrada do belo nome Shakyra Ayshylla cueiros engendrados com saco de farinha ou de açúcar...
Intuitivamente o marido ainda coçou os bolsos e logo se certificou de que tinha gasto todo o saldo da quinzena na farra daquele fim de semana. Então, fez cara de pasmo e depois desconversou: “Onde estava o seu par de meias?”.
Prontamente informado de que as famigeradas peças já embrulhavam o estômago de catadores do lixão da cidade, ele não pensou duas vezes: sacou do cós da bermuda a navalha caprichosamente afiada e, bufando de raiva, correu até a mulher, arrancou-lhe das mãos o coelhinho de pelúcia (presente dos futuros compadres, Mayara Kelly e Kennedy Krystyno) e pôs fim à discussão. Primeiro transformou em caneleiras as orelhas do falso leporídeo. E desse modo, certo de que, pelo menos na etapa seguinte do desbravamento da mata piauiense, suas tíbias e adjacências estariam protegidas contra carrapichos, espinhos e insetos, ele resolveu outro problemas que tanto afligia a mulher. Pois, com a perícia de um cirurgião, abriu o abdome do desorelhado animal, estendeu-o em formato de fralda, lançou-o no colo da esposa e partiu como se nada tivesse acontecido.
Bernivaldo Carneiro bernivaldo@gmail.com
Radiadora 15
Inhamuns: prelúdio
Sugou-me a alma pelo meio das pernas. Era uma festa! O cigarro já queimando a boca e, na alumiada escuridão, valsavam sombra, vento e fumaça; e a chama engolia a erva e o papel, movendo-se rapidamente em direção aos meus lábios.
Ele dizia que me amava. Eu só escutava.
Da metade para lá, o céu se estirava feito uma caverna comprida onde se escondiam estrelas tristes sobre aquele campo sem nuvens, madrugada plena e sertaneja à beira da CE-020.
E a língua vasculhava as reentrâncias. Re. En. Trân. Cias. Que palavra bonita, cheia de lugares para umedecer, pensei, junto com os anjos caídos. Agarrei com uma das mãos os cabelos dele, recém-cortados, e levei o cigarro a terra com a outra, gemendo alto com a morte que se aproximava. Naquela noite, nenhum mal nos encontrou. E eu compreendi, sem medo, nem vergonha, que aquele era um homem a ser amado.
Depois de dar ouvido a mais um dos meus pedidos e desbravar uma estrada desconhecida de poeira estelar, unidunitê, coroou-me também rainha dos Inhamuns, com frio, terra e saliva. Foi a primeira vez que fui amada no sertão de onde fugi na adolescência. E foi a primeira vez que fui tomada por um homem que mal sabia ler, mas que dizia, num português nítido, forte e silabado, eu amo você, ele dizia. Eu só escutava.
Eu já não sentia mais frio, porque não havia temperatura fora de mim. Tremiam as pernas e os pés; o resto se contorcia
sobre a toalha amassada, provocando hematomas que só seriam sentidos depois. Chutei o para-choque do carro à minha frente e atrás dele e falei, muito alto e muito longe, sobre o desfecho que se aproximava.
Que me amava, que me amava, que me amava, ele dizia, enquanto eu gozava. Eu só escutava.
Então eu observei as estrelas uma última vez, na tentativa de tornar inesquecível aquele encontro fora do tempo e da dimensão em que vivíamos e na qual eu tinha me tornado jornalista e ele motorista.
Faltava pouco para que chegássemos em casa e eu revisitasse os fantasmas da minha – da nossa – infância e que eu tinha enterrado ao pé do poço profundo, onde minha vó dizia que dava sorte se eu jogasse uma pedrinha polida e desejasse. Nós dois desejamos. Eu fui embora, consegui diploma, salário e passaporte carimbado. E ele? Ele dizia que me amava. Mas
que dava sorte se eu jogasse uma pedrinha polida e desejasse. eu só escutava. sonhos realizar?
Partimos em silêncio e com o peito esmagado pelo desafortunado reencontro. Crianças pequenas esperavam em casa. Amores não morriam. Desejos se concretizavam, mas faltava. Onde estavam os deuses que tinham escolhido quais
akdantas2703@gmail.com
Radiadora
Dois iguaizinhos
Não passo um dia sobre a terra sem me lembrar de Tobias. Ele teria andado comigo, nadado, saltado da ponte e soletrado a mesma cartilha burra da professora Dolores. Ele teria crescido comigo e principalmente estudado no patronato, e seríamos dois iguaizinhos sob o paletó de formatura das primeiras letras. A dulcíssima irmã Salete nos exibiria como atração à parte. Em vez de uma, seriam duas gravatas borboletas e dois miquinhos de primeira fila com o missal na ponta da língua.
Aos domingos, na capela, encarnaríamos dois anjinhos a auxiliar o padre Cosmo na celebração da novena. Tocaríamos as sinetas e prepararíamos as hóstias. Ele jamais descobriria que os bolsos de nossos casacos estariam cheios delas para dividirmos, lá fora.
Eu não seria um solitário na arena da vida. Brincaríamos e brigaríamos em par. Seríamos dois contra os irmãos Tedesco, que me partiram a cara e me legaram a chance de descobrir
que a fúria não teme a ruína.
Eu não teria me ferrado sozinho quando fui visto quebrando as vidraças do coronel Gondim ou escalando o campanário da matriz para bater o grande sino à meia-noite.
Todos os dias me lembro de Tobias. Qual de nós teria conquistado primeiro o coração da Mariana, filha da vizinha? Poderíamos ter brigado por ela, disputado seu amor numa memorável partida de porrinha ou no porrete. O que não evitaria que ela se precipitasse no vazio, como fez.
cidade de merda. Não teria esperado que o destino o ferrasse. Teria concluído o curso de Direito, para alegria do papai, e jamais teria abandonado a Beatriz Loreto, filha do banqueiro carcamano, para desespero da mamãe. E por falar na mamãe, descobri que depois do meu nascimento e da morte do meu irmão, ela ficou debilitada e selada para a maternidade. Por isso investiu tanto na minha formação, esquecendo-se de si mesma.
Será que o outro Tobias teria permitido a ruína dos negócios do papai? O velho terminou seus dias fitando os bicos dos sapatos, sem dizer palavra. Mamãe comentava, em dias de visita ao asilo, ou me jogava na cara, não sei ao certo.
mãos Tedesco, e do sorriso da Mariana, e do olhar do nosso pai. Será que o outro Tobias teria experimentado cocaína, vendido na faculdade, visitado o inferno e ressuscitado para a monoto-
solidão perpétua, fumando e cuspindo e bocejando tédio. Ele não teria nem motivo para atormentar a mente com pensa-
Não passo um dia sem me lembrar de Tobias, e dos irmãos Tedesco, e do sorriso da Mariana, e do olhar do nosso pai. Será que o outro Tobias teria experimentado cocaína, vendido na faculdade, visitado o inferno e ressuscitado para a monotonia da existência? Duvido. Certamente ele não amargaria esta solidão perpétua, fumando e cuspindo e bocejando tédio. Ele não teria nem motivo para atormentar a mente com pensamentos vadios assim, de quem joga paciência com as paredes e rabisca tolices num pedaço de papel.
vel cadeira do dentista? Teria a Danusa se casado comigo, se ele
com certeza teria sido um pai mais dedicado, menos egoísta, mais
Meu nascimento se seguiu à morte de Tobias. O que serviu de consolo para o papai, que queria pelo menos um filho varão. E eu ganhei o nome do morto. O que mais terei roubado dele, além do nome? O peito materno, o berço, o lugar à mesa, a temível cadeira do dentista? Teria a Danusa se casado comigo, se ele existisse? E teriam acaso se desquitado? Ai, perguntas. Hoje sou duplo, gêmeo com um morto que vive em mim. O outro Tobias com certeza teria sido um pai mais dedicado, menos egoísta, mais preocupado com o lar do que com as coisas fugidias. Em vez de manifestos e poemas inúteis, escreveria petições e memorandos e saberia dar nó em gravata. Acho até que ele não dançaria tão bem quanto eu, mas certamente seria um gênio da bola e do xadrez. Algo me diz que ele teria ido embora mais cedo daquela
O outro Tobias, a esta hora de uma sexta-feira, estaria sentado ainda na cadeira giratória da diretoria, delegando as últimas ordens da semana, ou na poltrona do avião, vendo o mundo lá de cima e pensando em se apoderar de uma fatia dele. Não, o outro Tobias seria mais humano. E mais família. Provavelmente estivesse voltando para casa, para a companhia da esposa e dos filhos. Atiraria a valise sobre a cama, abraçaria a companheira e, sem falar, diria o quanto a ama. Desta vez, possivelmente dissesse isso após o jantar em Lisboa ou Paris.
Provavelmente estivesse voltando para casa, para a companhia da esposa e dos filhos. Atiraria a valise sobre a cama, abraçaria a companheira e, sem falar, diria o quanto a ama. Desta vez, possivelmente dissesse isso após o jantar em Lisboa ou Paris.
Todos os dias me lembro de Tobias. Talvez ele não entras-
Todos os dias me lembro de Tobias. Talvez ele não entrasse em negócios escusos. Se por acaso o fizesse, e tudo indica que seria por minha causa, teria procurado soluções mais pacatas, recuaria um passo, não sairia logo puxando o gatilho uma, duas, três vezes contra os irmãos Tedesco.
Carlos Vazconcelos carlosvazconcelos@hotmail.com
Radiadora 17
Radiadora Aerocorpo
O corpo que ao espaço se atira É a silhueta em voo do tempo, A matéria tornada vento Que em seu bailado se eterniza. É o segundo visto em suspenso No tenso gesto de criar, Do fecundo nada que há, O ávido haver do movimento
Ricardo Kelmer ricardokelmer@gmail.com
Meruanhos
para Cláudio de Oliveira
I caminhando na meruoca: meu silêncio conversa com teu silêncio.
II meruoca em silêncio. o espiríto de bashô repousa nos galhos
dessas árvores verdes –
III céu em nuvens: a sombra de deus caminha pelo ceará –
Léo Prudêncio prudencioleo@hotmail.com
Medo
Não o assustava o grito absurdo
Do vento em preparo de vendavais
Não o assustava o pio desesperado de rasgas mortalhas
Em noites escuras sem luar
Não o assustava o silêncio vazio das catacumbas
Após o enterro derradeiro
Não o assustava o farfalhar das folhas
Nas madrugadas frias de inverno
Não o assustava o grito de buzinas
Estremecendo avenidas corrompidas
ao meio-dia
Engomados de poder.
Rosa Morena
Só o assustava o bramido de homens rosa_mariasousa@hotmail.com
Metafísica Enquanto a Morte se Atrasa
Os poetas estão dóceis. Os mortos, jazem, em placas, pelas esquinas, dando nome aos chãos do passar de cada dia; os vivos, amontoados entre a poeira e as traças, mal respiram – ainda.
Que destino: travar-se com a língua, forjar outra matéria (ainda língua) depois de tudo,
(o que é dizer com um corpo, latente coisa) munir-se até aos dentes com suas farpas; lacerar a couraça em seus gumes, espatifar a lira, e findar dependurado ao alto no triste afazer de nomear o onde os homens não se vêem, não se olham, não se tocam senão por trinta dinheiros!
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Necessitamos de defensores da causa da nossa existência
Gente interessada no que façamos, apenas pela autoria
Procuramos correligionários de nossa ínfima missão
Cúmplices, aliados, comparsas
Urgem seres que enterneçam ao som do nosso nome
Desinteresses puros e gratuitos
Caros de tão baratos
Buscamos jardineiros da alma
Semeadores do mérito que não percebemos em nós
Acolhemos astigmatas amorosos
Que nos vejam necessariamente mais belos do que somos
Precisamos de emissários de nossos melhores prognósticos irreais
Capazes de nos lembrar de nosso destino
Para que não desmereçamos a fé Dispensamos os remetentes de pêsames Torcedores da desgraça embrulhados em compaixão
Prescindimos de carpideiras, de reformadores morais
Também rejeitamos secadores de pranto Amigos não enxugam lágrimas; arrancam sorrisos
Que os detentores da candura se nos apresentem
E nos carreguem para onde a ternura do amor do amigo aponta
Radiadora
Dércio Braúna
E aí, meu amor, vamos mexer com coisas sagradas?
O que há de mais puro dentro de nós.
Por estes dias não posso viajar para Barcelona, Tenho que cuidar das fraldas de papai.
E mamãe anda meio perdida com suas plantas e gatos. Quanto àquele projeto de trocar de apartamento, Vamos deixar para os outros;
A grana do fundo de garantia já está acabando E não tenho mais nem para o cotidiano.
canto drummondiano
Ei, meu amor, sabe aquele projeto de deitar cedo, Dormir até as nove e ir para academia antes do almoço?
Vamos deixar descansar por uns tempos, Que a barra não tem me permitido dormir todo dia.
É que essas enfermeiras cobram horrores Então, amorzinho, me perdoe pelos cochilos No percurso do trabalho para o posto de saúde.
Pois é, querida, peço mil desculpas, pois não é desta vez Que experimentarei bacalhau com vinho do Porto. Preciso recolher para a sopa as sobras do almoço. Fique você com a fruta e dê as cascas aos pobres, Que eu fico por aqui mesmo roendo o caroço.
Frederico Régis frederico@bnb.gov.br
e os homens vão devagar pois nada sabem do trem de ferro que da estação já não parte. é preciso crer em deus, mas sou torto, caduco, poeta não entro na matriz, fantasmas não existem lá?
seus diabos também são melancólicos o sino não bate... o sino é um fantasma? escuto, no entanto, distante o apito de alguma fábrica. a vida é besta!
vez em quando uma interditada me sussurra: “não mandei matar ninguém!” mas quem ainda hoje a acusa de crime? quixeramobim é um retrato na parede lá onde eu existo.
Bruno Paulino bruno_enxadrista@hotmail.com
Radiadora 20
pra bruna e yasmin
um dia o amor bate em sua porta um dia o amor te beija a cara um dia o amor bate com a porta na sua cara
uma música toca no rádio o galo que cacareja galinha choca é o homem que grita menina histérica
lembro os versos dos anjos o beijo amigo é a véspera do escarro e só um homem louco perguntou
pra onde vai a porra do amor quando o amor acaba a saudade de nós sufoca
lavo a boceta em busca do amor e ele está de abraços com o talarico que me canta apalpa e geme
eu li os diários xexelentos da maria eu escrevi os seus cadernos-goibada
Limítrofe
Quem sabe
O arriscar palavras
Todas à beira
De uma linha torta Bamba, talvez morta
Quem sabe
Escorregar filetes
Poças de tinta
Cores chamuscadas
Nenhuma perspectiva
Quem sabe
Nenhum sentido faça
E todo significado tenha Sem promessas
Totalmente adormeça...
Ângela Escudeiro escudab@gmail.com
Crase
Ameaçam-me atear fogo às vestes e às paixões se não calo o canto se não sigo as setas se não cesso os beijos
isso quando mais ardem fora e dentro de mim as vestes e as paixões.
Jogo meu corpo em praça pública, jogo minha alma em graça pública.
Por isso, dobro o canto, e bêbado de beijos, não me dobro às setas.
Nirton Venâncio nirtonvenancio@gmail.com
— a mais alta literatura prescinde a vida real — é uma transcendência é uma metafísica
o seu medo é um lugar seguro o poema é uma alegria!
com as mãos tão bonitinhas as mãos que foram minhas
um dia o amor corta a sua aorta
Nina Rizzi ninarizzi@gmail.com
Radiadora
amor,
iv
mas não sabia parar
Arievaldo Vianna | Jota Batista
Frei Policarpo Cornélius
Veio lá da Alemanha
Trouxe uma motocicleta
Que parecia uma aranha
Não para pegar piranha
Que ele era Capelão, Vigário de profissão,
Mas o transporte abafou
Tanto até que despertou
Inveja no sacristão.
Quando o vigário passava
No seu transporte bonito
Muita mulher suspirava
E renegava o “bendito”
Oh! tentação do maldito
Mulher loura, mulher crespa...
Fez empréstimo na BOVESPA
O sacristão invejoso
E andava todo garboso
Amontado numa VESPA.
Esse dito sacristão
Era José Bianor
Porém por não respeitar
Os princípios do pudor
Só lhe chamavam “Pornô”
De dia era na igreja
E de noite na cerveja
Acompanhava essa VESPA
Um manual de instrução
Bebendo e dizendo: — Figa!
Bebendo e dizendo: — Figa!
Só atrás de rapariga
Porém o José Pornô
Na sua sofreguidão
Ora mais e ora veja!
Ora mais e ora veja!
Um dia José Pornô
Já de posse do transporte
Saiu vagando no mundo Como quem foge da morte Porém ao passar num corte Sem ganhar uma menina Lamentou a sua sina Porque ia empurrando Disse alguém: — Só vai botando Um pouco de gasolina.
Meu amigo, o sacristão, Daquilo nada entendia Antes, o seu transporte, Era uma jumenta arredia Para as capoeiras ia Munido de um cabresto
E pra não mudar o texto
Da bichinha ele era fã
Se a jumenta é nossa irmã
Acho que isso é incesto.
Saiu varando o sertão
Sem saber como parar
O transporte condutor Coitadinho do Pornô Como isso vai acabar?
Acontece que o Pornô Circulava o quarteirão
A sua mãe, dedicada,
Já botara a refeição
E a véia no portão
Gritava: — Vem cá, Pornô!
Ele dizia: — Já vou!
Sem saber pra onde ia
Diz ela: — O almoço esfria!
E o transporte não parou.
O problema é que Pornô
Só aprendeu pilotar
Já dava queda de asa
Mas não sabia parar, Deu vontade de mijar
22
A mãe se preocupou
E perguntou nessa hora:
— Valha-me, Nossa Senhora, Adonde foi que ele entrou?
Nesta voz ele passou
Mesmo em frente do portão
Rezando pra São Francisco
São Raimundo e São João
Sua mãe mostrou-lhe um pão
E uma xícara de café
Dizendo: — Vem cá, José, Vem ao menos merendar
Cadê a moto parar?
O Pornô perdeu a fé...
Nisto a fome apertou
O Pornô quase se acaba
Porém, por sorte passou
Sob um pé de goiaba
A fome já estava braba
Conseguiu pegar só duas
Caminhou mais duas ruas
Em busca de outro pé
E a mãe dizia: José
A janta vai ser perua!
Ora, o peru era o prato
Que José admirava
Mas como ele comeria
E vendo a coisa tão feia
Zé Pornô dizia assim:
— Oh! Mamãe, reze por mim
Se o transporte não parava?
Se o transporte não parava?
Quanto mais a mãe gritava
Mais o transporte corria
De fome José morria
Porém por falta de sorte
O diabo do transporte
Nem parava, nem caia.
Desde cedo em jejum
José Pornô só lamenta
E disse consigo mesmo:
— Que saudade da jumenta, Santo-acode, ou cão-atenta
Tô de barriga a roncar
Estou doido pra jantar
É grande meu embaraço, S. Francisco, que é que eu faço
Para esta porra parar?
Igualmente o Fred Flintstone
Arrastava os pés no chão
Cadê a moto parar?
Como para a condução?
Nessa hora, o carrilhão
Já tocava nove e meia
Me livre dessa “cadeia”.
Encontrou com Frei Cornélio
Que vinha no seu motor
Esse frade ao encontrá-lo
Foi bastante inquisidor:
— Muito bonito, doutor,
Não foi ajudar na missa?
Um sacristão com preguiça
Frade nenhum aguenta
Foi bem atrás de jumenta
No roçado das maliça!
Neste momento o Pornô
Puto, com fome e com sede, Pensou de parar a moto
Abarcando na parede
Disse ele: — Eu sou é home,
Num vou é morrer de fome
Nesse instante ela parou
Sem que ele fizesse nada.
Sabem o que foi, negrada?
A GASOLINA ACABOU.
FIM
23
Tiragostos
artista da capa
Guabiras
Carlos Henrique Santos, o Guabiras, é cartunista e jornalista do jornal O POVO (Fortaleza/CE) desde 1998. Criador de histórias em quadrinhos e de muitos personagens, já publicou mais de 6 mil tirinhas em jornais, fanzines, livros e internet. Em 2003, publicou no EXTRA de Nova York (EUA). Em 2015, junto com a Equipe de Arte do O POVO, ganhou o prêmio Esso de Jornalismo (Criação Gráfica). Em janeiro de 2017, recebeu o Prêmio Angelo Agostini de “Melhor Cartunista”. Também em 2017, contribuiu em Marcatti 40, homenagem da UGRA (SP) para ao maior quadrinista brasileiro. Em 2018, foi finalista do Festival de Humor Gráfico de Pernambuco (cartum), do Salão de Humor de Piracicaba (cartum e charge), do Salão de Humor Medplan (cartum), do Salão e do Prêmio Vladmir Herzog de Direitos Humanos (charge).
24
Lucy & Sky de J.J. Marreiro
Os FitoManos de Raymundo Netto
Os Mundos de Liz de Daniel Brandão
Tiras de Lene Chaves