2 minute read

Jarid Arraes e as fraturas do cordel contemporâneo

cordel cearense está mudando. Aliás, todo o universo do cordel está em transformação constante, a despeito da vontade de muitos daqueles que insistem em situar a poesia tradicional em um passado supervalorizado e conservador. Mas as mulheres estão enfrentando essas situações e fraturando as definições de cordel situadas no passado. E Jarid Arraes está na vanguarda desse movimento. Falar sobre a poesia de Jarid aciona em mim muitos afetos. Demorei a conhecê-la pessoalmente, ainda que os trabalhos de seu pai e de seu avô eu já conhecesse há cerca de 10 anos, quando comecei a estudar sobre a poesia de cordel. Na segunda metade do mestrado, não sei exatamente de que modo, mas tive acesso às suas produções. Desconfio que tenha sido a partir das redes sociais de seu pai, Hamurabi Batista, que mediava meus contatos com Abraão – pai de Hamurabi, avô de Jarid –poeta cujas produções eu estudava na época.

Jarid publicou em 2017 um livro de cordéis, Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, que somou-se aos seus mais de 60 títulos de folhetos. O livro

Advertisement

Heroínas... conta as histórias de mulheres, que foram escolhidas a partir de uma série de cordéis sobre heroínas negras que a autora já produzia. São narrativas sobre as vidas de Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba.

A proposta de Jarid é quase que uma meta-historiografia. Está inserida em um contexto combativo, militante. Parte de uma reconstrução das memórias, lançando luz ao que estava deixado no plano do esquecimento. Salete Maria, Fanka Santos, Dalinha Catunda, Arlene Holanda, a recém-conhecida por mim Auritha Tabajara, Bastinha... todas também trazem, aos seus modos, a política, a resistência, a militância em sua poesia.

A marca poética de Jarid está situada no feminismo negro. Ela conta que sempre teve muita dificuldade em conhecer histórias de mulheres e, principalmente, sobre mulheres negras. Por isso, se dedica a pesquisar e conhecer essas mulheres de forma a contribuir com a visibilidade dos trabalhos delas e de tantas outras que ainda devem estar escondidas, mas que iremos encontrá-las.

A poesia de Jarid é potente. É resistência, é questionamento. É rompimento. É a saída dos lugares-comuns do que se pretende – institucionalmente – que a poesia de cordel seja. Ela é o próprio conceito de tradição, que depende de renovações para que permaneça. Assim, ela usa redes sociais, recursos digitais e uma série de elementos contemporâneos em suas composições. Discussões sobre gênero, sobre sexualidade, sobre corpo, peso, cabelos, autoaceitação são trazidas em seus folhetos de uma forma didática e lúdica, e isso significa transformação.

O que Jarid traz para o cordel são quebras de tabus, tanto nas temáticas quanto na própria definição do “que é cordel”? Um questionamento cujas respostas passam pela forma, pela estrutura, pelos suportes, pelas temáticas. Cuja história aponta para uma ampla diversidade de “origens”. Mas essas definições todas terminam por serem muito mais excludentes do que agregadoras.

Ser mulher, poeta, cordelista e falar sobre feminismo e questões raciais, desafiar a institucionalidade que tenta definir o cordel a partir do conhecimento de um pequeno grupo de homens compõem a desestabilização que Jarid traz a um universo que muitos pretendem congelar. Mais do que fechar um conceito para o cordel, a poesia de Jarid ajuda a pensá-lo em dimensões simbólicas, culturais, históricas e, sobretudo, política.

A existência do cordel é um ato político.

Gisa Carvalho

Jornalista e doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisa poesia de cordel desde 2009 e tem interesse nas manifestações e performances contemporâneas dessa prática. mgisacarvalho@gmail.com

This article is from: