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expediente
revista OLD #número 72
equipe editorial direção de arte texto e entrevista
Felipe Abreu e Paula Hayasaki Tábata Gerbasi Angelo José da Silva, Felipe Abreu, Laura Del Rey e Paula Hayasaki
capa fotografias
Fabiola Cedillo Fabiola Cedillo, Gabriela Massote Lima, Gustavo Minas, Luis Felipe Kita, Mayra Biajante
entrevista email facebook
Ronaldo Entler revista.old@gmail.com www.facebook.com/revistaold
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índice
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livros histórias afro-atlânticas exposição
fabiola cedillo por tfólio
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gustavo minas por tfólio
luis felipe kita por tfólio
ronaldo entler entrevista
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gabriela massote lima por tfólio
mayra biajante por tfólio
reflexões coluna
carta ao leitor
Quase perdemos a data, mas chegamos, nos quarenta e cinco do segundo tempo, com a OLD de Julho, no último dia do mês. A nova edição conta com projetos super interessantes que, na nossa opinião, valeram a espera. Temos na capa o trabalho Los Mundo de Tita, da fotógrafa equatoriano Fabiola Cedillo. Neste ensaio, a autora apresenta um cotidiano fantástico e sombrio, entrelaçado à relação com sua irmã Tita e sua delicada condição de saúde. Em seguida aparece o fotógrafo com mais participações na OLD até aqui (a terceira individual até agora): Gustavo Minas. Nesta rodada, ele apresenta Frente Fria em Havana, uma visão mais melancólica da capital cubana, constrastante em relação ao imaginário
comum deste espaço tão fotografado. Seguimos com Luis Felipe Kita e Dō, sobre o conceito de jornada na cultura japonesa, Gabriela Massote Lima e Meu Brasil Varonil, uma ácida visão sobre a persistente cultura machista no Brasil e encerramos com Mayra Biajante e Moradas, uma série de autorretratos pelas diversas casas que a autora habitou durante seu ano sabático. Não posso encerrar este texto sem falar da entrevista desta edição, brilhantemente conduzida por Laura Del Rey. Temos a honra de apresentar trabalhos inéditos de Ronaldo Entler, além de uma vasta discussão sobre sua visão em relação à fotografia. Aproveite! por Felipe Abreu
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livros
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TTP
de Hayahisa Tomiyasu
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ayahisa Tomiyasu se sagrou vencedor do First Book Award da MACK em 2018 com seu livro TTP, feito com fotografias tiradas da janela de seu antigo apartamento de estudante na Alemanha. As imagens, como entrega a capa do livro, são todas centradas na mesa pública de ping pong que Tomiyasu via de sua janela. A divertida tipologia de imagens apresenta os mais variados usos para este mobiliário público, de varal a cama de bronzeamento, passando por sofá, apoio para exercício e mais uma infinidade de usos pouco comuns. Aliás, o único uso que não aparece é o “correto”: um jogo de ping pong. Foram cinco anos de registros precisos que agora se consolidam em uma obra que fala sobre a maneira com que interagimos com a cidade, como nos apropriamos de tudo aquilo que é público da maneira que nos parece mais conveniente. Disponível no site da MACK valor R$135 260 páginas 6
livros
L O O K I N G U P B E N JA M E S de John Gossage
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artin Parr e John Gossage são amigos de longa data. Graças a esta amizade, o fotógrafo americano incumbiu uma missão ao britânico: uma viagem de carro por locais típicos de sua fotografia pela costa da Inglaterra. Assim começa a criação das imagens de Looking Up Ben James que tem Parr como motorista e protagonista do livro. Além de imagens delicadas e com uma potência misteriosa, de apreensão demorada, típica da obra de Gossage, este livro apresenta uma divertida relação de amizade entre dois dos principais fotógrafos dos nossos tempos. As imagens trazem objetos pouco observados, encontrados pelo olhar maduro e original de Gossage, segundo as palavras de Parr no texto de introdução do livro publicado pela Steidl. Um livro divertido, com uma narrativa curiosa de amizade e investigação. Disponível no site da Steidl valor R$265 192 páginas
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exposição
8 Detalhe de ‘Poder’ de Carlos Vergara
FLUXOS DA HISTÓRIA ENTRE BRASIL E ÁFRICA MASP e Instituto Tomie Ohtake realizam uma enorme exposição conjunta para tratar dos movimentos históricos entre África e América Latina.
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ão 450 obras de mais de duzentos artistas, dividas entre duas das principais instituições culturais da cidade de São Paulo. Tomie Ohtake e MASP organizaram Histórias Afro-Atlânticas como um desdobramento da mostra Histórias Mestiças, apresentada em 2014 no Instituto. Para esta nova exposição, Lilia Schwarcz e Adriano Pedrosa dividem a curadoria com Ayrson Heráclito, Hélio Menezes e conta com a assistência de Tomás Toledo. A imensa coletiva está organizada em núcleos temáticos e não conta com a ambição de construir uma linha temporal em
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relação a estas obras ou aos eventos retratados por elas. O Tomie Ohtake recebe os núcleos Emancipações, Ativismos e Resistências, enquanto o MASP apresenta Mapas e Margens, Cotidiana, Ritos e Ritmos, Retratos, Modernismos Afro-Atlânticos, Rotas e Transes, Áfricas, Jamaica, Bahia. A mostra conta com uma abordagem bastante ampla, integrando períodos históricos e técnicas criativas distintas, unindo desenhos, pinturas, esculturas, instalações, fotografias e contando com a colaboração de algumas das principais coleções particulares, museus e instituições do mundo, en-
tre elas o Metropolitan Museum, Getty Museum, entre outras. No tenso contexto em que o Brasil se encontra atualmente em que política, censura e arte tem convivido constantemente, muitas vezes de maneiras truculentas, uma mostra como esta ganha importância ainda maior, abrindo discussões e rotas de debate em dois grandes centros pensantes da cidade de São Paulo. Histórias Afro-Atlânticas segue em cartaz até o dia 21 de Outubro, no MASP e no Instituto Tomie Ohtake.
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FABIOLA CEDILLO Los Mundos de Tita
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m Los Mundos de Tita Fabiola Cedillo apresenta uma realidade complexa, que envolve seu cotidiano, pessoas próximas a ela e a vida de sua irmã Tita e seus universos particulares. As fotografias da série conseguem alternar de maneira muito envolvente momentos de carinho e tensão, diversão e medo, alegria e tristeza. É justamente esta complexidade de sentimentos que torna este projeto tão marcante. A proximidade entre as irmãs Tita e Fabiola garante um entendimento ímpar entre elas e um desejo de apresentar estes espaços fantásticos da maneira mais cuidadosa possível.
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Fabiola, como começou sua relação com a fotografia? Estudei fotografia em 2008 na Arte10 em Madri. Na verdade foi uma certa coincidência chegar até esta escola. Eu queria estudar ilustração, mas as aulas entravam em conflito com o horário de outros cursos que estava fazendo e assim escolhi estudar fotografia durante as tardes. Depois da Arte10 também realizei alguns cursos na escola de fotografia Blank Paper e, finalmente, o master de fotografia documental de autor em 2013, ano no qual realmente comecei a viver a fotografia. No ano passado criei a AULA/escuela y laboratorio de fotografía e o f+1 Festival de Fotografia de Cuenca e o coletivo FotoAlbum ao lado de Fernanda García com o
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qual difundimos a fotografia em espaços públicos de diferentes cidades do Equador. Como você pode ver, agora a fotografia é parte fundamental do meu dia a dia, tanto na gestão cultural como na criação de meus próprios projetos. Como se deu o desenvolvimento de Los Mundos de Tita? Este projeto é resultado de 3 anos fotografando a partir do meu inconsciente. Fotografava meu entono, meu namorado, desconhecidos na rua, amigos, lugares e objetos que me chamassem atenção ou me despertassem algum tipo de sentimento. Não me interessava tanto a qualidade das fotografias, para mim o mais importante era o ato de fotografar,
Sei que meu jeito de ser e também minha maneira de ver são grandemente influenciadas pela relação que tenho com minha irmã. estar nestes lugares, estabelecer conexões com as pessoas e situações que se apresentavam em meus caminhos. Me lembro que este caminho começou quando fui morar em Londres – durante estes três anos mudei de residência por quatro vezes: voltei a Madri, fui a Amsterdã e ao final Cuenca, no Equador – então a câmera era como meu lar, sempre me acompanhava e com ela eu podia guardar imagens que seguramente iriam escapar da minha memória. Tita é sua irmã mais velha e você tem uma conexão muito forte com ela,
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não? Como foi lidar com um tema tão próximo de você? Como ela participou desta criação? Tita é a protagonista destes mundos, mas poderia ser qualquer um de nós. Tita é a autora dos desenhos que estão na capa do livro e em seu interior ao lado de seus retratos. Gostei muito que ela tenha colaborado com o livro. Claro, ela não sabia que os desenhos que fazia sempre chegariam a estar em um livro e mais, o livro que a dei de presente também foi rabiscado por ela. Minha relação com Tita é muito próxima, apesar de não vivermos juntas e não poder vê-la tanto quanto gostaria, todas as vezes que nos encontramos cumprimos certos papéis que sempre estavam presentes, ela como uma criança e eu cuidando dela, dando broncas, a ajudando, não é só uma relação entre
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irmãs, acredito que se tivesse uma filha sentiria algo parecido. Não sei explicar isto muito bem, mas sua forma de amar e a minha se encontram e buscam maneiras de se expressar, talvez uma destas minhas maneiras tenha sido fazer este livro e mostrar ao mundo o quão linda é Tita, mas sem negar que todo esse “cor de rosa” também tem um lado negativo que é o fato de não poder levar uma vida normal e esperar que tudo melhore. Ao mesmo tempo em que há fotografias de um registro bastante documental há outras que nos convidam para uma viagem mais fantástica. Este jogo entre realidade e ficção é central para este projeto? Partindo da premissa de que a fotografia é mentirosa, acredito que o limite entre realidade e ficção já é
rompido. Sei que meu jeito de ser e também minha maneira de ver são grandemente influenciadas pela relação que tenho com minha irmã. Desde pequenas temos vivido situações absurdas, vergonhosas, engraçadas, ternas, dolorosas, etc., situações que acontecem por conta da complexa síndrome de Tita. Tão real e tão fictício como ir crescendo e saber que Tita ficou parada em uma idade mental específica e mesmo que eu a ensine mil vezes a amarrar seus sapatos ela nunca aprenderá ou manter conversas sem um sentido aparente e desenvolvendo outros tipos de linguagem e comunicação, códigos que só nós entendemos.
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GUSTAVO MINAS Frente Fria em Havana
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rente Fria em Havana constrói um contraponto à imagem comumente associada à capital cubana, de um território festivo, diretamente associado ao caribe. Nestas imagens há, sim, uma presença forte da cor como elemento narrativo, mas ela está rebaixada, pouco saturada, construindo uma atmosfera triste e cansada para este espaço urbano. Gustavo usa o que há de melhor na estética da fotografia de rua para compor suas imagens, criando cenas complexas, com diversos planos e personagens entrelaçados em suas observações pelas ruas de Cuba.
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Gustavo, esta é sua terceira passagem pela OLD. O que mudou na sua criação neste intervalo de tempo? Meu processo continua basicamente o mesmo, que é caminhar e nessas caminhadas ir descobrindo lugares que me interessam e, com o tempo, fechar ensaios sobre eles. Cada vez mais a fotografia para mim está tão ligada a esse estado andarilho, às experiências que essas andanças me trazem, quanto às fotos em si. A vontade de ver as coisas é tão grande quanto a vontade de criar imagens. Fotografo praticamente todos os dias, mas tenho demorado uns quatro meses pra mostrar minhas fotos, e isso tem tirado o peso da necessidade de produzir e deixado as caminhadas mais desinteressadas.
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Nos conte sobre a criação de Frente Fria em Havana. Moro em Brasília desde 2014, e é uma cidade muito limitada e entediante para a fotografia de rua. Pouca gente nas ruas, muito cinza e branco, grandes espaços vazios. Sinto falta das interações que rolam em cidades em que as pessoas convivem próximas no espaço público, e em janeiro resolvi passar dez dias em Cuba sozinho, com o único objetivo de andar e fotografar por lá, mas sem uma pauta ou ideias preconcebidas. Havana é uma cidade extremamente fotografada, com um extensa história na fotografia. Como você buscou construir a sua visão sobre este espaço, escapando do que já foi produzido
Pra escapar do frio, frequentei bastante os botecos dos locais. Sentava, fumava um charuto, conversava, e ia fotografando. até hoje? Nos meses anteriores, procurei não olhar muito para fotos que já foram feitas lá, pra tentar dar uma “limpada” no meu olhar, se é que isso é possível. Li dois livros do Pedro Juan Gutiérrez que se passam nas ruas de Havana Vieja, “O Rei de Havana” e “Trilogia Suja de Havana”. Ao mesmo tempo, tinha noção de que meu imaginário já estava impregnado por fotos, principalmente do Alex Webb e do David Alan Harvey, e sabia que não seria fácil escapar dessas imagens ensolaradas, de cores vibrantes, ruínas, carros enferrujados, etc.
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Mas chegando lá, encontrei uma cidade bem diferente do esperado. Uma frente fria tinha chegado dos EUA, chovia, ventava, fazia frio, as pessoas mais ensimesmadas nas ruas, aquela luz de dia nublado, uma melancolia que eu não esperava encontrar. Pra escapar do frio, frequentei bastante os botecos dos locais. Sentava, fumava um charuto, conversava, e ia fotografando. Muitas dessas fotos rolaram assim, o que pra mim, acostumado a tentar fotografar despercebido, foi uma novidade. No fim das contas, a adversidade inicial de ter encarado dias nublados e de pouca luz acabou se tornando meio que a essência do ensaio. Você tem um trabalho cromático muito forte e preciso nas suas imagens. Como esta visão apareceu no seu tra-
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balho? O que mais te cativa neste processo? Surgiu quando eu conheci o trabalho do Harry Gruyaert, principalmente as fotos no Marrocos, que têm uma luz muito parecida com a nossa. Mas não foi uma decisão consciente: foi mais um deslumbramento pela intensidade da cor em contraste com os pretos marcados das sombras. O que mais me cativa ainda é esse deslumbramento com a luz, cor e sombra, essa percepção de que as relações entre elas podem ser o tema da foto em si. Gosto de sacar como as cores reagem com mais ou menos luminosidade e também dessa aura que a luz confere às cenas e aos personagens, sugerindo uma narrativa que talvez seja totalmente imaginária.
grafia de rua no Brasil. Você vê este campo como uma linguagem própria? Quais são os desafios que você vê nesta linha de produção visual? Vejo como uma linguagem própria sim, que à primeira vista pode parecer muito com a do documental, mas que para mim é justamente o contrário: as ficções possíveis e as transformações da realidade são o que me interessa mais. Sobre os desafios, além dos mais óbvios (como fotografar estranhos na rua, como circular esse trabalho que lida com o banal, como fazer grana com isso), vejo principalmente dois: como fazer uma foto que seja mais interessante do que o que está sendo fotografado? E como dar coesão a uma série de imagens que tratam de uma realidade tão fragmentada e dispersa?
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ō é um ensaio sobre o caminho, sobre a jornada. Inspirado por conceitos da filosofia japonesa, o projeto de Luis Felipe Kita mostra este trajeto no qual o destino é menos importante do que a maneira que chegamos até ele. São imagens delicadas, que constroem uma atmosfera visual clara e uma coleção de metáforas visuais para auxiliar na compreensão do caminho percorrido pelo autor. Para o autor, a série é composta de haicais visuais, traduzindo visualmente emoções e sensações ligadas ao tema.
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Nossa jornada se dá em meio a nossa Kita, nos conte sobre sua relação com a fotografia. Falar sobre este trabalho é também falar sobre quando comecei a fotografar. É engraçado, e quase uma sessão de terapia, pois minha “base” fotográfica começou na adolescência, quando fotografava e registrava em formato de diário, de maneira totalmente descompromissada. Tenho saudades dessa época... Desde então, venho dando espaço a outras expressões também, como a música ou a escrita, de maneira livre. Como se deu o processo de criação de Do? Dō surgiu a partir da junção de duas passagens minhas pelo Japão. A primeira delas, quando estive no país,
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por meio de um intercâmbio cultural mas, ao invés de me colocarem em uma escola com pessoas de idade semelhante a minha (15 anos, na época), fui posto em uma sala de crianças que tivessem minha idade/nível do idioma, na época, primário. Estive, então, por duas semanas nesta escola convivendo com crianças de 6 a 8 anos. Em um segundo momento, as fotos mostram quando pude voltar ao país, para um outro intercâmbio, 8 anos depois. As fotos marcam uma junção de dois tempos, assim como a memória, que nos dá um traço, não tão marcado assim, da presença do tempo em nossa mente. Este ensaio se concentra no tema da jornada, de um caminho a ser percor-
caminhada, não quando de fato chegamos em algum lugar. rido. Como ele tem se transformado ao longo deste processo? O que foi mais marcante nesta trajetória? Uma das bases deste trabalho é a filosofia japonesa do dō (caminho). Segundo a mesma, nossa jornada se dá em meio a nossa caminhada, não quando de fato chegamos em algum lugar. Ou seja, aprendemos pelo simples ato de caminhar, não pela conquista de algo. Isto está enraizado no Japão de maneira muito simples e profunda. Como maneira de ilustrar tal metáfora, utilizei uma sabedoria japonesa que diz que nosso rastro pela vida é como encarar a subida de
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uma montanha. A medida que a subimos, e nos deparamos com nossos vazios internos, temos deixar muitas coisas para trás, não conseguimos levar tudo pela estrada. A paisagem, que era tomada por plantas vivas, ligeiramente dá espaço pedras, até a neve, contudo, compensando o esforço na caminhada, a vista vai se tornando mais ampla e bela. Dō, ao falar sobre a caminhada, fala também sobre nossas escolhas. Sobre tecermos nossos destinos pessoais, enfrentarmos os nossos vazios e seguirmos adiante.
sugeriram que a edição mostrava pequenas poesias, concisas, com brincadeiras harmônicas remetendo a sensações. Percebi então que poderia criar sequências de duplas, tentando remeter cada dupla a um sentimento ou ideia que eu quisesse expressar, como se estivesse sequenciando pequenos haicais. Logo, a sequência das imagens foi pensada como a construção de um poema maior: pensei os “versos”, justamente pela metrificação de um poema, encaixando as devidas partes, cada qual com sua função.
Você compara a edição deste ensaio a uma série de haicais visuais. Como surgiu este conceito? Como você buscou organizá-lo dentro do trabalho? Este conceito, na verdade, me surgiu em uma leitura de portfolio, onde me
Do terá o fotolivro como formato final. O que te levou a esta escolha? Quais são os desafios para criar esta publicação? Pode parecer batida a resposta, mas o que mais me atrai, no formato do fo-
tolivro, é a edição. Em primeiro lugar, para poder me inspirar e aprender com a tradição japonesa de livros e em segundo lugar, pois a edição me permitiu um novo e distinto olhar sobre este mesmo material, que ficou parado por muito tempo. O processo de edição levou um ano e meio e observo que pude explorar diferentes narrativas e propostas com o mesmo material. Gosto muito de montar quebra-cabeças e vejo que o processo de editar um livro é como montar um: você vai montando diferentes partes, separadamente, por blocos. Quando menos vê, elas já estão se juntando e permitem um diálogo, criando pontes entre si. O desafio da edição, ao meu ver, é justamente criar tais pontes entre os pedaços do quebra-cabeça, de partes desconexas que se tornam uníssonas ao todo.
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A experiência abrangente de Ronaldo Entler – como fotógrafo, pesquisador, curador, professor e escritor – permite passar pelo tema da imagem por diversos ângulos. Conversamos sobre pichação, fantasmas, mercado, a curadoria recente para o MIS e o seu livro de contos que será lançado em breve, do qual publicamos dois fragmentos. Nas entrevistas com fotógrafos, é comum cairmos no assunto dos temas recorrentes de cada um. Acho que você evita se chamar de artista mas, mesmo pensando em pesquisa, ou curadoria, acredito que aconteça algo semelhante – ou seja, a presença frequente de determinadas questões ou tensõeschave no trabalho. As suas teses de mestrado e doutorado, por exemplo, são sobre o acaso, e esse assunto foi uma constante para você durante anos. A fase “acaso” passou? Meu primeiro tema de pesquisa, de
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fato, foi o acaso, no mestrado. Foi um tema que eu me senti encontrado por ele, mais do que um tema que eu busquei. Naquele momento, eu tinha uma produção, vivia da fotografia. Fotografava para veículos, cheguei a expor em alguns lugares… e, ali, o acaso apareceu com muita força. Depois, eu tinha muito material que não coube no mestrado, então meu doutorado nasceu das sobras dele. Comecei a pensar o acaso principalmente na produção da segunda metade do século XX. Esse também foi um momento em que fiquei com um pouco de bode da fotografia, e decidi pensar a arte de maneira mais ampla, mas o tema do acaso permaneceu. Ele foi tão importante para mim que virou quase uma religião, um modelo de pensamento. Ele ordenava muita coisa [risos]. Eu botava a maior fé no acaso. Mas chegou uma hora em que não aguentava mais falar sobre isso. Tem
uma coisa da rotina de pesquisador, né: publicar textos, apresentar trabalhos em eventos, congressos… cansei mesmo. Já o bode da fotografia, veio por conta do mercado. Por achar que o fotógrafo era um cara muito maltratado nas redações. Depois, acabei retomando o contato com a fotografia, sem uma data muito exata. E porque era, afinal de contas, a coisa que eu mais tinha estudado na vida. No pósdoc, pesquisei dois artistas franceses, a Sophie Calle e o Christian Boltanski. Um pouco depois disso, o VideoBrasil trouxe a Sophie Calle para cá, o Sesc fez aquela mostra enorme com ela… e eu tive uma certa overdose também [risos]. De uns anos para cá, tenho me interessado muito por pensar um conceito que virou uma palavra meio feia no mundo da teoria das imagens, que é a ideia do realismo. Essa conexão da imagem com o real – que as teorias todas estão ten-
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tando desconstruir, para pensar a fotografia como ficção. E não é que eu resista a essa ideia, mas sempre me interessa pensar o que resta de conexão entre a imagem e o mundo. Essa conexão muitas vezes escapa, inclusive, às intenções de um autor. Depois de muito tempo pensando nisso, percebi que a ideia do acaso ainda estava presente aí; nesses encontros entre coisas que vêm de fluxos diferentes e que se cruzam pelo caminho. A gente foge do tema e reencontra ele mais adiante. Eu cansei de falar da Sophie Calle, mas as questões que eu via no trabalho dela, e que me interessavam, continuam me interessando em outros autores. Tive a sorte, na vida, de sempre fazer pesquisa sobre temas que tinham me tocado profundamente. Os temas foram atravessando o meu caminho, e uma hora eu dizia: vamos lá, vamos encarar.
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Pensando em criação (seja atuando como artista, curador ou pesquisador que propõe obras e experiências), de quais maneiras você se interessa por provocar o espectador? Quer dizer, se fôssemos pensar nesse contato como um gesto, seria uma abordagem de confronto, de empatia, de enigma, de provocação...? Você consegue perceber alguma constante nisso? Eu não me sinto artista mas, em certo sentido, me sinto criador. Quando eu escrevo, ou quando trabalho junto com artistas. Mas é mais fácil responder a sua pergunta pelos textos, pensando em uma certa arquitetura deles. Escrever é uma coisa que eu faço bastante, mas que ainda me exige muito esforço. Porque eu tenho que equacionar duas coisas: uma é tirar a pessoa que estiver me lendo de um certo lugar de conforto e outra é a lapidação da linguagem. Eu escrevo sobre arte, e uma coisa que assumo
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é que não quero simplesmente fazer uma mediação entre artista e público. Me interessa ter a liberdade de esgarçar o sentido de alguma obra em uma direção que eu escolho, sem o compromisso de que isso coincida com o que o autor quis dizer. Vejo isso do esgarçamento como um elástico mesmo, que eu puxo o máximo possível, testo um limite, mas sem jamais romper com a obra. Por outro lado, existe o cuidado com a linguagem: odeio academicismo e fala difícil, então me desafio a escrever de maneira acessível, e nisso a vida de professor ajuda muito. Acabei de passar dois dias lapidando um parágrafo de um texto, por exemplo, que falava sobre Lacan e era meio complicado. Não me agrada – e isso posso transferir para outras coisas, como palestras, curadorias, tudo o que eu faço – que não haja a possibilidade de diálogo.
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Me interessa que haja certa permeabilidade. Chocar o público não me agrada. Fico frustrado quando alguém entende uma certa iniciativa como pura ruptura, porque eu quero comunicar. Você é muito dedicado a descobrir e trabalhar com artistas novos, nomes novos. Como acontece essa pesquisa? Eu não tenho tanto espaço assim para oferecer [risos] mas, quando tenho, gosto de pensar nesses artistas em formação. Tenho a sorte de estar nessa vida de professor, então de vez em quando encontro alguém pelo caminho que está começando a construir um trabalho. Um tempo atrás, ganhei um edital para manter o blog Icônica por um tempo, e uma das propostas era divulgar trabalhos de artistas. Aí penso nisso como um dos critérios, por exemplo: ter gente
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que eu não conhecia, ou que não estava no circuito. E em vários momentos acabei encontrando figuras, que eventualmente deixaram de ser artistas em formação [risos] e consolidaram seus trabalhos. Trabalhei num projeto longo, por exemplo, com o Felipe Russo, o Breno Rotatori e o Gui Mohallem… que, depois, conquistaram um espaço muito grande. O mesmo aconteceu com a galera dos coletivos. Num momento em que essa ideia de coletivo gerava um certo estranhamento, foi uma causa que eu abracei. Dialoguei muito com a Cia de Foto, com o Garapa, com as meninas do 7 Fotografia. Comecei a ficar disponível para encontrar essas pessoas e para ser encontrado por elas. Eram artistas pisando num terreno que ainda não estava muito sólido, e eu gosto de atuar nesse lugar. Na hora em que preciso escrever sobre
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alguém legal, tenho esses impulsos também: de tentar artistas que não estão na boca de todo mundo. E aí eu olho nos meus caderninhos [risos]. E o que você tem descoberto de interessante? Pode citar alguns nomes? [Pede um tempo para pensar e olhar os caderninhos. Depois, me envia “uma lista de artistas que merecem e têm potencial para conquistar um espaço maior no ambiente da arte. A lista tem algo de aleatório. Alguns eu conheço bem, mas outros são nomes que anotei porque atravessaram meu caminho e me detiveram”]: Andressa Casado, Mariana David, Samy Sfoggia, Ilana Bar, Leticia Ranzani, Aline Motta, Marco Antonio Filho, Lara Ovídio, Randolpho Lamonier, Paulo Coqueiro.
Como você se relaciona com o mercado da arte? Como entende que esteja, hoje em dia, essa dinâmica artista/ público/galeria/rua, e como acha que esses movimentos todos poderiam melhorar? Se a galeria é o caminho que o artista define para si, a chance de frustração é muito grande. Não há galerias suficientes para o número de bons artistas. E ainda pior: os artistas que estão em boas galerias não conseguem viver de vender a sua produção. Acho importante essa discussão sobre mercado, e é algo sobre o que penso muito dando aula, também, porque a vivência do dia a dia é muito desmotivante para o artista. Mas acho que temos que ampliar a nossa concepção de mercado. Tem muita coisa para o artista fazer além de vender sua obra para colecionadores. Ele pode se ver na função de educador, ou trabalhan-
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do para instituições culturais, trabalhando com outros artistas, fazendo pesquisas dentro e fora das universidades, formando redes… enfim, dá para ampliar essa visão de mercado. Muita gente, inclusive em instituições que definem políticas culturais, trata a arte como um hobby. Isso me irrita profundamente. É enorme a quantidade de ofertas que as pessoas fazem para os artistas e que soam generosas, mas que no fim ele acaba tirando do bolso. O cara ganha um prêmio e sai com uma dívida. Por exemplo, acabou de sair uma série de editais da Funarte, que não dá nada de verba para o artista. Que tipo de coisa esses caras acham que estão fomentando? O artista não deveria se pensar como alguém carente de um espaço para mostrar o seu trabalho. Pode contar um pouco sobre a sua
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experiência como curador da exposição “Era preciso esperar para saber”, montada a convite do MIS e encerrada agora em julho? Considerando-se que esse trabalho lidava com um material de acervo, pode comentar quais caminhos abriu para pensar as imagens nas suas diversas relações com a passagem do tempo? Curadoria não é um lugar totalmente desconhecido para mim, mas não sou fluente nessa língua [risos]. Além disso, a proposta que me fizeram era particularmente desconfortável, porque o acervo do MIS é muito bem organizado, tem uma estrutura tanto física quanto conceitual muito pensada. Eu tive receio de não conseguir responder à altura, porque não sou historiador. Como não me senti capaz de olhar para o material e acreditar que poderia contar “a” história, coloquei as minhas condições. Ou
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seja, já que não posso trabalhar no campo das certezas, o que me resta é assumir isso e dar espaço justamente para o contrário: assumir as incertezas do acervo. Eu pedia coisas para eles (como ver materiais deteriorados ou não identificados) e não foi de imediato que eles entenderam, parecia que eu queria fazer uma denúncia [risos]. O jeito mais fácil de conseguir explicar foi dizer que não me interessava a origem daquele material; como tinha sido produzido, com qual intenção, quando. Eu não queria me comprometer a explicar o que eram aqueles objetos no momento em que estiveram diante da câmera. A questão chave era: qual o destino que essas imagens assumem? Para onde elas vão, quando as certezas da origem não estão dadas? Nessas perguntas sobre o destino das imagens, acabou vindo, por exemplo,
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uma certa dimensão política que a exposição teve. Se a gente aceita o fato de que uma imagem não aponta só para o passado, a gente tem a possibilidade de descobrir que ela nos chama a atenção para certas recorrências da história; fala do futuro, e também do presente. Alguns trabalhos, nesse sentido, caíram no meu colo, como um vídeo da intervenção militar do Rio [“Projeto 68”]. Esse vídeo não é importante apenas porque a ditadura foi importante, mas também porque, nesse momento de agora, em que você vê gente na rua pedindo a volta da ditadura, se percebe que o compromisso dessas imagens não é só com aquele passado, com a origem. As imagens têm algo a dizer sobre o que vem pela frente. O que me guiou na montagem foram essas várias possibilidades e incertezas de uma imagem que, ao longo do cami-
nho, renova o seu sentido. Essa ideia não é minha. Estou dialogando, sobretudo, com o Didi-Huberman. Antes dele, ainda, com o Benjamin, que já tinha pensado a história como uma busca de acontecimentos que continuam pulsantes, ainda clamando por justiça. Ele diz que temos que escovar a história à contra-pelo. Porque na história oficial o pelo é macio, está bonito… mas, se você passa a mão à contra pelo, começam a pipocar uns ruídos, as sujeiras que estavam escondidas. São essas sujeiras, aquilo que não está assentado… são justamente essas imagens que possuem uma vitalidade. A imagem, ao se perder, o que ela ganha? Fiquei jogando com essas polaridades. Outra coisa é o sujeito. Com o tempo, as imagens tendem a esvaziar o sujeito e oferecer uma entidade genérica, que é o cidadão, o pai, o índio, o trabalhador.
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Quer dizer, as imagens do passado têm menos pessoas singulares e mais categorias. E eu encontrei, no MIS, algumas imagens que usei para questionar esse esvaziamento. O acervo é muito frio, solene… não é convidativo, mas você tem que vencê-lo. Foi uma delícia trabalhar lá. Boa parte do que encontrei foi a Patrícia, a coordenadora do acervo, que me mostrou. É difícil saber se a exposição funcionou para o público, mas acho que funcionou bastante para a instituição pensar os potenciais do próprio acervo. Fica uma semente plantada. Depois da abertura, eu voltei diversas vezes lá para conversar com grupos, e acho que se produziu um bom diálogo. Foi uma oportunidade boa para repensar o que é o acervo de uma instituição como essa. Se discute muito sobre como é possível
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abordar uma imagem para começar a tentar lê-la, senti-la, interpretá-la. Você tem algum ritual ou método claro ao se aproximar de uma imagem, sobretudo quando ela está fora de contexto e sem informações técnicas/ documentais? É uma delícia lidar com uma imagem desse tipo. Ir num sebo, por exemplo, e encontrar um retrato perdido no meio de um livro. Adoraria encontrar mais imagens assim! Eu não gosto muito de perguntas como “o que essa imagem quer dizer?” ou “o que que o autor quis dizer?”. Acho que isso ajuda pouco a entrarmos nos potenciais que as imagens têm. Acho limitante se armar de uma metodologia antes de olhar para uma imagem. Às vezes acontece, às vezes a gente faz… se empolga com a semiótica, ou com a psicanálise… e acaba usando a imagem pra afirmar o método, mas
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eu não gosto. Quando encontramos uma imagem fora do contexto, não facilitada por uma leitura prévia, acho que vale a pena refrear a atuação dos métodos. E aí entra uma palavra que tem sido chave para mim. Porque uma coisa é se perguntar o que uma imagem quer dizer, e outra coisa é pensar na imagem com sintoma. Quer dizer, o próprio fato de a imagem ter se desviado do seu caminho… essa sobrevivência da imagem, para além da sua função utilitária, é um sintoma e diz algo, ou melhor, instiga algo. O rasgado, a mancha, o descaminho… confrontar o seu corpo com aquele corpo sobrevivente já é uma experiência incrível. O que você vai dizer sobre aquilo? Provavelmente muito pouco. Então você tem pouco a dizer, mas tem uma grande experiência. Depois, se quiser, recorre aos seus métodos, mas acho que o
momento mais rico é anterior a esse. Você olha para a imagem e diz: “isso aqui aconteceu; essas pessoas existiram, elas produziram isso e guardar essa imagem tinha uma razão de ser”. Nesse sentido, eu sou um pouco barthesiano. Ele diz: “mando embora todo o meu saber” – e, nesse momento, é que se sente tocado pelas imagens. Por mais que eu tenha estudado imagens a vida inteira, é uma delícia quando essa erudição falha. É, inclusive, daí que segue a motivação para decifrar coisas. O por quê de certas imagens indecifráveis terem tanta força, ou fazerem com que eu me cale. Em algum momento, eu vou tentar transformar aquilo em palavras, mas acho que o silêncio é uma bênção. Muita coisa acontece nesse silêncio. Pensando num livro de imagens, por exemplo: eu acho incrível quando, na posição de editor, curador
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ou crítico, você começa a decifrar a engenharia de um livro, mas tem uma coisa anterior que é muito importante. Quando eu folheio um livro, esse livro opera para mim uma espécie de mudança de meio. Como a experiência de se atirar em rios. Você está ali, seu corpo tem um peso. Quando você se atira na água, ele muda de peso. E essa água tem um movimento, e não é exatamente o movimento que você está fazendo; ela é quem te coloca em movimento, e você se deixa levar pelo fluxo. Quando eu entro num livro, antes de pensar qual é o tema ou a estratégia de edição, gosto de entrar nesse fluxo que me insere no meio. É incrível essa experiência. Em parte, é você que determina ela, mas existe um fluxo que está dado ali. Acho importante preservar esse momento em que ainda não estou fazendo a análise. E isso não é um campo de erudi-
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ção, é muito democrático. É uma experiência que a imagem oferece para todo mundo. Pode falar sobre alguma imagem que tenha te marcado especialmente? Não sei se tem uma só… tem as imagens da vez, né? [risos] Mas tem uma história interessante, que eu conto na minha dissertação. Eu não tive álbuns de infância organizados. Meu pai morreu quando eu tinha dois anos e, resumindo, um dia eu decidi procurar essas imagens da infância. Tive que ir atrás, porque estava tudo espalhado. Eram poucas imagens e estavam dispersas. Nisso, teve uma imagem que foi contrabandeada para esse conjunto. Eu descobri, depois de muito tempo, que uma imagem com um menino que eu achava que era eu, era na verdade uma fotografia que eu tinha batido em Paranapiaca-
ba, de um menino dando a mão para o pai. Parecia comigo, com as minhas fotinhos de infância, e eu contrabandeei ela. Depois de um tempo, achei a imagem no filme e entendi. Isso foi um gás importante na minha tese de mestrado sobre o acaso; essa imagem ocupou muito a minha vida. E tem outras coisas mais banais. Os autores clássicos da fotografia… em algum momento, eu me cansei deles. Mas aquela foto do Capa, da guerra civil espanhola, se tornou muito importante para mim no momento em que se demonstrou que a leitura que estava feita sobre ela era falsa. A partir do momento que eu soube disso, essa imagem se tornou contemporânea para mim, assumiu outro destino. Passou a equivaler a uma coisa que a gente perdeu um pouco de vista, que são os mitos. Os mitos têm uma profunda capacidade de compreender
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a gente e explicar certas coisas do mundo, por mais que a gente saiba que eles são “falsos”. E essa imagem passou a ocupar esse lugar de mito para mim. Ela é uma construção, mas nenhuma outra imagem da história fala tão bem sobre o que é um movimento de resistência. Um corpo que você não sabe se está indo para trás ou para frente, que já foi golpeado, mas parece ainda ter ímpeto… E tem outras imagens, também. Eu vi, em Kassel, o filme do Douglas Gordon sobre o Jonas Mekas [atualmente em cartaz no IMS]. O filme tem quase 2h e, durante quase o tempo todo, você está diante de uma tela preta. De vez em quando, ela fica vermelha, ou aparece algo… mas quase sempre preta. E as imagens produzidas por essa ausência de imagem… que coisa incrível. Como é que você pode ter na memória a imagem de uma tela
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preta? Mas eu tenho. E isso tem me mobilizado muito. Claro que o filme é muito movimentado pelas imagens que o próprio som e as falas criam, mas é mais do que isso. Aquela tela preta é uma experiência visual muito forte. A experiência de fazer uma tela preta durar diante do olhar é muito forte. Por falar em experiência, gostei muito do que você escreveu a respeito das cicatrizes da cidade, depois de mais um pixo polêmico em São Paulo. Como foi sua experiência com essa imagem, e a repercussão do texto? Eu já tinha escrito alguma coisa na época em que o prefeito mandou apagar os grafites e os pixos dos muros. Esse é o tipo de texto que vem assim: eu tô olhando para o mundo, está acontecendo algum fenômeno, e eu me pergunto: o que eu penso
sobre isso? Não para ser do contra, nem para entrar num certo fluxo que a esquerda determinou…, mas para pensar mesmo. E esse texto foi assim: olha, antes de decidir se gente quer liberar o muro para o pixo ou não, a gente tem que entender que a cidade é uma coisa que não deu certo. Ela permite muitos recalques, e promete um espaço público que ela não oferece, que é um espaço muito regulado… Te tira, por exemplo, a paisagem. Você não tem o que ver; tem paredes. A cidade é muito opressora. Então, antes de pensar se eu acho o pixo uma coisa bonita ou não acho, eu penso na cidade como uma ferida que gera sintomas. O cara sair lá da periferia e vir para o centro ocupar um muro com um desenho, ou uma mensagem… não é uma carga que você pode depositar sobre aquele sujeito, uma carga de contraventor. Tem
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um sintoma que é da cidade. Se você tirar essa via de escape do sintoma, maquiar… É como um pus. Tem que sair, vai vazar pela sua pele de alguma maneira. É uma válvula de escape para uma tensão, e a pior coisa é querer fingir que ela não existe, tratar cosmeticamente. Eu não me deleito com a arte da pichação, mas acho que é da natureza da cidade. Agora, aquele “olhai por nóis”… aquele eu achei lindo. Achei incrível, plasticamente. De longe eu já tinha achado bonito, mas quando eu vi de perto, aquele vermelho escorrendo… E digo mais: o cidadão de bem que pode não ter gostado daquilo, ele nunca olhou para o Páteo do Colégio como pode ter olhado depois da marca que foi deixada lá na parede. Quem é esse “nóis” para quem se deve olhar, onde é que ele está? Esse erro ortográfico é poeticamente preciso. O pixo não
inviabilizou a fruição cultural de um patrimônio, pelo contrário, fez as pessoas se perguntarem: mas afinal, o que é o Páteo do Colégio? Queria falar sobre um outro texto, no qual você levanta essa questão complicada do autor(a) cuja biografia passamos a odiar versus o autor(a) que admiramos artisticamente durante décadas. Tem um momento em que você cita o Foucault, e depois continua o raciocínio, que acho especialmente interessante. Pode falar um pouco mais sobre isso? [trecho do texto]: “Uma obra inventa seu criador, tanto quanto o contrário. As leis fazem coincidir essa pessoa e um sujeito civil para, de um lado, situar responsabilidades pelo que é dito e, de outro, estabelecer as condições que fazem da obra uma
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propriedade” (Foucault, em “O que é um autor”). Como uma sombra
que se rebela do corpo, mas que não existe sem ele, há um ser que se produz entre as obras, que é por si mesmo instável, e que nem sempre está no mesmo lugar desse beneficiário dos direitos e das responsabilidades autorais. Eu acredito que a obra nunca pertence totalmente ao sujeito dessa instância jurídica que a gente chama de autor; essa pessoa que recebe os créditos e que tem o direito sobre aquele projeto. A obra tem vida própria e pode inclusive, de muitas formas, contradizer o pensamento desse autor. Dá para usar o pensamento de Heidegger contra um Heidegger que pode ter flertado com o fascismo, por exemplo. Eu cito o Foucault, aí, porque ele foi um dos primeiros a des-
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construir a ideia de autoria. Porque houve um tempo em que não havia, de fato, a ideia de autoria. Num mito grego, por exemplo, que importância tinha a autoria? Aquilo foi sendo lapidado durante séculos. Shakespeare, supostamente, compilou e melhorou histórias que já circulavam numa certa cultura oral da Europa. Então o Foucault foi buscar, na história, as razões pelas quais essa figura jurídica do autor surgiu, porque em algum momento isso aconteceu. Existe um cara, com uma vida privada, e existe uma obra. E existe um sujeito, no meio disso, que em parte é uma personalidade que se descola dessa pessoa física, e em outra é inventada pela própria obra, à revelia daquela primeira figura. A obra cria um ser que vai além daquele que briga com a mulher ou com o marido, que vai no banheiro, cozinha, leva o
cachorro para passear. Tem uma figura que está ali no meio, e acho que precisamos nos perguntar sobre cada uma dessas instâncias. Certamente há pessoas geniais que cometem violências, que são fascistas. E não digo que não caiba a nós julgá-las. Cabe a nós julgar essas pessoas como julgamos todo mundo que atravessa o nosso caminho, mas acho que cabe um certo nível de descolamento entre esse sujeito, que é horrível na vida pessoal, e o ser criado, do qual ele não é totalmente dono. Esse sujeito intermediário pode ter um pouco mais de crédito do que aquele outro cara. O cara pode ser um imbecil e a obra dele pode ter algo a nos dizer. A gente tem que dar crédito para o que merece e partir para a porrada na direção de quem merece levar também. Pode contar um pouco sobre o seu livro
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Ao lado, dois fragmentos do
“Para eles, essas construções eram sólidas. Fora de sua esca-
livro “Diante da Sombra”, que
la de tempo, é certo que tudo isso desaparecerá num instante.
o autor lançará em breve. Se-
É surpreendente este estado de disponibilidade inútil, quando
gundo Entler, os trechos pertencem a uma história em que o narrador descreve a desaparição da humanidade. “Ele vê
todas as coisas ainda permanecem de prontidão para alguém que já não existe, como uma festa surpresa à qual o homenageado não comparece. Antes de me calar, e para meu próprio de-
beleza nessa paisagem livre
leite, achei que seria razoável preservar a imagem desse mo-
de nossa presença. E decide fo-
mento, como um tributo à brevidade de sua existência.”
tografá-la”. O conto foi escrito a partir de fotografias que
“Nestes arredores, aconteceu o último batimento de um cora-
Ronaldo fez no Chile. “Era um
ção humano. No momento destes registros, ainda restavam re-
dia muito frio e chuvoso, pa-
síduos de alguns movimentos interrompidos, o ranger de uma
recia mesmo que o mundo ha-
porta mal fechada, a vibração do sino de uma igreja, o vai e
via acabado um pouco antes”. Além deste, outros treze contos estarão no livro.
vem de uma cadeira de balanço. Também o espasmo de alguns corpos. Ninguém poderá ver essas imagens, é verdade. Mas muitas pessoas puderam antecipá-las em seu pessimismo. Falo sozinho, mas muitos já conheciam esta narrativa.”
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de contos [“Diante da Sombra”], que deve ser lançado em breve? Escrever é uma coisa que venho fazendo há muitos anos, e buscar a forma dessa escrita tem me ocupado muito. Comecei a olhar para a figura dos meus mestres e pensar: como eles escrevem? Didi-Huberman, Maurício Lissovsky, Etienne Samain… caras que, na sua maneira de escrever, me intrigam muito. O próprio Rubens [Fernandes Junior], com as crônicas; como ele consegue narrar aquilo, fazer um acontecimento tão pontual render tantas histórias? Em um dado momento, eu assumi que a escrita que me interessava tinha a ver com a forma do ensaio; esse lugar entre a ciência e a arte. Fui testando desgarramentos possíveis. Com a imagem, sabia que o que me interessava era justamente a incerteza. Mas e aí, o que você faz com isso?
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Fui assumindo que, aquilo que faltava, preenchia eu. E esse exercício de especular, de testar possibilidades de histórias que preenchessem essas lacunas, começou a ocupar meus textos críticos. Quando estava falando com um artista, e ele me contava sobre o trabalho dele, depois eu me perguntava: e o que mais? O que mais tem aí, além daquilo que ele já me contou? Esse desgarramento dos fatos já estava muito presente na minha escrita como crítico, e aí fui testando. Teve um texto que escrevi sobre um colecionador francês que jurava que um rosto borrado que aparecia numa foto era Baudelaire. Entrei nessa fantasia e, enquanto discutia a relação de Baudelaire com a fotografia, eu imaginava ele como um fantasma assombrando o estúdio de um fotógrafo. Esse texto me convidou de vez: por que não escrever ficção para valer?
Então vai ser um livro de contos, mas são contos que me interessam como textos teóricos. Ainda estou partindo de uma questão que tem a ver com a cultura visual. Por outro lado, tive que limpar um pouco das minhas ambições utilitárias, e ir mais em direção à literatura. O livro está pronto. Mas foi muito difícil, especialmente a manutenção do tom. Tem textos que eu tenho vinte e tantas versões dele, e muito diferentes entre si [risos]. Foi uma lapidação muito minuciosa, por conta da minha insegurança com esse tipo de experiência. São 14 contos, todos falando de imagem. Alguns textos nasceram de imagens, e as imagens estão lá; tem textos com personagens fotógrafos, que produzem imagens, e essas imagens estarão lá… Quero acreditar que as pessoas do mundo da fotografia vão curtir ler. No meio literário, não tenho a menor
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ideia da repercussão que o livro vai ter [risos]. Você acredita em fantasmas? Ô! Não sei qual a literalidade dessa sua pergunta, mas eu acredito em fantasmas [risos]. Eu falei algumas vezes em sintoma, hoje. Se você quiser trocar a palavra “sintoma” pela palavra “fantasma”, vai funcionar muito bem. O sintoma é aquela coisa mal resolvida, que vai acabar saindo por algum lugar não totalmente codificável, analisável. É o corpo da imagem falando com o seu corpo. E o fantasma é a mesma coisa. É essa alma penada, mal resolvida, que não achou o seu lugar e vai aparecer onde não deve – e que, quando aparece, produz uma experiência sempre muito singular. Acho que o que a fotografia cria é uma espécie de ambiente bem assombrado. Em francês, a palavra
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Alguns textos nasceram de imagens, e as imagens estão lá; Quero acreditar que as pessoas do mundo da fotografia vão curtir ler. No meio literário, não tenho a menor ideia de que repercussão o livro vai ter [risos].
“fantasme” quer dizer fantasia, e não fantasma. Tem “phantôme”, que é fantasma mesmo, mas a palavra “fantasme” significa fantasia, desejo. Eu acredito muito que a imagem é esse lugar por onde o imaginário não resolvido transita. A sensação de olhar para uma imagem e reagir assim: “acho que vi alguma coisa”, “acho que alguma coisa se moveu”. A imagem produz isso. A gente é assombrado pelo tempo por meio das imagens. E essa ideia também não é minha,
não. Vem de “História de fantasmas para gente grande”, do Aby Warburg. E, bom… as fotografias de fantasma são um belo capítulo da história, né? Na França, por exemplo, o espiritismo não era bem uma religião, estava mais para uma diversão de salão da burguesia. Nisso, muita gente fotografou coisas, e teve muita picaretagem também. E a fotografia pós-mortem…? Tem muita coisa muito louca em cima disso [risos]. por Laura Del Rey
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GABRIELA MASSOTE LIMA Meu Brasil Varonil
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abriela faz uso do surrealismo e do humor para discutir tópicos profundamente enraizados em nossa sociedade. Meu Brasil Varonil discute questões de gênero, divisão de poder, machismo, tudo de forma extremamente ácida, com uma potência visual que mantém o espectador sempre atento ao que está por vir. Com suas intervenções de técnicas variadas, Gabriela atualiza e transforma estas imagens, ainda apontando para a manutenção de antigos costumes de uma sociedade organizada em torno da figura do homem branco.
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Gabriela, como começou sua relação com a fotografia? Eu comecei a estudar fotografia há mais de 10 anos. Mas nunca priorizei a sua forma técnica. Estive sempre envolvida com seus aspectos históricos e subjetivos. Sempre gostei da teoria e discursos estéticos sobre a imagem. Nunca me atraiu aprender sobre a melhor objetiva, ou fazer cursos de flash, ou ter o melhor equipamento. O que eu queria mesmo era investigar sobre o que estava atrás daquela imagem, qual o aspecto psicológico daquele personagem, ou mesmo daquele(a) fotógrafo (a), ou melhor, daquelx fotografx. Que tipos de problemas individuais, políticos ou sociais levava alguém a criar aquele tipo de imagem.
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Nos conte sobre a criação de Meu Brasil Varonil. Desde a faculdade, o meu interesse se voltou para os discursos de gênero dentro da História da Arte. Minha pesquisa hoje está voltada para investigar esse sistema de representação construído a partir da TV, do cinema, da literatura, das artes, das revistas de moda, que favorece o corpo masculino enquanto ideal não apenas físico, mas também social. Ou seja, investigar as estruturas de dominação que foram tão naturalizadas e que perdemos de vista como construções históricas de dominação apenas e não uma verdade natural. Com meu olhar o tempo todo voltado para isso, um dia eu andava na feira de antiguidades da Praça XV e
Estas imagens servem para denunciar ironicamente essa antiga, porém constante, estética de propagação da masculinidade e seus códigos viris. dei de cara com um grupo de fotografias antigas em que todos seus retratados eram sempre homens em posição ativa ou de liderança: políticos, militares, executivos, burocratas. Investigando um pouco mais de perto, percebi que aqueles homens, aquelas autoridades, naquelas fotos do século passado ainda eram os mesmos políticos de hoje, os mesmos homens que hoje ditam e controlam nosso corpo e a não evolução do nosso país. Não resisti e comprei aquele lote. Foi o primeiro e depois virou uma obsessão. Mas era preciso atualizá-los de alguma forma. Trazê-los para os
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dias de hoje. Então, criei uma série de intervenções mistas como colagem, recortes e pintura. Recortes de pênis, burcas, adesivos infantis ou ícones da história da arte (tudo vale) trazem essas imagens originais de um tempo passado para os dias de hoje e servem para denunciar ironicamente essa antiga, porém constante, estética de propagação da masculinidade e seus códigos viris. Há uma discussão intensa de símbolos e códigos de poder e masculinidade nesta série. O que te levou a este tema? A dominação simbólica aparece em diferentes manifestações que privilegiam o ideário masculino atribuindo aos homens funções de maior valor ou de superioridade nas narrativas sociais. Assim, a andronormatividade permanece enquanto parâmetro
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determinante nas relações em sociedade e o homem ainda é percebido como o varão: sexo forte, dominador de classes e provedor. Em tempos em que os discursos de liberdade de gênero são censurados, o conservadorismo se aproxima e podemos acabar elegendo um “mito”, um mito ignorante mas que representa maior parte dos homens do nosso país, do motorista de taxi ao empresário, fazse assim, urgente a denúncia de que as instituições como Estado, Família, Igreja, além de mídia, História da Arte e da própria Fotografia, tiveram grande participação no fortalecimento dos signos e mitos fálicos atrelados ao corpo masculino que não são reais. São construções. É um discurso de poder. Qual a importância do humor, do escárnio, para a construção desta série?
Eu começaria dizendo que a política brasileira é digna desse escárnio e que esses personagens são merecedores de cada tomate podre jogado sobre eles. Mas não só. A série Meu Brasil Varonil é um trabalho direto, não pretende esconder nada. Não há aqui um sentido suplementar. Ela provoca um sorriso de canto de boca com se justamente as pessoas se reconhecessem na denúncia ao machismo nosso de cada de dia que ela faz. É quase um risinho de desespero. O desespero do falo, do uniforme militar, da censura, de uma imposição social sobre todas nossas cabeças. Afinal, carregar o falo é um peso para o homem também. Gosto de pensar em um humor irônico como uma das chaves da poética do trabalho. Não é algo que irei tirar de mim, é quase uma estratégia de sobrevivência.
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ayra registrou suas casas temporárias durante um ano sabático. Neste período ela se encontrou em ambientes variados, com estados de espírito e condições distintas. Suas imagens registram estas transformações, tanto geográficas quanto da própria autora-personagem. As mudanças são flagrantes nas expressões, no corpo, na atmosfera das imagens. O recurso do autorretrato é extremamente valioso aqui, assim se constrói um registro quase cotidiano da passagem do tempo, do amadurecimento, da saudade. Em Morada, vemos uma busca pela tentativa de entendimento do que faz um espaço um lar.
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Mayra, nos conte sobre sua relação com a fotografia. Sinto que a fotografia sempre me acompanhou de alguma forma. Ela sempre me fascinou, mas eu demorei bastante para me acreditar como fotógrafa, para realmente investir e estudar sobre. Nesse momento, quando penso na minha fotografia, me imagino um mergulho profundo, em que eu tenho vontade de ir cada vez mais longe, de ir além. Eu gosto das possibilidades que a fotografia me oferece e de como a minha forma de enxergar o mundo vai se transformando por causa dela. Me sinto desafiada com a possibilidade de me expressar e mostrar alguma coisa a mais com o meu olhar, de causar algum sentimento, de contar
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uma história. Percebi também que com ela eu posso explorar o que está escondido, em alguma parte de mim, e me abrir ao mundo. Como surgiu o ensaio Morada? Em 2016 iniciei uma viagem pela América do Sul, um ano sabático. E durante a minha preparação para essa viagem, percebi que durante um bom tempo não teria um lar, um espaço só meu. Por isso, no ensaio Morada, me retrato nas minhas casas provisórias, buscando me inserir nesses novos ambientes, numa reflexão sobre o que é um lar. Como o autorretrato surgiu na sua prática artística? Como ele auxiliou na organização deste ensaio?
Me retrato nas minhas casas provisórias, buscando me inserir nesses novos ambientes, numa reflexão sobre o que é um lar. Eu sempre preferi fotografar pessoas e ficar do outro lado da câmera. Autorretratos eram muito raros para mim. O Morada é um ensaio íntimo, que começou num momento em que eu precisava olhar para mim e o autorretrato me dá a possibilidade de convidar as pessoas a entrarem no meu universo, a conhecer a forma como eu me vejo. É perceptível a sua transformação ao longo das imagens. Você se vê como uma ou como várias dentro destas fotografias? É interessante perceber essa mudan-
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ça. Cada experiência nos transforma de alguma forma, física ou interiormente, a cada dia mudamos um pouco. No meu período sabático, sinto que as minhas transformações foram mais evidentes, porque vivi muitas coisas importantes, testei os meus limites, me permiti mais. Quando vejo cada uma dessas fotografias, consigo lembrar de como eu era, o que eu sentia naquele momento. Hoje me vejo como a mesma pessoa, porém bem diferente de quando comecei esse trabalho.
modo, imaginei que sentiria muita falta do que eu estava deixando para trás. Conforme ela foi acontecendo, vi que estar em constante mudança, compartilhar espaços e processo de adaptação em cada um deles é um desafio que foi ficando cada vez menor. Foi um exercício de desprendimento muito importante. Para mim, ter um lar passou a ter outro significado, que independe do quão longe estou. Hoje o meu lar pode ser em qualquer lugar.
Este é um trabalho que lida com um extenso deslocamento geográfico. Para você ele fala mais sobre as distâncias percorridas ou sobre se sentir em casa em cada um destes locais? Antes da minha viagem, imaginei que não sentir-se em casa seria um inco-
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erambulava pelo livro de Sergio Larrain, Vagabond Photographer, quando vi fotos que ele chamou de “fotos satori”, uma epifania, uma iluminação. Talvez tenha sido algo assim que me aconteceu quando olhei para uma foto que fiz no mês de junho deste ano de 2018. No dia 21/06, 07:07 h, começou o solstício de inverno abaixo da linha do equador. Estava mais preocupado em apoiar o relógio para fazer a foto porque me parecia curioso aquele
Angelo José da Silva é professor de sociologia na Universidade Federal do Paraná e fotógrafo. Suas pesquisas mais recentes focam o espaço urbano e o grafite.
conjunto de números abrindo esse evento mágico e, simultaneamente, matemático, preciso como a solução de um problema imaginado. Quando olhei para a foto com a lombada do livro de Koudelka ali atrás algo me soou familiar. Em agosto de 1968 Josef Koudelka fotografou a cidade de Praga invadida pelos tanques soviéticos. Uma dessas imagens é a de um relógio em seu pulso com uma avenida deserta ao fundo. Eram 12:21. Nossa memória visual muitas vezes guia nossos movimentos, dirige nosso olhar. Já me disseram que a gente fotografa com o olho. Talvez melhor, quem decide quando o dedo aperta o botão é o olho e não o cérebro. Quando percebi esse mergulho dentro de mim notando o nome Koudelka meu
cérebro se acendeu, meu coração bateu mais rápido e algumas gotas de chuva caíram dos meus olhos. Memórias, afetos, ideais, imagens, tudo se misturou. Cinqüenta anos depois de tudo aquilo não temos mais Tchecoslováquia, mas temos Praga. Não se nota mais tantos relógios de pulso mas todos temos nosso relógio digital de bolso. Um pequeno número de fotos analógicas em preto e branco e bilhões de digitais subindo para as nuvens. O solstício deste inverno me chamou mais a atenção do que aquela Primavera de Praga. A URSS se foi e ficou para nós uma leve sensação de déjà vu com a Rússia 2018. As coisas mudam para ficar mais ou menos no mesmo lugar.
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Em agosto de 1968 Josef Koudelka fotografou a cidade de Praga invadida pelos tanques soviéticos. Uma dessas imagens é a de um relógio em seu pulso com uma avenida deserta ao fundo. Eram 12:21.
MANDE SEU PORTFÓLIO revista.old@gmail.com Fotografia da série Saving Fire For Darker Days, de Maria Oliveira. Ensaio completo na OLD Nº 73.