antes de retormar o enfrentamento, a ação, a violência, um olhar rertospectivo se faz necessário. de onde viemos e para onde achamos que estamos indo? é um bom caminho? é o melhor caminho? são dez anos de janela e dez anos de transformações que não esperam, não pedem perdão. barbatana #2 olha para trás, investiga e compartilha alguns dos momentos mais instigantes já proporcionados pela oficina janela crítica ao longo dos anos e convida a pensar sobre o quê e como construir. barbatana é uma publicação idealizada por luís fernando moura e rodrigo almeida e editada por felipe andré silva. recife, 2017
Jarro de Peixes
André Antônio [Janela I, 2008] Espero não ter passado em suas vidas sem ter deixado qualquer tipo de recordação Imagine encontrar, por acaso, uma fita VHS caseira velha, pertencente a alguém que você jamais conheceu. Ao contrário daquelas ficções onde as pessoas guardam recordações pessoais em belos rolos de Super-8 cheios de saudosas imagens desbotadas de membros familiares felizes em parques ou praias, o que você vê no vídeo são atos de uma banalidade indescritivelmente violenta. Você descobre, em sua dimensão mais humana e socialmente patética, uma vida que passou. O peso dessa vida, cujo conhecimento é dolorosamente inessencial para você, é tamanho que você tem a necessidade quase que biológica de compartilhar o fato assustador de tê-la descoberto. Não sei se essa historia pode ser, literalmente, relacionada ao curta Jarro de Peixes (de Salomão Santana, CE, 2008), exibido na mostra competitiva brasileira Salvar Arquivo. Mas ela pode ajudar a falar sobre as dimensões que a fruição do filme pode exigir e/ou atingir. Chegando ao quinto dia de exibições, é possível fazer com mais segurança algumas afirmações a respeito da Janela Internacional de Cinema do Recife. Primeira: um dos temas mais presentes na seleção, tanto nacional quanto internacional, tem sido a memória. Nenhuma novidade. Afinal, essa é uma das maiores obsessões da cultura contemporânea, com seus revivals, seus almanaques, sua moda retrô, sua nostalgia juvenil cult, e a lista poderia continuar sem dificuldade. Segunda afirmação: uma das experiências mais radicais (e aqui tentemos escapar ao máximo da valoração “boa”/ “ruim”) em termos de cinema-memória foi Jarro de Peixes, um filme que simplesmente seleciona peças de um velho VHS caseiro e as pões num contexto bem diferente e específico: a sala de cinema. É impossível explorar aqui a riqueza de camadas que as múltiplas leituras do curta podem sugerir. Pode-se rir com a percepção de como os signos (cabelos, roupas, jóias, mobília, gestos, um pato kitsch de porcelana branca que ficava na estante enorme e escura...), pertencentes provavelmente a uma classe média da década de 80, ficaram irremediavelmente datados, ultrapas-
sados e ridículos. É possível, porém, olhar tudo isso antropologicamente e tentar estudar as mudanças em certas práticas religiosas e no modo como o ser humano comum (especificamente o brasileiro) se relaciona com a câmera filmadora. É possível, também, tentar penetrar no fascínio da textura do VHS amador, da iluminação barata de “festa de aniversário” e do som de uma moto que sem querer passou na rua na hora em que se estava filmando a leitura de um texto religioso na mesa da cozinha e sentir o peso da aura de tudo isso. É possível vislumbrar o ensaio de um tipo de narrativa assustadoramente aberta, e que radicaliza a democratização dos modos de produção áudio-visual, descartando de vez qualquer tipo de desvalorização com relação a modos estéticos como os “amadores”, “funcionais”, “bregas”. Jarro de Peixes gerou estranhamento e debate. E isso é sempre bom quando se trata de arte. Talvez, contudo, a proposta de Salomão Santana tivesse sido melhor compreendida se fosse exibida como videoarte na parede de um museu, onde, ao lado da própria projeção áudio-visual, deveriam figurar seu título plurissignificativo e a sinopse que pode ser encontrada no catálogo do Janela e que é reproduzida a seguir: “Estou indo embora para sempre. Quero que guardem de mim algumas lembranças. Espero não ter passado em suas vidas sem ter deixado qualquer tipo de recordação”. Jarro de Peixes é um filme que merece continuar sendo discutido, e que talvez tenha chegado à sala de cinema um pouco cedo demais. Talvez.
Ventos de Agosto
Yuri Lins [Janela VII, 2014] O cinema digital abriu uma gama de possibilidades para a arte cinematográfica: filma-se praticamente sem limites, ampliando e democratizando essa capacidade própria ao cinema de gravar e reproduzir uma impressão de tempo; algo que deu a toda uma geração de realizadores contemporâneos certo amor pelas possibilidades do plano, pelo gesto de contemplação e pelo fluxo temporal contínuo. Se pensarmos na materialidade fantasmagórica de um Pedro Costa, nos espaços em ebulição da China de Jia Zhang-ke ou na história em ruínas de Lav Diaz, será perceptível que nenhum destes tem a pressa de abreviar uma experiência de imersão e vivência.
Ventos de Agosto (Gabriel Mascaro, 2014) é um filme feito em digital e que trabalha questões semelhantes a outros filmes de cinema contemporâneo, logo, é perceptível que se trata de filme de extrema cinefilia e que expira todas as suas influências – o que não é necessariamente um problema. Em Ventos, há os planos dilatados, a paisagem sonora imersiva, a utilização de “não-atores”… Tudo que irá agradar aos entusiastas menos atenciosos deste tipo de cinema. Porém, no seu decorrer, o filme revela algumas insuficiências. O grande problema de Ventos de agosto reside na pressa de seu discurso. Mascaro a todo tempo busca imagens que sintetizem uma ideia; essa procura acaba criando um didatismo capenga que prejudica o filme. Há as cenas pontuais, como aquela em que o mar invade a beira onde cruzes estão fincadas, ou aquela em que ele quer mostrar a imobilidade da rotina, e portanto filma duas ou três vezes o mesmo plano em momentos diferentes – Shirley dirigindo o caminhão ou tomando sol no meio do mar, os homens trepados em cima dos coqueiros, Jeison em meio a uma mata. A repetição aqui se torna calculada, ou pior que isso: ela deixa transparecer essa métrica, que acaba sendo escassa como experiência – lembremos aqui de toda a maestria das repetições apocalípticas de Jeanne Dielman. Por mais que o gesto de filmar aquela realidade e seus personagens seja algo de extremo valor, a busca constante por essa dialética de simbologias professorais acaba tornando Ventos de Agosto um grande resumo de tudo aquilo que já conhecemos de cinema contemporâneo, mas sem ter a força dos melhores filmes desta vertente, justamente porque neles as significações estão presentes não em imagens-síntese, mas nas lacunas e fissuras de uma imagem que precisa ser vivenciada, sentida e habitada, e isso não se alcança tendo pressa em discursar uma ideia – tomemos como exemplo Plataforma (Jia Zhang-ke, 2001) onde certo desenvolvimento do capital vai infectando, aos poucos e sem nos darmos conta, a realidade dos personagens; ou mesmo Síndromes e um Século (Apichatpong Weerasethakul, 2006), onde as noções de arcaico e moderno copulam em simbiose. Mascaro filma em digital, mas não deixa se contaminar com a liberdade que esse dispositivo possibilita; aqui ele faz seu filme sofrer de uma claustrofobia pedagógica, arredia e cômoda.
No mais, Ventos de Agosto é certamente um filme que precisa ser revisto e problematizado constantemente. Há questões presentes no filme que esta não abarcou, mas que precisam de melhor atenção e debate. A sensação que fica no ar é que Ventos é um ponto de transição na carreira de Mascaro, seu L’enfant Secret, e estes costumam ser momentos de desestabilização e autocrítica. Esperamos que aquele Mascaro que assumia riscos, tão presente em seus documentários, não tenha se perdido em meio à contemplação programática. Veremos o que vem adiante.
Tubarão
Luciano Viegas [Janela V, 2012] Cheiro de melancia Horário de almoço, sexta-feira, barriga vazia – imagine uma pessoa que acaba de acordar – e alguém esqueceu a televisão ligada no jornal, quanta desgraça! Morreram dez, nasceram outros quinze, mas a notícia a ser ostentada como troféu era a do tubarãozinho que caiu na rede de um pescador em Del Xifre. O terceiro em uma semana, rodeado por crianças e idosos. Lá no fundo dos mares olindenses esse triste indivíduo cartilaginoso nunca havia sido tão festejado. Eis que chega, enfim, sua glória, somente depois da vida. De noite teríamos Tubarão (Steven Spielberg, 1975), agendado para acontecer já há quanto tempo antes dessas notícias? O Janela acertou a aposta. Não se explica a sincronia dos fatos. Coisa que só acontece numa cidade como Recife, onde o cheiro doce da melancia é mau presságio. Nunca fui entender
esse “detector de perigo”, mas para quem é de fora, o postulado se resume assim: cheiro de melancia à beira-mar é sinal de tubarão. Percorri a Conde da Boa Vista para comprar um bolinho de milho, uma grande mobilização policial em submetralhadoras se acrescentava ao caos habitual da avenida. A fila já dobrava duas esquinas, um grupo de pessoas na frente do São Luiz em suas cadeiras de praia exigia seu “FREE SURF”, todo um clima de complô em processo. Não tá fácil ser tubarão em Pernambuco. O ataque Antes que o famigerado rei dos mares pudesse mostrar seus dentes, lá fui eu atacar de jornalista, numa conversa com os manifestantes. Parece-me que o único consenso entre eles (além de encher os copos) era da urgência de quaisquer medidas governamentais para conter o avanço dos tubarões. Que tipo de medidas, quis saber. Descobri a existência de duas instituições rivais, conversando com Suzana, que vestia uma camisa do PROPESCA. Ela me contava que, com dinheiro público, o PROTUBA cria tubarões nas carcaças naufragadas de navios pela costa do estado. Que cada tubarão tem um chip, no valor de 10 mil reais, para que possam ser rastreados. Que o IML confunde propositalmente, em muitos dos seus laudos, mortes por afogamento com mortes por ataques. Outros me explicavam que a construção do porto de SUAPE causou diversos desequilíbrios no ecossistema litorâneo e os tubarões, por falta de alimento, estão se aproximando com mais frequência da costa. Ando por fora dos noticiários, mas Suzana me garante que morreram 55 pessoas desde 1992, uma média de quase 3 por ano. A função do PROPESCA, desde 2009, é organizar ações de caça às espécies agressivas. Como em Para que o mundo prossiga (Pierre Perrault, 1963), onde uma vila de pescadores do Quebec resolve resgatar a tradição de caça aos marsuínos, Recife parece se vestir, num instante, em fardas de guerra. Entramos no cinema e salve-se quem puder. Fui de poltronas superiores, depois de assistir todo o festival nas primeiras fileiras, medroso de que o Tubarão saltasse da tela, como parecia já ter feito, impregnando a atmosfera da nossa magna sessão. É doce morrer no mar Dorival Caymmi fala do mar como se o quisesse abraçar, engolir por inteiro, amá-lo a ponto de tornar-se o próprio mar. Isso numa Bahia da primeira
parte do século XX, que imagino parecida com a vila pacata de Barravento (Glauber Rocha, 1962), do tempo em que existia peixe-espada. Já Hemingway, em O Velho e o Mar, nos dá um personagem que respeita seus peixes como aliados, a única garantia de que continuará vivo, sua própria sobrevivência (o velho Santiago também sofre constantes ataques de tubarões durante sua pesca). Sempre dependemos do mar, porém nunca o maltratamos como nesta época de turismo em Amity Island (a praia fictícia de Spielberg), multinacionais da pesca, petróleo pré-sal, entre outras invenções geniais que resultam nesta cena poeticamente ecológica, em plena Sessão da Tarde: uma placa de automóvel da LOUISIANA no estômago recém-operado de um tubarão-tigre-lixeira. WANTED! Posso estar exagerando, mas senti algo de histeria coletiva naquela Rua da Aurora, um envolvimento ansioso do público com o acontecimento, ampliado pelas circunstâncias colocadas para além do filme. Protestos, fila quilométrica, ovos jogados das janelas do Edifício Duarte Coelho, vibração de arquibancada quando o tubarão explode na tela. A excentricidade da ficção de Spielberg que se insinua sobre a nossa microrrealidade cinéfila no São Luiz. Recife resolveu brincar de batalha naval.
Basta Estar Vivo
Lorena Tabosa [Janela IV, 2011] Tudo o que está vivo, morre. Esta talvez seja a maior das lições que jamais iremos aprender. Jamais porque por mais que haja o esforço, nunca se sabe, ao certo, como lidar com algo letal, implacável e pontual ao mesmo tempo. E não é necessário que se esteja diante da morte física, da morte de alguém. Pensamentos, desejos, sonhos e medos podem ser abatidos, dando vida à dor. No programa Internacional 3, Melancolia, o espectador do Janela pôde se deparar com este delicado limiar existente entre o desespero, a culpa e a saudade. Em Raio de Sol Bate no Setor de Congelados e Deixa Tudo Mole (Kommt Ein Sonnenstrahl in Die Tiefkuhlabteilung Und Weicht Alles Auf), de Lisa Weber, um casal leva uma rotina de calmaria, até um tanto apática. Não tomam café da manhã juntos e se prostram diante da televisão em poltronas separadas, num indício de indiferença. Mas uma cruz de madeira, fincada na beira de uma estrada, quebra a monotonia e dá lugar à dor em comum, a um abraço lado a lado. Numa representação simples e fiel, o filme nos transporta para os confins de uma grande perda e suas implicações em quem fica. É a sensação de um vazio impenetrável e, quase sempre, mas não neste caso, particular. Dizem que o homem sofre de véspera. Em A Viagem (Wycieczka), de Bartosz Kruhlik, devaneios de um avô sobre o passar do tempo, sobre aquilo que já se foi e sobre o que não mais virá. Ele ensina sua neta a pilotar uma scooter e a apreciar a natureza, embora saiba que, provavelmente, não a verá pôr em prática outras tantas lições que ainda tinha para ela. O tempo passa despercebido até o momento em que pesa demais. Na inocência da menina, nota-se que as toneladas são sentidas apenas por quem já está aí há algumas décadas e que, infelizmente, ela só saberá quando do envelhecimento inevitável causado pela dor da perda. E é assim com todos nós. Também comum à humanidade é a preocupação lançada em Adeus, Mandima (Kwa Heri Mandima), de Robert-Jan Lacombe: a despedida. No filme, fotografias de uma infância no Zaire e a partida da família, de origem européia, para nunca mais voltar. O lamento de Lacombe é a conhecida culpa
pelo adeus nunca dito, embora, à época, ele não soubesse que jamais veria aquelas pessoas outra vez. E sem nunca ter pertencido a nenhum lugar, ele descartou e foi descartado em meio a disparidades culturais. Numa fresta para a questão das lembranças versus identidade, o espectador tem a oportunidade de projetar-se novamente e indagar: somos frutos daquilo que vivemos ou o que vivenciamos é resultado daquilo que somos? Fotografias retornam na narrativa de A Esposa do Fotógrafo (Die Frau Des Fotografen), de Karsten Krause e Philip Widmann. Fazendo uso de fotografias diante da efemeridade do tempo e das falhas da memória, Gerti teve sua existência imortalizada pelo olhar do marido, em nus cobertos apenas de amor e de um quê de idolatria. O filme propõe uma reflexão sobre o que nos resta no fim de tudo. Serão fotografias? Será amor? Na verdade, um é bobina do outro e se um deixa de existir, o outro esmorece. Mas quando são os desejos que morrem, ou são forçados a morrer, nem a dor e nem o choro são, necessariamente, menores. Em Dois, Por Favor (Dos, Por Favor), de Fabian Vasquez Euresti, um reencontro mal sucedido com uma namorada permite que José se veja em desejo por um amigo. O choro de medo daquilo que não conhecia sobre si mesmo e a tentativa de calar a vontade se contorcem numa luta entre o homem passional e o racional. Mas para eliminar um desejo, outro - o de matá-lo – precisa nascer. Assim, a morte é, na verdade, vida, mesmo que dolorosa demais.
De Terça pra Quarta
Lucas Guimarães [Janela VIII, 2015] Uma singela experiência com a noite e com o cinema Voltava de uma das sessões do Janela no Cinema São Luiz quando me perdi pelas ruas de Boa Viagem. Era já tarde da noite e eu, um estrangeiro em Recife. Pra piorar, começou a chover forte. Enquanto tateava em meio à escuridão e ao aguaceiro, me veio à mente, como numa espécie de sincronicidade jungiana, o curta-metragem De Terça Pra Quarta, que eu havia assistido um ou dois dias antes, não lembro ao certo (tantos filmes!) – o que sei é que essa lembrança me trouxe um pouco mais de calma para aquele momento.
Porque o filme começa com esse garoto que perde o ônibus em meio às solitárias e escuras ruas de Fortaleza (voltava para casa, provavelmente). E o que poderia ser algo como uma história de terror, dada a compreensível perturbação com os perigos de se perder, transforma-se numa singela experiência com a noite. Ocorre um encontro fortuito com uma trupe de jovens que desafia os “perigos noturnos” para divulgar um espetáculo teatral – também por curtição – e o grupo o acolhe. Há no filme um frescor e uma potência típicos dos primeiros anos de juventude, materializados nas trocas afetivas dos membros do grupo, juntamente com o garoto neófito. E é essa potência e esse frescor que ocupam as soturnas ruas de Fortaleza, o que é capaz de provocar uma verdadeira limpeza mental em relação aos nossos medos associados às imagens da violência noturna – a noite está aí para ser vivida, não temam. Obviamente, nenhuma trupe de jovens na flor da idade foi me salvar durante a minha perdição em Boa Viagem. Tive que encontrar meu rumo sozinho, minha experiência foi de outra ordem e, a quem interessar possa, estou bem, deu tudo certo no final das contas. Mas o que gostaria de enfatizar, ao relatar um caso pessoal, é como o cinema é capaz de mexer com nosso imaginário e nossa percepção em relação às coisas e as pessoas – e, em alguns casos, nos dar alento, nos mobilizar para determinadas ações. A poetisa Matilde Campillho disse, durante uma das mesas da última edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que a poesia não salva o mundo, mas pode salvar “o minuto”. O mesmo pode ser dito do cinema e de outras artes. E isso não é pouca coisa.
Visita ou memórias e confissões Ingá Patriota [Janela VIII, 2015]
O Janela de Cinema sob o risco do real Ao final do festival, buscamos alguma maneira de consolidar a representação desses dias na nossa mente, uma forma de amarrar o sentido que será impresso na memória sobre o conjunto de filmes e encontros com os quais
nos deparamos durante o Janela. Nesse gesto, o primeiro e o último dia – assim como o primeiro e o último plano de um filme – ocupam posições consideráveis à elaboração do seu significado, e é justamente por isso que a comparação entre Não é um filme caseiro, da diretora belga Chantal Akerman, que abriu o primeiro dia de mostra, e Visita ou memórias e confissões, do português Manoel de Oliveira, exibido no último dia de festival, se torna ainda mais inevitável. Os dois filmes, que poderiam ser interpretados enquanto obras originadas a partir de premissas semelhantes – o registro do lar servindo como ponto de partida para o registro de si e das relações interpessoais mais íntimas –, ambos filmes acabam trilhando caminhos diametralmente opostos. Enquanto o filme de Chantal se consolida numa câmera estática que permite a irrupção da realidade não programada em cena e o retrato das interações
entre as personagens encontra na imprevisibilidade o principal fator constituinte do seu caráter revelador, o filme de Manoel de Oliveira nos apresenta uma câmera leve, que parece circunscrever seus próprios limites poéticos, dentro dos quais todos os elementos operam de acordo com a intenção do diretor. Tal controle aqui, surge como demarcação nítida do gesto autoral. Quando em Não é um filme caseiro as fragilidades dos personagens surgem das fendas que se abriram a partir do ato de arriscar-se sobre a não gerência do real e as questões de gênero (por se tratar de uma cineasta mulher em contato com sua mãe) permeiam e eclodem nas discussões, em Visita ou memórias e confissões o que nos é entregue é o autorretrato bem pintado, de um ancião da burguesia portuguesa, orquestrado por uma necessidade de exteriorizar sua subjetividade através de citações constantes sobre temas variados. Em uma das falas direcionadas ao espectador, em meio aos livros de sua extensa biblioteca, Manoel de Oliveira enaltece a figura feminina por sua passividade e virtuosidade. Num plano anterior, fomos apresentados a sua mulher que, com o olhar também direcionado à câmera, nos conta sobre a beleza do seu casamento e exercício de abnegação ao administrar a criação dos filhos e a vida material para que seu marido possa exercer plenamente a paixão pelo cinema. O conflito entre as duas obras possibilita a reflexão sobre o conflito entre duas posições distintas na nossa estrutura de gênero e elucida questões pertinentes ao cinema. Não seria a pernosticidade intelectual de Manoel de Oliveira sintoma de uma configuração social na qual o homem é continuamente estimulado e glorificado por expor sua subjetividade? E a despretensão egoica com a qual Akerman constrói seu filme, poderia ser percebida como uma consequência dessa mesma configuração? A tarefa não é tentar estabelecer um juízo de valor sobre qual seria a maneira correta de realizar filmes, mas conseguirmos, a partir da comparação, fazer o que o cinema nos ensina tão bem: relançar nosso olhar para a realidade. Uma realidade na qual tais assimetrias de gênero ocasionam a predominância de homens nas posições de criação artística e intelectual e às mulheres, a ocupação massiva de cargos como produção, que, assim como a função da esposa de Manoel de Oliveira, garantem as condições materiais para a realização do gênio artístico masculino.
É o Janela, é o cinema, é o fim do caminho Cecília Shamá [Janela VI, 2013]
Primeira vez no festival com a tarefa de ser uma crítica e deixar a cinefilia de lado. A cinefilia caseira para a cinefilia crítica, analítica, cobrada, dada, suada. Primeira vez em que fui ao Janela Internacional de Cinema do Recife. Tarefa difícil cobrir filmes sem partilhar a irracionalidade que vem do gostar de algo há tanto tempo. Se alguém me pergunta por que gosto de filmes, nem sequer sei mais a resposta, se virou hábito ou se virou a mim mesma. Se me virei dentro dos filmes ao longo dos anos. Quem sabe? Assistir a filmes e julgá-los com critérios arbitrários, esse foi meu critério ao final do festival. Eu procurei lógica, conexão, procurei distância dos longas em competição, mas alguns, malditos, não me deixaram levantar uma parede, me arrastaram pros cantinhos sujos do cinema e do Recife. Porque não só de realidade vive o homem e mesmo ela se torna uma cadeira no cinema. E se parássemos de ter medo de ter cara de Recife? E se Recife se tornar mais Recife e virar mar? Mar de cinéfilos procurando cadeiras pra assistir a sessões lotadas dos clássicos. Rosemary correndo pra salvar o filho. A mosca regurgitando nossa luta entre natureza e ciência. E o Se… da questão sendo metralhado como forma de grito político cinéfilo e social dos adultos do agora em estado de jovens do passado, falando com todos da e na escola de filmes e da vida. É um pouco de tudo, um pouco sozinho. Um filme. Uma cidade. O Recife. A metrópole em Metropolis anunciando o fim do festival, o apagar das luzes, o crédito que sobe. Uma semana e mais alguns dias de textos, de assistir filmes e de ver o Recife no Recife do São Luiz. A primeira vez. Sempre existe uma primeira vez para tudo. E assim o Janela encerra sua edição já fincando os pés como menino marrento que não quer sair do lugar: o fim necessário para a espera imparcial do tempo diante da nossa ansiedade para a próxima edição do festival.