idealização luis fernando moura felipe andré silva edição e projeto gráfico felipe andré silva coordenador janela crítica heitor augusto colaboração cesar castanha fotos victor jucá divulgação
7. animal político por bruno malta de alencar 10. o delírio é a redenção dos aflitos por juliana domingos de lima 15. martírio por larissa veloso assunção 21. eles não usam black-tie por felipe leal 25. elle por camila pordeus 31. o ornitólogo por danillo medeiros 35. quando os dias eram eternos por kátia macedo 38. 1 berlin-harlem por thayná almeida 41. os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos por bruno galindo 45. a cidade onde envelheço por narciso faustino 49. estado itinerante por nuno aymar 53. câmara de espelhos por juliana soares lima
O impacto da luz no aparelho ocular é o mesmo, e ainda assim as compreensões são as mais diversas. Mais do que para ser assistido, o filme existe para ser discutido. Mais do que um momento de celebração do cinema, o festival é uma celebração do falar cinema, bradar cinema, se fazer entender cinema. O filme não é linha de chegada, apenas uma eterna partida. Conversar cinema é correr lado a lado e sempre em frente.
ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE? Animal Político por Bruno Malta de Alencar É difícil mensurar onde se está no mundo. Ao encalço dessa questão, faz-se mais difícil ainda vislumbrar uma forma possível de expressar essa assunção, de cristalizar esse movimento de ideias e conceitos que explodem em nossos pensamentos. É assim que, em muitos casos, o cinema se comporta; tateando lugares possíveis, caminhos inexplorados, espaços de fala. A questão que quero tratar aqui, entretanto, é a de como o presunçoso uso dessa atmosfera pode sucumbir em um simples lugar vão, vazio, desprovido de magia. Magia essa que sensibiliza, traz a primeiro plano esconderijos entre-abertos da nossa relação com o mundo. E que não consegue ser acessada no oco discurso existencialista de Animal Político. Sedimentado em uma jornada do ser/vaca por autoconhecimento após uma crise pessoal, o filme se referencia a todo momento. Busca sempre transmitir que quer dizer algo. Porém, ao fim de cada sequência, o que resta são máscaras discursivas que convergem pobremente para um raso significado. Nos perguntamos: é isso? A narração, tanto verbal como imagética, logo, termina sendo tão vã para narrativa quanto são todas as informações contidas nos livros para a simples função de emparedar o iglu que em certo momento abriga a vaca. São ambas apenas um significante substituível à deriva pelo deserto – o que, ironicamente, já é anunciado pelo filme na sequência inicial dos ternos sem cabeça andando pelas rochas. Pois falta à Animal Político o perigo. Esgotado o estranhamento inicial provocado pela vaca como personagem, o que nos é mostrado soa apenas como um labirinto de alusões críticas muito simplórias. Há, sobretudo, um muro entre aonde se quer levar o espectador e o que se faz para isso. Logo, enrijecidas em um jogo de citações que permanecem apenas no universo do
pastiche – como é a somente risível sequência da reunião de condomínio –, não se encontra espaço para uma reflexão mais profunda acerca das situações que o filme propõe. A atenção do espectador, inicialmente instigada, se finda na escassa superfície explorada pelo diretor. Faz-se notável, ainda, o incômodo provocado pelo episódio intitulado “A pequena caucasiana”. Aqui, claramente, o espectador não permanece indiferente. A mistura de uma estilização específica e o da forma fetichizada de representar o corpo feminino são ainda mais desconfortáveis dado o enfoque bem maior que é dado a esses elementos do que ao espaço ocupado pela personagem na crítica social. Por intenção ou por falta de alcance argumentativo, as possíveis alfinetadas à classe média e a discussão sociohistórica lançadas dão espaço apenas a uma aridez que não sai do seu lugar de conforto. Ao pensar sobre o que vi, logo ao sair da sessão e durante os dias que passaram, mais que simples desgosto, uma dúvida real foi o que pairou sobre mim. É realmente dessa forma que o filme enxerga essas questões que propõe? É assim que se relaciona no mundo? É dessa forma que percebe o animal político que se desenvolveu ao longo da história? É assim? Assim que caminha a humanidade?
QUANDO O PESADELO É AQUI O Delírio é a Redenção dos Aflitos por Juliana Domingos de Lima Nada sobra no curta O Delírio é a Redenção dos Aflitos, primeiro do diretor pernambucano Fellipe Fernandes. O baixo orçamento não impacta a fotografia competente nem o som minuciosamente realista, fiel, nas cenas externas, ao rumor de cidade que todos conhecemos. Essa economia de recursos resulta em uma estética enxuta, concisa e certeira, a serviço de uma história simples, mas forte. O Delírio é a Redenão dos Aflitos, de 2016, é contemporâneo ao longa nacional que talvez seja o mais importante do ano, Aquarius, também de um pernambucano – Kleber Mendonça Filho – e, com todas as suas diferenças, guarda uma semelhança com o longa: assim como Aquarius, registra uma personagem feminina que resiste solitária em um prédio que está para ser demolido. A circunstância de que trata o filme de Fernandes, entretanto, é bem diferente. Por ser de classe baixa, a personagem não escolhe ficar ou partir. Ela não tem garantias, ou conexões. Na verdade, o conjunto habitacional em que mora está condenado e ela não vê a hora de sair dali com a filha pequena. Só espera, impaciente, que o companheiro que vive com ela arrume o carreto para a mudança. Como ela própria diz, era a única coisa que ela havia pedido que ele fizesse. A personagem relata – em uma cena que é das melhores do filme – às amigas que não consegue dormir há uma semana. E que tem um pesadelo insistente, no qual seu cabelo cai e um tecido em carne viva começa a emergir do topo da testa, um tecido que lembra lábios vaginais. Na expressão carregada de tensão e olhos sempre um pouco assustados da atriz Nash Laila, a perturbação intensa, insone, de quem não tem ninguém com
quem partilhar ou a quem delegar sua apreensão. Exibido em sessão especial antes de I, Daniel Blake, filme de Ken Loach vencedor da Palma de Ouro deste ano, O Delírio é a Redenção dos Aflitos trata da aflição dessa mulher incumbida de garantir a sobrevivência de uma criança. Não por acaso, a figura da mãe massacrada pela pressão econômica – e psicológica – de criar os filhos sozinha também está presente no longa de Ken Loach. Mas ao contrário do filme de Loach, fortemente convencional quanto aos parâmetros que certificam o espectador da realidade, o curta segue pelo registro do delírio, do escape quando a realidade não é mais suportável. Quando dita entre as colegas, no momento em que relata seu pesadelo, a palavra “vagina” causa estranheza. O que o termo designa aparece em forma de chaga na testa, indício de sua agonia e da solidão de sua condição de mulher. Empacotando objetos e arrastando móveis sozinha, enquanto tenta ligar para o marido, nota diante do espelho que tufos de cabelo se desprendem e uma mancha avermelhada surge em sua cabeça. O pesadelo é aqui. A luz do apartamento é cortada. Nem sinal da luminosidade alegre, comercial, dos pisca-piscas natalinos de todas a cores presentes no supermercado onde trabalha. A escuridão se instaura e com ela, o entendimento gradual, o desespero mudo (para não acordar a filha) de que o carro da mudança não vem, seu companheiro não vem: estão sós. Sua saída às pressas do prédio com a filha adormecida no colo (e mais nada), registrada com acerto por uma câmera na mão ligeiramente instável, acontece em meio a estrondos assustadores que parecem vir da estrutura do prédio. Procurando abrigo, a vitrine de uma loja de colchões a lembra do conselho de uma das colegas de trabalho: os pesadelos certamente teriam a ver com o colchão em que dorme. Na sequência final, a personagem passa de black bloc a uma Pietà que não pregará o olho. E a câmera, filmando-as de cima, aninhadas em um colchão no interior da loja, encerra com um
plano que registra de novo seus olhos amedrontados, muito abertos para a noite escura. Seu refúgio – imaginado, tomado, inventado – ecoa a velha máxima do movimento por moradia: enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito.
A IMAGEM QUE FALTA Martírio por Larissa Veloso Assunção “Os índios são a imagem que falta”. É o que nos narra Vicent Carelli num dado momento de Martírio. E nesse instante foi inevitável lembrar-me de um filme do cambojano Rithy Panh, chamado justamente A imagem que falta. Este último, ao reconhecer a ausência histórica de registros e documentos sobre os massacres sofridos pela população do país no governo do Khmer Vermelho, reconstrói essa história através de bonecos de madeira esculpidos pelo próprio diretor (ele recria sua casa, os campos de extermínio, as pessoas escravizadas). É a tentativa de preencher um vazio, de colocar algo numa lacuna ainda aberta e ferida. E assim é também Martírio. O filme toca em questões semelhantes: a ausência e a falta das imagens indígenas na história do país, os massacres sofridos, as invasões às suas terras e falta de reconhecimento de um lugar que os pertencem e do qual são impedidos de ocupar. Mas ao contrário de Rithy Panh, que viveu ele mesmo esses acontecimentos, Vicent Carelli não é indígena, não pertence aos Guarani Kaiowá. Como, então, lidar com essa falta? E embora Carelli não seja índio – e a honestidade do filme está justamente em não tentar sê-lo, em não querer anular a relação que se estabelece entre eles e que é diferente da relação que existe entre os próprios indígenas –; Vicent tampouco é um observador distante que pretende apenas apresentar “as coisas como são de fato” – tal objetividade também não é almejada pelo diretor. A busca aqui, ao contrário, é pelo contato, pelos diálogos e, sobretudo, pelos encontros. É a partir de tais encontros que é possível fazer ecoar o que dizem os Kaiowá sobre suas histórias, dores, esperanças e principalmente sobre suas lutas. E se por um lado não me é possível afirmar que o cinema dá
voz aos indígenas – vozes estas que eles já têm e a gritam pelos seus direitos, independente da presença da câmera –, por outro, acredito que o potencial do filme está justamente não em dar essas vozes, mas dar a ouvir e a ver. Como quando do momento em que uma das indígenas, ao assistir um material feito pelo diretor nos anos 90 na mesma tribo, confessa chorando: “pensei nunca mais ouvir a voz do meu irmão”. Voz que estava lá, reivindicando o lugar que lhes são de direito e no qual estão sendo privados de viverem; voz e imagem que o cinema, pelo registro, guardou. É preciso que tais imagens sejam sempre revividas mais e mais vezes. Imagens novamente vistas, vozes a serem de novo ouvidas. E a busca pela visibilidade e pela câmera perpassa a todos: durante a sessão no Congresso Nacional sobre Demarcação de Terras Indígenas e Quilombolas, o deputado Vilson Covatti (PP/RS) grita e se dirige diretamente à câmera, dizendo que no que se refere à demarcação de terras no Rio Grande do Sul, isso só acontecerá por cima de seu cadáver. A câmera é desejada com urgência. E se a uns ela está sempre disponível para ser requisitada (sessões no Congresso são constantemente filmadas e registradas), as imagens dos indígenas ainda são raras. E Martírio nos traz essas imagens – imagens estas que estavam faltando.
ELES NÃO USAM BLACK-TIE por Felipe Leal participante do Janela Crítica 2015 Para falar de Eles Não Usam Black-Tie (1981), ou sobre qualquer filme que não seja contemporâneo a quem o assiste, é preciso sobretudo falar sobre tempo. Neste caso, não militância, política ou ideologia, mas tempo. Porque diante de toda experiência cinematográfica existirão ao menos três tempos, o da obra em si, e portanto o do contexto em que foi feita; o do espectador enquanto indivíduo, na medida em que o filme se faz diante de seus olhos; o tempo atual a ele, aquele no qual espectador e filme entram em convergência — e suas relações, em graus diferentes, alteram a experiência, fazendo-a oscilar entre os extremos do anacronismo, do ofuscamento ou da exaltação, por exemplo, é por isso que antes de mais nada deve-se investigar os efeitos dessa entidade incorpórea, porém sempre manifesta, que é o tempo. Não no sentido de se aproximar do que ele representa por si só, enquanto passagem, eterno devir, mas pelo exercício de precisar como a mistura de temporalidades distintas (especialmente a primeira a terceira) incidem nessa disposição de espelhos que as refrações e reflexões provocam. O que se quer dizer não é que nos anos 90 ou 2000 o deslocamento temporal da significância política para o então-presente não tivesse seu peso, ou que o filme em si, como peça incrustada em 81, não tivesse relevância como resultante de uma criatividade e um intelecto dentro daquele conjunto circunstancial. Mas visto em 2016, e especialmente no Brasil, mas também para quem o vê de fora, defronte toda a turbulência de um estrato social perante um maquinário articulado e opressor, o avanço do filme para o presente-aqui é um movimento que adquire contornos diferentes. Falar dos grevistas, dos fura-greves, das famílias perturbadas pelas alianças e posicionamentos contrários e favoráveis daquele micro-município paulista é dis-
cursar também sobre o Brasil que é nós. É perceber a delicadeza e a proximidade dos dois campos de batalha, e como diz a personagem que vive o fervilhar do primeiro posicionamento político consciente: ‘’a gente fica sentado assistindo novela, a emoção é nas ruas!’’. Mas há aí, também, um elemento excessivo de proximidade entre contexto e objeto. Esse mesmo descolamento temporal de que falamos aqui pode privar certa qualidade de lucidez. Importância pode se tornar importância demais, e só, fazendo com que tudo de positivo se acrescente à ideia da convergência temática entre lá e cá, que esse conjunto de cenas, discursos e posicionamentos pesem mais por essa proximidade de tempos do que pela construção de uma qualidade e constância para a obra ela mesma. Não se tenta medir palavras para dizer que Eles Não Usam Black Tie é um filme ruim, porque não se acredita que ele o seja. É que existe certa explicitação do método, certa tendência a se repetir, como se a didatizar uma ideia, que acaba por empobrecer o conjunto e que o próprio Hirszman parece entender perto do final. É preciso sempre estar lembrando quem é a figura opressora, circular e voltar ao mesmo ponto explicativo de que é preciso se insurgir contra ‘’o patrão’’, e ‘’porra’’ e ‘’filho da puta’’, e ‘’você tá cego, companheiro?’’. De novo e de novo. Há uma linha mais que tênue entre o filme carregado de política e o filme que precisa se atestar como tese. Decerto Tião precisa fazer uma escolha entre diminuir o sofrimento da mulher e da mãe ou por dinheiro (e aí esmagar os parceiros de trabalho e próprio pai) ou por igualdade (um salário justo para todos que o traga dignidade), mas a escolha de Hirszman tem que custo? Foi mesmo preciso aproximar o personagem de uma descrença
espectatorial para validar o argumento? Tião como conceito e ideia teria que ser tão pronto, tão idiotizado e mastigado para acionar toda a trama? Pior: uma coisa é uma boa interpretação para um personagem babaca, outra totalmente diferente é uma atuação medíocre para um personagem ainda mais medíocre. É preciso ser bom para ser babaca no cinema – e a indústria dos atores bonitinhos sabe bem disso.. É preciso ser bom para ultrapassar um cenho franzido e um polegar unido a um indicador como gesto de indignação. E se Tião não traz demérito vexatório para a obra como um todo é porque há algo de Fuller em Hirszman. Algo de filmar um campo de batalha (familiar, ideológico, pouco eminentemente corpóreo, mas não menos presente, forte) e atingir a passionalidade verborrágica da esposa íntegra e da mãe vulnerável e enlouquecida pelo contexto. Aquele excesso de palavra e alteração de voz não é só perdoável como desejado, figura de um expectante. Curiosamente, quando as mulheres falam, desabrocha (finalmente) a presença ecoante do pavor ao totalitarismo ecoante do pós-ditadura. O evento ainda está ali, impregnado no medo e no frenesi da luta. E eis que se consegue, também, deixar a imagem ‘’falar’’. Quando a mãe recolhe o feijão com uma caneca e pára no terceiro movimento porque sabe que aquela quantia é agora suficiente, torna-se presente o signo da ausência. Aquela hesitação é a imagem da falta do filho. Que Fernanda Montenegro chore como mãe amputada é só uma prova de sua monstruosidade de se tornar algo além de si mesma. Importa mais que às imagens tenha sido permitido tomar expressividade. Texto originalmente publicado no site Cineplayers http://www.cineplayers.com/critica/eles-nao-usam-blacktie/3389
REITERAR A DOR? Elle por Camila Pordeus Em seu texto O exercício do olhar para a derradeira edição da Contracampo, Calac Nogueira diz que ser crítico é, primeiramente, perguntar o que o filme quer nos dizer em oposição ao que ele realmente diz. Exercício esse que pretendo observar em Elle, de Paul Verhoeven. Verhoeven nos mostra Michelle. Uma mulher forte. Calejada por uma existência de abusos por parte de todos os homens de sua vida, desde um pai amoroso que se mostrou um assassino de crianças a um filho mimado que não aceita seus conselhos, Michelle é sozinha por escolha. Sua força permite que ela ignore a dor de um estupro sofrido em sua própria casa e passe a procurar o agressor. Controladora, ela parece o arquétipo perfeito da mulher sem sentimentos, fria e racional – a “bitch”. Até mesmo em seu estado mais vulnerável, a câmera se mantém distante e parada. Michelle é inalcançável. A seguimos durante toda a estória como a quem segue uma líder. Sua capacidade de seguir separando suas emoções do que deve ser feito é sobre-humana, ou, de acordo com o diretor, sobre-feminina. Verhoeven nos apresenta Michelle. Apesar dos abusos sofridos, a empresária não consegue cortar relações com nenhum dos homens de sua vida. Sua relação com o pai, apesar de parecer inexistente, é algo que a assombra desde a infância. Ela não consegue deixar o monstro para trás e nem aceitar o homem em sua vida. Padrão que se repete em maior ou menor grau em todas as outras relações que ela cultiva com seres do sexo masculino em sua vida. Às mulheres de sua vida, ela reserva seu desprezo. Michelle é fria por ser quebrada. Como um gesto de autodefesa,
assume uma posição de controle sobre tudo e todos. Ao lado de todas as outras personagens femininas do filme, ela é apenas mais um dos estereótipos normalmente oferecidos às mulheres. Iréne só se relaciona com homens mais novos que sua própria filha. Josie é controladora e se aproveita da inocência de Vincent. Rebecca é cega por sua própria inocência religiosa. Anna é a mulher perfeita. Anna é tudo que Michelle não consegue ser. Possui o dom da maternidade e do perdão, características que o diretor torna inerente ao exemplar feminino ideal ao concedê-las a uma Michelle redimida ao final do filme. Michelle é o que é por conta de todos os homens de sua vida. Colocá-la em uma situação tão ambígua com seu estuprador, de forma a nos faz questionar se ela gosta da situação, é sádico. Libertá-la por ações de outro homem, é cruel. O que fica então de Elle é dúvida. E muito desconforto. A cena do estupro aparece uma, duas, várias vezes. De vários ângulos. A necessidade da exposição da violência a fetichiza. Se uma Michelle sozinha, de olhar parado, nos remete automaticamente à cena inicial, por que precisamos ver para revi-
vê-la? Por que a violência contra a mulher possui um apelo tão voyeurístico? Essas aparições são tão necessárias quanto o ato em si: abomináveis. O flerte que produz ambiguidade contra a legitimidade da violência sofrida não é melhor que comentários sensacionalistas em manchetes de jornal perguntando o que a vítima estava vestindo. A decisão de ignorar o sofrimento da protagonista reitera a insignificância e gratuidade das cenas que somos forçados, com muita dor, a assistir. Uma, duas, várias vezes. O que é vendido como um “instigante jogo de gato e rato”, é tratado com a mesma profundidade de muito filme rechaçado por toda essa categoria de “amantes da arte” que defendem essa monstruosidade. É muito fácil tratar Michelle como quebrada. Tratar a violação do seu corpo como consequência. É triste que esses aspectos passem despercebidos em nome de uma cinefilia ou uma filmografia bem sucedida. É triste que pessoas riam durante a exibição. É mais triste ainda ter de fazer uma crítica falando de tudo isso porque grande parte do público, majoritariamente masculina, óbvio, não vai entender sozinha.
HOMEM, SEXO, NATUREZA E RELIGIÃO O Ornitólogo por Danillo Medeiros O Ornitólogo nos recebe de maneira nada sutil, nos joga em 10 minutos de tensão entre homem e pássaros numa natureza isolada. Fernando é totalmente estranho àquela realidade, um civilizado que detém um olhar de interesse, mas também de frieza em relação ao seu objeto, os pássaros. Ao se embrenhar com cada vez mais ênfase, Fernando é consumido pelo cenário. O homem pesquisador deixa de existir, Fernando agora é apenas mais um indivíduo habitando aquele local. O Ornitólogo é sobre isso, a equiparação do ser humano e do “selvagem”, a reincorporação do ser humano na natureza. A metáfora do renascimento pela água, já tão antes usada, volta de maneira inevitável. Fernando cai na correnteza para não voltar. O Fernando do início do filme morre, é incorporado pelo ambiente. Por diversos momentos a mudança das cenas do filme é demarcada por fusões, artifício de montagem considerado execrável pela maioria dos realizadores contemporâneos e já altamente utilizado principalmente na segunda metade do século XX, que em O Ornitólogo tem a função bem definida de unificar os diversos elementos da natureza, colocá-los como um espectro uno – a flor e a água são a mesma coisa, pássaros e árvores são iguais. Fernando volta como objeto novo daquele todo. O olhar que, mesmo direcionado para cima, era um olhar de cima (homem branco e pesquisador sobre animais), se inverte, agora é Fernando que é observado pelos pássaros. Nesse caso a fusão é gradual, na medida em que mais Fernando se embrenha, mais natureza ele se torna. Nesse processo Fernando se despe cada vez mais durante o filme. Ao colocar Fernando como animal, o diretor João Pedro Rodrigues coloca seu corpo como centro dos quadros. Filmar e
sexualizar o corpo masculino é algo raro em filmes, e na maioria das vezes isso só acontece com um contrato: o do “cinema homossexual”. O corpo masculino só é filmado sem pudor quando existe interesse da direção e do público pela sexualização. Em O Ornitólogo esse contrato existe e é posto, mas é anseio do filme ir além. O corpo de Fernando, por diversas vezes desnudo durante o filme, é filmado daquela maneira por evidenciar a condição animal do personagem. A medida que ele fica nu, mais homogêneo ao espaço é. A beleza dos corpos não é arbitrária, e Fernando e Jesus são filmados com a intenção da potencialização desse poder do corpo. Quando filma Fernando num contra-plongée com um céu azul ao fundo, ou quando filma os dois personagens nus e deitados à beira do rio, João coloca o corpo não só como objeto de desejo do público, mas também como mais uma representação do belo na natureza. Assim como animais ou árvores, o corpo masculino também sintetiza o que é o belo. Sexo e Morte Ao estabelecer Jesus como surdo e mudo, o roteiro do filme cria uma situação conveniente: não há comunicação falada, códigos e conexões não existem mais, Fernando e Jesus estão condicionados a usar seus instintos para se relacionarem. E é pelo instinto que esse bloco do filme é regido. Sexo e Morte tem a mesma origem, vem do mesmo lugar. Aceitar o convite de tomar banho pelado significa que a transa subsequente é eminente. Momentos depois de transarem, numa briga repentina, causada pela falta de comunicação, um acaba morrendo. Assim como animais que acabaram de se encontrar, eles transam. Assim como animais que se estranham sem motivo aparente, eles se matam.
Quem consome quem? A estranheza que João traz ao filmar e debater o catolicismo é pertinente. Fernando, em certo momento, encontra uma construção antiga cheia de imagens de santos católicos, e como um animal selvagem ou cachorro de rua, passeia pelo lugar com distanciamento e curiosidade. Mais à frente, nesse mesmo local, encontra um tanque sujo cheio de peixes. Olhando para esse tanque ele fala algo que não significa todo o filme (sintetizar o filme todo numa fala não é possivel e nem correto), mas que de certa maneira aponta para um lado do qual o filme pretende ir. Fernando fabula sobre como deve ter sido o dilúvio bíblico para os peixes. Enquanto os outros animais tiveram que ser salvos por Noé e sua arca, os aquáticos tiveram o mundo todo para si, a total liberdade, objeto de desejo de Fernando e do filme. “Por que o homem, que já foi livre, agora se prende?” diz Fernando na mesma cena. Por que o ser humano cria limitações para seu comportamento? Associações do espectador com conceitos como Religião, Estado e liberdade sexual não vem à toa, pois uma das coisas que O Ornitólogo quer fazer é nos mostrar que o tal do contrato social não deveria ser mais vigente, nos mostrar que o homem contemporâneo se priva de exercer suas vontades por causa do que o cerca. A homossexualidade no filme é uma perfeita alegoria para isso. No seu fim, quem já foi Fernando e quem já foi Jesus finalmente saem da floresta e chegam a cidade como um casal de seres estranhos àquele meio. O Ornitólogo não se pretende a criar interpretação e discurso únicos, mas no seu fim pelo menos uma coisa fica clara: diferentemente do que aconteceu com a floresta, a cidade não consumirá Fernando e Jesus, e sim o contrário.
EMARANHADO DE LINHAS E SENTIMENTOS Quando os Dias Eram Eternos por Kátia Macedo O retorno de um filho a casa em que viveu na infância, a fim de cuidar da mãe em seus últimos dias é a história que dá vida a Quando os Dias Eram Eternos, animação em curta-metragem. “Dar vida” foi a melhor expressão que encontrei para descrevê-lo porque é incrível o que um emaranhado de linhas, por vezes inextrincáveis, em movimento na tela foi capaz de causar. Alinhada a isso, entra a trilha sonora com um peso único aqui. As pequenas pausas misturam-se ao som da respiração dos personagens, causando não só a imersão de quem está recebendo o filme, mas uma forte relação de intimidade; afinal, ouvir a respiração de alguém exige, pelo menos, uma grande aproximação física. Os cuidados de filhos com as mães podem ser desnudados sob a ótica de um entendimento social de retorno, de compensação, mais que isso, de obrigação. Mas aqui não se trata apenas dessa simples inversão de papéis forçada pelas mazelas da idade avançada ou de doenças. Aliás, não se tem nenhum indício, nenhuma referência, com relação a idade da mãe. Exatamente por esse motivo não se trata de uma troca de posições, digamos, natural da vida, da ordem “lógica”, aquela em que os pais morrem primeiro que os filhos. A própria ausência de referência à velhice intensifica e faz ressaltar o lado negativo do inesperado. Isso não é colocado no filme de maneira banal, pelo contrário, entrelaça-se às linhas e traz força justamente por sua sutileza. A morte de uma mãe em vários níveis de compreensão arrasta o significado de “prematuro” para algum lugar do nosso inconsciente, cuidando para que se tenha algum resquício de conformismo diante do inesperado. A inversão de papéis entre mãe e filho exposta pela simbiose das imagens filho, mãe jovem, me-
nino, mãe doente é de uma delicadeza poética que quase infringe o possível sentimento de tristeza de alguns diante daqueles planos, abrindo espaço para a contemplação. As imagens sendo absorvidas pelos emaranhados de linhas mais intensos que simulam sombras, escuridão, refletem o despreparo do convívio com a fragilidade de uma mãe doente, ao mesmo tempo em que se observa a tentativa de uma existência serena, resultando numa atmosfera melancólica de aceitação do inevitável, trazendo a redenção para o alívio. A ordem se subverte. O som da respiração. Todas as coisas são ressignificadas. O som da respiração. A dor subverte o medo, transgride quaisquer níveis de entendimento e transforma-se em homenagem. O som da respiração. Cordão umbilical transforma-se em corda que sustenta o balanço, é elo e alforria. O som da respiração. O balanço é o último lugar em que a mãe aparece. Cordão umbilical é corda de balanço. O som da última respiração.
UM CORPO NEGRO EM BERLIM 1 Berlin-Harlem por Thayná Almeida participante do Janela Crítica 2015 John, um homem negro, deixa o exército estadunidense e se muda para Berlim em plena década de 70. Nada mais questionador pra época do que um rapaz negro tomado pelo valor simbólico de um corpo até então utilizado pelo exército dos Estados Unidos pra servir um ideal de liberdade, mas que esta mesma liberdade não cabe a este negro, não cabia, e ainda está longe de ser diferente, apesar da pressão do movimento negro, seja nos Estados Unidos ou em qualquer parte do mundo. Esta mesma realidade do corpo negro na tela é vista ainda hoje por camufladas produções que iniciam o discurso como visibilizador deste homem, mas que no fim servem apenas a olhares oportunistas, comerciais e voyeuristas sobre este corpo negro, fortalecendo o racismo e o preconceito a ele construídos através de muita história de opressão e desejo. O ponto de vista pode ainda piorar na indústria cultural e de entretenimento quando adicionamos a esta sopa a fetichização e a hiperssexualização da mulher negra. Mas nos atentemos, aqui, ao homem: sim, porque parece que a figura do homem está livre dessa fetichização, mas a herança é única e o olhar branco sobre o negro em 1 Berlin – Harlem é de muito incomodo. John em 1 Berlin – Harlem é um herói caído. A saga do herói não serve a ele. O caminho que trilha não é de vitórias ou superações, mas sim de frustrações e pessimismo extremo. Todas suas tentativas de mudança são em vão, e ele, apesar de seguir sempre sua vida, passando pelos obstáculos, parece estar extremamente cansado. Traça uma saga com o mundo exterior ger-
mânico que traz resquícios do nazismo, e que ao mesmo tempo parece ser insuperável. John, como eu diria sobre qualquer negro hoje, tenta sobreviver àquele mundo e é absorvido por ele, e muita das vezes vítima, ou apenas no aceite de uma situação que não vai mudar, se pondo assim inerte e sem reação. O filme de Lothar Lambert e Wolfram Zobus é uma raridade que merece ser confrontada quando falamos de uma estética queer da época, que problematize as questões negras na sociedade e mesmo dentro da comunidade gay da época, e também da atual. Seu valor transgressor é inestimável, as questões em pauta e o tapa na cara da sociedade alemã são de caráter social louvável. Mas muito se perde também, pois o olhar transgressor aqui ainda é branco, e a moral empregada – porque há uma – também é branca. A câmera, aqui, precisa explicitar as violências sobre este corpo e sua hiperssexualização. Neste caso, o corpo negro acaba sendo também exposto por aquele que tenta dar visibilidade a ele, e acaba violentando-o como tantos mais já o fizeram. O filme, no entanto, também se reconhece nisso, creio eu. Fassbinder aparece para dar um beijo final, colocar a cereja no bolo, reconhecer o cinema como mais um culpado em tanta história de violência. Uma tentativa de redenção, talvez? Texto originalmente publicado no site Janela http://janela.art.br/index.php/criticas/ix-janela-internacional-de-cinema-do-recife-1-berlin-harlem-de-lothar-lambert-e-wolfram-zobus/
ALTERIDADE, PROTEÇÃO E DIDATISMO Os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos por Bruno Galindo Os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos é, obviamente, um filme sobre alteridade. Os quatro amigos são signos de minorias representativas vinculadas por um meio específico. O apartamento, que fica dentro de um condomínio, que fica dentro de um mundo que os coloca novamente dentro do apartamento. Pensar o filme talvez implique no risco de recobrar uma leitura combativa que, no recorte que Gustavo Vinagre articula, não se encaixa nem mesmo com a natureza de seus personagens. O filme é uma ode à sensibilidade de perceber as outras pessoas, se incumbindo, honestamente, de suprimir qualquer cinismo. A defesa pode soar didática ou, ainda, castrada em certo aspecto, mas é curiosa, e em rumo oposto ao de uma produção de cinema brasileira e contemporânea que se afasta da dramaticidade, protegendo suas próprias fragilidades justamente no ato de elevar as discussões pela chave do cinismo. O filme de Vinagre não aceita que opor-se aos demônios do mundo lá fora implica a necessidade de uma conduta combativa em 24/7. A disputa por espaço num mundo que não cede espaços esmorece, faz pedir colo, faz precisar de carinho. Não só, mas também. Essa posição pode soar cafona, e o filme não contraria isso, pelo contrário, abraça a condição. É interessante a disposição dos personagens que organizam efeitos de suas vidas públicas dentro do espaço privado. E esse é o grande mote. O ponto é que o filme de Vinagre não pretende ser um estudo, menos ainda uma investigação, mas um retrato apenas. Não à toa toda sequência abre num plano emoldurado. Assim, se por um lado o filme coloca seu quarteto de
personagens numa condição de incógnita sobre o que sublinha suas existências anteriormente, também evoca a curiosidade para saber o que os levou até aquele apartamento. O que talvez inscreva no filme certo aspecto excessivamente didático, e que dá conta, naquele momento, de uma noção estética superficial quanto a sua própria posição. A decupagem parece frouxa ao se aproximar dos personagens, e a falta de uma oposição visual mais demarcada entre a moldura estática daquelas pessoas e os momentos de incursão em suas pessoalidades (os planos abertos são fixos e um tanto geométricos, seguindo assim mesmo quando se aproximam dos rostos, gestos e outras intimidades) cria certo distanciamento. O filme afirma suas sutilezas, seus gestos, seu olhar para a alteridade. Todavia, talvez por medo de soar macio demais abre algumas falas que ecoam como parênteses ao próprio filme, marcadas pelo que se pode classificar como uma inorganicidade (a fala do personagem negro em dado momento sobre quais corpos estão vulneráveis é sintomática). Nesse diálogo, os momentos de defesa da alteridade soam didáticos em excesso, assim como os momentos de uma tentativa de ruptura mais incisiva, que se parecem com intervenções textuais na própria história, com pouco impacto. Ainda, as abstrações imagéticas (o pé regado, as personagens regando a si mesmas) soam obvias, e também retiram força da interação entre as quatro personagens, que se sustentadas de outra forma, mesmo que por abstrações mais contundentes, teriam outra potência. Porque a discussão sobre a projeção das vidas públicas em espaços privados, e vice-versa, é contemporânea, e justamente por isso responderia melhor e com outra carga de impacto a noções mais consistentes sobre sua própria natureza (outras metáforas, outras asserções, outras parábolas fílmicas, digamos). Em O cuidado que se tem… há algum teor de obviedade incorporado pelo próprio curta, por consciência, não por erro, incumbindo a análise de dar resumo ao filme como um retrato singelo dos medos de uma geração. A escolha está ali, e ao assumir sua sutileza como marca, o filme reconhece também a dificuldade de ultrapassar reações amenas, limitadas por sua própria moldura.
ENCONTROS E DESPEDIDAS A Cidade Onde Envelheço por Narciso Faustino A Cidade Onde Envelheço (2016), de Marília Rocha, conta a história de duas portuguesas que vivem suas vidas em Belo Horizonte. Teresa, recém-chegada de Lisboa, vai morar com Francisca, que já vive no Brasil há um tempo. A narrativa estabelece, a partir da ótica das duas personagens, um olhar distante para o real que nos revela muito sobre como somos observados pelos olhos de fora, revelando o que elas pensam sobre nossa realidade. Qual teria sido o motivo para elas decidirem viver no Brasil e em Belo Horizonte? A relação Portugal e Brasil ganha outra nuance, complexificada; estávamos acostumados a ver o oposto, brasileiros que tentam resolver suas vidas nas metrópoles e acabam marginalizados, como é o caso de Terra Estrangeira (1995) de Walter Salles. As personagens podem ser definidas por suas trajetórias, seus caminhos. Teresa (Elizabete Francisca) e Francisca (Francisca Manuel) dividem o mesmo lugar de não pertencimento e de estranheza na capital mineira. Talvez a relação que exista entre elas parta de um lugar da inconsciência, já que parecem se compreender devida uma relação de duplo onde se veem como iguais por possuírem semelhante trajetória, enquanto deslocamento, mas colocam-se em oposição no tempo presente como antagonistas. Há um descompasso entre elas que é a diferença no tempo. Partilham da experiência de estarem distante do lugar onde nasceram, embora suas diferenças as façam viver de forma distinta – não à toa que o filme trate disso, das aproximações e distâncias entre elas; entre elas e a cidade; entre Belo Horizonte e Lisboa. Há uma preocupação estética em representar o real, também presente em outros filmes da recente da produção mineira,
como é o caso de Ela Volta na Quinta (2015) de André Novais Oliveira, Quinze (2014), de Maurílio Martins, e Estado Itinerante (2016), de Ana Carolina Soares, exibido no Janela deste ano. A realidade ganha força na fluidez dos planos. Enquanto o filme acontece, a vida continua; é possível acreditar que podemos esbarrar com os personagens na vida real, pois enquanto eles dialogam sobre suas questões, somos convidados a dialogar juntos, como quando Francisca pergunta para Teresa se é mesmo em Belo Horizonte que ela quer envelhecer; me pego pensando sobre minha vida em Recife desde o tempo em que deixei São Paulo, há mais de um ano e meio. Mesmo não partilhando, necessariamente, dos mesmos processos das personagens, entendo tanto a pergunta quanto à resposta. “Eu nunca vou envelhecer”. A frivolidade dos diálogos dá ao o filme um toque do cotidiano. Wederson Neguinho, personagem também de A Vizinhança do Tigre (2014) de Affonso Uchoa, é importante para nos localizar no espaço do filme. Sua presença cria ruído. A representação, quando aproximada da vida real, tem a força de criar diálogos sobre nossas próprias identidades. Neguinho é ele mesmo, seu personagem em nada podia ser mais autêntico, torna-se signo. Assim como a música de Macalé, “Soluços”, que embala a vida em movimento e todos os ciclos que nele cabe. O filme é apenas um espaço no tempo na vida de Teresa e Francisca, nada acaba quando o filme termina. Há um claro limite temporal e essa opacidade na tela é potência, pois nos permitimos envolver conscientemente.
A IMAGEM DE UM ESPELHO Estado Itinerante por Nuno Aymar Estado Itinerante, curta de Ana Carolina Soares, traz a densidade própria de um cinema que está além de puros desenvolvimentos narrativos. Somos capazes de lidar abertamente não com o problema, mas sobretudo com as marcas que são deixadas. E se a grande matéria do cinema é o tempo, há no filme uma grande preocupação com a forma de demarcar essa temporalidade em sentidos óticos e sonoros que não precisam ser embasados por tramas ou reviravoltas. Em sua primeira cena, a protagonista descobre uma mudança de itinerário, impossibilitando o retorno à casa. O quadro está focado em Vivi, ao receber a notícia sua expressão é bastante diferente, parece haver algo além da própria notícia. Ela pega seu celular e começa a ligar para alguém que nos é desconhecido, mas devido a conversa (na qual só nos é permitido escutá-la), intui-se que deva ser seu esposo ou namorado. Desta conversa sobra para Vivi o silêncio e a violência, cristalizadas no olhar perdido, amedrontado e que parece procurar algo que está fora do quadro, e realmente está. Incapaz de voltar pra casa, ela espera até seu próximo horário de trabalho. Durante seu turno (que se repete duas vezes no filme) o conflito com a figura masculina do cobrador é evidenciado, não o vemos como imagem, apenas som, contudo seu discurso invade a cena da mesma forma que invade a protagonista. É impressionante a economia de recursos que o filme proporciona, um vez que é adotada a perspectiva da protagonista – muito bem interpretada. Seu jogo formal não implica não só num protagonismo da personagem, mas em sua experiência enquanto mulher que sobretudo sente.
Uma das cenas de maior impacto do filme é quando Vivi dança em um bar junto a um personagem cuja a sexualidade não se define, a tensão se prolonga em plano-sequência onde nunca se vê este personagem de frente, ao contrário da protagonista, que durante a cena cai em lágrimas pelos seus sentimentos e angústias guardadas até então. A grande reviravolta não se dá por explosões dramatúrgicas, não é necessário. Pois não há ação de confronto: este é interno e está ligado a uma superação de estado a outro, o que torna evidentemente o nome do filme muito próprio e coeso. Para sua conclusão, não há sugestão direta da ruptura da protagonista com seu namorado. Há todavia, uma cena fortíssima de significados e que proporciona uma síntese da forma e do discurso no filme, quando Vivi volta para seu apartamento, mas a câmera permanece em frente ao prédio num quadro quase fixo: vemos a personagem entrando, mas nada se sabe do que ocorre dentro. A câmera espera até o momento de sua volta, onde se vê ela com seus pertences. Ela saiu e nunca mais voltará. O curta apresenta o masculino como um universo à parte, fora de campo. Se por um lado o homem é eclipsado da narrativa, ou seja, na forma do filme, algo que é externo ao corpo de Vivi, as mulheres ganham um recorte discursivo na própria forma do filme, uma revanche histórica se lembrarmos o quanto o cinema eclipsou o feminino tanto na forma quanto no discurso. Este distanciamento reflete o estranhamento que a cada segundo expõe as tensões inconstantes de uma violência que é contínua. Tal aspecto formal do filme não é inocente para o espectador, pois quando deixamos de ver o masculino, sua ausência enquanto imagem é capaz de devolver para o cinema uma mulher emancipada, cujo destino enquanto história e narrativa não se pauta mais pela agência de personagens masculinos. Se há esse elemento, ele é completamente estranho, invasor e de certa maneira desestabilizador, como na cena em que Vivi
conversa com suas colegas e um grupo de motoqueiros passam pela rua para uma exibição de performances com suas motos. Não se consegue distinguir essas figuras, são objetos completamente estranhos à cena, que ao mesmo tempo provocam tensão com o som, mesmo não havendo contato direto. A relação aqui é mais sutil, pois reflete um estado psicológico da personagem. Nos confrontamos sempre com o olhar de Vivi e não adianta virarmos o rosto, o filme é uma provocação para um universo masculino que é incapaz de assumir sua responsabilidade e olhar nos olhos de uma mulher, pois neles está a verdade que não pode ser dita. Mesmo não havendo homens em cena, aquele olho reflete para muito além do filme e reflete aqueles que o assistem. Se o olho é a janela da alma, seria mais certo dizer que para o filme sua personagem se manifesta como um hiper espelho, uma imagem constantemente ressignificada, não por estar à deriva de algum condicionamento narrativo, mas por ser capaz de responder às forças que constantemente são metamorfoseadas ao longo do filme. Está na imagem, mas não pode ser visto. Nós como espectadores somos expostos para um série de índices deixados na Vivi, ou melhor, na imagem da protagonista. Pouco sabemos dela, nada de seu passado, seu personagem vive intensamente o fluxo do presente, e nós espectadores não precisamos de encadeamentos narrativos ou tramas para perceber que aquilo que o filme nos dá é a imagem real deste fluxo. Estado Itinerante é a expressão dos segundos de silêncio, do choque cujo o fim é indeterminado e seu dissolver na itinerância dos corpos, ora vítimas de uma constância que os assombra, ora agraciados por emoções que os preenche em cena, o movimento aberto onde a vida reconfigura seus corpos e toda sua matéria, e o resultado disso é sobretudo o próprio ato de ser e estar no mundo.
CÂMARA DE ESPELHOS por Juliana Soares Lima participante do Janela Crítica 2015 Inquietante, de forma excepcional, a noite da segunda-feira (31/10) no Cinema São Luiz (Recife). A combinação de Câmara de espelhos, de Déa Ferraz, e Elle, último filme de Paul Verhoeven – exibidos dentro da programação do 9º Janela Internacional de Cinema do Recife – e um dos candidatos à Palma de Ouro esse ano em Cannes, evidenciou uma conexão forte entre dois filmes extremamente perturbadores, cada um à sua maneira, e potencializou as reações do público nas duas sessões lotadas do festival. A ocasião da exibição de Câmara de espelhos também serviu para abrigar o momento mais bonito do festival até então: Déa Ferraz chamou ao palco todas as mulheres inseridas no mercado do Audiovisual presentes na sessão, num gesto para chamar a atenção para mostrar que ausência de representatividade feminina dentro do cinema brasileiro não condiz com o número de profissionais mulheres em atividade. Câmara de espelhos foi uma surpresa chocante. Um dispositivo simples: a dois grupos de homens são exibidas séries de vídeos separados por temas que deixam evidenciar como a mulher é subjugada dentro das relações sociais ao longo da história. Humor, casamento, divisão social do trabalho, liberdade sexual e violência contra a mulher são discutidos pelos grupos enquanto câmeras e microfones acompanham o debate. A dinâmica é muito simples, mas o discurso masculino que emerge dessas imagens é extremamente urgente. Para além dos absurdos proferidos ao longo dos atordoantes 77 minutos de filme, cuja descrição é previsível e desnecessária, um outro fator consegue ser mais intrigante: as risadas constan-
tes do público. Como espectadora, ao longo da sessão, tentamos nos convencer de que o riso seria, ao menos, um riso nervoso de constrangimento e vergonha alheia, mas me parece muito mais que se trata de um riso de compactuação, de se enxergar na fala daqueles homens e de naturalizar tudo aquilo como parte de quem somos. É surreal como quando colocadas diante das falas e posturas que algumas delas se dispõem a combater, a reação imediata das pessoas é tratá-las como humor. Pode ser interessante pensar como a projeção do filme dentro de uma sala de cinema cria uma dupla câmara de espelhos. No filme, a câmara é rodeada por espelhos onde os homens se enxergam enquanto câmeras e microfones denunciam ao exterior o machismo em seus discursos. Paralelamente, na sala de cinema a tela de projeção funciona como um grande espelho onde o público se identifica e identifica o outro nas imagens ao mesmo tempo em que ela denuncia o preconceito e a violência exercidos por quem assiste a medida em que se deixa transparecer as reações diante do que é visto. A importância da representatividade feminina, de mais mulheres ocupando o lugar da direção e de que mais filmes como Câmara de espelhos sejam feitos tenha ficado minimamente mais clara depois da experiência coletiva de ver-se e ver o outro projetado na tela de cinema na noite de ontem (31/10) no Cine São Luiz do Recife. Texto originalmente publicado no site Cinema Escrito http://cinemaescrito.com/2016/11/9-janela-2016-camara-de-espelho/
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