o autocad de britney spears

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o autocad de britney spears

felipe andrĂŠ silva


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sentimentos um rapaz no fim dos anos 2010 hexágonos duas jovens caça-níqueis o autocad de britney spears duas cidades e dois parágrafos maternidade paternidade pedro, quintas-feiras, após as 19h saudade lendo francisco mallmann motel diário de um pároco de aldeia fauna ladainha conversaciones con juan (traducidas) por favor frans post faz uma faxina não era essa a intenção



(...) que ninguÊm, pisando, estava impedido de protestar contra quem pisava, mas que era preciso sempre começar por enxergar a própria pata -raduan nassar


sentimentos dei um abraรงo muito forte e emocionado no meu melhor amigo durante o lanรงamento de seu novo livro de poemas. enquanto o abraรงava fazia votos de que esse gesto retirasse a necessidade de comentรกrios subsequentes.

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um rapaz no fim dos anos 2010 um rapaz examina brinquedos e revistas dos quais gostava muito quando ainda era criança. para isto ele precisou abrir um velho baú feito com ripas de bambu, retirar vários outros objetos mais novos que adicionou ao longo dos anos e espanar um pouco das grossas camadas de poeira. por qual razão guardei tudo isso? em que momento essas coisas deixaram de me causar bem-estar ou alguma impressão imediata o suficiente para que eu as mantivesse à vista? depois de fotografar toda a bagunça que causou, o rapaz avalia que a escavação de suas lembranças não foi satisfatória como contrapartida dos espirros com os quais lidará à noite.

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hexágonos a descoberta dos estilhaços amarelados nos cantos mais distantes do quintal tornou-se um hábito dos mais corriqueiros. transformou-se numa espécie de anedota particular, um mistério pessoal e divertido que envolvia desde os familiares mais próximos até uma vizinha mais chegada que vivia dois quarteirões acima e que vez ou outra passava para uma visita de cortesia; nenhuma das partes envolvidas entendendo perfeitamente bem a origem de tal intimidade. não havia apicultores nas redondezas, ao menos não de que se tivesse notícia. as árvores da redondeza foram checadas mais de uma vez, sem sucesso no que dizia respeito à dúvida em questão mas prevenindo um possível atrito entre os galhos mais altos e a fiação que vinha da rua. e assim como surgiam, deixaram de aparecer. alguns deles sentiram falta daquela diversão. lembraram juntos, com nostalgia desconcertante, o dia em que, feita a primeira descoberta, enfiaram o dedo num dos compartimentos de cera e revelaram o mel. 7


duas jovens uma jovem encontrou outra jovem na esquina onde costumam dobrar para ir ou voltar do único shopping existente em sua pequena cidade. a jovem mostrou suas compras de natal para a outra jovem, que comemorou e aprovou. haviam estudado juntas e não eram exatamente próximas mas se sentiram genuinamente felizes com o reencontro inesperado. agora que algum tempo havia se passado, elas conseguiam perceber e admirar as qualidades uma da outra com mais clareza do que nos conturbados anos da adolescência. apesar de ser verão, a tarde estava amena e elas puderam conversar por alguns minutos antes de se despedirem com a promessa de que se veriam outra vez, o que as duas estavam determinadas a cumprir no ano que se aproximava.

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caça-níqueis era cedo e já remendava os pedaços partidos de ivan após uma briga. não era a primeira e não seria a última vez que eu prometeria nunca mais lidar com isso, com ele, ainda que preferisse ignorar isso naquele instante. ele propôs uma aposta: caso sucumbisse novamente à cada vez mais perigosa abreviação de seu controle emocional, que parecia minguar proporcionalmente ao seu crescimento, me daria o prêmio que eu achasse mais apropriado. não dei atenção à oferta e preferi me ater à diversão de encontrar maneiras mais dolorosas de aplicar o antisséptico sobre as feridas. passaram-se poucas semanas até o dia em que, tendo primeiro cuidado dos reparos urgentes em sua moto, ivan me rememorou da regalia, agora disponível para o saque. com a garrafa e o algodão na mão eu conseguia pensar numa cadeira reclinável, num hambúrguer particularmente suculento, numa vida inteira de bandagens e suturas. 9


o autocad de britney spears ainda que não demonstrasse nutrir qualquer interesse particular por design, engenharia, ou arquitetura, a cantora britney spears tem sido vista semanalmente numa escola onde se inscreveu para aprender a manejar o software de desenho técnico conhecido como autocad. em entrevista recente, a artista esclareceu a surpreendente empreitada educacional: “estava com vontade”.

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duas cidades e dois parágrafos a diferença entre os dois quartos onde passei a maior parte de minha vida está basicamente na quantidade de luz que incide sobre os ambientes, mas consigo encontrar também outras variáveis, a mais importante delas sendo o frio que sinto no atual quarto quando à certa hora da madrugada. isto se deve provavelmente pela proximidade com o mar e pela falta de um grande fluxo de carros e pessoas pela vizinhança, muito mais tranquila que a primeira. não consigo pensar numa quantidade relevante de pontos em comum. posso citar talvez o barulho de pássaros nas primeiras horas da manhã ou minha disposição para sonhar com grandes catástrofes, como tsunamis e terremotos, ainda que isso não necessariamente tenha a ver com os quartos, e sim com a qualidade dos colchões em que me deito.

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maternidade sabe que precisa ser firme com os filhos como seus pais nunca foram com ela mas acha interessante sentir satisfação nisso.

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paternidade ele analisa a apavorante sensação de que está deixando de amar sua própria filha. tudo na menina parece lhe incomodar; desde os joelhos pontudos até o frizz que os cabelos cacheados naturalmente produzem. se isto não mudar nos próximos meses ele precisará tomar uma atitude, mas não tem ideia de qual será ela.

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pedro, quintas-feiras, após as 19h recentemente se desenhou uma possível variação: o jantar em casa ao invés da costumeira ciranda entre japonês, coreano e italiano. pedro avisou que passaria no mercado após sair do trabalho, e passou. e no mercado é possível que tenha se demorado mais do que gostaria decidindo qual dos dois vidros escuros de azeite serviria como decoração após findo o conteúdo ou qual das duas marcas de bolo de rolo valia mais a pena, posto que a variação nos preços era ínfima. pagou no débito. não fazia sentido que eu esperasse pelo barulho do carro, seria sempre o mesmo, não havia a mais remota chance de ouvir uma freada brusca ou um escapamento engasgado, com ele não. segui a nova cartilha: fatiar verduras e legumes, encaminhar o molho, abrir o vinho, esperar as provisões, as proteínas, a chegada de pedro. comemos como crianças que descobrem um novo sabor, com alguma emoção. era esse o nosso assunto, nossa recém-descoberta capacidade de rebelião contra a malha padronizada das quintas14


-feiras. adormecemos mais ou menos no meio do filme, numa cena em que o rapaz não tão bonito finalmente beija o rapaz mais bonito, e quem se arrepende é o primeiro. acordei com a certeza de que nunca mais cozinharia na vida e precisei de um copo d’água antes de deitar novamente. queria conseguir entender algo, não entendia nada. quando olhei para pedro já era sexta.

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saudade olhamos um para o outro a uma distância considerável. ele pode se dar o luxo de desviar os olhos para a tela do celular quando sente que manter a conexão pode se tornar algo perigoso, mas eu deixei o meu carregando no escritório antes de sair para o almoço.

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lendo francisco mallmann fomos convidados para um fim de semana na casa de praia que um amigo muito querido alugou durante o verão. o espaço era amplo, fresco, e o nosso quarto contava com comodidades como tv, ar-condicionado, e até mesmo um banheiro privativo. o fim da sexta-feira na qual chegamos se deu sem grandes eventos além de nossa ida a uma sorveteria local e algumas garrafas de vinho abertas na espaçosa sala de estar. no sábado, após o almoço, sentei à beira da piscina e me preparava para ler um livro de poesia que havia levado comigo quando percebi algo estranho. o intenso burburinho da praia havia silenciado. os turistas, vendedores, transeuntes, pareciam não estar lá. caminhei até a mureta que separava o terreno da casa e a faixa de areia e me surpreendi com o que vi. no domingo à tarde, já fazendo o caminho de volta, paramos o carro próximo a uma grande plantação de cana e ficamos observando, por um instante, a ação do vento nas folhas. jamais ficaria sozinho e gostava dessa sensação. 17


motel é noite de sexta num motel no bairro do pina. vim dormir neste motel, ainda que pudesse estar em minha própria casa ou na casa de amigos. não há motivo para que eu esteja aqui. a água do chuveiro é muito fria, assim como o ar-condicionado, cujo termostato está quebrado. chove muito nessa noite de sexta, e descubro uma goteira muito próxima à cabeceira da cama, de modo que precisarei dormir na posição contrária; o que muito me incomoda por ser um grande chamariz de azar. devo à minha mãe uma queda vertiginosa pela credulidade. saio do quarto, o motel tem um hall. quero ver a chuva e fumar um cigarro, coisa que não tenho por hábito, mas hoje não dormi em casa. é impossível dormir no motel, as camareiras falam tão alto quanto os outros hóspedes gemem através das finíssimas paredes. durmo. no sonho eu bato numa das portas, entro, encontro um homem que chora; ele precisa de mim e eu preciso dele. 18


diário de um pároco de aldeia era mais ou menos uma da manhã quando o avistamos. na verdade eu fui o primeiro e pouco a pouco chamei a atenção do grupo para a figura. era de estatura média e tinha a pele bastante bronzeada. o rosto arredondado era achatado por um boné que tentava esconder volumosos cabelos cacheados, tarefa na qual não era muito bem sucedido. vestia uma combinação estranha e pouco harmônica de camiseta polo laranja, jaqueta jeans surrada e calças da mesma tonalidade. no período em que ficamos na porta do bar ele subiu e desceu a movimentada rua inúmeras vezes, o que nos levou a crer que procurava clientes. não me sentia atraído, mas me perguntava como seria ser ele, ali, naquele instante. me perguntava se desejaria algo assim para mim mesmo. não notei quando, horas mais tarde, ele se aproximou no momento em que eu acendia meu último cigarro. podemos dividir, eu disse. ele sorriu. estava te olhando. gostou do que viu? gostei, mas talvez não como você gostaria. tudo bem. acho 19


que a gente vai pra outro lugar, tá afim? não sei, pega meu telefone. certo. ele começa a se afastar, e eu tenho a óbvia sensação de que nunca nos veremos novamente. eu já fui padre, sabia? estou sabendo agora. mas tem vida que não é pra qualquer um.

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fauna ele acredita que descobriu terra nova, ou assim parece. exclamou “veado” alto o suficiente para que a mensagem atravessasse toda a barulhenta sala e me atingisse na banca mais próxima da saída. daqui eu me perguntaria se é triste viver acreditando nessa fantasia de bandeirante mas estava muito ocupado com assuntos mais relevantes e menos óbvios.

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ladainha duas portas de madeira compensada laminadas com fórmica branca, que apoiadas sobre quatro cavaletes de cor rosácea formam uma grande mesa de trabalho. um abajur de clipe que se agarra à borda. um porta-revistas herdado de paula quando de sua viagem para os estados unidos, onde se espremem várias edições nunca lidas de periódicos variados. um pesado livro chamado “tudo sobre arte”. quatro organizadores transparentes repletos de cabos, carregadores, recibos, documentos, rolos de linha encerada, líquidos removedores de adesivo, meias velhas e cola para artesanato. cinco mini baldes repletos de lápis de cores variadas, hidrocores, canetas, lápis 2b e hb, apontadores, borrachas, estiletes, dobradeiras e furadores, talvez algumas agulhas também. uma papeleira em aço. uma impressora rosa coberta com um pano de prato que emula uma embalagem de maizena. dez reais que sobraram da compra de um colírio lubrificante. um mouse vermelho ao lado de uma caneca amarela. duas caixas 22


de incenso já há muito intocadas. um caderno onde estão guardadas as fotos do ex-namorado e que guarda grande valor sentimental. um livro quase completo de exercícios de caligrafia. uma mesa de corte bastante útil onde foi apoiada temporariamente uma refiladora inútil e de baixa qualidade. a camiseta que rodrigo me deu mas não cabe em mim. a caixa do hd sem nada dentro. um quadro onde se escrevem tarefas a cumprir mas que hoje está em branco.

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conversaciones con juan (traducidas) aconteceu algo de diferente hoje? sim, voltei a ouvir a voz. o vizinho? não sei, mas desta vez estava cantando uma cúmbia. e o que era antes? uma rumba. não sabia que você conhecia a diferença. não conheço mas prefiro acreditar que sim. e o que vamos fazer sobre isso? nada, o homem pode cantar. não te incomoda mais? não, acho que ele fez aulas. e quando ele parar de novo? não vai parar. e se parar?

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por favor miguel gostaria que adriano, seu colega de trabalho, compreendesse que suas investidas amorosas não surtiriam qualquer efeito, posto que acabara de sair de um longo e traumático relacionamento e não pretendia se envolver emocionalmente com ninguém tão cedo, mesmo que de maneira efêmera. sempre que miguel ia ao refeitório tomar um chá ou fazer um lanche, o rapaz se materializava próximo, sorrateiro, inquirindo sobre o clima ou propondo um debate sobre o livro que havia visto na mesa do colega dias antes, o qual também havia lido. não era da natureza de miguel ser ríspido ou evasivo, o que criava incômodas situações onde precisava descrever capítulos inteiros de um romance policial ou concordar com comentários genéricos sobre o excessivo calor que chegava junto com a nova estação. a situação atingiu o cúmulo quando, numa sexta-feira qualquer, um entregador deixou um pequeno buquê de girassóis na mesa do jovem, atraindo para ele uma atenção que repudiava completamente. mi25


guel procurou por adriano no ambiente de trabalho, com a intenção de finalmente esclarecer a situação, mas logo descobriu que o rapaz havia faltado sem aviso. próxima segunda ele não me escapa, pensava, enquanto observava as flores.

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frans post faz uma faxina o pintor acredita ser essencial ele mesmo cuidar da limpeza de seus aposentos, vestimentas e sobretudo artefatos. a mais remota possibilidade de precisar fazer uma encomenda via navio jรก lhe causa arrepios.

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não era essa a intenção qual a graça da história? insistiam em perguntar.

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fontes circular minion bahnschrift papéis book bold 80g/m² (miolo) colorset 180g/m² (guarda) vergê 120g/m² (capa) revisão cesar castanha felipe andré silva recife/cabo, nov/2019


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