Livro da Htinha

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TRESNOITADOS



TRESNOITADOS



ACORDADO NUMERO 1:

Roberto do Vale, moรงo do interior, certinho e amuado.



O desejo de Roberto por Carla deu se logo se conheceram, essas coisas de amor à primeira vista, como ele conta. Estavam no interior de Minas Gerais e coincidentemente visitavam seus avós, ela da capital, ele de São João Del Rey. Entediado, Roberto procurava algo para fazer, queria se distrair. Perguntou aos primos o que eles costumavam fazer aos fins de semana, descobriu que o ponto de encontro dos jovens da cidade era na Praça da Matriz logo após a Missa das sete. Estava decidido! Praça da Matriz depois da Missa. Arrumou-se todo com direito a gel no cabelo e perfume. Carla fora a Missa com a vó. Se esbarraram na calçada, (mais uma coincidência do amor) ele se encantou com a beleza de Carla; vinte poucos anos, cabelos negros, pele de pêssego e um narizinho lindo e delicado. Ele puxou assunto e ela que adora uma sedução deu trela para o rapaz. Papearam por horas, falavam de coisas fúteis, outras, segundo ele, nem tanto. Ele acreditou que se identificaram com tanta intensidade que ali nascia um grande amor, daqueles que só a morte interromperia. Mal sabia ele que aquele encontro inocente culminaria na maior decepção amorosa da sua vida. 05


Ou assim ele conta... Carla fumava. Não gosto de mulheres que fumam, e não só pelo cheiro e gosto estranho que dá na boca, mas pelo fato de achar essas mulheres que fumam mais dadas, me dão a impressão de solteironas, amantes ou putas. Carla segurava o cigarro como muita elegância, me lembrava alguma personagem de cinema, Audrey Hepburn talvez, uma Audrey de cabelos longos. Ela olhava para todos os que passavam, sem pudor nenhum, sentamos em um boteco ela pediu um chope, confirmando mais uma vez que não era pra mim. Quando relembro os detalhes repassando o filme da nossa história na cabeça nem acredito que não me atentei aos sinais. Quando a pedi em namoro ela pediu um tempo para pensar, achava que a distância atrapalharia, garanti a ela que aquilo não era um empecilho já que eu transferiria o curso para outra faculdade na capital para ficarmos próximos. Ela aceitou. A visitava todos os finais de semana. Em um desses, ela me alertou que possivelmente viajaria com os amigos, resolvi ir mesmo assim, poderia encontra-la por algumas horas antes da viajem, alguns minutos com ela bastariam, só tinha olhos para Carla. Liguei para ela com a intenção de nos vermos, tinha muita saudade. Ela me atendeu, foi breve e desligou na minha cara, esperei que ela ligasse de novo, mas nada. Meus dois melhores amigos estavam comigo. Igor sugeriu que fossemos até lá, estávamos relativamente perto da casa dela e podíamos passar lá numa boa, eu achei melhor não, não queria atrapalhar, já havíamos combinado de encontrar um casal de amigos em uma pizzaria. Igor insistiu que não era problema nenhum e que se eu desconfiei era melhor passar lá pra averiguar. - Não desconfiei de nada Igor, só não entendi por que ela não falou comigo. 06


Eu escutei alguém perguntando quem era no telefone. Pode ter sido o pai dela, ou algum amigo. E ela falou que ligaria de novo. - É, mas não ligou. -Acabamos de desligar, imagino que vá demorar um pouco. -Sei não Roberto, passa lá. É caminho. Vou pegar em direção a casa dela e você vai decidindo aí. -Não, não precisa. - Acho que é bom. -É Rob, quem sabe ela aproveita e já não sai com a gente. Eu fui convencido, era exatamente esse o motivo pelo qual liguei para ela, além do mais não tinha a pretensão de invadir o espaço dela, ou pegar ela no pulo, só queria ir lá, ver se estava tudo bem, vai que havia acontecido alguma coisa, não sei. Fiquei até um pouco preocupado. Qual o motivo dela não poder falar? Chegamos na casa dela em mais ou menos dez minutos, tempo que ninguém falou mais nada no carro. Sai do carro e acidentalmente bati a porta mais forte que o normal e escutei o Igor esbravejando alguma coisa dentro do carro. Apertei o interfone. Ela demorou para atender. Quando nos falamos ela perguntou o que eu fazia ali, achei estranho a pergunta oolhei para tras para ver se algum dos caras havia escutado. Eles nem olharam, creio que não. Ela abriu, disse que estava ocupada. Subi pelo elevador, Carla, estava com mão na porta entreaberta... Aparentemente nem se dera ao trabalho de abrir totalmente a porta, muito menos de olhar para mim, continuou mirando o chão como quem tenta se lembrar de algo, algo que iria falar agora mas que, por um segundo, sumiu por completo da memória, até que ela se deu conta que eu havia chegado, fiz 07


questão de fazer barulho com a respiração, respirar mais forte ou mostrar o quanto ofegante eu estava isso por que alguns segundos antes tudo que eu menos queria era emitir qualquer ruído, alguns segundos antes pensei em ser o mais sorrateiro possível em entrar naquele apartamento frio sem nem mesmo um sussurro, só para tentar ouvir qualquer barulhinho da presença de um outra pessoa. Um outro homem. Não o fiz, mas só o fato de querer fazê-lo já me atormentou, me senti culpado. Logo eu que jamais quis surpreender alguém e não gostar nada nada de ser surpreendido, estava pronto para pegá-la no pulo caso fosse preciso ou pelo menos me imaginando fazendo isso. Demos um beijo rápido e perguntei para ela por que ela havia desligado tão rápido, ela perguntou por que eu tinha ido lá, falei que queria convidá-la para, ela confirmou que iria mas mais tarde, por que precisava resolver umas coisas e que depois me explicava melhor. Perguntei se havia alguém ali. Ela respondeu que sim. Perguntei quem, tentando colocar de lado a nítida impressão de que ela escondia algo, de que ela mentia para mim. Carla geralmente tinha esse efeito nas pessoas. Antes do episódio eu considerava aquilo um charme e não um defeito. Eu estava descontrolado, perdido em desconfiança. - Carla! – escutei alguém gritando lá de cima. Ela olhou em direção a escada eu também. Era o ex dela, ameaçando (típico) que se ela não me mandasse embora ali mesmo ele iria sair, ela não falou nada, obviamente deixando claro que ele saísse, quem cala consente e ela estava consentindo que ele fosse embora, das casa dela e de nossas vidas. Prepotente, achando que ela pediria para que o namorado fosse embora ao invés do ex, que, aliás, ela odiava, tinha até medo dele. Contou-me que uma vez 08


ele ameaçou postar fotos nuas dela na internet, crápula, mau caráter. E era só por isso que ela ainda conversava com ele, se não fosse pelas ameaças e eventuais chororôs dele ela nem falaria com ele. Quando enfim ele percebeu que não era nem um pouco bem-vindo saiu mandando ela se foder, o que me deu vontade de avançar nele, galinho de briga besta teve que passar por mim na porta para chegar ao elevador e se eu não tivesse desviado com certeza teria esbarrado em mim, louco que estava para arrumar uma briga, não que eu não estivesse, eu também estava, armei inteiro, se ele avançasse me defenderia. Ele não o fez, apertou o botão do elevador incessantemente, como se o elevador fosse chegar mais rápido se ele apertasse mais vezes, é claro que não chegaria. Ignorante. Ficamos eu e Carla observando-o andar pateticamente. Até que ele decidiu descer de escadas, não satisfeito em tentar quebrar o botão do elevador o animal bateu a porta como se quisesse levar a parede junto com ele, podia ter levado, bem na cabeça pra ver se parava de ser tão estúpido. Olhei para Carla, ela estava com as mãos nos olhos, olhou para mim de baixo para cima com a expressão preocupada, estava bravo mas não conseguia ter raiva daquela mulher, tão linda, tão doce, dos olhos e cabelos tão negros. Ela começou a me explicar, disse que ela queria conversar, jurou não haver mais nada entre os dois. Conversamos e bem me convenci que ela gostava muito de mim, pensei em proibi-la de andar com o tal do outro, mas quem era eu para isso. Até que ele ressurgiu, me perguntei se tinha chaves do apartamento. A porta devia estar aberta. Mas o porteiro o deixara subir assim? Devia de conhecê-lo. Isso não era nada bom, enquanto divagava sobre como aquele cara havia subido, não reparei a reação de 09


Carla ao vê-lo, quando pensei em fazê-lo ela já mirava o chão, escondendo a cara de culpa, que eu até então desconhecia. Nenhum de nós sabíamos, não havia amante, os dois eram namorados dela, que me pareceu feiosa por um instante. Roberto, Carla e o outro conversaram naquela noite, o que para ele pareceu séculos, para ela não parecia muito. Foi sem dúvida a maior desilusão de sua vida, nunca desconfiaria dela. Ficou calada na maior parte do tempo, entre um soluço e outro ouvia se algum resmungo de explicação. Roberto mal conseguia olhá-la. Saiu junto ao rapaz depois de perceber que sofriam do mesmo modo. Chamou o para uma cerveja. Não cansado dos detalhes das mentiras da mulher amada, queria entender, precisava de uma compreensão. E ninguém melhor do que o outro traído. Sentaram arrasados em um bar sujo, único do bairro ainda aberto na madrugada. Sem ânimo e sem máscaras, contaram as histórias um para o outro, não se desafiaram nem nada, não havia orgulho na trágica situação, coitados. Roberto quis ligar para ela, não comentou com o mancebo, mas quis. Roberto era manso e Carla era única. Pensava em como ela devia estar sofrendo abandonada em casa sozinha. Bom seria se ela ligasse. Ele entenderia a dúvida da moça, pode acontecer com qualquer um. Além do mais, um amor desses só acaba na morte. Pediu a conta e prometeu que avisaria ao rapaz caso ela entrasse em contato, tinha certeza de que não entraria, mas pediu que ele fizesse o mesmo. Era esse o objetivo da promessa. O outro consentiu. E então Roberto seguiu mais aliviado. Pelo menos agora ele saberia, quando voltassem a namorar, caso ela o traísse novamente.

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ACORDADO NUMERO 2:

Nogueira, despudorado e presunรงoso, esse era charme para todo lado.



A Carla estava namorando outro. E adivinhe... Nenhum dos dois iludidos sequer desconfiava. Se lembra daquele dia que ela veio chorosa e disse que estava a caminho do hospital para visitar a amiguinha que tentou se matar com uma caixa de Rivotril? Não tem amiga nenhuma. Ela estava em Capitólio, provavelmente na jacuzzi com o moleque que a levou para passar o final de semana na casa do lago dele. É a casa que é dele, não o lago. Porque, né? Era só o que me faltava, esse cara ter um lago. Aí, realmente teria alguém, no caso um pobre de um corno suicida, internado na Santa Casa abraçado na caixa de remédio. Faz um favor, pede uma cerveja tenho que beber, quero relaxar, preciso parar de pensar na dona puta e seus dois trouxas. Agora entendo, Vadinho, entendo Teodoro. Nossa diferença é que nenhum empacotou, ainda. Brincadeira mesmo, porque, o rapaz é só mais um iludido na história. Nem sonhava. Apesar de que percebi claramente que os amigos dele não gostavam muito da Carla. Mas tenho certeza que ele não imaginava. Ficou tão puto quanto eu, até chorar, o coitado chorou. Jorge Amado 15


que me desculpe, mas não tem nada de graça esse enredo com um dos maridos morto, bom mesmo são ambos bem vivinhos para estapearem, juntos, a cara da cachorra, porque vou te contar, que vontade de matar a desgraçada. Amei aquela mulher, Romero. Dei tudo a ela, corri atrás, fiz por onde e na época em que ela terminou comigo, fiquei que nem um bezerrinho desmamado, choramingando pelos bares da cidade. Você sabe bem, estava lá durante a angústia toda. Quando ela quis voltar, o que é que eu fiz? Voltei. E ela vai e me apronta essa presepada toda. Agora eu te pergunto, para quê? Para se vingar? Cheguei ontem na casa dela e estava tudo bem. Isso até o telefone tocar. Não sei bem como é que eu fui ouvir, mas escutei a voz de um homem do outro lado da linha, era definitivamente uma voz masculina a chamando de amor. Gritei de supetão, que merda é essa? Quem é? Com quem você está falando? Ela olhou pra mim, sobrancelha franzida, meio brava meio desentendida, na hora me senti culpado pelo berro, vai que era o pai dela no telefone, podia ser algum amigo gay também. A Carla tem tanto amigo veadinho... Fiquei com vergonha da artilharia de perguntas, já a acusei antes mesmo do julgamento. Depois do susto, ficamos em silêncio. Ainda bem que estávamos sozinhos, a mãe dela logo me veio à cabeça. Imaginei como Sandra se sentiria se ouvisse a grosseria que fiz com a filha. Me senti acuado, constrangido pelo estardalhaço que fiz e por não poder me desculpar, impossibilitado pelo orgulho. Ela olhou em direção a suíte dos pais. Arrepiei. Carla tem disso de me fazer sentir culpado. Repeti a última pergunta dessa vez num volume mais baixo que o normal. - Depois eu te ligo, ok. Bateu o telefone me encarando boquiaberta. - Que 16


escândalo foi esse? Porque você começou a gritar? - Esbravejou. - Quem era Carla? Anda, fala. - Não fala assim comigo, Nogueira, que eu não sou suas nêga. - Era seu pai? - O que você acha? - Não sei. Sei que era voz de homem. Eu ouvi. - Ouviu como? - Ouvi ouvindo. Escutei alguém falando amor, pior: “oi, amor”. - Não vou ficar conversando com você nessa atitude. -Você não vai me falar quem era, Carla? - Olha, aqui, Antônio, não fui eu quem ligou, não sei se você percebeu, mas o telefone tocou e eu atendi, apenas. Você vai querer controlar até quem me liga agora, é isso mesmo? Não posso falar com ninguém? Não tenho direitos mais? Nosso namoro me priva de conversar no telefone? Você é meu chefe, agora? Não recebi esse memorando. Vai ser igual àquela vez, que você resolveu que eu mudei a senha do celular para te provocar e que ou eu estava escondendo alguma coisa ou eu estava tentando fingir que escondia para fazer ciúmes, mesmo com todas as minhas súplicas para que acreditasse não ser nada daquilo. Você é sempre super paranoico, isso pode ser o efeito de alguma dessas drogas que você usa. A maconha faz isso com a pessoa, a deixa fora da realidade, já cansei de te falar, mas você me escuta? Não, nunca! E mesmo depois de todos os meus argumentos, depois de te implorar para acreditar em mim, nas minhas explicações e no fato de que sempre mudo a senha do celular você continuou cético. Você é cético. Aliás, você não confia em mim, só acreditou quando 17


minhas amigas comentaram, na noite em que parei no hospital, que a minha sorte era sempre trocar a senha, caso contrário, elas postariam as fotos do fiasco na internet. Assim como te falei na época vou repetir: você precisa acreditar mais em mim, a nossa relação deve ser baseada em confiança. Como é que posso confiar se você não confia em mim. Sabe o que eu acho? Acho que você fica arquitetando tanta falcatrua nessa cabecinha, que acaba por achar que todo mundo é como você. Sabe o que é isso? Falta do que fazer, Nogueira. Você tem estado muito à toa, sua mãe já me disse, aliás, conversamos ontem no telefone sobre você, que não está estudando, que anda saindo demais, por acaso ela te falou isso? - Minha mãe está te ligando, Carla? Que história é essa? Quando? Olha só como você deturpa as coisas. Não interessa se sua mãe me liga ou não, interessa é que você não tem ido às aulas e não me contou, tive que procurar saber pela sua família. Não conversamos direito, e quando temos a chance você arranja desculpas para brigar, assim não dá, Nogueirinha. Ela já estava em prantos, Romero, soluçando e tudo. - Por que é que minha mãe tem te ligado, Carla? Você também não me falou isso. - Eu não disse que sua mãe tem me ligado, eu disse que temos conversado no telefone, qual é o problema? Você tem algo a esconder? - Não, não tenho nada pra esconder, e mesmo se tivesse você saberia; fuça em tudo. - Quanta hostilidade, Antônio. Vou subir e pegar um vinho, não vou ficar aqui ouvindo essas coisas. 18


Tudo daquele jeito cara, achando que podia me enganar (?, acho a frase podia ser reformulada, falta coesão...). A Carla é toda ardilosa. Subiu e eu fui atrás devagar tentando digerir a raiva. Tirei do bolso um paiol. Quando chegamos à cobertura olhei em volta à procura de um isqueiro, os quadros familiares do Britto na sala de estar e o fato da mãe dela não estar lá me tranquilizaram. Engraçado me sentir calmo ao ver os quadros... O segundo andar da casa é como se fosse a casinha dela; quarto com cama de casal, sala de TV, banheiro, piscina no deck e varanda. Por vezes, tive a impressão que ela morava sozinha, mas nessas horas é quando esbarro com alguém nos corredores. Sentei aflito no banquinho da varanda, alguma coisa estava errada. Eu tinha certeza. Eu sentia isso. Preocupado e curioso para saber sobre as conversas de mamãe e Carla insisti no assunto e ela perguntou se eu queria beber alguma coisa. Eu não queria beber. aceitei uma cerveja. Nada me tirava a nítida sensação de estar sendo enganado, quase liguei para minha mãe pra saber daquilo. Devia ter ligado. Logo que fui servido, o interfone tocou. Fiquei pensando que podíamos estar falando muito alto, incomodando os vizinhos, sei lá. Mas não estávamos. - Vou ver quem é, fique aqui. E saiu garantindo que já voltava. A cerveja desceu amarga, a lua parecia apagada. Meu mau humor e o agravo de que possivelmente a culpa era toda minha me corroía. Achei um isqueiro rosa no canto da mesa e tentei ascender o paiol com o danado que custou a funcionar. Os isqueiros de Carla sempre me pareciam estragados, ou ela os comprava em alguma loja vagabunda ou ela os gastava e os carregava vazio por aí. Ou as duas coisas, mas nunca conseguia usá-los. Carla! Carlaaa! Gritei, mas não hou19


ve resposta. Talvez não me ouviu, estávamos distantes. Pensei que possivelmente dava o melhor de mim na relação, sabe, sempre fui egoísta, você sabe, Romero, por mais que me doa admitir costumo ser e raramente percebo. Mal consigo ouvir os discos dela, acho todos ridículos, aqueles sertanejos idiotas. Sertanojo universitário. Não há nada pior que isso e se existir algo mais horrível são os quadros do Britto. As vezes fico penso que se eu tivesse uma arma com duas balas e pudesse escolher entre Britto, aquela piranha da ex do Eike Batista e Hitler vivo, dava logo dois tiros no Romero Britto pra ter certeza. Carla sabia o copo que eu gostava de beber cerveja e fez questão de me servir nele, outro gole e olhei em volta; tive a ideia de acender o cigarro no fogão. Dei um trago e resolvi descer para falar com ela que parássemos de bobagem, estava convencido a não brigar mais. Ela cuidava de mim e qual era o problema dela falar com minha mãe, melhor que elas conversassem mesmo. E também não dá pra controlar quem liga pra ela, que, aliás, eu ainda não sabia quem era. Tomado, levantei, apaguei o cigarro e desci. Já na escada, parte por não saber se ela estava longe, parte por estar puto mesmo, soltei aos berros: - Carla, até agora você não me disse quem era no telef... Que merda esse cara está fazendo aqui? Estava o marmanjo parado na porta, o ex dela, olhando para mim com aquela cara sonsa. O filho da puta teve a audácia de ir até lá. - Que porra é essa? O que esse moleque está fazendo aqui? - Moleque? - Calma gente. 20


- Calma o cacete, Carla, ou você manda esse cara embora ou vou eu. Ele retrucou atravessado para eu vazar, me deixando mais bravo ainda. O pior não foi isso, foi ela não dizer nada, mesmo uma semana depois que descobri o chifre que os pombinhos me botaram antes do Réveillon e perdoei. Meu sangue ferveu, por um instante achei que eu seria capaz de partir para cima do cara, mas tudo que eu conseguia pensar era que Carla não falou nada. Absolutamente nada. Olhei pra ela, Romero, em desespero, não sei bem qual a cara que fiz, mas não deve ter sido boa já que ela não conseguiu nem olhar nos meus olhos. O silêncio da Carla me fez sentir surpreso e ferido, e sobretudo irado. Me dei conta com absoluta clareza de que ela não faria nada. Não havia dúvidas. Ela gostava da situação, deveria ter feito ou dito alguma coisa, ela não fez nada, ficou estática, como se assistisse a tudo pela televisão ou do alto de seu camarote. - Foda-se, Carla, fica aí com esse cara. Saí vazado, ele arredou o corpo armado para que eu passasse pela porta. Chamei o elevador, fiquei ali parado e enquanto os dois me olhavam o sangue fervia. Eu era um idiota e a merda do elevador não subia. Saí pela escada batendo a porta atrás de mim, fez um estardalhaço. A luz da escada não acendia, eu não enxergava nada. Esqueci o controle do portão. E como é que volta? Não volta, não é? Fiquei no primeiro andar pensando em como em sair dali. Pensei em pedir pra algum vizinho, ou em gritar lá de baixo para alguém abrir, cogitei até buzinar enlouquecidamente na garagem, mas tudo me parecia intrusivo demais, as pessoas iam aparecer eu já estava nervoso, podia assustar alguém, além do mais tem muito velho naquele prédio. Quando finalmente lembrei-me do porteiro já estava a ponto de explodir e a Carla ainda não havia vindo 21


me procurar. Pedi que o porteiro abrisse e saí. Para minha surpresa os amigos do Roberto estavam na porta. Um brinde à ironia. Os colegas, dois marmanjos de bermudinha surf e boné, me viram. Achei que partiriam pra cima de mim. Tranquei o cu e o carro, acelerei, virei sentido a avenida, peguei o celular e te liguei. Você viu que te liguei ontem à noite? Então. Devia ser umas duas da manhã. Você não atendeu. Julguei melhor esperar que o Robertão saísse do apartamento. Dei a volta no quarteirão. Fiquei de butuca, mas os amigos do cara me flagraram, mas eu tava tão puto que nem liguei, até que um deles se aproximou do carro. É agora! Vou apanhar, mas pelo menos dou uns socos em alguém e libero essa fúria contida. Mas eram dois, né. Eu apanharia um bocado, isso se alguém aparecesse em meu resgate senão eu ia apanhar muito. Liguei o carro. O mancebo acenou. - Ou! Calma, fera. Não sabia se o cara estava me zoando ou de fato tentando me acalmar. Abri o vidro desconfiado e ele levantou as mãos abertas. - Não vou fazer nada com você. Só te falar mermão, acho melhor você voltar lá. Tem alguma coisa errada, bicho. Você está junto com ela? Se sim é bom saber que o Roberto também está e tem um mês que os dois estão namorando. Essa mulher está tirando onda com vocês. Tudo fez sentido. É claro que ela não ia falar nada com ele, ela estava com ele. Saí do carro atordoado, pedi ao porteiro que abrisse, inventando que havia esquecido a carteira. A porta estava aberta. Eles estavam na cobertura. Ouvi a voz dele, subi sem fazer ruído, não queria surpreendê-los, só queria escutar o papo. 22


- Por favor, me entenda ele é meu ex, meu amigo, gosta de mim, ele aparece aqui de vez em quando, vou fazer o quê? Tivemos uma relação de quatro anos! Não são quatro meses, são anos. O que você espera de mim? Que eu não tenha contato algum com ele? Você quer me impedir de ter essa relação? É isso? Como você pode me subjugar aos seus caprichos ao mesmo tempo que faz juras de amor? Eu não quero estar com alguém assim. Não posso. Tenho um passado, você também. Pelo amor de Deus, me entenda. A culpa não foi minha. Se for para ser assim sempre, esse seu ciúme doentio, não quero. Não dá. Eu preciso de você. Eu te amo, mas preciso que você confie em mim. Você queria que eu fizesse o quê? Que mandasse ele ir embora? Não abrisse a porta? Não o escutasse? Ele está sofrendo e pior ele ainda não sabe... O vaivém da Carla entre a súplica e desdém era estarrecedor. Ela ia do oito ao oitenta na velocidade da luz, ora ela não queria ele mais logo, depois implorava para ele entender, tudo com a maior facilidade. A perspicácia dela em relação ao outro e a exatidão na alteração dos graves e agudos enquanto amalgamava as palavras de persuasão eram excepcionais. Era tudo dito devagar, mas sem interrupção, em uma voz ligeiramente sussurrada. Eu tinha certeza de que ela o olhava nos olhos. Ele não falava absolutamente nada, estava hipnotizado. E eu sabia exatamente como. A verdade era que ali, as palavras dela já não me enganavam, o que insistia em me confundir era a sua voz. - ...Que estamos namorando. - Namorando? Ela parou de falar. Apareci na varanda, puxei um banquinho e assentei. Disse a ele que nós também estávamos namorando. Depois disso, demos início a uma série 23


de histórias contadas por ambos sobre as lorotas da Carla que ainda assim insistia em mentir e jogar um contra o outro. Sai de lá arrasado, coração partido, ele parecia abalado também. Ele me convidou para tomar uma cerveja, achei válido, papo veio papo foi, tudo sobre ela. Saímos de lá já era dia, os dois bêbados e arrasados. - Cara, que loucura! - Pois é, e agora não sei nem o que fazer, não sei o que ela está pensando, ela não me ligou nem nada, acho que deve estar com vergonha do papelão. - Mas melhor que ela não ligue mesmo. Agora é seguir em frente e esquecer essa mulher meu chapa. - Fico pensando se fiz algo de errado sabe? Já fiz muita coisa errada também. Chifrei, fiquei com outras; tudo escondido. Talvez foi isso. Talvez ela quis se vingar de mim. Estava magoada. - Pode ser, mas não justifica. - Não, claro que não. Mas deve ter alguma explicação. Ela disse que estava em dúvida, fico tentando entender o que houve e como chegamos a esse ponto e como eu não percebi nada. Logo eu. - Você não está cogitando voltar para ela, está? - Homero, ela é a mulher da minha vida.

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ACORDADO NUMERO 3: Carla F. Palhares, a mulher dos dois amores.



Como era de praxe do Nogueira, mal entrou aqui em casa já me encheu de perguntas. O inquérito mórbido habitual. Carla, que horas acordou? Com quem estava? O que fez? - Acordei por volta das oito. Sei por que o Jornal das sete horas acabou bem quando liguei a televisão. Escovei os dentes, tomei café e comi um pedaço de bolo, respondi nitidamente incerta. Fico aflita com todo esse interrogatório por que tenho a memória fraca e se eu disser que não sei ele presume que é pulha minha. Pronto, já me mirou desconfiado coçando as orelhas. Dei as costas para ele, jogando de leve o cabelo no rosto na tentativa esconder a cara ressabiada e consultar, impune, às minhas recordações da noite passada. Tudo apenas para não dar a ele a satisfação de me culpar ao observar com minúcia minha expressão nem, sequer, vislumbrar o resquício de dúvida que, pelo menos até agora, só eu sabia estar escancarado no meu olhar. Sou cautelosa quando estamos juntos, tenho que ser. Só vou dar pano pra manga da camisa de força que segurar 29


a paranoia dele, no mais, não rendo e despisto qualquer deslize. Esse exagero todo meramente porque esqueci se o que comi foi bolo no café de manhã. Creio que sim. Ou foi cereal? Não. Cereal foi ontem. Hoje foi bolo de fubá. Tenho certeza. Depois assisti televisão, tomei banho, me arrumei para sair... Vai que o Roberto liga e convida. Só não posso mencionar o Roberto na frente dele, por razões óbvias. Os dois até sabem um do outro, quer dizer, Nogueirinha sabe que transei com o Rob quando terminamos, e o Roberto conhece o Nogueira de nome, talvez já tenha o visto por foto em alguma rede social. O fato é que os dois não se conhecem de vista. E nem podem. Faz mais de mês que levo dois namoros. Sei que é sórdido, imoral, desleal com ambos e comigo mesma, mas não consigo me decidir. Gosto dos dois e sinceramente me acostumei à situação, é confortável por mais que pareça exaustivo, manter estes dois relacionamentos sérios. Fora, é claro, a adrenalina. Não sou má pessoa. Sei que não é certo. Mas são tão legais os dois, têm suas diferenças, é claro, embora quando as boto na balança do meu gosto pessoal pareçam bem equilibradas e quase não vejo diferença que me faça escolher um ou outro (evidentemente). O Roberto é para a vida toda, é amor, é calmo, é sereno, é bonito e devotado, me escuta, cuida de mim, quer ter filhos, não é nada machista e tem um corpo que Deus duvida. Nogueira não tem nada disso, não tem um corpo escultural nem paciência. É charmoso, boa praça, boêmio e mulherengo, mal me escuta, não sei se me admira; diz que me ama. Gosto dele apesar do sexo também não ser nada demais. Me vejo com o Rob a vida toda e não vejo futuro com Nogueira, ele diz que vê e me desperta a vontade de apostar nele contra todas as probabilidades. Acho até que nos parecemos muito, já o Roberto não, muito mais calmo muito menos investigativo e 30


sempre sossegado; o yin do meu yang. Os opostos se atraem, mas li que os semelhantes dão certo. É possível que nenhum seja o homem da minha vida, mas também não acredito em nada disso. Eles acreditam. Sentia mais confiança no Rob, mais curiosidade no Nogueira. No quesito beleza dois me pareciam igualmente atraentes, um lindo o outro charmoso. Podia pender para o lado do Nogueira durante o dia, mas à noite eu era toda do Rob. Não eram só qualidade. Defeitos tinham de sobra; Nogueirinha costumava mexer nas minhas coisas, vasculhava meu celular. Roberto acreditava em mim com muito mais facilidade, é provável que quisesse, o meu medo era de que não me conhecesse o suficiente. Um satisfaz meu ego enquanto o outro satisfaz meus caprichos, o que segundo o Google é a mesma coisa. Com Nogueira foram anos de namoro, nunca confiei nele totalmente, nossa relação foi muito marcada pelo ciúme, tanto meu quanto o dele, via as meninas dando mole para ele e assistia ele fazer o mesmo com uma postura forjada de educação e sutileza, mas eu sabia que era sedução. Ele diz me amar, quase todo dia, jamais soube de verdade se houve reciprocidade da parte dele na relação, desconfio que sim, que ele me admirava escondido e que afirmava que não para que eu não chamasse atenção dos outros. Coibe as coisas que eu falo como eu me comporto, como se aquilo o afetasse de alguma forma. Sei de cor as feições dele enquanto conto casos na frente dos nossos amigos, ele olha para os lados, finge não prestar atenção, me interrompe ou balança a cabeça, descredita tudo que digo com jeitinho. Alguns o ignoraram, normalmente os que sentem vergonha, outros apenas riem da situação desconfio que se constrangem também. Reações diferentes, mesmos sentimentos. Fico aliviada quando termino algum caso e alguém conseguiu prestar 31


atenção até o fim, pois pelo comportamento dele, é bem natural que as pessoas se percam ou parem de prestar atenção em mim, tamanha a distração que ele causa. Me menospreza sempre que pode, mesmo que oque eu tenha pra falar seja importante, como no nosso último brinde no réveillon. Foi patético. Desejava amor e paz aos convidados ele dava risadinhas debochadas olhando para o chão, até que não aguentou mais e pediu a palavra, mal assenti e ele já discursava alto roubando os olhares da mesa. É por essas e outras que não sei se o amo ou se insisto para provar a mim mesma do que sou capaz. De fato não deveria ter escolhido passar o ano novo com ele, devia ter ido para o sítio do Rob como combinado, lá devia estar muito melhor, muito mais agradável. Não me permito errar de novo é por isso que não tenho tido tanta pressa para me decidir. Falando assim parece que o Roberto é muito melhor, mas não, como eu disse, ele é todo perfeitinho e bobo, não pensa nas coisas da vida, não aprecia poesia, sabe nada de música, não tem desconforto, não tem angústia, não vê que tem algo muito errado, desconfio que seja só aquilo ali, um modelinho bonito criado pelo grande mal estar da sociedade, tentando se ajustar as expectativas dos pais, dos amigos, do chefe, dos professores. Mas quando penso bem sobre ele penso que o primeiro passo para ser melhor seja justamente tentar se ajustar a vida para ajudar o outro, e em quesito de altruísmo ele ganha de metade desse mundo se virando e entortando para ajudar o outro, mesmo que em detrimento das vontades dele... Ah, é tão complicado, os dois são tão, tão... - Amor? Tá ouvindo? Disparou ele. - Uhum... disse, absorvida em meus devaneios. Nogueira discorreu sobre seu dia e logo que parou de contar me dei conta de 32


que não havia escutado absolutamente nada e por isso acenei com a cabeça e sorri e ele disparou a me entrevistar novamente fazendo questão de saber cada detalhe do meu dia, não sei se por carinho, para forçar meu foco, demandar minha atenção ou se apenas para garantir que eu não blefasse. Não sei, aliás, fico nervosa de ter que responder toda vez as mesmas perguntas, a impressão que tenho é que a resposta pode estar errada mesmo que seja a verdadeira. - Fiz várias coisas, mas o ponto alto do dia foi te encontrar. Disse sorrindo. Se for pra explicar tudo sempre não dá. Corri o olho sobre a sala, pensei ter escutado alguma coisa. Nogueira continuou falando eu estava preocupada com meu celular, ele não saia da minha cabeça. Tive a impressão que alguém podia me ligar. Dito e feito. O telefone tocou, fiquei pensando se pensei tanto em ouvir um barulho para fugir do papo que fiz com que o telefone tocasse. Nada que não houvesse acontecido antes, muito antes pelo contrário, já senti que quando desejei algo aconteceu, como a vez que desejei ter um desculpa sincera para passar o final de semana com o Roberto ao invés de passar com Nogueirinha, e plin, aconteceu, feito mágica (e para minha sorte), a Bella tentou se matar, justo um dia antes da viagem. Fui visitá-la, lógico. Depois fui para Escarpas do Lago com Rob. Atendi o telefone. - Oi amor. Era o Roberto. Nogueira ouviu. Permaneci quietinha, imóvel, enquanto ele arrumava uma gritaria na sala. Não escutei nada, nem um nem outro. Desliguei o telefone avisando o Roberto que ligaria mais tarde. Acho que ele entendeu. Não sei. Mal deu tchau, deve ter achado algo estranho, o que eu falaria para ele depois? Respirei fundo e devagar, tentando ganhar tempo. Bati o telefone me fazendo 33


de desentendida. - Que escândalo foi esse? Porque você começou a gritar? Ele continuou insistindo, e eu me fazendo de brava, tentando ganhar tempo. Nem precisei fingir muito, estava nervosa realmente, apesar do meu nervosismo não ser de raiva, sim de pavor. Não posso revelar quem era no telefone, consigo pensar relativamente rápido mas me enrolo toda, minha mão treme, coloco-a no bolso, imploro para que ele pare com as perguntas, está arruinando nosso relacionamento, e eu tenho direito aos meus segredos. Desesperei. Era o Roberto mesmo, eu sabia e ele parecia saber também, não queria mentir, não queria ter que inventar nada. Só não podia contar, não dava. Queria poupá-lo da decepção e a mim da briga. Resmunguei alguma coisa, falava tudo que me via a cabeça, seu controle obsessivo, suas mentirinhas, e todas as coisas que havia relevado para prevenir qualquer desavença. A única coisa que pareceu deter-lhe a atenção foi o fato de mim e a mãe dele conversarmos esporadicamente por telefone. Ah, se eu soubesse que isso chamaria tanta atenção, já teria usado antes. Resolvi sair da sala com a desculpa que estava muito brava e precisava de uma bebida. Subi as escadas, cara completamente aturdida mas a voz firme, tão logo passei pelos quadros do Britto, disparei a planejar como sair da situação. Não queria ser obrigada a mentir, talvez não houvesse outro jeito. Me perguntei se havia o que fazer para contornar aquilo enquanto olhava o quadro. Nunca gostei dos quadros do Britto tenho a sensação que faria muito melhor que aqueles desenhos. Me dê uma paleta de 12 cores fortes e uma tinta preta, desenho um Romero Britto pra você com direito a gato, bolinhas e formas enviesadas, toscas, colorido demais... Já sei! Podia dizer que era algum dos 34


meninos! Algum amigo gay! Me deparei com as duas alternativas; enganar ou contar a verdade. Passei pelo sofá da sala na cobertura, arrastando os pés pelo tapete persa da mamãe. Puxei uma cadeira e sentei, levantei de novo, Nogueira veio atrás espumando. Para variar eu só queria acalmá-lo. Sem mentir. Omissão e mentira não são as mesmas coisas, não se confunda. Omitir faz parte da boa convivência, mentir não. Não falar faz parte do viver em sociedade, mentir descaradamente é pura patologia. Já menti mas me sinto mal quando o faço. Traço a linha da recusa onde começam as mentiras, não acho certo. Apenas isso. Me sinto aliviada ao dizer a verdade, ao perceber que fui capaz de explicar algo mesmo que complexo ou tortuoso com a verdade. Talvez por isso as palavras me encantem tanto. Não há dúvidas. Então não queria mentir para o Nogueira, usei de todas as minhas armas, realmente achava que era um exagero aquele questionário todo, mas ele havia escutado uma voz masculina, e não podia simplesmente deixar passar. Alguém ME ligou. Sim o Rob, mas ele ligou para mim, podia se tratar de qualquer outro assunto. Ainda somos amigos, oras, tivemos uma história. Abri uma garrafa de vinho, parei, perguntei a Nogueira se ele aceitava uma cerveja, ele pareceu completamente absorvido ao ato de cortar um pedaço da palha do cigarro. Perguntou se eu tinha isqueiro, O Rob não gostava de fumaça muito menos de paiol, eu tinha isqueiro, mas não podia falar que tinha. Espera, para o Nogueira eu poderia. Respondi baixinho. Peguei o primeiro copo que vi pela frente e lembrei que era o favorito dele ‘Cerveja toma em copo bom, Carla’ ele costumava me lembrar (incansavelmente) a cada vez que abria uma cerveja aqui em casa. Era insuportável. 35


O interfone tocou. Quem seria essa hora, mamãe estava para o Rio. Podia ser o porteiro. Ou... O Rob. Uma visita surpresa? Não poderia ser. Virei num salto, segui em direção as escadas da sala. “Vou atender, espere aí!” soltei sem ar enquanto trotava, quase tropeço no segundo andar da escada. Corri para a cozinha atender o interfone. ‘Não seja o Roberto, só não seja o Roberto.’ Repeti umas dez vezes em pensamento. E se fosse ele? O que faria? Não faria. Meu corpo ficou todo frio. ‘Alô?’ E em menos de um segundo quente da cabeça aos pés. ‘Quem é?’ - Sou eu, amor. Abre. - Que faz aqui? - Uai, vim te ver. - Mas não falei que te ligava? É melhor eu descer. E era melhor mesmo, mas ele insistiu em subir, abri, mas deixei avisado; rápido porque estou ocupada! Pensei em avisar que o Nogueira estava lá. Não sei se seria certo, preferi evitar falar qualquer coisa. Que erro! Os dois se encontraram na porta, fiquei atônita. Se soltei uma palavra foi muito. Achei que os dois brigariam, que entrariam na porrada ali mesmo na sala de estar, pensei nos crystais da mamãe. Eu tava frita. Fiquei só olhando para os dois. O Nogueira arrumou a maior confusão, gritou, falou alto, xingou, já o Roberto não fez muito, ficou parado na porta, acho que ele estava mais triste do que qualquer outra coisa. Tive dó. Assim que o Nogueira foi embora, batendo a perna e porta, abracei o Roberto, pedi para ele subir comigo, queria contar pra ele o que houve, ele subiu calado, me deixando ainda mais desesperada. Não sei qual era pior: a falação de um ou o silêncio do outro. Sentamos um de frente para o outro, expliquei o que pude. Fiz de tudo para não contar do namoro. Pedi que 36


ele me perdoasse sem contar quase nada. O acaso acabou escolhendo por mim. Ficaria com o Rob, por que possivelmente o Nogueira não olharia mais na minha cara e foi quando esse pensamento invadiu minha cabeça que o Nogueira apareceu. Todo meu esforço para não contar nada para nenhum dos dois foi por água abaixo, parecia que eu não estava lá, não sentia nada, dizia muito pouco para não acabar chorando de vergonha e desespero com a situação; os dois sentados um de frente para o outro, contando todos os detalhes das minhas traições das últimas semanas. Tudo que deixei de falar; que fiz, que omiti, escancarado. Eu, a acusada e os dois, testemunhas e juízes dos meus crimes. Sem direito a dativo, me senti injustiçada mesmo que meu crime de quase poligamia fosse indefensável, eu tinha meus motivos, precisava explica-los. Gostava dos dois. Todas as cartas na mesa e ainda assim parecia que eu assistia tudo como em um filme, eu não estava lá. Era surreal, nunca imaginei os dois conversando. Fiquei em alpha na maior parte do tempo. Até que finalmente foram embora e eu percebi que o copo de Nogueira ainda estava sobre a mesa e é melhor eu lavar tudo antes que a mamãe chegue. Limpei tudo sem pensar muito nos dois, não me condoí, não chorei nem me alarmei. Tive vontade de sair com os amigos, de ligar para contar tudo que acabara de acontecer. Achei que deveria estar triste, envergonhada com a situação, com dó dos dois, ou angustiada, afinal de contas perdi meus dois amores... Não dormi naquela noite, mas foi da insônia habitual. Poderia até ter me sentir culpada pela decepção dos dois, mas não senti nada disso. A verdade é que só senti alívio, mais nada.

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