Capitalismo e sociedade

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CAPITALISMO E SOCIEDADE Fernando Pedrão 2009

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SUMÁRIO Introdução 1. O processo desigual da produção capitalista 2. Os movimentos de formação de sociedades nacionais 3. O contraponto teórico: a teoria do alto capitalismo e do capitalismo tardio 4. O movimento interno do processo: concentração do capital e mobilidade do trabalho 5. O movimento externo: o controle político da formação de capital 6. Contradições do processo de hegemonia mundial 7. Alienação, ideologia e captação de valor 8. Perda e recomposição da totalidade social 9. O humanismo negativo da sociedade do capital 10. Acumulação geral e restrita Referências analíticas Referências bibliográficas

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INTRODUÇÃO O capitalismo é o sistema econômico e político da sociedade regida pelo capital e o esclarecimento do que seja o capitalismo voltou a ter interesse quando se considera que o capitalismo é um sistema plenamente mundializado, que significaria que abrange o mundo, ou que o sistema do capitalismo é um modo de dominação mundial que envolve diferentes modos de organização, compreendendo o domínio de sociedades não capitalistas. vive da totalidade atual do mundo social, que é uma negação radical da historicidade do todo social. A totalidade do mundo do capital é o resultado de movimentos de inclusão e exclusão que resultam em uma totalização seletiva. A totalização do capitalismo se realiza mediante uma progressão de contradições entre formas de capital que cristalizam formas de produção articuladas com formas de consumo e perfis de qualificação do trabalho que são continuamente desafiadas a se superarem. O sistema de exploração que começou com a escravização jamais abriu mão do uso maciço de trabalho dominado, encontrando sempre novas formas de arregimentação de trabalhadores, desde as encomiendas aos bóias frias. A exclusão de trabalhadores encaminha um processo de substituição de formas de trabalho que retira a funcionalidade dos trabalhadores que se tornam arcaicos desde o momento em que são contratados. A exploração se realiza de fato em dois planos, naquele interno em cada fábrica , que sustentou a teoria de Marx, e naquele outro, externo, que trata da exploração no sistema produtivo em seu conjunto. A exploração cria diferentes situações de inclusão de grupos, desde os padrões coloniais de distinção entre cidadãos metropolitanos e coloniais e entre os diferentes grupos de excluídos. O sistema da exploração vive a contradição de que precisa incluir todos para explorar a todos, mas precisa discriminar para poder mandar. O reconhecimento do histórico como totalidade representa o ato de recuperar a pluralidade essencial desse todo. A questão que se coloca hoje sobre o capital e o capitalismo é o modo de colocar todo o relativo aos destinos da sociedade moderna em termos de objetivos de lucro deshumanizados. Esta é a grande força legitimadora do trabalho de Marx, que se destacou por se colocar de frente para a realidade social. Marx é o herdeiro de uma linhagem de pensadores da realidade, especialmente de Aristóteles

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e de humanistas éticos como Maimônides. Diante dessa vocação para tratar diretamente com o mundo social, choca ver como a maioria dos que se ocupam do pensamento do real substitui a nódoa do real pela dobra da teoria e transformam a dura análise do capital de Marx em vaporosa teia de entrecruzamentos idealistas de conceitos. São três grandes reflexos do pensamento teórico. A sociologia que evade as questões centrais da alienação e da exploração para dar prioridade a uma variedade de questões colaterais. A economia que dá as costas ao eixo acumulação de capital e concentração de renda para se ocupar de temas do interesse do capital. A política que trata de questões da forma dos sistemas e abandona os temas da concentração e redução de poder e subjugação das nações mais fracas. Estes movimentos de desqualificação das ciências sociais para lidarem com a condição histórica do mundo social levou a uma fratura do trabalho teórico, entre o que procura responder aos desafios da realidade e o que se realiza na própria polêmica conceitual, ou quando muito, nos percalços das sociedades européias e norte-americanas. O desafio da ciência social é histórico, no que a história contém a vida social e não pode ser substituída pelas representações conceituais de processos sociais que se tornam indeterminados. A teoria social que se voltou para discutir conceitos, que se separou de seu próprio fundamento nas experiências em que se fundamenta, torna-se incapaz de avaliar sua aplicabilidade em outras situações. A opção de olhar diretamente para a realidade se identifica com a perspectiva histórica da análise social que precisa tratar com o mundo do prático vivo, ou com as práticas vigentes na sociedade. O prático vivo aparentemente se contrapõe ao prático inerte, que é o mundo das práticas do passado, mas na realidade tem ele incorporado, com seus significados originais modificados. A praxis na verdade é algo sempre composto, em que se entrelaçam movimentos de reafirmação e de superação de práticas socialmente necessárias. A tradição dos estudos da periferia da acumulação mundial aponta a necessidade de substituir o conceito genérico

de periferia pelo de uma pluralidade de situações

periféricas que respondem à diversidade de condições da colonização. Observe-se que a noção geral de periferia da acumulação representou uma vantagem conceitual, no que qualificou as condições concretas do subdesenvolvimento, mas tornou-se um entrave no que passou a representar uma simplificação indevida das condições históricas dos países.

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O estudo do capitalismo em perspectiva histórica impõe a necessidade de reconhecer as condições concretas da exploração, o que, na prática, significa trabalhar com categorias representativas da dominação e com uma base factual da exploração. Trabalha-se com a vocação do capitalismo para subordinar as demais formas de produção, mas não para excluí-las. O sistema social do capitalismo apóia-se em três processos entrelaçados, que são o de alienação, exploração e controle da força de trabalho. A ação combinada desses princípios determina as condições da acumulação de capital e de mobilidade social dos trabalhadores, assim como estabelece os rumos da renovação tecnológica e as políticas de distribuição de recursos entre setores da produção e entre regiões. A grande contribuição de Marx consistiu em apresentar o sistema do capitalismo como uma totalidade que se transforma continuamente, expandindo-se em seus aspectos quantitativos e qualitativos, com um componente de criação que subentende destruição e regeneração. O sistema se alimenta de um mecanismo geral de captação de valor que depende de uma sustentação ideológica – os impérios acham normal sua condição de impérios – e de duas formas de instrumentação que são as de organização técnica e institucional da produção e de comando de oportunidades de aplicação de recursos. Tomando como referência a abordagem de Marshall, diremos que o capital se realiza e reproduz em um determinado ambiente de negócios que é, também, odos modos de engajamento de pessoas como trabalhadores. O sistema prático do capital 1, que inclui empresas e capitalistas independentes 2, deriva entre os pólos de sua auto-reprodução e de sua capacidade de obter lucros. A solução desse dilema se coloca na relação custos/riscos, pelo que a capacidade de controlar as oportunidades de aplicar capital vem a ser decisiva ao sistema. E como as oportunidades de aplicação surgem quando há expectativas de demanda, isto é, quando prevalece um ambiente de expectativas positivas, infere-se que há um jogo de efeitos cumulativos que vincula a progressão dos investimentos com as expectativas de retorno e de risco. Se não fazer nada é uma 1

Por sistema prático do capital se entende o modo como se fazem as tarefas próprias do funcionamento do capital incorporado ao sistema produtivo. Compreende os processos sociais de uso de técnicas conhecidas e de crítica de desempenho, isto é, uma apropriação reflexiva da tecnologia. 2 A digilitalização do sistema de capital financeiro facilitou a participação de investidores individuais e em grupos que representam um segmento de elevada volatilidade do mercado financeiro.

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situação de risco total para o capital, as escolhas entre situações de risco são datadas e correspondem a situações em que se escolhem os riscos. As tendências objetivamente registradas das transformações do sistema produtivo compõem uma combinação de efeitos inerciais e de margens de autonomia de decisão que são aproveitadas segundo as condições em que operam os diversos capitais. O passado é um lastro do presente, que também funciona como baliza na identificação de possibilidades futuras. Os capitalistas se movem entre opções de lucros e riscos e de escalas de investimentos que lhes permitam esgotar pendências de aplicação de seus capitais. Os responsáveis do capital preferirão aplicar onde têm lucros garantidos e baixo risco; e a busca de opções mais arriscadas geralmente está ligada ao esgotamento de opções garantidas ou à necessidade de aplicar novos lucros. Será simplismo injustificado supor que o sistema evolui de modo determinístico ou aceitar que as novas decisões de investir ignoram completamente as anteriores. Teremos que distinguir as oportunidades de investimento que estão garantidas por um mercado estabilizado e as que dependem de mercados novos. A experiência mostra que a participação no mercado depende muito mais de controle político que de diferenciais de eficiência em cada projeto. Neste contexto, aceitar que existem efeitos em progressão no sistema não se parece com a tese dos efeitos em cadeia trabalhados por Hirschman, porque se refere às condições de incerteza do sistema e de erraticidade das grandes variáveis que regulam sua determinabilidade. O objetivo incoercível da acumulação é inerente ao sistema do capitalismo, que, entretanto, tropeça com aquela instabilidade crescente que foi mapeada por Marx no Livro III de O Capital. Mas a irracionalidade que se encontra na mecânica econômica do sistema converte-se em autofagia no plano social da política. O sistema político “ desenvolve mecanismos de auto-proteção onde se alinham alianças de interesse e de defesa de status com o conhecido controle de cargos públicos, de estabilidade de renda e de mobilidade social. O contexto histórico significa a pluralidade de causas que interagem em determinados momentos e lugares, convergindo na determinação de tendências e contrapondo-se em conflitos de interesse. Ao colocar o problema da reprodução no contexto histórico das transformações do sistema produtivo, torna-se necessário considerar as condições históricas concretas em que se realiza a reprodução do capital. Trabalhar com o tempo histórico é uma opção que gera compromissos de reconhecer a correspondência entre os

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momentos quando os eventos acontecem e sua posição no encadeamento de eventos do processo social. Ninguém escolhe quando e onde nasce e a possibilidade de escolher onde viver são muito limitadas. Também é um compromisso de recuperar a história como e enquanto fluxo de acontecimentos intencionais representativos de condições econômicas e de situações ideológicas. Se “a poesia é uma arma carregada de futuro”3 a história dá o significado do futuro pela memória do passado. Historicamente, o capitalismo depende da capacidade de regeneração do capital e esta, das condições de mercado em que ele atua. Para sobreviver, o capital precisa se reproduzir e isso se faz em condições de crescente incerteza. A reprodução do capital e a do sistema produtivo em seu conjunto são inseparáveis, porque as duas dependem igualmente de como a sociedade gera força de trabalho e como o sistema produtivo absorve trabalhadores e como o capital capta valor. O capital precisa controlar a força de trabalho e esta precisa encontrar seus meios de independência e de gestão de sua criatividade. Sem ela o capital é inerme e incapaz de visualizar suas próprias alternativas. Em tempo histórico não há como separar a reprodução e a acumulação do capital, entendendo-se que esta última envolve sempre uma mudança da composição do sistema produtivo em seu conjunto. O problema com que nos deparamos é o de identificar e tratar com o que há de específico no processo de produção. Onde há história há especificidade e todos os processos são determinados, como professou Hegel. O reconhecimento da especificidade é característico da análise que Marx desenvolveu sobre este tema desde suas teses sobre Feuerbach. Quem faz a reprodução do capital são os trabalhadores, porque ela se realiza em condições específicas que demarcam a capacidade dos trabalhadores de manejarem o capital existente.

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Verso do poeta espanhol Gerardo Diego

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1. O PROCESSO DESIGUAL DA PRODUÇÃO CAPITALISTA

Desenvolvimento como atributo civilizacional. Em seu significado radical, desenvolvimento é um movimento que se dá no interior de sistemas existentes e na criação de novos sistemas, modificando as dimensões de abrangência dos relacionamentos e de sua intensidade (MARCHAL, 1955) 4. Em seu sentido mais amplo, a noção de desenvolvimento pressupõe a de expansão de sistemas, que por sua vez envolve conotações de densidade e de extensão. Será preciso considerar se os sistemas se expandem mantendo sua densidade, mudando de consistência ou perdendo densidade. Sobre qual espaço o sistema se expande e como evolui sua coesão interna. O desenvolvimento que nos interessa pertence ao mundo social. Nele, essa ampliação compreende aumentos numéricos e qualificação da população, aumento dos meios de produção a sua disposição e aumento dos usos de recursos, correspondendo tudo a desgaste dos sistemas de recursos físicos. O desenvolvimento compreende mudança nas condições de participação dos trabalhadores no sistema produtivo em geral e em suas diversas formas, em que mudam os requisitos de qualificação do sistema produtivo, ao tempo em que mudam as iniciativas de qualificação, tanto daquelas conduzidas pelo sistema educativo como daquelas outras empreendidas pelos próprios trabalhadores.

Há uma questão

fundamental a ser esclarecida acerca dos papéis dos capitalistas e dos trabalhadores na condução e na realização da qualificação e na intencionalidade das qualificações, apontando aos processos de poder envolvidos no direcionamento dos processos de qualificação. Na trajetória da formação da teoria há uma bifurcação entre uma tendência à simplificação formal da economia pura e a captação da realidade por parte da economia aplicada. Há uma questão sem resposta por parte da economia pura, relativa à validade 4

Abrangência entendida como extensão do campo dos relacionamentos, tal como eles são percebidos ou como são impostos por uns povos sobre outros e como intensidade, compreendendo regularidade e freqüência. Aquela diferença entre relatos de viajantes e rotas de comércio e entre trocas de mercadorias que são fabricadas e indução da fabricação de novas mercadorias.

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material de suas observações e outra questão igualmente nebulosa para a economia aplicada positivista, relativa a sua fundamentação teórica. Os modos como se realiza o desenvolvimento do sistema contêm elementos de certeza e previsibilidade e outros elemento s de incerteza e imprevisibilidade. A instabilidade e a incerteza que prevalecem hoje no mundo do capital e seu condicionamento à ascensão de novos grandes participantes tornaram obrigatório rever o significado das mudanças em curso no processo econômico da produção. Se não se pode pensar em um único modo de se desenvolver do sistema, é preciso reconhecer que as nações que constituem o grupo dos mais ricos ou mais internacionalizados passam a ser mais sensíveis a mudar seu perfil de alianças.5 A produção capitalista se realiza mediante a reinserção sistemática de valor no sistema produtivo, o que envolve dois problemas técnicos simultâneos, o de encontrar soluções técnicas para aplicações que tendem a ser progressivamente maiores e de garantir demanda para a produção crescente. Adicionalmente, esses dois problemas devem ser resolvidos em um ambiente em que a concentração social do capital resulta em concentração de renda, portanto, em uma demanda socialmente concentrada. A questão do desenvolvimento liga os problemas orgânicos da expansão do sistema aos problemas sociais resultantes da concentração da demanda.

Será necessária uma revisão da

conceituação de desenvolvimento para situá-la frente ãs condições das econômicas periféricas. Nos meios acadêmicos e da política econômica formou-se uma conceituação de desenvolvimento que se dividiu entre o mecanicismo neoclássico, a dinâmica linear keynesiana e a crítica histórica marxista. Em nome de uma unificação teórica identificada com a globalização conservadora, descartam-se como antiquados os padrões teóricos básicos sobre os quais se sustenta a teoria da economia especulativa praticada pela ortodoxia formal. Basicamente, colocou-se desenvolvimento como um problema da sociedade do capital ou do capitalismo industrial. Significaria desconhecer processos de desenvolvimento que se esgotaram ou interromperam em civilizações temporalmente anteriores ou historicamente defasadas frente ao desenvolvimento da 5

A recente reviravolta política no Japão – que interrompeu 50 anos de governos liberais conservadores -­‐ sinaliza um deslocamento da sua aliança coagida com os EUA para uma aproximação com as demais nações asiáticas.

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civilização da tecnologia mecânica. Por extensão, significa desconhecer a complexidade histórica da produção mundial, onde interagem segmentos de alto capitalismo com outros aparentemente não capitalistas e outros ainda, excluídos dos circuitos do capital. Hoje, torna-se necessário ver desenvolvimento como algo que se atribui como possibilidade de transformação socialmente positiva em um dado contexto civilizacional e não somente como um processo inscrito no contexto da sociedade do capital. As diferentes civilizações se desenvolveram com uma combinação de sua organização social e seu controle de técnicas e visualizaram seus objetivos de desenvolvimento como de poder concentrado ou de condições de equivalência entre pessoas e grupos. A inter-relação entre a esfera coletiva e a da individualidade aparece através da outra de aliteração entre o sagrado e o profano e entre os ritos e os mistérios das religiões. A ideologia da colonização deu lugar ao pressuposto de uma superioridade da civilização industrial capitalista sobre todas as demais, anteriores e atuais sustenta-se em uma comparação entre seus meios técnicos e seu próprio juízo sobre as oportunidades que oferece para mobilidade social para as maiorias. Prevaleceu sempre a presunção de que ela poderia perpetuar-se ou manter-se em muito longo prazo, isto é, que seus fundamentos em organização social e técnica permaneceriam. No entanto ela criou novas ondas de empobrecimento que se identificaram na escassez de meios de subsistência para as maiorias. Desde logo, está claro que é um julgamento apoiado em bases ideológicas, que envolvem uma combinação de juízos éticos com critérios de poder. Estas foram seguidamente reclassificadas, quando foram atingidas pelo chamado desemprego tecnológico. Quando Marx diz que a sociedade capitalista liberou energias da sociedade logicamente se referia ao feudalismo europeu com sua rigidez social e seus preconceitos religiosos. Essa mesma observação deve levar em conta que o feudalismo foi uma involução em relação com diversas outras formas sociais tanto de suas contemporâneas como de civilizações anteriores. A avaliação do desenvolvimento como essencialmente social envolve uma crítica dos usos sociais das tecnologias disponíveis e das condições de modernização da sociedade do capital, como parte dos processos que podem levar a sua superação.

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Para dar conta do que acontece hoje precisa-se de uma visão histórica mais ampla em tempos e espaços. Os horizontes culturais e os bloqueios de cada civilização demarcam possibilidades de movimentos de emancipação material e ideológica, com soluções de sobrevivência e de acumulação de riqueza que se estendem a segmentos mais ou menos numerosos da sociedade. Pode-se aceitar de modo não crítico a visão capitalística de desenvolvimento que se identifica com a melhora das condições materiais de vida das maiorias, ou considerar o significado desse processo em termos de ampliação das possibilidades de escolher estilos de vida ou de apropriar-se de uma capacidade de pensar por conta própria. Nesse contexto, desenvolvimento se identifica como um movimento de emancipação material e ideológica que se torna uma consciência social critica do processo do capital. A visão civilizacional do desenvolvimento dará referências para comparar os resultados alcançados pela sociedade em diferentes momentos da história, portanto, de relativizar criticamente os resultados alcançados em diferentes momentos e lugares. Nas condições de colonialismo e exploração da primeira revolução industrial haveria mais desenvolvimento que nos séculos anteriores? A alternativa será de distinguir o desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimento de condições de vida autônomas. De qualquer modo, trata-se de uma relação entre as condições materiais de vida e as de emancipação de grupos e de indivíduos. É o fundamento da noção de desenvolvimento na de progresso. Para tratar com ela é preciso ir além da separação entre igreja e Estado e reafirmar a secularização da ideologia. A noção de progresso é terrenal e de superação da dicotomia religiosa entre o inferno e o céu e o bem e o mal, que é substituída por progressões positivas e negativas da vida material neste mundo. O recrudescimento de religiões sem teologia é um sinal inconfundível de novas modalidades de alienação, que servem à dominação tecnificada. A incorporação da noção de progresso corresponde a uma ruptura ideológica com a prevalência de uma ordem secular avalizada por uma autoridade divina. A noção de progresso está separada da raiz teológica do poder e a possibilidade de progresso é associada à de uma mudança socialmente significativa, onde os protagonistas do processo têm suas posições definidas por situações materialmente estabelecidas. Por isso, ela está sujeita aos retrocessos do recrudescimento de fanatismos, desde os religiosos aos políticos. A alegação de Marx relativa à precedência da esfera material sobre a ideológica e a institucional descreve o movimento interno do processo do capitalismo, seguindo a reprodução do sistema

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sócio-produtivo e sócio-político através da reprodução do capital. Não exclui o movimento concomitante e reverso de ação da esfera sócio-política sobre a esfera sócioeconômica. Uma visão histórica crítica do mundo atual impõe-se como necessária como e enquanto totalidade, com suas dimensões, sócio-econômica e política e espaço-temporal, é necessária para situar as possibilidades de desenvolvimento. O tratamento da categoria desigualdade no plano da sociedade moderna, com seus fundamentos na formação das classes e suas expressões na renovação das estruturas de poder, exige uma percepção do processo social como totalidade, com sua conjugação de movimentos desde dentro e desde fora da esfera econômica à esfera política e vice versa. A perspectiva civilizacional permite-nos ultrapassar o horizonte da produção capitalista, por vê-la como uma imanência da civilização ocidental. O engajamento de outras civilizações, notadamente das asiáticas, na mesma corrida materialística empreendida pelo mundo ocidental, é um resultado indireto do próprio impulso colonizador das nações européias e de seus seguidores norte-americanos, que instigaram projetos nacionais de poder com voracidade semelhante à ocidental e maiores escalas de mercado e de exploração do trabalho. Mas a combinação dos diversos movimentos de emergência de nações que foram colônias ou que foram ocupadas pelos ocidentais, na Ásia, na América e na África tornou inevitável rever o sentido de finalidade da formação de riqueza. Esta nova pluralidade certamente levanta uma questão essencial relativa ao significado do desenvolvimento como parte do que acontece no âmbito da modernização do capital ou como parte dos processos que podem levar a sua superação.

Colonialismo e barbárie A verdadeira barbárie com que a civilização se defronta é o colonialismo, cuja história desmonta a aura de liderança dos países capitalistas. Há uma diferença essencial entre as análises do desenvolvimento e do subdesenvolvimento que se restringem ao âmbito da produção capitalista moderna e as que reportam ao fundamento do capitalismo no colonialismo. O sistema capitalista se formou sobre um amplo e complexo mecanismo de apropriação violenta de riqueza que se realizou sobre as duas grandes linhas do colonialismo e do controle financeiro e cultural de povos dominados, onde se

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desenvolveram mecanismos de renovação do colonialismo, identificados com uma modernização controlada e seletiva. Ao longo dos dois grandes movimentos de colonização, começados respectivamente no século XV e no século XIX, as nações colonizadoras exerceram um poder irrestrito sobre as pessoas e os recursos naturais, inclusive substituindo os valores e a cultura dos povos colonizados e transformando-os em agentes de seu próprio poder. A colonização foi o pano de fundo dos maiores massacres da história, com conseqüências que se estendem até hoje. A colonização constitui uma responsabilidade social que não pode ser desculpada sob pretexto algum e que certamente tem que ser cobrada das nações responsáveis. A colonização encaminhou os dois grandes movimentos de escravização e de alienação, que cumpriram os dois papéis de apropriação e de controle da força de trabalho, dirigindo ou pondo limites a sua qualificação. No entanto, a colonização requer um esforço constante de dominação que gera forças favoráveis dos grupos que são alienados e movimentos contrários de revolta daqueles outros cuja situação de classe é esclarecida pela própria colonização. Historicamente a manutenção de sistemas coloniais demandou políticas repressivas crescentes que deram lugar a processos de enfrentamento que levaram a rupturas irreversíveis, mas com interações mais complexas através de movimentos migratórios. O aperfeiçoamento das relações de poder que acompanha o desenvolvimento do sistema capitalista de produção deu lugar a modificações decisivas na dominação de uns países por outros. A difusão de novas práticas de domínio internacional praticadas igualmente pelas nações mais poderosas e pelas que funcionam como suas seguidoras configura um novo momento das relações econômicas e políticas internacionais em que as nações periféricas ascendentes como o Brasil têm que definir novos modos de participação. O colonialismo é um antecedente essencial da identidade coletiva das nações iberoamericanas, cujo significado deverá ser, necessariamente, exposto m qualquer esforço de explicação das transformações da produção capitalista 6. A produção capitalista é 6

O papel do fundamento ideológico medieval na formação das Américas ainda precisa ser melhor avaliado. Esse lastro medieval pesou mais na América ibérica e o atraso na invasão de holandeses e ingleses no norte teve a vantagem de ter sido conduzida por sociedades mercantis depredatórias que já tinham se desfeito do lastro medieval. Surgiram daí diferenças no relativo ao modo

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diferentemente desigual,

segundo é olhada por nações e grupos que exerceram e

exercem papéis de colonizadores ou pelos que são ou foram colonizados. Tratando-se da América, que já foi um dos continentes mais isolados do globo, é preciso rever o conceito de desigualdade. O caminho para o debate sobre o desenvolvimento das nações que se encontram em situações desfavoráveis no quadro mundial da acumulação de capital encontra processos contraditórios e incertos, com aspectos positivos e negativos na relação entre formação de riqueza material e bem estar das pessoas. Por isso, tem que contemplar os aspectos positivos e os negativos da concentração de riqueza e de poder político com mobilidade seletiva de alguns grupos e a falta de mobilidade das maiorias. A América entrou no sistema do capital através da colonização realizada por algumas nações européias em duas grandes etapas, respectivamente, da colonização empreendida pelo capital mercantil e pela identificada com a expansão da industrialização. O sistema da colonização, ou a colonização sistêmica no século XVI representou um sistema de uso de força de trabalho composto de capítulos interativos que foram o emprego livre de comerciantes e auxiliares diretos e indiretos, o emprego do aparelho burocrático legal e militar, o emprego da força de trabalho escravizada e o de trabalhadores não incorporados pela produção mercantil internacionalizada, que tiveram que sobreviver mediante práticas de trabalho que se resolvem em circuitos variados de sobrevivência, desde alguns que se mantiveram em formas rudimentares até outros, que preservaram técnicas artesanais pré-coloniais, ou que encontraram formas de troca que se sustentaram em escala regional. Por todas razões a questão da colonização com as nações que foram colonialistas fundadoras, como Espanha e Portugal, não pode ser considerada como página virada do passado, se não deve ser revista à luz das recentes investidas de capitais ibéricos na economia brasileira. Não se trata somente de constatar que a esfera da sobrevivência foi assaz complexa e capaz de se reproduzir, senão de questionar o papel da esfera de sobrevivência depois do holocausto do primeiro século de colonização e através das interações que foram acionadas pelo próprio sistema colonial. A expansão do capital usou força de trabalho transferida, tanto da escravização como da força de trabalho localmente reproduzida nos sistemas de produção camponesa. No Brasil a industrialização usou força de trabalho legada pela escravidão e comercial de conduzir a escravização e à formação de grupos de pequenos propietários nas “novas”colônias.

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força de trabalho de migrantes que não tinham sido escravos, mas cuja transferência deixou uma população localmente organizada que continuou operando uma pequena produção de pobres que abasteceu o mercado regional de alimentos.7 No México, onde essa população rural foi mais densa que no Brasil, a estratégia de sobrevivência sustentou os fundamentos insurrecionais que levaram à derrota do império de Maximiliano de Habsburg e à Revolução Mexicana. No Brasil essa estratégia alternativa de força de trabalho engajada por trabalhadores revelou-se em sua maior dramaticidade no movimento de Canudos, que criou uma cidade camponesa de 30.000 habs.. Trata-se, portanto, de uma questão muito mais profunda , relativa ao espaço social de condições de uso de força mobilizada por trabalhadores. Ao questionar a exclusividade do capital como empregador, coloca-se a questão da possibilidade de uma subjetividade não dominada que pode representar a consciência crítica do processo de poder no capitalismo. Se a análise do capital em geral começa pela alienação do trabalho e pela propriedade da terra, a análise do capitalismo na periferia da acumulação começa com a introdução da categoria colonização, que estabelece um ponto de partida para nações novas e um ponto de ruptura para nações antigas, mas que em todo caso significa a ruptura com um isolamento continental para todas as nações americanas. Colonização não se refere apenas aos processos iniciados no começo do século XVI. Compreende a complexidade de todos os movimentos que surgiram nos séculos seguintes e que

reúnem

as

empreitadas de colonialistas europeus e norte-americanos até hoje. A colonização reveste-se de diversas formas, desde os movimentos abertamente conduzidos por Estados nacionais desde o século XV até movimentos não oficiais nos séculos seguintes e até as empreitadas de Theodore Roosevelt e de Walker no século XX, representando essas duas tendências. O colonialismo carrega uma versão extrema de desigualdade, que, entretanto, incide sobre ambientes sobre ambientes sociais que, em muitos casos, também foram radicalmente desiguais, ou em todo caso, que carregaram suas próprias escalas de desigualdade.

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Em 2005 um esforço combinado de professores pesquisadores da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, a partir de uma iniciativa de Tamás Szmrecsányi, tentou levantar a produção de alimentos na Primeira República, encontrando diferenças insuperáveis entre os registros de estados do sul e de estados do nordeste.

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A colonização deu lugar ao maior holocausto da humanidade8 e encaminhou os dois grandes movimentos de escravização maciça e de alienação dos novos espaços sociais de trabalho, estabelecendo os modos de apropriação e de controle da força de trabalho, manipulando a qualificação como instrumento de poder. Portugal e Espanha através de suas respectivas composições de feudalismo e mercantilismo, instituíram sistemas diferenciados de poder, em que a gestão da esfera internacional dos sistemas coloniais contrastava com modos autoritários de comando de cada colônia. O estatuto colonial deu lugar a uma ambivalência entre um poder local quase ilimitado dos grandes proprietários e o poder da administração das colônias, cujos conflitos de interesses alimentariam as lutas de independência. A grande preocupação com a colonização hoje refere-se ao recrudescimento de relações de poder apoiadas em vestígios de ideologia colonialista. Quanto mais se reúnem elementos de informação sobre os diversos movimentos de colonização mais ressalta a necessidade de substituir as versões tradicionais da colonização do modo de agir das grandes potências e passam por alto as empreitadas de países de menor porte. Não só Portugal no século XV como até países como a Belgica e a Dinamarca sentiram-se na condição de colonizar outras nações em diversas partes do mundo, onde a Bélgica e Portugal protagonizaram algumas das histórias mais sinistras do colonialismo moderno. No essencial, os métodos do colonialismo variaram pouco desde o século XVI, tanto em violência direta como em manipulação ideologia, tal como descrevem os relatos de Vo Nguyen Giap sobre a segunda ocupação dos franceses no Vietnam 9. Para captar o significado histórico do colonialismo, com seu papel na formação do capitalismo capaz de se reproduzir, é preciso distinguir as versões de colonialismo préindustrial, daquele. outro instigado pela demanda de matérias primas para a indústria e do que se expandiu entre o fim das guerras napoleônicas e a primeira guerra mundial. O colonialismo respondeu aos projetos de poder das nações que se industrializavam e demandavam maiores quantidades de matérias primas e de trabalho qualificado. Esse colonialismo foi parte de um movimento mais amplo de disputa por espaços de mercado que, entretanto, se desenvolveram desigualmente e principalmente nos próprios países 8

As estimativas de extermínio de indígenas desde a América do Norte até a Patagonia somadas à mortandade de africanos escravizados superam quaisquer cifras de massacres até a Primeira Guerra Mundial. 9 Refere-se a relato concedido a jornalista e publicado com o nome de Vitoria a qualquer preço.

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industriais. O carro chefe do sistema, formado por siderúrgica e metalurgia expandiu-se através da diversificação da produção e do consumo nos países mais ricos que se industrializaram

primeiro.

O

sistema

colonialista

criou

uma

economia

internacionalizada bifásica, com segmentos complementares que se desenvolviam segundo diferentes dinamismos e que somente em parte se comunicavam. Se a lã do Afganistão e do Uruguai era necessária para uma indústria de tecidos vendendo para o mercado europeu, o elenco de maquinaria que os países europeus vendiam para os produtores de matérias primas era muito limitado. A busca de minerais em grandes minas em países da América Latina começou desde a década de 1860, alcançou um auge entre 1890 e 1914, coincidindo com a expansão de interesses internacionais no controle da expansão da produção de mercadorias da agropecuária. A substituição do velho sistema colonial iniciado no século XVI por um sistema de controle capitalista da produção criou as condições para um notável aumento da produção de matérias primas, tanto agrícolas como mineiras, ampliando a massa de trabalhadores contratados, ao tempo em que criando novas elites associadas, que se tornaram guardiãs do novo pacto de poder. A formação de mercados internos nos países periféricos surgiu, portanto, mediante um mecanismo dividido de expansão da demanda, com uma grande distância entre os circuitos de produção para exportação e de produção para consumo interno e entre o consumo dos grupos de altas rendas e o consumo das maiorias. Esse sistema representou uma determinada modernização frente às economias coloniais, identificando-se com os valores da industrialização e da urbanização industrializada. Os privilégios aos exportadores tornaram-se o pivô central das políticas econômicas, com situações extremas no Brasil, no Chile, na Argentina e no Uruguai que funcionaram em detrimento da produção de alimentos e que deram lugar a novos conflitos de interesse no próprio mundo da produção rural. A novidade técnica na combinação da esfera econômica com a esfera política foram composições de poder civil com controle militar, que asseguraram a continuidade do sistema. De fato, a sustentação militar do sistema formou-se internamente em cada país e só passou a sofrer pressões externas significativas depois da Segunda Guerra Mundial. A base econômica do sistema esteve formada por um pequeno número de mercadorias exportáveis, ficando a diversificação por conta dos pequenos espaços de mercado interno.

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O controle ideológico do sistema econômico ficou por conta da alienação das elites associadas que passaram a tomar iniciativas de liderança subordinada e a defender o bloco de poder dominante com o denodo de quem sabe não ter para onde recuar. Os valores culturais se projetaram na construção dos sistemas educativos nacionais que afirmaram como estrangeirizantes, que na prática significou copiar modelos culturais e educativos franceses e ingleses e finalmente modelos norte-americanos. É revelador que alguns dos movimentos mais festejados de modernização do sistema educativo foram, na realidade, cópias de propostas de política educativa de países mais ricos, como os EUA e a França e que jamais puderam ser eficientemente implantados no Brasil. Os movimentos de afirmação nacional sempre foram vistos com suspeição, geralmente reduzidos a nacionalismo e a estreiteza de visão, tal como aconteceu com as tentativas representadas pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Essas formas de colonialismo sutil persistiram, mas tornaram-se incapazes de proteger adequadamente os interesses do capital, assim como não foi capaz de resistir às pressões dos movimentos nacionalistas que ele mesmo despertou. Mas resistira até quando as bases do poder na Europa burguesa foram sacudidas pelo nazismo e pelo socialismo. Entretanto, o realinhamento mundial do poder abriu espaço para novas formas de controle internacional, mais indiretas, entretanto,

baseadas na supremacia norte-

americana, com papéis de coadjuvantes para os países europeus, onde alguns deles desenvolvem investimentos e protagonizam a expansão de algumas empresas líderes, assim como o Japão. Na nova ordem de poder internacional, simbolizada pela globalização financeira e pela concentração do grande capital nas multinacionais encontram-se combinações complexas de organização de capitais de base nacional com empresas multinacionais, onde a relação entre o mercado de capital e o de trabalho continua sujeito a grandes restrições internas e onde as estratégias de sobrevivência dos trabalhadores passaram a se valer mais da mobilidade sinalizada pelas migrações.

A produção social de escassez No mundo do capital de hoje pode-se ver a escassez como uma situação inicial de falta de elementos para a produção necessária para sobreviver e como uma situação de falta determinada pelo rumo seguido pela produção capitalista, com suas implicações de uso

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de tecnologia. Como mostrou Marx, a produção capitalista tende à superprodução por uma contradição entre os interesses individuais dos capitalistas e os movimentos dos capitais em seu conjunto. A superprodução do capitalismo consiste em abundancia de mercadorias para as quais se supõe que há procura e para cuja produção canaliza os recursos disponíveis, produzindo escassez dos bens e serviços necessários para as maiorias que não têm capacidade de demandar em mercado. A superprodução de mercadorias demandadas em momentos anteriores do mercado indica escassez em momentos futuros. O movimento geral de expansão da produção capitalista se realiza em resposta a estímulos de demanda surgidos de compras induzidas pelos capitalistas que assumem o papel de produtores e decorrem da defesa da taxa de lucros dos capitalistas individuais e que entra em contradição com a lógica da reprodução do sistema. Como a renda se concentra em segmentos restritos da sociedade mundial, a demanda que pode ser esperada de consumo essencial será proporcionalmente menor que a requerida pelo capital para se reproduzir. Este mecanismo, que foi percebido por Ricardo, põe a reprodução do capital na dependência da demanda do clube formado pelos grupos de maior renda e consigna aos mais pobres o papel de garantir uma demanda básica de produtos de baixo valor por peso. Esta observação apresentada por Ricardo e desenvolvida por Marx indica o rumo da produção social de escassez. O capital se concentra entre alguns a expensas de descapitalização de outros. A abundância em processos desiguais torna-se a fonte de uma escassez que atinge algumas partes da sociedade enquanto outras enriquecem. O sistema todo se move mediante um mecanismo que converte desejos em decisões de compra, portanto, que depende de que haja pessoas e instituições dispostas a comprometer renda com a compra das mercadorias a serem vendidas. A necessidade de manter em operações um sistema cada vez maior e mais complexo faz com que haja uma diferença essencial entre os circuitos de transações que respondem pelo consumo essencial à sobrevivência e o que se desenvolve com as necessidades que são criadas pelos meios de publicidade e pelos estímulos dos ambientes de consumo. Dadas as interações entre interesses genuínos em itens e formas de consumo ligados com sobrevivência e o consumo induzido só se pode separar

consumo necessário de

desnecessário com um critério de classes sociais que distinga sobrevivência física de defesa de posições de consumo já alcançadas.

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Ao ver o consumo como um processo que é conduzido pelas expectativas criadas pelo capital para gerar a demanda que viabiliza sua reposição, introduz-se um ajuste nos pressupostos da teoria econômica, onde os dados de consumo geral têm que ser corrigidos por indicadores da composição do consumo por grupos de renda e condições de acesso a bens e serviços. Na sociedade capitalista não há, praticamente, como isolar comportamentos do consumo que não estejam articulados pela produção industrializada e não estejam sujeitos à influência da mídia. O controle do consumo se realiza sobre os atos atuais e sobre as perspectivas de consumo futuro, tal como elas são parte do planejamento da produção. As preferências dos consumidores são direcionadas mediante mecanismos sutis de controle ideológico que transcendem o escopo do marketing e se confundem com uma manipulação de marcas que se tornou parte essencial da operacionalidade do capital financeiro e de transmissão de experiências e de expectativas entre consumidores. O consumo induzido torna-se a mola mestra do formato da demanda efetiva. Mesmo os modos mais simples de consumir estão impregnados da complexidade da produção capitalista. Uma teoria econômica atualizada do consumo terá que contemplar as condições sociais de realização do consumo entre sociedades desigualmente industrializadas e comunicadas. Para manter a pressão da demanda o sistema precisa passar aos detentores de renda a consciência de uma necessidade de consumir que se torna o grande diferencial entre as sociedades que acumulam e as que continuam presas às restrições da sobrevivência. A escassez é o retrato em negativo dessa pressão social de demanda, que se amplia junto com a acumulação e se torna um fator de diferenciação social em cada região e entre países. A escassez se torna progressivamente maior com o crescimento da demanda induzida e representa uma rigidez do sistema produtivo para reagir às crises econômicas. Ao reconhecer que a atual crise da economia mundial altera, de modo irreversível, os padrões de consumo da sociedade norte-americana, coloca-se

na verdade que a

contração de emprego e renda no topo mundial da renda pessoal tem efeitos negativos diferenciados ao longo das escalas de renda e de condições de consumo das diversas populações nacionais. A desigualdade essencial do sistema tem feito com que a progressão da escassez induzida avance junto com o aumento das situações de pobreza extrema e de recrudescimento de situações de pobreza crítica em regiões

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predominantemente pobres e nas metrópoles dos países periféricos ascendentes como a Índia, o México e o Brasil e em situações de pobreza aguda crônica em metrópoles dos países mais ricos como nos EUA, no Reino Unido e na França, sempre em correspondência com situações de discriminação étnica. Trata-se, portanto, de que há uma pluralidade de relações causais e de situações históricas em torno da produção social de escassez que precisam ser esclarecidas. A escassez de bens e serviços a serem distribuídos corresponde à desigualdade na distribuição da renda, com seus desdobramentos na escala de cada país e através da distribuição do trabalho. Há uma escassez que surge da concentração das rendas do trabalho em menor número de empresas e de postos de trabalho e outra escassez que surge da insuficiência do sistema produtivo para absorver a força de trabalho disponível na sociedade. Historicamente, o problema social da escassez surge do próprio sistema colonial de produção, que jamais absorveu a força de trabalho com salários suficientes para sua reprodução e canalizou a força de trabalho controlada para produzir mercadorias para exportação, em detrimento de satisfazer as necessidades existenciais da população de trabalhadores. O esgotamento dos sistemas coloniais tradicionais deu lugar a novas formas de extração internacional de valor que se atualizaram junto com a renovação tecnológica. O processo da escassez

ganha novos mecanismos de propagação ao

aumentar a variedade de técnicas que se combinam. Desfaz-se o argumento defensivo de que o transbordamento de efeitos da riqueza acumulada aumenta o poder de compra dos mais pobres mitigando a escassez social. Esse estilo de economia foi objeto de sucessivos movimentos de modernização que representaram substituições de trabalho mediante mudanças de organização que limitaram ou reduziram o papel do trabalho frente ao desempenho da maquinaria. Tratase de uma modificação estrutural no papel do trabalho na produção, pela qual se desatrelam os ganhos de salários dos trabalhadores dos ganhos de eficiência do trabalho. A escassez resulta da redução do papel ativo do trabalhador na gestão do trabalho. Através desse descolamento entre o trabalhador e o trabalho incorporado na produção surge uma esterilização do trabalho diretamente ligado ao trabalhador, que é substituído por trabalho administrado através da gestão da maquinaria.

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A conceituação positivista de economia é de uma ciência cujo objetivo é a melhor distribuição possível de recursos escassos 10, onde se presume que a escassez é um dado inicial do problema econômico, mas onde não se discute como esse problema evolui com a acumulação e com a concentração do capital. A perspectiva histórica da economia faz o percurso contrário, seguindo a pista dos processos criadores de escassez, procurando as linhas de desenvolvimento desse problema no contexto da acumulação. Certamente, há uma escassez básica das situações primitivas de vida identificadas com os problemas de sobrevivência. Mas a escassez no sistema capitalista é uma conseqüência do controle progressivo dos recursos para atender a uma produção direcionada para maximizar lucros. Na perspectiva do pequeno capital, o avanço do capital monopolista aprofunda diferenciais de lucro entre empresas que limitam os lucros e os salários e as possibilidades de aumento de renda, pelo contrário acumulando riscos de falência e desemprego.

A autofagia do poder prevalecente O poder do capital é um novo Conde Ugolino que devora seus próprios filhos. A concorrência irrestrita é um movimento defensivo que abrange os planos da economia e da política e que em seu sentido pleno descreve uma autofagia do sistema produtivo tal como advertido por Ricardo no começo da caminhada do capitalismo. As estratégias auto-destrutivas de mercado empreendidas pelo grande capital compreendem aspectos explícitos do jogo de poder econômico e aspectos velados do poder político e das interrelações entre os dois, criando limites dessa autodestruição, estabelecendo princípios de auto-preservação. Os capitalistas se ocupam de que a sociedade do capital não os exclua. Na caminhada da formação do poder econômico no capitalismo avançado aumentam os aspectos comuns a todos e diminuem as peculiaridades do funcionamento dos sistemas nacionais cada vez mais sensíveis a tensões de identidades regionais e a pressões de interesses e de cultura internacionalizadas. Na América espanhola, que se diferenciou

das demais partes da América, por implantar-se sobre civilizações

10

Uma definição de Lionel Robbins que foi adotada pela economia burguesa como a conceituação básica desta ciência social e que foi secundada por Joan Robinson ao definir a teoria econômica como uma caixa de ferramentas.

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autóctones, as tensões regionais se identificaram com as identidades pré-hispânicas e passaram a criar novas sínteses culturais 11. Segundo a lógica de sua reprodução, o movimento geral do capital resulta de uma pluralidade de iniciativas de produção baseadas em previsões de demanda que são elaboradas sobre uma perspectiva geral de consumo que jamais pode ser abastecida por um único produtor em condições de concorrência

12

. A suposição de combinação é

necessária, mas, logicamente, qualquer produtor concorrerá toda vez que tiver a oportunidade de fazê-lo. Será preciso superar essa barreira de generalidade e passar das condições específicas da reprodução do capital, que logicamente variam em tempo e espaço, e levam a cogitar de condições e movimentos restritos de acumulação. Falta esclarecer alguns pontos sobre os efeitos da concentração do poder econômico nas condições históricas do mercado. O poder econômico significa a capacidade de decidir sobre tecnologia, financiamento e emprego, isto é, conduzir a produção sobre opções de linhas de produção. A concentração da capacidade de controlar a renovação tecnológica deu novas qualificações à concorrência, onde se distinguem espaços de concorrência e capacidade de concorrer em cada um deles. Não há como simplificar a capacidade de concorrer em uma competitividade indiscriminada, que aparece como uma propriedade geral das empresas, senão é preciso ver a competitividade como uma capacidade de concorrer em determinados ambientes econômicos. A competitividade é relativa tanto como são relativos os controles sobre tecnologia e como são sólidos os fundamentos financeiros do comando da tecnologia. Alguns estudos de inspiração weberiana, como os de Chandler sobre a operacionalidade da indústria, sinalizam essa distinção entre o ambiente da concorrência e a capacidade das empresas para concorrerem, que tem muito a ver com vantagens de curta e de longa duração e com

vantagens circunstanciais e vantagens conquistadas. A análise

11

É um processo progressivo, regressivo, convergente e dispersivo que compreende substituições, adições, inclusões e exclusões, configurando novos sujeitos históricos. 12 Este pressuposto tem diferentes condições de aplicabilidade na indústria de transformação, onde os lucros de monopólio são obtidos em concorrência entre empresas em condições de concorrerem umas com as outras, e no mercado urbano, onde há uma distinção entre produção industrializada, produção artesanal capitalista e produção comunitária, apesar de que as três operam sobre um mesmo mercado de terras e de alguns materiais. A questão de efeitos de graus de monopólio trabalhada por Kalecki considera sistemas unificados onde, em todo caso, as empresas e os trabalhadores participam de mercados de capital e de trabalho comuns a todos.

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econômica ortodoxa ficou presa na armadilha de trabalhar com empresas genéricas e trabalhadores individuais genéricos, desconsiderando os coletivos historicamente formados, portanto, sem penetrar na capacidade de desempenho das empresas em suas condições específicas de mercado.

Reconhecendo que a duração das empresas

individuais é apenas um dado circunstancial do sistema capitalista, onde algumas delas podem ter vida muito longa enquanto a maioria pode desaparecer na concorrência ou por fusões é preciso admitir que a captação de vantagens de monopólio é do sistema do alto capitalismo, mas não necessariamente fica restrita a um mesmo elenco de empresas. Pelo contrário, é uma propriedade estrutural do sistema que as ações individuais dos capitalistas operam como uma contradição da reprodução do sistema do capital, acionando modos desiguais de concorrer. Significa levar a tese da destruição criadora a suas verdadeiras conseqüências, de destruição de empresas e de perdas de capitalistas em períodos de mudança de composição do sistema produtivo. Ganhos e perdas de posições de países podem ser tomados como uma extensão desse mesmo quadro. Esse endurecimento da concorrência se projeta desde o plano da produção mundializada, mas convive com salvaguardas que as empresas antepõem, através de suas relações com a esfera política, pelo que se realiza com diversos graus de intensidade, abrindo espaço para iniciativas do bloco político de poder para se apropriar de parte dos ganhos de monopólio, mediante participação em empresas ou através de corrupção. Esta, portanto, é fruto de uma relação espúria mas previsível, de relações de poder não controladas entre a esfera política e a econômica e que se tornou orgânica ao sistema político. Neste outro plano a autofagia do sistema ultrapassa o âmbito da contradição entre o individual e o coletivo para esta outra escala de relação entre o político e o econômico. A movimentação da esfera política resume o processo do poder, injetando uma racionalidade formal aparente montada sobre uma irracionalidade substantiva essencial. A reprodução do sistema político, ou do bloco histórico de poder, é um fator de imobilização da vida social, portanto, um veículo de atraso, principalmente por criarem novos vínculos de dependência dentro da classe dominante e em relação com os trabalhadores, portanto, de bloquear a mobilidade social. O controle de cargos públicos por parte de partidos políticos, de grupos dentro dos partidos e de líderes de diversos níveis que derivam sua importância de sua capacidade de articular recursos. A experiência do Brasil mostra uma notável capacidade de auto-preservação desse modo de poder que se transferiu do ambiente social do capital mercantil para o do

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capital industrial e fez o caminho de volta desde a esfera política usando os meios tradicionais de favorecimento de contratos,

de empregos a familiares e agora, de

controle da administração de fundos públicos.

2. Formação e contradições das sociedades nacionais Movimentos positivos e negativos O avanço do capitalismo nos séculos XIX e XX deu lugar a movimentos de fortalecimento dos Estados nacionais poderosos, ao tempo em que desencadeou movimentos internos e externos dos países, que levaram a tensões no contexto de muitos países, à fragmentação de vários deles e ao cerceamento dos movimentos das pessoas, migrantes e mesmo de não migrantes. Mais pessoas pretendem passar a países ricos, cujo acesso se tornou penoso e humilhante. O aprofundamento do capitalismo deu-se sob as formas de controle do capital financeiro, de internacionalização de capitais sob o escudo de expansão milita e subordinando as condições locais de vida aos interesses internacionalizados das empresas e determinando usos crescentes e irreversíveis de energia. A reação à concentração do poder do capital surgiu com argumentos nacionalistas e regionalistas, sob formas racionais de lutas por emprego e renda e formas irracionais de religiões, mas em todo caso, mobilizando reações que se opõem à lógica do grande capital. No essencial, o movimento geral de acumulação e concentração induzido pelo grande capital mobilizou forças que o apóiam de modo organizado ou por assimilação e forças que lhe resistem. Revelam-se os traços contraditórios dos diversos processos que levaram à formação dos Estados nacionais e às contradições que eles enfrentam. A dificuldade vem de que a mundialização do capital no último quarto do século XX pôs fim aos projetos de capitalismo nacional entrevistos pelas revoluções burguesas em países que alcançaram condições econômicas e políticas para que elas acontecessem e estabeleceu novos parâmetros de internacionalidade em que todos os países envolvidos na industrialização tiveram que operar, inclusive a potência norte-americana hegemônica. As transformações do mercado estão ligadas ao aumento do número das empresas que operam com a lógica do capital financeiro, portanto, em que a maior agilidade do capital que opera em bolsa tem os dois aspectos de volatilidade da formação de capital e de vulnerabilidade dos sistemas produtivos nacionais, com vantagens para os que comandam mercados

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próprios maiores, mas com maior dependência do suprimento de energéticos. Isso significa que os projetos de economia nacional baseados em internalização de economias externas perdiam vigência frente ao cálculo de captação de vantagens nacionais por parte dos capitais internacionais. É um desafio para rever o significado de desenvolvimento nacional com que se trabalhou desde o fim da segunda guerra mundial, assim como denunciar as intenções de poder subsumidas na internacionalidade burguesa. No ambiente político posterior à Segunda Guerra Mundial apresentou-se como opção social viável a da revolução burguesa que se afirmava como de um capitalismo nacional. No entanto, a crise de mudança do padrão de acumulação mundial do capital da década de 1960, mostrou que esses projetos de capitalismo “nacional” tornaram-se menos verossímeis e que o objetivo de combinar a extração de mais valia com o de controle do trabalho enfrentava dificuldades crescentes, em parte pelo peso das multinacionais e em parte pela fragilidade dos integrantes tradicionais do bloco de poder. Por isso, a formação de sociedades nacionais pôde parecer uma tendência inexorável do capitalismo moderno, mas revelou-se como um movimento sujeito a importantes qualificações no relativo ao continente americano, em relação com as condições internacionais prevalecentes ao longo do tempo e com as tensões que têm se formado nos campos sociais dos quais surgiram estes Estados. Houve frustração, total ou parcial, de projetos nacionais como da República Guaraní e surgiram novos projetos como os do Panamá e das ex-colonias inglesas. As sociedades nacionais surgem realmente de projetos qualitativamente diferentes dos das regiões, tal como ficou evidente na formação polêmica da Argentina. No movimento geral de formação de sociedades nacionais na América distinguem-se movimentos gerados pelas contradições do sistema colonial, outros movimentos conduzidos pelos interesses de burguesias locais, com variadas alianças externas, e, finalmente, movimentos que decorrem de novo equacionamento da estruturação interna com as demais nações. No que corresponde aos projetos burgueses de formação nacional, a nacionalidade corresponde a uma territorialidade do poder econômico representada pela noção de mercado interno e de protecionismo, ligado a subsídios diretos e indiretos ao capital. Configuravam-se projetos de poder baseados na formação do poder da burguesia (FERNANDES, 2007) combinando controle social interno com relações internacionais

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pactuadas, compreendendo subalternidade externa. Os projetos de poder da burguesia apoiaram-se sempre em pressupostos de prosperidade que significam que haja um número crescente de compradores com mais dinheiro. Essa prosperidade seria conduzida pelo capital em ascensão, que aproveitaria sua capacidade de transformar em negócios a expansão do consumo. Haverá uma relação incidental provável entre esse movimento de ascensão do capital e o aumento da massa total de riqueza em mãos dos trabalhadores, mas não há relação orgânica entre o aumento da riqueza total e a participação remuneração do trabalho na renda total. No continente americano destacam-se a diferença entre o processo dos EUA e os dos países latino-americanos e a distância entre os países de grande e de pequeno porte, em que o fim das colônias se traduziu no aparecimento de um grande número de nações minúsculas, ainda presas ao manto europeu, que passam ao domínio norte-americano através de mecanismos de substituição do Império Britânico. Na região em seu conjunto, a Revolução Cubana é o movimento que se afirmou frente a um conjunto de fracassos, desde a ascensão de governos socialistas na Guatemala, na Jamaica e na exGuiana Inglesa até as tentativas de Granada e do Panamá. Mas a grande região insular sempre foi o lugar de inquietação política que se manifestou em diversos momentos, nos movimentos de independência de Trinidad e de Barbados. Na América Central há uma longa tradição de luta que culminou com o Sandinismo na Nicaragua, que compreende uma complexa luta política no Panamá desde Torrijos. Divisão e unidade O sentimento de divisão da América, entre a latina e a saxônica, junto com a identificação da segunda como uma unidade no centro da economia mundial, e a segunda como uma pluralidade periférica, contribuiu para que faltassem visões de conjunto da formação dos Estados nacionais americanos. Já fosse porque a própria noção de Estado nacional vem de origens diversas e representa situações diferentes de coesão social, ou porque o ambiente externo da formação nacional fosse diferente, as questões internamente levantadas sobre o Estado em cada país procedem de doutrinas e posturas incomparáveis no relativo a territorialidade, que passariam à esfera internacional. Os Estados Unidos da América do Norte surgiram em 1776 como uma

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proposta expansionista13

enquanto os Estados latino-americanos assumiram a base

territorial das anteriores colônias. Assim, é preciso reconhecer os fundamentos coloniais dos Estados nacionais como parte ativa da constituição dos novos Estados independentes. O declínio do sistema colonialista deu lugar a movimentos de conversão de interesses econômicos locais em núcleos de expressão política que passaram a representar os grupos sociais organizados das colônias. A passagem do local ao nacional não foi linear e em vários casos jamais se completou. O aparecimento de projetos de unidade nacional na América variou, desde os mais prematuros no Chile e no Uruguai até os mais retardatários, como a Colombia, o México e o Brasil. É um problema que o Canadá jamais resolveu e evoluiu para um estado multinacional e uma nação pluri-regional. Os Estados Unidos, pelo contrário seguiram um modelo político bipartite que se desembocou em contradições de interesses profundas, entre o projeto expansionista da Revolução Americana perfilhado pelos estados do norte e a economia do sul, periférica da inglesa. A expansão realizada desde 1870 resultou em um Estado centralista que combinou a unificação interna com um projeto imperialista iniciado por volta de 1850 14 e confirmado pela guerra com a Espanha em 1895 que desembocou na tomada das Filipinas. No fim do século XIX definia-se uma política norte-americana de controlar diretamente o Caribe, onde se completou a construção do canal de Panamá com a secessão dessa então província da Colômbia. O imperialismo norte-americano ganhou alento definitivo com a Primeira Guerra Mundial que os tornou protagonistas do cenário europeu, na qualidade de herdeiros presumidos do Império Britânico, com o qual de fato concorriam. A concorrência entre os dois já se fazia sentir desde a Guerra de Secessão norte-americana e esteve acirrada até o início da Segunda Guerra Mundial, em torno da liderança financeira. Por questionável que seja a legitimidade dessa herança cultural e política, não há como esquecer que os norte-americanos foram beneficiados pela identificação do idioma e pela imagem de uma sociedade socialmente aberta com uma revolução democrática, que atraíram um grande número de trabalhadores qualificados. A formação do Estado nacional norte-americano ganhou um reforço decisivo com a 13

A Constituição norte-americana não fala em fronteiras senão em expansão segundo necessidades. Em 1847 tropas norte-americanas invadiram o México, que voltaram a invadir em 1856 e em 1854 uma esquadra norte-americana forçou a entrada da Baía de Tóquio. A intenção de controlar o Pacífico é anterior à chegada da estrada de ferro à Califórnia.

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integração do modelo econômico da Segunda Revolução Industrial, em que foram fundamentais sua composição de recursos naturais e a expansão do seu mercado interno. Torna-se evidente que falta uma visão sintética do processo econômico norteamericano, capaz de retratar os saltos qualitativos e quantitativos desse sistema, que se desdobraram desde o fim

da Guerra Civil. Numa grande simplificação, pode-se

considerar que a economia norte-americana de um grande salto após a Guerra Civil, quando articulou a consolidação do modelo industrial sobre os três portos de Nova York, Boston e Chicago com a expansão territorial. A seguir que deu outro salto de mudança de escala, quando combinou esse novo modelo com o acesso ao Pacífico. Finalmente, quando passou a se beneficiar da constituição do capital financeiro. O início da Primeira Guerra Mundial já encontrou os EUA prontos para desempenhar seu papel de potência internacional de primeira linha. Primeiro, será preciso distinguir entre a expansão do sistema econômico em seu conjunto e a do sistema produtivo, portanto, registrando o papel alternativo do comércio. A consolidação do Estado nacional imperialista norte-americano se anuncia como uma ideologia de confronto com o mundo hispânico, mas tem fundamentos muito anteriores na ligação do conservadorismo protestante com uma noção de superioridade racial desenvolvida pelo escravismo inglês. A expansão está justificada por um salvacionismo que, para surpresa dos latinos, tem respaldo em princípios morais que valorizam virtudes individuais como norma essencial de vida. A ambivalência entre individualismo e responsabilidade social seria um traço essencial de uma cultura que cobra obediência ao poder oficial e toma a hierarquia como um dado, mas que se aferra a direitos individuais socialmente contraditórios, como o uso de armas. Ao longo de sua vida como nação independente tem absorvido custos sociais de guerras que seguramente seriam resistidos em muito outros países. A política exterior ficou impregnada dessa mistura de boas intenções e efeitos negativos, quando foi mobilizada para justificar ditaduras tais como as de Trujillo e Somoza dentre as mais truculentas e simples até os mais sofisticados como Lanusse e Castelo Branco. Curiosamente, quando comparado com a desfaçatez explicita do Império Britânico, o imperialismo norte-americano teve que se explicar perante uma classe média ascendente, que ficou frustrada quando da morte de Kennedy mas que

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elegeu Obama. O sistema de poder norte-americano trabalhou com a presunção de que poderia manter separados o olhar soteriológico das igrejas que decidem o certo e o errado através da Bíblia, que justifica sua ingerência no Estado e o olhar pragmático que se estende desde a filosofia simplificadora de Dewey e James até a ideologia das business schools.

Em seu desenvolvimento o projeto norte-americano revelou um

surpreendente simplismo frente à intelectualidade européia, mas teve a capacidade de atingir o sistema educativo da burguesia européia, fazendo-a copiar os mesmos padrões de eficiência mecânica e reducionismo ideológico. O final do século XX trouxe algumas surpresas no relativo ao desempenho do sistema mundializado, no relativo a perda de controle sobre as principais economias periféricas. O mundo ficou irremediavelmente fragmentado e o que pareceu a novidade pósmoderna é um retorno às condições de divisão entre cristãos e não cristãos e entre os diversos tipos de cristãos. A exacerbação das divisões recorre a argumentos religiosos, tal como na Baixa Idade Média, quando o alinhamento dos grupos urbanizados exigia uma identificação ideológica além do escopo político indireto (Le GOFF, 1986). O novo pós-modernismo significa uma ruptura com o sentido de totalidade da teoria, cujas raízes deixam de ser relevantes e cedem espaço para a pluralidade incontrolada do rizoma e para o labirinto. A superação da modernidade “clássica” mundo industrial não é a afirmação de um sistema novo, limita-se a mostrar a incongruência do anterior. Mas só mostra até certo ponto, porque só atinge as manifestações conseqüenciais da modernidade, isto é, da produção até o consumo e não se envolve com os processos que vão desde a necessidade do capital de se reproduzir até o controle do consumo. Isso fez do pós modernismo uma crítica superficial da sociedade do capital, por;em jamais uma crítica orgânica do sistema do capitalismo. A estética do conflito tomou o lugar da ontologia da realidade com suas derivações na crise de finalidade e nas identidades flutuantes dos participantes temporários e dos engajamentos parciais. Alguém decide morar na Itália ou em Portugal e sente-se solidário com políticas ambientais, mas não frente aos problemas de desemprego ou com a queda de qualidade da educação formal como tampouco italianos e portugueses se solidarizam com a crise social transferida para o sistema educativo. O pós-modernismo se apresenta como um programa de visões parciais em que a noção histórica foucaultiana de ruptura é substituída por uma pulverização incidental.

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Sobre essa trilha de aplicação do esforço de quebrar o enigma de sistemas atingidos por interrupções de processos criadores, torna-se necessário rever a formação do sistema mundial de hoje com suas novas desigualdades entre nações capazes de crescer mais e nações que enfrentam dificuldades crescentes para continuarem a crescer. Não há como ignorar que a crise mundial do capitalismo toma certas direções nacionais e tende a se concentrar em países cujo mercado não cresce ou cresce menos que o necessário para reproduzir o capital atual

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. Por isso, é preciso rever a formação do sistema desigual

ultra-moderno, distinguindo os processos que são introjetados nos sistemas nacionais e os que se fortalecem como partes do mundo da internacionalidade. Não que os sistemas nacionais sejam diluídos pelos internacionais, mas porque se desenvolvem sobre os dois planos e deixam como marca principal a ligação entre os dois. Construções interrompidas ou processos constrangidos? A hipótese que as sociedades periféricas no movimento mundial de acumulação são construções inacabadas, sugerida por Raimundo Faoro, tacitamente subentende que há padrões fixos de progresso – estabelecidos pelas nações-do-mar-do-norte – que permitem classificar todos os demais. As nações periféricas seriam projetos inacabados de países ocidentais. A responsabilidade de insuficiências e inadequações seria deles. É uma visão tipicamente weberiana, que contrasta tipos ideais com situações reais. Uma perspectiva histórica crítica tende a separar processos e responsabilidades e a tomar como decisivo o papel do movimento do poder central, com seus aspectos de concentração de poder econômico e de modulação política do poder em seu conjunto. No final do século XX a nova teoria ortodoxa, que já se converteu em teoria monetária do capital, foi posta diante de uma nova realidade da economia mundial que é uma nova segunda revolução industrial, de maior escala que a anterior, agora conduzida pela ascensão de países periféricos à condição de potencias mundiais. Está claro que a ascensão da China, da Russia e da Índia a essas posições não é somente uma questão de escalas de mercado nem de vantagens de baixos salários, senão de outros valores no relativo a qualificação, controle de tecnologia e controle do capital financeiro. O Brasil 15

O atual rebatimento da crise mundial na Europa do sul, que faz sua grande vitima na Grécia sinaliza uma divergência dos rumos dos países que aponta ao fim do euro, a moeda alemã transnacionalizada.

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entra nesse contexto ainda sem resolver essa equação básica, precisando superar tendências dispersivas e de alargamento de desigualdades sociais.

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3. O contraponto interno: a teoria do alto capitalismo e do capitalismo tardio

O lastro da teoria grandiosa Na perspectiva de uma leitura crítica da teoria social é preciso partir aqui da premissa de que a teoria econômica, como toda a teoria social, surge em resposta de problemas da realidade, já seja para resolvê-los ou para evadi-los, segundo os interesses que representa de modo explícito ou velado. A teoria sempre carrega uma intencionalidade que, por sua vez, reflete interesses concretos. Como mostrou Godelier (1966), o tratamento dos problemas de método em economia exige uma decodificação histórica da teoria que envolve, necessariamente, um exame da relação entre a racionalidade e a subjetividade. Responder ao desafio da teoria resulta em um programa de trabalho sem final feliz garantido, que termina por encarar o problema central, hoje mascarado, do desenvolvimento. A teoria econômica se formou gerando sucessivas respostas às transformações do sistema produtivo, ao qual olha através de seu aspecto econômico. O centro do debate teórico é a teoria do valor que é a pedra angular da teoria do capital, isto é, de como se acumula valor socialmente produzido. Há uma escolha entre discutir valor como tal ou através de seu reflexo em preços; e há uma escolha subseqüente entre tratar como o trabalho cria valor socialmente aceito ou tratar das condições em que as pessoas, na condição de representantes do capital ou na de trabalhadores, promovem a produção ou são engajadas nela. A primeira destas opções traduziu-se na teoria do valor trabalho e a segunda formalizou-se como teoria dos preços. A segunda disjuntiva deu lugar a uma teoria do capital que trata com a heterogeneidade do capital e a uma teoria do capital homogêneo, que é o mesmo que dizer que é uma teoria monetária do capital. Admitir a homogeneidade significa aceitar uma perfeita equivalência entre os diversos ativos integrantes do capital, ou ainda, que o valor social não depende do modo como o capital é usado na produção. Não há dúvida que os rumos da teoria do capital dependem dos da teoria do valor e que esta recebe diferentes leituras das principais correntes de pensamento. Com outra denominação que não a de oposição formal entre a teoria do valor trabalho e a da utilidade marginal, focaliza na totalidade do capital, com a heterogeneidade do real e a expressão financeira do dinheiro capital.

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Em alguns momentos a teoria tratou com o processo social em sua totalidade, mas em muitos outros momentos focalizou em aspectos ou em partes dessa realidade. A totalidade apareceu como uma situação como em Walras ou como a cara atual de um processo histórico, tal como em Marx. A adoção de estratégias simplificadoras tem sido uma prática generalizada, que por vezes tem o objetivo de buscar especificidades, mas que, em muitas outras, constitui uma manobra lógica cuja sustentação não fica clara ou simplesmente não é satisfatória. Se no contexto da teoria se pode distinguir o arcabouço conceitual e o aparelho analítico, deve-se, por extensão, distinguir a consistência formal e a consistência material da análise, ou sua pertinência frente aos processos e as condições da realidade. É sempre uma teoria que é um corpo teórico e não é um conjunto de teoremas, em que se pode agregar ou retirar um teorema sem modificar o poder interpretativo do corpo teórico. Os eixos que ligam a totalidade e os aspectos e o tempo e o espaço são as categorias da reflexão teórica que dão a ordem e o significado do discurso teórico do mundo social. Os diferentes níveis de abstração em que se desenvolve o discurso teórico são situações interdependentes do movimento dialético do pensar teórico, tal como maneja Marx e não são quadros redutíveis a uma situação de generalizações 16. A percepção do aspecto econômico da realidade definiu-se frente à materialidade da primeira economia mercantil17, justamente quando o reconhecimento da diferença entre a esfera pública e a privada e o reconhecimento da internacionalidade essencial da vida econômica revelaram o significado da economia como fonte de poder. Os grandes 16

As implicações mais profundas de dialética da análise social foram levantadas por Marx mas se tornaram uma excentricidade para a análise ortodoxa, que considerou ser opcional ignorá-la, desde Böhm-Bawerk a Keynes. Para estes autores o mundo do trabalho não tem uma personalidade independente, pelo que a análise do emprego é apenas reflexa da do capital. A análise da acumulação na perspectiva do trabalho tem que considerar não só a relação atual entre emprego e renda como as condições de acesso a renda, que incluem a expectativa de vida útil profissional e as tendências inerentes aos processos de qualificação dos trabalhadores. 17 Uso a expressão primeira economia mercantil para designer o sistema mercantil da antiguidade, que atingiu seu apogeu no Império Romano e que combinou uma comunidade política com um sistema de compensações de compras, tendo como eixo o núcleo central do império, que foi o grande centro comprador do sistema. Entendo que o sistema mercantil do Império Bizantino jamais alcançou a capilaridade do Império Romano do Ocidente, mesmo tendo sido um desdobramento dele. Veremos que a primeira economia mercantil foi superada por uma economia mercantil madura, que se formou desde a alta Idade Média e que se expandiu com um uso sistemático de dinheiro. Toda a produção mercantil apoiou-se numa exploração profunda da força de trabalho, já fosse na forma de apropriação da escravidão ou na de desvalorização dos trabalhadores, que caracterizou a servidão, tanto nas colônias antigas como nas da América. O grande diferencial entre a produção mercantil antiga e a dos Tempos Modernos foi o modo de uso de dinheiro, que passou a ser de dinheiro capital.

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achados de Aristóteles sobre economia situam-se na relação entre a definição das esferas pública e privada e a da medida de valor a partir de referências do cotidiano da esfera privada que se projetam à configuração da esfera pública. A esfera pública da vida econômica estaria constituída das ações de sujeitos privados legitimados. Registram-se os atos dos homens livres e o trabalho dominado, das mulheres e dos escravos fica subsumido. Evidentemente, ficou um vazio no relativo à compreensão do mundo do capital mercantil, que precisa ser esclarecido para poder-se avançar na explicação do mundo do capital industrial. O mundo da produção mercantil se estruturava sobre o controle irrestrito da força de trabalho, combinando escravidão com controle militar. As possibilidades de expansão da produção mercantil dependeriam de sua capacidade de reincorporar valor à produção, gerando maior capacidade de produzir, mas o controle da força de trabalho é um processo social que se torna contraditório ao desenvolvimento do sistema, porque inibe o desenvolvimento do componente de valor – isto é, de qualificação dos trabalhadores – da composição do capital e limita o alcance social da tecnologia. Desde então, a escravização será um divisor de águas na configuração do sistema produtivo, onde a relação entre a expansão do mercado e a inclusão social cruza com a relação entre o desenvolvimento de tecnologias e o de modos de uso das técnicas incorporadas. Como disse Marx, a conversão de trabalhadores dependentes em trabalhadores contratados significa a liberação de forças sociais que realizam o incentivo para consumir mercadorias18 em vez de produtos da esfera doméstica. A teoria econômica precisou resolver o primeiro problema de explicar a formação dessa oferta previsível de mercadorias padronizadas e em seguida de resolver os problemas operacionais de medir os custos sociais dessa oferta e os preços a que ela pode ser demandada. A indagação da teoria abrange as condições sociais da produção, pelo que se realiza sobre o eixo produção-distribuição, tal como trabalhado por Ricardo e Marx e jamais pela separação da teoria da produção como foi empreendido pelos marginalistas. A teoria da produção depende de como se resolvem os problemas de definição de custos fixos e variáveis, o que significa, de como se introduzem as escalas de tempo no ajuste 18

Mercadoria será tudo que é produzido para ser vendido, mas para vender é preciso ter um sistema de comercialização, pelo que é o que é vendido por meio do sistema capitalista de produção. O conceito de mercadoria é inseparável do de valor de troca, mas é preciso introduzir uma distinção entre o valor de troca em produção localmente definida e em produção capitalista que se dirige a um mercado que transcende o local. A substituição de valor de troca local restrito por valor de troca irrestrito internacional é a mola central da formação da produção capitalista unificado.

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de oferta e demanda. Parafraseando – e negando – Say, pode-se dizer que a atual oferta cria sua própria demanda, porque a procura anterior justificou a oferta atual. Como, em todo caso, a oferta está composta de mercadorias realizadas em diferentes períodos de produção, a possibilidade de equilíbrio dessa oferta temporalmente desigual com uma demanda formalizada em um único período é remota ou impraticável. Será preciso rever o conceito de equilíbrio, entendendo que o equilíbrio em curto prazo na versão de Marshall - Walras – Wicksell é sempre uma simplificação

19

. Se por equilíbrio se

entende uma situação de equivalência entre oferta e demanda ela tem que considerar a composição de uma e da outra, pelo que, tem que admitir que a oferta está constituída de bens produzidos sobre diferentes períodos e com duração variada, ao tempo em que a demanda se realiza sobre prazos de compra, não podendo ser reduzida a uma demanda unificada instantânea. Noutras palavras, o curto prazo contém uma variedade de prazos que só se revelam quando se explica o prazo do fechamento dos negócios. Assim, o equilíbrio instantâneo é um pseudo-equilíbrio, que deve ser substituído por um equilíbrio real que considera tempo. O paradigma do equilíbrio ocupa um lugar especial na formação da teoria que exige um esclarecimento preliminar. A noção de equilíbrio entra na teoria através da visão macroeconômica, possivelmente a dos Fisiocratas, representando uma relação causal dinâmica entre o que se produz e o modo como o produto se distribui. Observe-se que no Tableau Économique a distribuição compreende a monetária e a dos produtos in natura. Há um princípio de equilíbrio entre lucros e salários que define aquela remuneração mínima do capital que justifica o investimento. Em Ricardo isto fundamentou a hipótese do estado estacionário e com Marx trata-se do equilíbrio instável que caracteriza um sistema progressivamente mais instável, tendencialmente sujeito a crises de superprodução e de desajustes de composição entre a reprodução do capital aplicado e a dos novos investimentos. Trata-se de equilíbrio ao nível do sistema produtivo em seu conjunto e não só de equilíbrio monetário. O foco no equilíbrio

19

É preciso admitir que há uma questão pendente relativa à leitura de Marshall projetada pela economia ortodoxa, que se limita ao aspecto descritivo de análise marginalista e ignora os elementos contraditórios da análise de Marshall, no que ela se refere a situações transitórias e a deslocamentos graduais, especialmente a equilíbrio temporário, trata o mercado como um ambiente de negócios e vê o equilíbrio sempre como uma situação transitória. Uma revisão da obra de Marshall mostra que ele tem maior sensibilidade a mudança que Keynes e que sua opção pela economia apolicada representa uma teoria industrial da produção comparada com a teoria monetária da produção apresentadapor Keynes.

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monetário – central para a corrente keynesiana – é uma indiscutível redução temática frente à proposta dos Clássicos. A noção de equilíbrio descobre a necessidade de um esclarecimento da dimensão tempo como ordem histórica dos acontecimentos. O questionamento do tempo está solidamente instalado no fundamento filosófico das ciências sociais através da pesquisa categorial de Kant e da formação existencial do conhecer em Hegel. Em seus inícios a Economia Política, com Adam Smith, enfrentou os problemas relativos à ligação entre os fundamentos conceituais e o manejo operacional do tempo. O marginalismo construiu uma teoria formalmente sofisticada, alicerçada em estática, em ausência de tempo. Descartou o tempo quando a teoria ainda se pautava pelo paradigma da Física Clássica, mas quando o desenvolvimento do capitalismo obrigava a reconhecer as diferenças entre o tempo inserido nos diversos setores da produção e quando já estavam claras as diferenças entre o previsível e o imprevisível, bem como se definiam novos parâmetros de uniformização da medição de tempo. Será, portanto, inevitável inferir que o progresso formal correspondeu a um retrocesso conceitual da teoria ortodoxa. Isto significou simplesmente que a “grande” teoria econômica simplesmente ignorou o tratamento do tempo dado pela filosofia de Hegel. Ora em Hegel o tempo é o da ordem da criação, que comanda o processo da vida. Para Hegel a ordem do tempo é uma ordem viva, que pertence ao mundo da praxis. O tempo conta pelo que há nele que pode ser imposto pelo passado ao presente e que é o projeto de futuro contido no que está em curso. Esse enquadramento do tempo pode ser a ordem que se projeta do passado ao futuro, ou que pode

ser uma nova ordem que surge e modifica as condições de

continuidade da anterior. A vida acontece em tempo e a ciência da vida social não poderia se separar da filosofia do mundo vivo20. Por isso o tempo social está aderido á práxis e difere do tempo do mundo natural em que não há trabalho. Mas o tempo é essencial na análise de Marx, para quem o sistema capitalista de produção consiste em uma multiplicidade de movimentos com diferentes velocidades e durações. A percepção social do tempo muda em consonância com os modos práticos de uso de tempo para satisfação própria ou para mercantilização. O significado social dos usos do tempo representa o conflito de classes em torno da capacidade do capital de 20

Ver a leitura de Hegel feita por Jacques d´Hondt em seu Hegel filosofo do ser vivente

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controlar o tempo ou de ter que se adaptar a ele. Os diferentes capitais aplicados representam diferentes modos de uso de tempo do processo produtivo, do uso de dinheiro capital e de controle da força de trabalho. O modo operacional da concorrência se concretiza em controle do tempo de produção e as estratégias de resistência dos trabalhadores se definem em termos de defesa de usos de seu tempo não controlado por seus contratos de trabalho. O apogeu do marginalismo se identifica com o imperialismo naquilo em que ele é motivado pelo ideal de uma unificação do sistema de análise econômica para a unificação política do mundo econômico. Simplificando um pouco, pode-se pensar que o marginalismo foi a doutrina econômica do imperialismo europeu, que foi contestada pela esquerda pelo socialismo e pela direita pelo keynesianismo, onde a doutrina econômica do socialismo não ficou restrita ao socialismo real, mas o keynesianismo foi a resposta burguesa da crise do capitalismo. A seguir a corrente neoclássica é a doutrina da supremacia norte-americana, com sua subordinação da esfera do capitalismo e a corrente do desenvolvimento econômico é uma contestação do poderio norte-americano. Logicamente, todos esses sistemas tiveram seus desdobramentos e contra-correntes e o marginalismo europeu teve influência decisiva na formação das correntes neoclássicas norte-americanas, assim como uns e outros exerceram – e exercem – uma influência profunda

no

pensamento

econômico

que

aparece

nas

nações

emergentes,

principalmente, através da cooptação de suas elites. A transformação de uma pluralidade de sistemas de produção mistos em sistemas unificados pelo critério de lucro individual do capital tornou necessária uma teoria que explicasse a continuidade do valor socialmente criado, com o que impôs o objetivo de contar com uma teoria do valor e do capital. Este seria o alicerce de toda uma construção teórica que deveria acompanhar as transformações do sistema produtivo, em sua extensão e em sua complexidade, desde as teorias do comércio às da produção industrial avançada. Para cumprir seu papel, a teoria teria que registrar as transformações do sistema produtivo, isto é, teria que manter sua representatividade frente à realidade social da economia. Precisamente, aí se encontra um problema fundamental da teoria, que é o de definir sua base histórica de referência. Nesse

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contexto situa-se a proposta de Maurice Dobb21 de integrar, ou de não separar, a teoria do valor e a da distribuição, no que converge com a revisão da distribuição feita por John Maurice Clark22. De fato, toda vez que se transcendem os limites do curto prazo, a distribuição é peça fundamental na explicação da dinâmica, tal como aparece na passagem da reprodução simples para a reprodução ampliada em Marx. Se os modos de crescimento e as formas de organização variam no tempo e no espaço a teoria terá que registrar quaisquer variações na relação entre a formalização teórica e a capacidade explicativa da teoria. No relativo à teoria do capital propriamente dita, vê-se que sobre as duas grandes linhas de uma abordagem histórica (Marx) e de outra positivista ou neo-kantiana?

23

(Böhm-

Bawerk) há um desenvolvimento conceitual que segue linhas cada vez menos intercomunicadas,

que

enfrentam

problemas

semelhantes

colocados

pelo

desenvolvimento do sistema de produção, mas que divergem, essencialmente, no relativo a três pontos, que são: (a) a heterogeneidade do capital ou a homogeneidade de sua representação financeira; (b) a endogeneidade da moeda ou sua função como reserva de valor; e (c) o reconhecimento da existência de conflitos de interesse, principalmente representados por conflitos de classe, mas ligados ao problema essencial de controle da força de trabalho por parte dos capitalistas. A trajetória do debate sobre capital é muito extensa mas compreende discussões superficiais junto com questionamentos profundos e com variada capacidade de influir no rumo da teoria. No campo böhm-bawerkiano destaca-se Lachmann com seu foco em aspectos estruturais. No campo keynesiano a maior contribuição sem dúvida é de Joan Robinson, que assume a tarefa improfícua de estudar a acumulação num ambiente de equilíbrio a curto prazo

24

, apesar de investir na análise da heterogeneidade. No campo marxista, as

principais contribuições são as de Rosa Luxemburgo e de Ernest Mandel, mas ficaram aquém da proposta teórica de Marx, que envolve a relação entre a esfera econômica e a política e que contempla uma transformaçã0o imanente do sistema produtivo. Tentativas de mapeamento deste debate, como a de Harcourt e Laing (1967) ficam auto 21

Maurice Dobb, Theories of value and distribution J.M.Clark, Distribuição, 2323 É preciso ressaltar a diferença de origem entre o empirismo inglês de Locke a Marshall e o positivismo austríaco, que tem conseqüências decisivas no tratamento do relativo a racionalidade. A pretensão de Milton Friedmann de representar a linha de trabalho de Böhm-Bawerk desconhece a raiz filosófica dessa opção de método, em sua raiz kantiana. 24 Joan Robinson, The production function and the theory of capital,(1953-1954) 22

39


limitadas ao diálogo entre ingleses e norte-americanos, que não sai do “círculo de giz caucasiano” da perspectiva burguesa da economia. Uma observação preliminar é que a teoria mais avançada do capital é mesmo a do próprio Marx. Ao reincorporar a dimensão tempo situada em história, torna-se inevitável considerar os desdobramentos da teoria do capital frente aos problemas representados por alterações de composição do capital. Logicamente, esses problemas são aprofundados pelos efeitos cumulativos do acelerador da despesa, que funciona como transmissor de renovação tecnológica. A teoria do capital não pode, portanto, se omitir de considerar as diferenças de condições estruturais de capacidade para se apropriar de novas tecnologias. Entendo que o principal ponto fraco da macroeconomia keynesiana consiste em presumir que o progresso técnico seja um movimento que se generaliza de modo homogêneo, ou que se explica por razoes exclusivamente técnicas e da rentabilidade de cada técnica e não do conjunto alterado pela entrada e saída de técnicas. A invocação de Joan Robinson de uma função do progresso técnico na determinação da acumulação de capital depende de uma linearidade na renovação de técnicas que não é compatível com a pluralização inerente ao desenvolvimento da ciência. Um ajuste na teoria econômica da tecnologia exige hoje que se substitua o tratamento genérico do progresso técnico por outro historicamente qualificado. A urgência da temática estabelece as prioridades de método. Este é um ponto que supera os aspectos imediatos da disputa entre a rigidez de uma abordagem normativa e a fluidez de uma análise histórica e que se apresenta como o problema de método. Esses elementos apontam a uma problemática básica de método que é respondida de diversos modos pelas várias correntes, mas onde sempre há opções acerca de como organizar a análise econômica. A teoria teve que optar entre condições de análise instantânea e de curto prazo, generalizando para o curto prazo condições que só se aplicam plenamente no ambiente atemporal da análise instantânea, tais como a suposição de custos fixos invariantes e a de falta de diferença entre salários nominais e salários reais. O desafio da teoria seria tanto maior quanto fosse sua aspiração a refletir a totalidade do sistema produtivo, com sua estruturação e seu modo de mudar. Ao revisar o movimento geral da teoria percebem-se alguns focos de atenção e alguns fios condutores do raciocínio teórico, que permitem pensar em termos de uma progressão da teoria, cuja cobertura temática e cuja densidade conceitual variam, mas que, em momento algum, desconhece

40


o caminho já percorrido. Os espaços de individualidade, os interesses coletivos aparecem na propriedade privada, na formação do valor da troca, no controle da força de trabalho e no capital acumulado. Na verdade, significa que a formalização econômica surge de uma percepção da totalidade social e que, ao ser acionada pela análise, dá lugar a outra percepção da articulação do plano econômico com o institucional. Ao avaliar a explicação econômica Por isto, será preciso começar a introduzir neste raciocínio uma visão crítica da macroeconomia de hoje, no que ela representa uma ruptura dessa visão de totalidade e passou a depender de simplificações que não se sustentam na prática. Apresento de modo preliminar duas críticas à suposta igualdade entre poupança e investimento, onde a primeira surge das incertezas da realização do não consumo em dinheiro e deste em capital; e a segunda crítica surge da pluralidade de períodos de poupança e dos tempos de realização do investimento. Ambas, portanto, são inspiradas por uma condução realista do tempo na visão do processo de produção, como particularização da situação do tempo na vida social em geral. Os problemas de divisibilidade do tempo, que já tinham sido colocados pela análise marginalista, reaparecem por conta do escalonamento dos investimentos segundo seu momento inicial e seu tempo de maturação. O tempo passa a ser uma referência que combina a variável monetária – a taxa de juros – com a produção industrial. Este problema foi enfrentado pela análise marginalista numa perspectiva consistentemente simplificadora, que caracterizou as propostas de Hicks e Hansen bem como as de Hecksher e Olin para a análise internacional.

Em seu epicentro britânico a teoria moveu-se numa perspectiva

epistemológica empirista que fez caso omisso de quaisquer diferenças de classe, portanto, sem considerar rupturas de comportamento de consumo, nem de opções de investimento. A mais notória exceção no campo da economia ortodoxa é Pigou, que entretanto dá uma leitura conservadora ao tema da renda dos trabalhadores, propondo que as forças do mercado levam a pleno emprego em longo prazo. É o contrário da teoria da exploração, que vê uma persistente compressão da renda dos trabalhadores, atingida pelo poder do capital de conduzir a extração de mais valia através do controle da mais valia relativa. A identificação da questão social com a disputa salarial é uma grande simplificação que desconhece as limitações relativas a ingresso no mercado de trabalho e a condições de

41


entrada e de permanência no mercado de trabalho

25

. O salário nominal é apenas uma

sombra do salário real, que deve ser julgado pela coleção específica de bens e serviços que ele pode comprar e não como um montante abstrato. Ora, tal elenco de bens e serviços à disposição dos detentores de salários muda, segundo o estilo de transformação da economia nacional a que eles pertencem e segundo os preços relativos das mercadorias. Daí, a leitura do problema social dos salários configura dois campos temáticos que se tornaram essenciais na superação da teoria marginalista, respectivamente, o eixo salários – distribuição da renda e o eixo tecnologia-formação de capital. O grande problema que se apresentou a seguir foi que o questionamento keynesiano do marginalismo ortodoxo – denominado por Keynes de clássico – foi feito em termos de uma explicação monetária da produção, isto é, sobre a suposição de que os movimentos da esfera monetária são contínuos com os da produção industrial, pelo que a determinabilidade da esfera financeira equivale a uma determinação da produção. A suposição de que a moeda é apenas “um ativo financeiro usado como meio de troca”26 descarta que o valor social da moeda esteja associado ao papel dela na produção 27

, tanto como reserva de valor, como viabilizadora da diversidade de matérias primas e

de produtos como por sua capacidade de representar o capital. Ao excluir estas qualificações a teoria monetária da produção – tanto a neoclássica como a keynesiana se coloca exclusivamente como uma teoria da representação dos interesses do capital através de sua forma mais depurada que é a teoria da esfera financeira. Dados estes argumentos, torna-se inevitável considerar os desdobramentos da teoria do capital frente aos movimentos de alteração de composição do capital que surgem de sua reprodução. Logicamente, esses problemas são diferentes segundo o estilo de desenvolvimento da economia e segundo o acelerador das despesas inerentes a esse desenvolvimento, que funciona como transmissor da renovação tecnológica. Não se trata somente de passar da macroeconomia simples de valores agregados para os problemas de coerência interna do sistema – que seria o território da análise de Leontief 25

A comparação da renda atual com a renda total das pessoas considerando sua expectativa de duração de sua vida profissional. A expectativa de duração da vida profissional tem uma conotação adicional como indicativo da qualidade de vida que se tem durante os anos de vida ativa. 26 Fernando Holanda Barbosa, O valor da moeda e a teoria dos preços dos ativos, 2005. 27 Karl Marx, Grundrisse, vol I, 1984. O tratamento da moeda em Marx é parte essencial da teoria do capital e encontra-se mergulhada na relação entre a reprodução simples e a reprodução ampliada do capital. Aparece em forma conceitual preliminar nos Manuscritos econômicos e filosóficos de 1844, reaparece como um discurso detalhado nos Grundrisse e tem seu pleno papel no movimento do sistema capitalista em O Capital.

42


– senão de ligar as alterações ao rumo da composição do capital, numa combinação de fatores em que a renovação tecnológica aparece como uma variável dependente das expectativas de demanda.

A teoria do capital não pode, portanto, se omitir de

considerar as diferenças de condições estruturais de capacidade para se apropriar de novas tecnologias. Entendo que o principal ponto fraco da macroeconomia keynesiana consiste em presumir que o progresso técnico seja um movimento que se generaliza de modo homogêneo, que se explica apenas por motivos exclusivamente técnicos e da rentabilidade de cada nova técnica e não do conjunto constantemente alterado pela entrada e saída de técnicas. A invocação de Joan Robinson de uma função do progresso técnico na determinação da acumulação de capital depende de uma linearidade da substituição de técnicas que não se encontra na realidade do mundo da economia.

O conflito ideológico sob a neutralidade Os economistas ortodoxos preocuparam-se muito com elaborações elegantes de problemas secundários, problemas estes que desviam a atenção de seus discípulos das duras realidades do mundo moderno e o desenvolvimento da argumentação abstrata foi muito além de qualquer possibilidade de verificação empírica. Joan Robinson

O debate entre as correntes keynesianas e as neoclássicas ocupou as atenções da economia oficial, onde a expressão Economia Política passou a acolher trabalhos marginalistas e a reunir subcorrentes de pensamento mecanicista que continua aderido ao formalismo da chamada “síntese neoclássica pós keynesiana”. Esta, no essencial, continua andando em círculos sobre as idéias de Walras – Pareto – Marshall, modernizada pela linguagem de Samuelson, Solow e outros. O aparelho neoclássico está constituído de artefatos de análise que se agregam mediante procedimentos de lógica

proposicional,

com

o

pressuposto

que

essa

agregação

não

cria

incompatibilidades. A neutralidade axiológica, importada da sociologia de Weber, tem um lugar essencial nesse conjunto. A referência de neutralidade divide positivistas e historicistas e é um fundamento essencial da sociologia e da economia positivista. Em seu desenvolvimento, a teoria

43


marginalista em economia, que veio a constituir o núcleo central da ortodoxia econômica, adotou uma postura epistemológica que antecedeu ou que aderiu ao modo positivista de teoria. O problema de tratamento da neutralidade, isto é, do papel da ideologia na teoria, apresenta-se em economia de modo diferente ao de outras ciências sociais porque envolve uma escolha de método que condiciona o tipo de pesquisa e de resposta que se pode obter. A produção de teoria é um trabalho que é realizado principalmente nos meios acadêmicos, carregando as idiossincrasias dos círculos universitários com suas ligações entre universidades e com ligações com instituições patronais ou com partidos políticos e sindicatos. Carrega as identificações e os compromissos de classe e culturais com que se dedicam ao estudo da teoria e que raramente se expõe. A construção de um aparelho teórico reflete sempre referências de interesses que se projetam em objetivos que não podem ser ignorados. Assim, não se trata apenas de explicitar uma tendenciosidade como colocou Myrdal (1968), senão de trabalhar sobre essa fundamentação de interesses, para extrair o significado da teoria. Não há porque supor que todos os envolvidos na produção de pesquisas ou na de textos teóricos obedecem a interesses econômicos e políticos imediatos, mas tampouco há como supor que o trabalho teórico esteja imune a preceitos e preferências estabelecidos no corte civilizacional em que se situa a teoria. A teoria dos verdadeiros Clássicos 28 foi produzida por pensadores independentes, enquanto a teoria dos marginalistas foi quase toda construída por professores que representaram um pensamento de elites comprometidas com a sustentação do sistema de poder liderado pelo Império Britânico e corroborado pela ascensão dos Estados Unidos. Com seu grande contraponto austríaco, por sua vez representando a ideologia imperial da Europa central, o sistema de pensamento marginalista caminhou na direção de uma integração progressiva, conduzida pelas contribuições de Wicksell e Walras e com a síntese de Marshall. A dissidência de Myrdal, marcada pelo Equilíbrio monetário(1932) precedeu criticamente a ruptura analítica de Keynes e demarcou uma linha de pensamento que restaura a relação entre o modo de produzir e a ordem do tempo, mas o sistema caminhou para uma nova ortodoxia, que seria uma recomposição neo-marginalista, indevidamente auto-denominada de neo-clássica, que veio à luz através da combinação progressiva dos trabalhos de Hicks, Hansen, Samuelson e Solow. Os argumentos que levaram Hicks a 28

Refiro-me aos economistas de Adam Smith a Marx que procuraram uma lei geral explicativa do funcionamento do sistema de produção, descartando como imprópria a designação dada por Keynes e Hicks que usam essa expressão para se referirem aos autores da teoria marginalista especialmente a Marshall.

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considerar que trabalhava numa perspectiva de retorno aos clássicos significava simplesmente que ele aceitava a designação de Keynes, que considerava Marshall um clássico e que em momento algum questionou a relação entre a estruturação da teoria e a do sistema produtivo. A emergência de uma consciência social ativa

29

relativa aos problemas sociais

enfeixados sob a designação geral de desenvolvimento revela o contexto de conflitos que permeia o mundo social. O conflito entre racionalidade e irracionalidade precisa ser qualificado, distinguindo-se a racionalidade superficial ou aparente da essencial ou substantiva, onde as condições efetivas de racionalidade são antecedentes necessários que ligam os movimentos de infra-estrutura com os de superestrutura. Volta-se ao questionamento de Myrdal sobre sentido de finalidade, contrastando a irracionalidade da acumulação com a emancipação da condição humana. Conflitos e ajustes acontecem no contexto de uma totalidade social que se transforma continuamente onde, portanto, muda o modo de participar dos agentes envolvidos. Se a teoria econômica trabalha com pressupostos de comportamento tem que situar um modo de agir na trajetória de formação do mundo social, reconhecer seu estatuto histórico e incorporar as mudanças como partes integrantes das referências que ligam os movimento s de infra-estrutura com os de superestrutura.

A opção do sentido de finalidade responde pela

fundamentação ideológica da teoria. A quais interesses ela serve, de modo deliberado ou por adesão passiva? As contribuições à teoria integram correntes de pensamento ou são manifestações isoladas que passam a refletir indagações já representativas de interesses socialmente significativos. Em todo caso correspondem a pontos de vista historicamente situados. Assim, numa revisão secular dos encaminhamentos da teoria econômica podese argumentar que o objetivo de encontrar leis gerais explicativas do funcionamento do mundo social corresponde a um determinado momento da constituição de uma ordem mundial que combinou o modo de organização dos impérios coloniais modernos com a produção industrial, quando os interesses dos grandes capitais se alinharam com os projetos de poder político da burguesia européia ascendente. Naquelas condições, a racionalidade da ordem no plano nacional passou a ter que coincidir com a ordem 29

Distingo consciência social ativa como aquela que se identifica com modos de agir, isto é, que não se fecha na esfera da subjetividade. Seu contrário é uma consciência social passiva, que representa a adaptação do agir social a condições reinantes de alienação, que podem ser determinadas por uma subalternização imposta pela colonização ou por uma subalternização consentida ou consensual, realizada pelas elites das nações dominadas. .

45


internacional, onde a supremacia militar das nações industriais não era questionada. O colonialismo patrocinado pelo imperialismo (Hobsbawn, 1987) foi uma contradição aparente da expansão do trabalho assalariado, que, entretanto, se explica pelo que ele viabilizou de incorporação de trabalho subalternizado, tanto de trabalho não qualificado como de trabalho qualificado, ao trabalho diretamente realizado no espaço social da produção industrial. Assim, a racionalidade da ordem do sistema torna-se um paradigma da síntese teórica. Entretanto, distinguiremos dois planos de racionalidade, que não necessariamente são compatíveis um com o outro. O primeiro é o da racionalidade de uma ordem mundial assentada sobre desigualdades e processos diferenciadores, enquanto o segundo é o da racionalidade da ordem dos espaços econômicos subordinados. As duas interdependem, mas a condição de dominação fez com que os interesses organizados nos centros do poder mundial tivessem a iniciativa de gerar referências de ordem, que passaram aos demais países como se fossem igualmente válidas para eles. As contradições sistêmicas da ordem burguesa tardaram em ser reconhecidas, mas tornaram-se os fundamentos de uma teoria burguesa do desenvolvimento, que continuou aceitando pressupostos inadequados para refletir os problemas dessas outras nações, uma das quais, incidentalmente, é a nossa. Um exemplo clamoroso dessa situação é a suposição de escassez de poupança, que foi aceita pela quase totalidade dos economistas latino-americanos que se ocuparam dos temas do desenvolvimento econômico

30

, mas

que desconhece os fatos de que as riquezas geradas pelos países periféricos têm sido transferidas sistematicamente para os países dotados de sistemas industriais e financeiros avançados. As revoluções tecnológicas que se concentraram no último quarto do século XX puseram em evidência a improcedência desses pressupostos, começando pelas simplificações da inter-relação entre a esfera real e a financeira, prosseguindo com o relativo à relação entre produção e distribuição e chegando ao papel do trabalho na sustentação da reprodução do capital.

A crítica dos pressupostos é um passo

fundamental da teoria, em que no século XX tiveram um papel especial figuras como 30

É um ponto no qual convergiram economistas com posições tão diferentes como Celso Furtado, Roberto Campos, Raul Prebisch e muitos outros. Será preciso distinguir entre um problema macroeconômico genérico de escassez de recursos para investimento no sistema produtivo nacional e a geração de riqueza do país em seu conjunto.

46


Joan Robinson, Roy Harrod e Gunnar Myrdal, cujas contribuições, no entanto, não distinguem as mudanças nas condições de validez das afirmações téoricas

31

.

O

caminho da renovação da teoria econômica continua sendo o de uma volta constante aos seus fundamentos, que é onde se coloca todo o relativo às premissas com que se trabalha. A ortodoxia reconstruída depois da rebelião keynesiana voltou a pressupostos de racionalidade não criticada, que representam as condições de um cálculo econômico compatível com a sustentação da ordem econômica da segunda revolução industrial. Os pressupostos que justificaram a hipótese de concorrência perfeita já tinham se esvaído sob os efeitos da Primeira Guerra Mundial e da concentração do capital industrial, assim como não se poderia usar uma teoria monetária restrita à remuneração do capital aplicado. Os novos grandes investimentos em infra-estrutura, necessários para a renovação da tecnologia e para adaptar a escala de produção, significavam adiantamentos de capital que só poderiam ser realizados com o mercado de títulos. São os novos modos de uso de capital que determinam a mudança da proposta de desenvolvimento da teoria, assim como que impõem os argumentos da dissidência. Em 1920 não havia mais condições históricas objetivas para uma teoria que se obstinava em raciocinar em termos de concorrência perfeita e continuava presa a uma análise estática. O próprio projeto de uma teoria monetária da produção era contraditório com as transformações da economia monetária e financeira. As rachaduras do edifício apareciam antes que terminasse sua construção.

Os alicerces da teoria O ritmo do processo repousa sobre relações funcionais das estruturas econômicas formando uma totalidade unificada, mas na realidade histórica concreta o tempo possui duas direções: uma ordem sucessiva e uma ordem simultânea Maurice Godelier

O ponto de partida da opção teórica marginalista é a noção de escassez relativa, que permite reduzir os valores de todas as mercadorias a uma escala unificada, como se todas elas pudessem ser usadas em um mesmo sistema de tecnologias. A escassez relativa ignora o fato de que o sistema sempre dependeu de mercadorias obtidas da 31

A principal contribuição à critica dos fundamentos da teoria continua sendo a de Marx

47


mineração, onde prevalece a escassez absoluta e o sistema como um todo dependeu de água, cuja ausência representa a maior escassez de todas. A escassez de bens específicos de fato varia ao longo do tempo segundo a reprodução do capital se realiza com tecnologias e escalas de produção que são determinadas pelas necessidades de reprodução do capital. A originalidade da teoria é que seus fundamentos devem se renovar continuamente; e que é justamente esta renovação de alicerces que alimenta o dinamismo na ponta da teoria. A hipótese de escassez relativa sustenta a da utilidade margina, que por sua vez permite pensar em ambientes de mercado efetivamente livres. A escassez, ou mais precisamente a raridade, é socialmente produzida, constituindo uma falta social que não pode ser reduzida à escassez de recursos físicos. Por isto mesmo há uma circularidade em falar de escassez como de um fenômeno exógeno à formação do capital. Se vamos aos fundamentos práticos da teoria teremos que isolar as hipóteses relativas ao processo de produção das que reportam a racionalidade da teoria. Como a percepção do processo se encontra no circuito de relações entre a produção social de escassez e a produção das mercadorias que atendem a essa escassez, torna-se inevitável pensar que o processo do capital na realidade consiste em criar e administrar escassez e não em atendê-la, pelo que o consumo socialmente organizado é o que é planejado para acionar esta escassez. A retomada da questão técnica da escassez como uma questão social desencadeia uma série de compromissos da análise com o reconhecimento do real. À parte dos aspectos éticos, há uma questão material relativa a como a sociedade do capital cria essa escassez e a como ela é administrada. O controle da escassez é parte da racionalidade do capital privado, cuja referência individual impede que se veja o problema coletivo. A escassez se forma pela lógica individual do lucro, mas se converte em problema coletivo no que constitui uma condição do consumo socialmente necessário 32. A noção de utilidade depende da de escassez. A utilidade dos diversos bens e serviços surge de como eles atendem a esse consumo socialmente necessário. O erro de composição do marginalismo, introduzido por Jevons, consistiu em supor condições individuais de utilidade que não dependem de restrições coletivas de consumo. Obviamente, trata-se de uma simplificação que passa por alto as condições sociais de 32

Uso aqui o conceito de socialmente necessário para designar aquele consumo que habilita as pessoas como trabalhadores, portanto, onde se incluem despesas com saúde e educação.

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controle da produção que produzem escassez. Ao reconhecer que o programa de produção do capital envolve um compromisso com a composição dos investimentos, que é contraditória com a hipótese de decisões de aplicação de recursos guiadas apenas por dados relativos a novos investimentos, revela-se insustentável pensar que a função de investimento no sistema de produção corresponda apenas a critérios bancários. O progresso da teoria ficou por conta do potencial da teoria marginalista para chegar a explicações satisfatórias e não só à confecção de modelos elegantes. A teoria marginalista não conseguia realizar seus objetivos como e enquanto teoria monetária, porque não tinha logicamente como separar seu objetivo de vir a ser uma teoria monetária da produção de sua necessidade mais imediata de explicar o papel da moeda na realização da produção. Se Keynes rompe com essa tradição mas trata a moeda apenas como mercadoria bancária e não como ingrediente da produção industrial, deixa sem resposta a questão levantada por Marx de uma comparação entre os custos da imobilização do capital frente aos retornos, certos e incertos, dos investimentos. A questão subjacente é que a economia monetária tem um fundamento real que regula as condições de rentabilidade do dinheiro. O lucro que se verifica na operação do capital fictício depende de uma combinação de fatores de valorização e desvalorização de ativos em que intervêm fatores de velocidade de rotação e de regulamentação institucional que são parte da totalidade do sistema. A substância teórica do problema é a visão histórica do mercado. A economia ortodoxa, desde Marshall a Labini, fala de formas de mercado e não de processos formadores de mercado. Por isso, a substituição da concorrência perfeita pelo oligopólio é uma manobra necessária mas incompleta, porque se refere aos fatos do oligopólio e não ao processo que modifica a estruturação do mercado e cria diferentes tipos de oligopólio, assim como não resolve a indefinição entre a formação de oligopólios e de monopólios. A substância do problema são as tendências de ampliação ou de redução do número de produtores e de diferenciação de produtos. Nos grandes setores da economia mundial, tais como siderúrgica, metalúrgica avançada automotores, aviões, há uma clara concentração do número de produtores e uma diversificação superficial que dissimula o fato de que na maioria dos casos são simples maquiagem de produtos ditada por marketing e não por necessidades de consumo. Será, portanto, preciso partir de uma

49


teoria da formação do mercado como ponto de partida de uma revisão das condições de concorrência no alto capitalismo e no capitalismo em suas versões tardias. A formação do mercado acontece mediante uma composição das compras intermediárias e de compras finais, onde as primeiras se identificam principalmente com as de empresas e as segundas com as de consumidores. À medida que a produção de bens finais se torna mais indireta, portanto, que encobre um aumento progressivamente maior das compras de empresas que de consumidores finais, as vendas das empresas dependem proporcionalmente mais das transações entre empresas, que se realizam sobre expectativas de lucros e de custos de investimentos. Isto importa em considerar que se está diante de uma pluralidade de transações, que não pode ser descartada em função da elegância de uma simplificação macroeconômica. São, portanto, dois aspectos mutuamente complementares a serem levados em conta. Os sistemas de interesses incorporados na relação geral de classes e as relações localizadas de interesses que se incorporam nesse conjunto, confirmando ou alterando os perfis de racionalidade que conduzem o desempenho objetivo do consumo e não seus fundamentos subjetivos tais como propensão a consumir. Estas peculiaridades do consumo teriam que ser revisadas como modo de aproximação da diferença entre a esfera de funcionamento dos circuitos do velho capitalismo avançado, do novo capitalismo avançado e das variedades do que se tem denominado de capitalismo tardio. Na teoria do capitalismo central da acumulação mundial, que é, também, o avançado, prevaleceu a suposição de que o consumo pode se expandir indefinidamente, com a única restrição de renda. A teoria do subdesenvolvimento pôs por terra esse pressuposto, ao mostrar o significado do controle dos recursos e do controle da comercialização na formação da acumulação do capital.

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3. O MOVIMENTO INTERNO: CONCENTRAÇÃO DO CAPITAL E MOBILIDADE DO TRABALHO NO SUBDESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA

O processo em seus começos A teoria econômica sempre oscilou entre o objetivo de explicar o melhor possível o que aconteceu e o de explorar alternativas do que pode ser feito pelos participantes da vida social. A teoria desenvolvida na tradição clássica examinou as condições para a realização dos capitais.

Retoma-se aqui um esforço empreendido na década de 1970, quando tivemos o benefício de comentários de Raul Prebisch e de Aníbal Pinto Santa Cruz. Aquela reflexão foi interrompida, tal como diversas outras, direta ou indiretamente, ligadas ao grande projeto empreendido por Prebisch em 1970, de realizar um trabalho coletivo de grande porte,

que substituísse a teoria da relação centro-periferia apresentado no

Estudo da América Latina de 1949. O debate sobre as condições históricas do intercâmbio desigual produzira trabalhos defensores de posições que não podiam ser ignoradas, como as de Amin 33, Emmanuel

34

e Palloix35 . Esse esforço, revelador das

insatisfações acumuladas com o aumento do conhecimento da realidade social do continente, foi atropelado pelas circunstâncias políticas explicitas e por outras veladas da vaga de golpes de Estado da época.36 Estava clara a necessidade de romper com os limites internos de uma teoria burguesa do desenvolvimento e de remontar os alicerces de uma explicação histórica do processo do subdesenvolvimento. Começava então um período de grande turbulência política, que foi seguido, quinze anos depois, por um período de hegemonização da interpretação neoliberal da economia e da afirmação de 33

Samir Amin, La acumulación mundial del capital, México, Siglo XXI, 1972 Arghiri Emmanuel, El intercambio desigual, México, Siglo XXI, 35 Christian Palloix, A economía mundial capitalista, 2 vols.,Lisboa, Estampa, 1972. 36 Esse trabalho, comandado por Raul Prebisch e desenvolvido no ambiente do Instituto Latino-­‐ americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES) durante o primeiro semestre de 1970, contou com uma numerosa equipe, pretendeu combinar uma revisão dos principais paradigmas teóricos do desenvolvimento com um exame da experiência dos países latino-­‐americanos. Destacava-­‐se a necessidade de aprofundar a fundamentação histórica dos estudos de desenvolvimento e de realizar um esforço de incorporar criticamente as contribuições de outros grupos e autores de diversas partes do mundo, assim como de avaliar criticamente as políticas de desenvolvimento. 34

51


um discurso unificado e ideologicamente subalternizado da análise econômica. Esta linha de trabalho se retoma no ponto onde foi interrompida, isto é, no questionamento das diferenças entre o movimento mundial de acumulação de capital e as condições restritas de acumulação em cada país, que se refletem no modo de controle da realização de trabalho. Entende-se, desde então, que as sociedades latino-americanas enfrentam pressões de subdesenvolvimento e que o desenvolvimento aqui é a superação e reversão desses processos. Tornou-se logicamente necessário trabalhar em uma teoria da acumulação restrita de capital, que estaria determinada pela duração de determinados padrões de acumulação de capital, que seguem certos percursos da formação de capital, com suas contradições internas e seus bloqueios, operando com certos conjuntos de tecnologias básicas e perfis da qualificação dos trabalhadores. A acumulação de capital não acontece in vitro, senão nas condições praxeológicas da vida social e acontece em tempo e espaços determinados. Se o capital é esse Proteu de mil caras, as pessoas que vivem os processos do capital são pessoas concretas, que participam de algumas de suas peripécias, mas não de todas e que, freqüentemente, são descartadas pelos movimentos destruidores de capital, de trabalhadores e de recursos físicos. O capital

contrata

aqueles trabalhadores que lhe são necessários em determinados momentos e em certos lugares. Os trabalhadores podem ser necessários segundo sua qualificação, o momento em que seu trabalho é requerido e a duração do tempo em que são requeridos. As circunstâncias das políticas econômicas respondem por sua pertinência, assim como as condições em que funciona o modo de produção capitalista37 Há, portanto, uma questão fundamental relativa à qualificação dos trabalhadores. A rigor todos trabalhadores têm alguma qualificação, o que faz com que muitas vezes não sejam plenamente substituíveis uns pelos outros. Algumas dessas qualificações passam despercebidas, tal como acontece com as dos camponeses, cujos conhecimentos localmente especializados geralmente são descartados como inferiores. A visão seletiva e discriminativa das qualificações – nunca de uma única qualificação universalmente comparável – é um poderoso mecanismo de controle da força de trabalho. Mas, a 37

Eduardo Fioravanti, El capital monopolista internacional, Barcelona, Península, 1975.Uma das mais completas análises da monopolização do capital, que trabalha com a interação entre Estado e empresa na era da supremacía norte-­‐americana.

52


qualificação das pessoas para trabalhar é transitória e corresponde a situações específicas de composição do capital. Os requisitos de qualificação de trabalhadores evoluem de modo independente das suas necessidades de renda. De fato, não há relação alguma entre os requisitos de trabalho para reprodução do capital e as necessidades de renda dos trabalhadores. Durante os processos de urbanização e de industrialização dependente encontra-se que os diversos grupos de trabalhadores realizam esforços ingentes para se qualificarem e terem acesso a elevações de renda que somente em pequena parte são recompensados. No essencial, os custos sociais da qualificação da força de trabalho são transferidos pelo sistema de poder ao Estado e aos trabalhadores, onde as pressões sobre as finanças públicas para cobrir os setores de energia e transportes levam a transferir a maior parte dos custos da educação aos próprios trabalhadores. Este tem sido um dos principais mecanismos de reprodução da desigualdade de renda, que assume sucessivas e diferentes formas, mas drena uma parte importante da taxa de salário para financiar o sistema educativo. A combinação de movimentos irregulares de valorização e de desvalorização se materializa na relação entre os sistemas de serviços sociais de utilidade pública, que passaremos a chamar de capital indireto, e a capacidade direta de produção, que acontece no contexto do movi mento geral de acumulação de capital.. Essa característica faz com que os reajustes da capacidade de produção sejam irregulares, no relativo ao grande e ao pequeno capital, levando os sistemas produtivos a mudarem sempre de composição. As posições relativas dos diversos capitais são favorecidas ou dificultadas segundo sua capacidade para captar renda através de contratos de infra-estrutura e através dos usos do sistema de infra-estrutura. Estes dados devem ser avaliados na presunção de que as nações desejam se desenvolver e que os Estados nacionais têm uma responsabilidade nesse terreno. É preciso reconhecer que isso nem sempre tem sido verdade e que a vontade de se desenvolver emana sempre de uma ideologia de classe, refletida de algum modo no discurso oficial. Sem dúvida há uma luta em torno da decisão de desenvolver, onde confrontam a ideologia nacional do desenvolvimento e os interesses internacionais do capital. É preciso lembrar que as políticas de auto contenção, sob diversos nomes, foram empreendidas em países latino-americanos muito antes do Consenso de Washington, tal como aconteceu com as políticas contracionistas e desestatizantes conduzidas pelos

53


ministros Aleman e Alsogaray na Argentina, Simonsen e Nóbrega no Brasil, Marshall no Chile e Ortiz Mena, Lopez Portillo e Gortari no México, para só citar alguns. Uma retrospectiva das décadas de 70 e 80 mostra um encurtamento claro dos objetivos de política econômica, quando se tratou de financiamento público e crescimento tolerado. A linguagem oficializada de trocar as políticas de substituição de importações por estímulo a exportações – que ignorava os efeitos indiretos na composição das exportações, além de bloquear a renovação tecnológica da indústria – de fato montava um estilo de expansão econômica ajustada ã concentração do capital. Longe, portanto, de pretender explicar a guinada das economias latino-americanas rumo à desindustrialização e à reprimarização, é preciso situar o contexto de interesses que prevaleceu na montagem das políticas econômicas. Os planos econômicos tornaram-se cada vez menos de desenvolvimento e os ministérios de planejamento deixaram de formular propostas de desenvolvimento e foram reduzidos à elaboração e ao controle dos orçamentos. É sintomático que em todos esses países os ministérios da fazenda tornaram-se mais poderosos que os ministérios de planejamento. Na longa história da luta pelo desenvolvimento, ou para compreender e

superar o

subdesenvolvimento – na América Latina há diversas vertentes de análise, que, em seu conjunto, acentuam a fratura básica entre as análises históricas de processos que reproduzem a subordinação do continente, ou que contribuem para sua emancipação e as análises descritivas de situações de produtividade, de desigualdade, ou mesmo apenas de custos. Não é um processo linear, é oscilatório e está sujeito aos efeitos de irreversibilidade nas perdas dos sistemas de recursos físicos e na perda de compatibilidade entre os equipamentos e a competência para usá-los, Os progressos no desenvolvimento estão sujeitos a retrocessos em ciclos negativos e as condições ambiente em que os sistemas se recuperam nunca são as mesmas, tal como mostrou Haberler em um clássico da análise dos ciclos

38

. Na segunda metade do século XX a

contenda com o subdesenvolvimento ficou às vezes de pé ou de cabeça para baixo e desenvolvimento voltou a ser o desenvolvimento dos interesses do capitalismo a la Schumpeter, ou veio a ser a busca de negócios, na linguagem palaciana dos governos mais recentes da mediocracia latino-americana. A ascensão dos setores de rendas

38

Gottfired Haberler, Prosperidad y depresión, México, Fondo de Cultura Económica, 1956.

54


médias na América Latina, objeto de análise comparativa de Johnson

39

, representava

novos âmbitos de socialização do poder, mas ao mesmo tempo novas aspirações de enriquecimento individual e de subalternidade, interna e externa. Nas diversas variantes de uma teoria social burguesa o significado social do desenvolvimento ficou restrito a questões terminais de distribuição da renda, que jamais penetram nos problemas mais profundos de concentração do capital – determinam a referida distribuição da renda - portanto, dando lugar a uma brecha entre a análise conjuntural da distribuição e a análise estrutural da concentração da formação de capital.

Daí, que a expressão social, portanto,

ideológica e política, do

desenvolvimento da economia ficou reduzida ao que se passou a denominar de o social, que nada mais é que o conjunto das despesas mitigadoras da desigualdade de distribuição da renda, as quais, obviamente, se deixam de questionar. Isso, na prática significa que a teoria do desenvolvimento fica apenas como uma teoria da expansão dos sistemas produtivos, sem jamais penetrar nas relações de causalidade que permitem ou impedem a continuidade desse processo, menos ainda na inter-relação entre crescimento e distribuição de renda. Faltou incluir outros ingredientes negativos ao processo, tais como os efeitos cumulativos do fisiologismo na política, ligado à reprodução da corrupção. Ficam, portanto, de fora os problemas de falta de desenvolvimento, expressos em situações de marasmo40 ou de anomia

41

– e os processos de retrocesso ou mesmo de

decadência, que são parte essencial dos movimentos de expansão do capital. Ignoram-se todas aquelas pessoas que jamais foram incluídos pelo sistema produtivo do capital, que são não incluídos antes de serem excluídos. Descartam-se as contradições da acumulação e da concentração do capital. No entanto, como os aspectos negativos da 39

John J.Johnson, Political change in Latin America, Stanford, Stanford University Press, 1965. Há diversos exemplos na América Latina da situação de marasmo, de regiões que ficaram à margen da estruturação do sistema produtivo e de regiões que passaram – ou passam – por procesos prolongados de decadencia e que se tornam representativas de uma cultura de decadência. Por exemplo, a região do Recôncavo da Baía de Todos os Santos na Bahia, que foi a maior produtora de açúcar durante o período colonial e caiu nesse marasmo econômco, tornando-­‐se área de extração de recursos naturais e de emigração. 41 Em trabalho anterior procurei ressaltar o significado histórico da aparente neutralização econômica do marasmo, mostrando que ele é uma forma de representação do movimento negativo de dissolução do sistema produtivo escravista, e que, necessariamente daria lugar a um novo dinamismo político e econômico da região. No entanto, a falta de crescimento não foi tema da teoria que, desse modo, pôde abster-­‐se de estudar decadência. 40

55


acumulação tornam-se mais importantes que os positivos, os recuos

têm que ser

reconhecidos como parte essencial do movimento geral da acumulação de capital e devem ser explicados como parte do funcionamento do sistema capitalista de produção. Em vez de falar em uma destruição criadora, cabe pensar em termos de movimentos de destruição que têm que ser compensados por outros movimentos de criação, sem relação alguma com os anteriores, que os superam em extensão e complexidade. Isso tudo, na prática, significou que a teoria do desenvolvimento econômico ficou imobilizada nos aspectos superficiais da mecânica do desenvolvimento dos sistemas produtivos e que não se enfrentou com o dilema de emancipação ou subalternidade, mesmo quando pretendeu tornar-se uma teoria social. A dimensão de emancipação ficou restrita a uma parte bem definida das correntes de teoria social que se envolvem com essa temática. Tivemos uma teoria weberiana da dominação, com o nome de teoria da dependência, e ficamos à espera de uma conexão histórica entre os fenômenos locais de dependência e os processos planetários do capital. Por isso, foi possível falar de fim do colonialismo, como se fosse apenas aquele praticado pelos impérios formados no século XIX e não compreendesse as formas atualizadas de colonialismo aberto, nem as modalidades mais sutis de colonialismo conduzido pelo controle da produção de tecnologia, da qualificação dos trabalhadores, e, acima de tudo, pelo controle ideológico do progresso material. Nesse último sentido, por exemplo, há um amplo e profundo colonialismo interno na potência hegemônica, que compreende uma exploração desigual de imigrantes indocumentados e tolerados, junto com uma maciça desinformação da maioria dos grupos de baixa renda e de setores dos grupos médios de renda. Certamente, é um quadro que se repete no Brasil, onde reaparecem práticas de escravização de trabalhadores, onde persistem condições de contratação de trabalho originadas na sociedade escravista e que continuam quase inalteradas, e onde, finalmente, apenas uma pequena parte da população tem acesso a meios de informação. Grande parte do que se diz ou escreve sobre desenvolvimento não tem sido mais que operacionalizações de processos de produção, ou mesmo, apenas, de expansão do sistema produtivo na tradição de desenvolvimento em Schumpeter

42

. A realização de

42

Joseph Schumpeter, Teoria del desenvolvimiento económico, México, Fondo de Cultura Económica, 1958. Muito festejado como precursor das teorías do desenvolvimento, Schumpeter na

56


programas de pesquisa nesse campo temático encontra-se na disjuntiva de questionar as conseqüências do movimento de formação, acumulação e concentração do capital, ou de simplesmente referir-se à relação entre formação de capital e determinação de investimentos. Por isso, o estudo do desenvolvimento hoje carrega o peso de um progressivo reconhecimento dos conteúdos subjacentes na análise e da experiência acumulada ao longo das inúmeras tentativas de análise e de políticas nacionais e regionais de desenvolvimento. O aparecimento da teoria dos termos desfavoráveis de intercâmbio, ou teoria da relação centro – periferia em 1949, apresentada por Raul Prebisch em 194943 foi um grande salto na direção da construção de uma teoria do subdesenvolvimento, que se passou a ver como um processo negativo (Furtado, 1959) correspondente ao da formação de capital dos países industrializados. A subseqüente teoria da dependência e da marginalização, que se identififcou com Cardoso e Faletto 44 e com Quijano 45 assinalou aspectos da formação social e da estrutura institucional do subdesenvolvimento econômico, que foram, adiante, explorados como parte de uma explicação da concentração mundial de poder, como em Anibal Pinto

46

. Os fundamentos do sub-

desenvolvimento nas condições concretas da acumulação a escala mundial foram, enfim, revelados como eixo central da explicação do processo desigual do desenvolvimento capitalista por Prebisch 47, quando essa análise passava a incorporar a dimensão sócio-cultural como Myrdal 48 e quando se tornava evidente a necessidade de verdade apresenta uma abordagem microeconómica da expansão dos negocios que nada tem a ver com as preocupações sociais com o desenvolvimento. 43 As idéias de Prebisch foram apresentadas no Estudio Económico de América Latina, 1949 das Nações Unidas (E/CN.12/164/ de 1951 e representaram uma ruptura com as doutrinas em voga, de que o desenvolvimento poderia ocorrer por transbordamento de efeitos do crescimento dos países mais ricos. 44 Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependencia e desenvolvimento na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1970. 45 Anibal Quijano, “Dependencia, cambio social y urbanización en Latinoamérica”. In F.C. Cardoso e outros, America Latina, ensayos de interpretación sociológico-­‐política, Santiago, Ed. Universitaria, 1970. 46 Anibal Pinto, Distribuição da renda na América Latina e desenvolvimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1979. 47 Raul Prebisch, Capitalismo periférico, crisis y transformación, México, Fondo de Cultura Económica, 1987. 48 Gunnar Myrdal, Asian dramma, an inquiry into the poverty of nations, 3 vols. Nova York, Random House, 1968.A obra monumental de Myrdal representa um esforço de situar a problemática do desenvolvimento como uma ruptura com as condições de subdesenvolvimento impostas pela colonização, que torna necessário reverter os conteúdos de dominação embutidos

57


uma análise histórica capaz de ligar os processos do capital em sua totalidade com os processos local e temporalmente situados. As diferenças de abordagem e de objetivos de análise tornavam-se completamente claras, quando as abordagens de fundo marxista se confrontavam com a ortodoxia neoliberal, respaldada pela onda de golpes de Estado de 1964 a 1976, e quando a própria crítica dos processos de subdesenvolvimento se partia entre o discurso único do chamado Consenso de Washington e a recusa de muitos em admitir que haja um problema de subdesenvolvimento diferente dos aspectos negativos da concentração de capital e da globalização financeira.

Uma escolha de armas A experiência mostrou ser imperativa uma escolha de fundamentos conceituais e de método para uma teoria econômica que saía da crise do marginalismo evidenciada pela opção de Marshall por uma economia da prática. Além disso, o gradualismo de Marshall impugnava os desdobramento paretianos da teoria trazidos por Hicks. A análise do desenvolvimento é incompatível com o mecanicismo da economia marginalista. A inadequação da teoria neoclássica é evidente, mas ela continuou sendo aceita simplesmente porque representa a perspectiva dos interesses do capital financeiro. A tudo isso, a versão keynesiana do marginalismo continuou sendo esgrimida como opção válida, apesar das críticas ao monetarismo e ao “curtoprazismo” de Keynes. Numa visão em retrospectiva de todo esse processo, verifica-se que tem havido uma progressiva incorporação de aspectos temáticos, que qualifica e aprofunda a discussão do subdesenvolvimento. Desde a inclusão da dimensão sócio-cultural à do ambiente e desde o reconhecimento da questão energética à das alterações dos padrões de consumo, os processos de desenvolvimento e de subdesenvolvimento tornaram-se mais carregados de significado, tanto em seus aspectos internacionais como nos aspectos internos a cada país. Mas, quanto dessa abordagem se faz em diálogo com a realidade social latino-americana? A necessidade de situar-se frente às raízes históricas do processo econômico foi uma das principais reivindicações do pensamento da CEPAL em seu período criativo, quando se pretendeu que as políticas públicas se construíssem sobre os fundamentos de uma análise social e institucional, do feitio da registrada pelo nos projetos de modernização. No relativo às inter-­‐relaçoes entre esse trabalho e a obra de Wicksell ver meu livro intitulado Uma introdução à pobreza das nações, Petrópolis, Vozes, 1991.

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ILPES 49. A dificuldade prática de incorporar a dimensão ideológica do processo deveuse, sem dúvida, ao vezo de tentar comprimir as contradições do processo no espaço das contradições da reprodução dos grupos dominantes, em vez de considerar o contexto maior de contradições do processo social em sua totalidade. As análises sociológicas de então organizaram-se para explicar problemas da estruturação social dos segmentos superiores da sociedade, tomando sua relação com os segmentos de rendas inferiores e com os segmentos excluídos como aspectos suplementares da reprodução do sistema em seu conjunto. Assim, a análise dos processos de desenvolvimento e de sub-desenvolvimento passa a ter que se ver com um significado mais amplo e mais complexo de ideologia, próprio do contexto da totalidade social. Isso envolve os aspectos ideológicos desse enriquecimento temático e das opções que se encontram entre discutir o que há de essencial das transformações econômicas das sociedades e confrontar os diversos aspectos superficiais e transitórios desses movimentos. O foco da análise varia segundo se absorvem novas bifurcações da análise social, mas há um núcleo central temático que se mantém, justamente porque essa absorção de aspectos novos resulta em reconsideração dos temas que sempre foram essenciais. Isso nos leva a rever tudo que tem sido dito e feito na análise do desenvolvimento no relativo à relação entre os componentes materiais e os componentes ideológicos do processo econômico. As transformações do sistema produtivo são tão materiais quanto a própria produção. O que está em pauta não é a perda de importância da esfera da materialidade do sistema, senão o modo como ela é percebida e integrada pelas estruturas ideológicas. As ideologias devem ser reconhecidas como as expressões de interesses de classe embutidos na formação da sociedade política e da sociedade econômica, que se manifestam mediante uma linguagem indireta do poder. Não há porque trabalhar a dimensão ideológica como um espaço de atributos de cada classe social, senão como algo que surge da própria relação entre as classes.

49

No período de 1970 a 1972 Prebisch realizou ou induziu uma série de debates destinados a alimentar uma renovação das idéias da CEPAL sobre desenvolvimento. Cita-­‐se aquí o volumen do Instituto Latinoamericano de Planificación Económica y Social, Dos polémicas sobre el desarrollo de América Latina, Santiago, Editorial Universitario, 1970.

59


Entende-se, portanto, que a montagem de uma análise do eixo concentração de capital – mobilidade do trabalho partirá da mesma relação básica entre composição e velocidade do capital, mas deverá registrar as condições sociais em que essa relação se efetiva, isto é, deverá situar os processos do capital no tempo dos processos históricos. A análise dos processos do capital na América Latina sempre padeceu dessa separação gnoseológica entre a duração dos processos específicos de produção e o tempo dos grandes movimentos em que eles estão inseridos. Por exemplo, o tempo dos processos de produção de açúcar no século XVI e no século XIX e a velocidade de circulação do dinheiro na economia mundial. Pode-se especular que o aumento de velocidade na produção do açúcar tenha sido maior que a média da velocidade dos capitais aplicados na produção em geral, tanto agrícola como industrial, e que a maior velocidade do capital financeiro seja ilusória, porque na realidade ela é uma síntese das velocidades dos capitais aplicados na produção. Trata-se, portanto, de examinar o que há de substancial do processo econômico e de sua expressão em relações sociais. Tal como no tempo de Marx, o que há de substancial no sistema de produção é um problema de diferenciais de velocidade e de alterações nas velocidades dos capitais, que permitem ou impedem que os capitais específicos mudem de forma de aplicação, portanto, que se reproduzam ou sejam absorvidos por outros. Hoje, como ontem, há uma questão a ser enfrentada, relativa à capacidade do sistema produtivo para alterar as velocidades da esfera da circulação. E o que há de substancial nas relações sociais que envolvem a atividade econômica é a relação de classe entre os que detêm capital e os que dependem de vender tempo para obter renda. Assim, o programa da Economia Política não pode continuar sob a influência do projeto de unificação da teoria marginalista como bem colocou Shackle

50

,

e

especialmente ao mostrar que Myrdal já havia estabelecido objeções mortais ao projeto de Keynes de uma teoria monetária da produção. A ancoragem histórica da economia significa trabalhar sobre colocações atualizadas no relativo à engrenagem do sistema de produção, centradas em três relações essenciais, que são as seguintes: (a) a relação entre o crescimento do produto e a composição do capital; (b) a relação entre a intensidade do crescimento do produto social e a duração dos movimentos de expansão 50

G.L.S. Shackle, The years of high theory, Cambridge, Cambridge University Press, 1983.

60


do capital; (c) a relação entre os movimentos de expansão do capital e a mobilidade do trabalho, nela incluídas a renda e a qualificação dos trabalhadores. A questão geral da relação entre produção e distribuição fica como o grande pano de fundo desse conjunto, na definição de um programa de trabalho para a Economia Política, tal como visualizado por Dobb

51

quando levanta os compromissos da teoria do valor com uma

teoria da distribuição. O crescimento do produto e a composição do capital. A questão da composição do capital traz a assinatura de Marx e define as limitações da macroeconomia simplificadora. A relação capital/produto que está na base da análise do desenvolvimento econômico não adere à simplificação neoclássica de olhar o capital como uma magnitude financeira, mas não entra no mérito da composição do capital que permite que a produção aconteça. O crescimento do produto social é a representação sintética de um conjunto de componentes interdependentes de capital, cujo valor depende do modo como eles se combinam e do modo como os interesses que comandam o capital manejam suas opções de tecnologia. O que choca na análise de alguns autores, como Sraffa

52

, é que tratem do capital apenas como manifestação

mecânica e não explicitem os interesses do capital, tal como faz Marx em seu tratamento do grande capital e da maquinaria.53 O capital se reproduz mediante um movimento de reposição que se dá sobre a trajetória de sua composição, de que sua composição atual é apenas a face mais recente. O efeito multiplicador do emprego está historicamente situado com a composição do capital por Kahn

54

e não pode ser

esvaziado como a mecânica linear da versão convencional do multiplicador

que

descarta os efeitos de composição do acelerador da demanda. Na versão inicial de Harrod

55

o efeito de acelerador da demanda contempla que a substituição de

equipamentos gastos significa uma troca de tecnologias, com efeito final de reorganização da composição da oferta. A questão fundamental a esclarecer refere-se a como se determina o rumo dessa trajetória da composição do capital e esta não poderia 51

Maurice Dobb, Theories of value and distribution since Adam Smith, Cambridge, Cambridge University Press, 1973. 52 Piero Sraffa, Production of commodities by means of commodities, Cambridge, Cambridge Press, 1961. 53 Karl Marx, El capital, México, Fondo de Cultura Económica, 3 vols, 1956. 54 Richard Kahn, Selected essays on employment and growth, Cambridge, Cambridge University Press, 1972. 55 Roy Harrod, Toward a dynamic economics, Londres, Macmillan, 1960

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ser representada sem distinguir as diferenças entre grande e pequeno capital, como fez Steindl

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e sem considerar os deslocamentos na divisão do trabalho e na distribuição

social da renda. A intensidade do crescimento do produto e a duração dos movimentos do capital. Uma observação fundamental sobre a produção capitalista é que ela tem se acelerado em seu conjunto, tanto pela mobilização de pesquisa científica e tecnológica como pela capacidade de encomendar equipamentos que refletem as preferências dos capitalistas na organização da produção. Essa aceleração aparece como uma pressão sobre a substituição de maquinaria e como um encurtamento dos lapsos de tempo entre inovação e difusão. Distinguiremos uma visão interna e uma visão externa dos movimentos do capital, entendendo que a descrição das variações na relação capital/produto a la Kuznets

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corresponde à visão externa, enquanto a perspectiva de

Marx é a da visão interna do processo. O capital é datado e historicamente situado, isto é, tem um momento em que surge e outro em que se esgota ou que é absorvido por formas mais novas e isso acontece em ambientes históricos definidos, com certas condições de desenvolvimento das forças produtivas. Isso significa que o capital se reproduz mediante movimentos que se realizam em certos tempos, que se alteram ao longo do tempo. Na essência da análise de O capital está a identificação desse entrecruzamento de movimentos com diferentes velocidades e durações. O crescimento do produto social se realiza no nível de desenvolvimento das forças produtivas, que se altera continuamente, pelo que é sempre um processo que se realiza num contexto de novos dados do sistema produtivo. Tais novos dados ficam por conta das iniciativas dos detentores do capital, mesmo em situações em que a inovação surge de práticas do cotidiano dos trabalhadores. O controle do processo de produção também é o das inovações, que são reguladas pelos objetivos da reprodução do capital. A aceleração dos processos do capital não necessariamente se traduz em incrementos do produto, porque as velocidades dos processos do capital são internas ao processo de produção, enquanto o crescimento do produto social mostra os resultados finais desse processo. Não há como pensar em movimentos de crescimento do produto social que não correspondam a

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Joseph Steindl, Pequeno e grande capital, São Paulo, Hucitec, 1986. Simon Kuznets, Postwar economic growth, Cambridge, Harvard University Press, 1964.

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deslocamentos na composição do capital e não contemplem as condições de aproveitamento da capacidade produtiva tal como insistiu Baran 58. A expansão do capital e a mobilidade do trabalho. Uma questão central da continuidade do sistema capitalista de produção consiste em saber se o capital pode continuar a se expandir e a quais custos essa expansão pode ser alcançada. Para o próprio capital esses custos são contabilizados segundo eles são percebidos pelos empreendimentos e são internalizados como gastos de capital que não se recuperam, como custos de recursos – que aparecem apenas como custos ambientais – e como custos de trabalho, que são os custos diretos e indiretos com força de trabalho, em pagamento de salários, treinamento de trabalhadores e gastos com saúde. O que está em jogo é a diferença entre os custos percebidos pelos empreendimentos e os custos sociais da irreversibilidade do processo; e que os interesses do capital em evadir ou transferir custos caminham no sentido oposto ao daqueles para os quais esses custos são transferidos. Os resultados do processo de produção aparecerão na forma de renda e de acesso à formação de capital, a qual pode assumir outras formas não monetárias. Por exemplo, uma teoria monetária da produção não tem como registrar um aumento da capacidade de alguns grupos de trabalhadores para operarem com novas tecnologias, nem pode escolher entre projetos cujos efeitos se realizam mediante interações crescentes com outros projetos. A concentração exige grandes aplicações do capital concentrado que funcionam como buracos negros do sistema produtivo, atraindo e neutralizando investimentos de pequenos capitais que são induzidos a opções menos rentáveis e mais arriscadas. A expansão do capital tem efeitos inevitáveis na capacidade dos trabalhadores para se moverem entre diferentes posições no sistema para defenderem seus interesses. O capital se expande mediante variações nos requisitos de trabalho vivo, em suas combinações com o trabalho acumulado, com alterações na totalidade dos usos de força de trabalho. É o movimento da totalidade do trabalho empregado que responde pela criação de valor. A renovação tecnológica altera a relação de composição entre o conjunto do trabalho vivo e o conjunto do trabalho acumulado. O controle do sistema surge em dois momentos, que são o controle direto do trabalho acumulado por parte dos capitalistas e o controle indireto das oportunidades de qualificação dos trabalhadores. 58

Paul Baran, La economia política del crecimiento, México, Fondo de Cultura Económica, 1959.

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Na perspectiva da reprodução do sistema produtivo, os requisitos de trabalho variam em quantidade e em qualificações, enquanto a busca de renda por parte dos trabalhadores determina estratégias de deslocamento entre empregos e entre localizações. A expectativa de vida profissional dos trabalhadores completa e corrige dados sobre sua qualidade atual de vida e seus horizontes de mobilidade. Assim a mobilidade dos trabalhadores se materializa em oportunidades diferenciadas de progresso material e liberdade de escolha.

A seqüência inevitável da polêmica Há uma crise de paradigmas no desenvolvimento do alto capitalismo, que se revela no fundamento ontológico da teoria, levando a manobras de evasão de problemas e em sua relação com a irracionalidade no campo social. A aceitação da síntese neoclássica póskeynesiana como ortodoxia econômica, junto com a condução da análise de matriz keynesiana por suas variantes mais conservadoras deram lugar a uma análise restrita aos preceitos neoclássicos, infensa ao desafio do desenvolvimento. Por muitos meios, nesse campo da economia procurou-se demonstrar que o debate sobre o desenvolvimento tornou-se inútil com a progressão da mundialização do capital. Faltou dizer que é um debate inevitável, simplesmente porque é o pleito de uma vida independente. Não se discute desenvolvimento para atender aos interesses do capital senão para confrontá-los com os da sociedade. Nesta diferença de sentido de finalidade a teoria do desenvolvimento tacitamente rompe com o marginalismo e tem que olhar para os resultados das últimas décadas. Não se trata de ter uma teoria latino-americana do desenvolvimento, porque os problemas são de todos, mas se os latino-americanos não se fizerem representar dificilmente terão uma teoria de sua emancipação produzida pelos que os subordinam. O desenvolvimento de uma linha de trabalho – pesquisa, debate e ações - sobre a temática de desenvolvimento e do subdesenvolvimento representa uma definição de campo temático quee exige uma abordagem capaz de refletir esses conteúdos e indicar o caminho de análise a ser seguido. As referências históricas têm que ser atualizadas porque as pressões de subdesenvolvimento se renovam e porque os efeitos das políticas econômicas se incorporam no quadro objetivo do sistema de produção. A tese que surge do embate das tendências de subdesenvolvimento e de superação via concentração de

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capital é que as condições ambiente da aplicação do capital e do controle da força de trabalho se deslocam, progressivamente, acompanhando rumos específicos da divisão do trabalho e da tecnologia. Assim, a polêmica sobre as perspectivas e restrições das transformações do sistema produtivo envolve, igualmente, o modo social de distribuição da renda, cujos efeitos na reprodução do sistema produtivo se realizam através da composição e da magnitude de demanda. O papel dos trabalhadores na sociedade do capital se define por sua capacidade de participar da vida econômica, que se dá por sua capacidade de comprar e de obter rendas indiretas através do Estado. A reinserção da distribuição na explicação do desenvolvimento é um passo necessário para uma valorização social da teoria do desenvolvimento.

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4. O MOVIMENTO EXTERNO: CONTROLE POLÍTICO DA ECONOMIA NO ALTO CAPITALISMO

Preliminares O debate em torno das possibilidades de auto-regulação do sistema capitalista de produção por meio do funcionamento de um mercado em expansão, que muda em termos de composição da demanda, enfrenta condições diferenciadas entre o que ocorre nas nações que combinam o controle da renovação tecnológica, com posições de preeminência no mercado financeiro e as nações cuja economia anda a reboque dessas condições. Neste ensaio, propõe-se examinar o significado do controle político nas economias detentoras dessa posição vantajosa em tecnologia e financiamento, que denominamos de economia do alto capitalismo59. Trata-se de avaliar as condições diferenciadas de acumulação nesses dois tipos de nações, distinguindo os movimentos de expansão de trabalho e recursos físicos, que são os de extroversão do desenvolvimento e os movimentos de encolhimento dos sistemas atingidos por crises quando passam a viver de capital acumulado. A questão central é a relação entre os movimentos dos ciclos e a superação do subdesenvolvimento60.

Erupção e expansão da crise Estamos hoje diante de novos fatos e tendências da política econômica que mostram a necessidade de uma retomada da reflexão teórica e prática sobre esse tema. Desde alguns textos clássicos das décadas de 50, como os de Bettelheim (1951) e de Nurkse 59

Em livro recente, Economia, política e poder (2009) apresento uma análise da territorialidade do poder na economia globalizada de hoje, distinguindo a especificidade da reprodução do poder econômico na periferia industrializada. 60 A questão geral de superação do subdesenvolvimento sempre distinguiu uma abordagem crítica do problema do desenvolvimento, que se vê como um impulso inserido nos movimentos contraditórios do capital na periferia da economia mundial e não como um projeto humanista compartilhado pelas elites dos países centrais com as elites dos países periféricos. O desenvolvimento na escala nacional envolve uma visão igualmente crítica do papel da ideologia na transformação social (Pedrão, 2004), onde é inevitável uma análise das relações de classe e da divisão internacional do trabalho.

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(1955), e da década de 60, como os de Tinbergen (1961) e Myrdal (1968), tem havido poucas contribuições significativas ao pensamento da política econômica para o desenvolvimento. Além do velho debate entre crescimento com equilíbrio ou sem equilíbrio, que envolveu diversos autores, ligado ao terror da inflação, oo ao debate recorrente da conversão de valor em preços, a política econômica tornou-se um campo de mecânica de modelos estáticos repetitivos, que esquivam o substrato de conflito social de interesses das sociedades de hoje. A mudança de atitude dos países mais ricos diante desta nova crise demonstra a fragilidade dos pressupostos de política imobilizados pelos objetivos de equilíbrio macroeconômico. As novas políticas européias primam por falta de originalidade e o que há de mais novo ao norte do Rio Grande é a volta dos arquitetos da Era Reagan. Certamente, há uma questão relativa à capacidade de cada país para decidir sobre sua política econômica e, como extensão desse ponto, um problema operacional relativo à capacidade dos países para pensarem em termos de longo prazo. A Europa ocidental, que é hoje um conceito impreciso, procura soluções defensivas que conciliem projetos de poder tão diferentes, uns dos outros, quanto os da Alemanha e da França. A articulação de um espaço econômico germânico fica mais longe, dados o aumento da influência da Rússia e o surpreendente desempenho do grande capital italiano. Há muito, a Europa deixou de ser um aliado constante dos Estados Unidos e agora procura de modo exposto alianças internacionais que a libertem da supremacia norte-americana. O fim da “era” Blair também significa que o Reino “Unido” está menos preso ao redil dos norte-americanos. Esta fluidez de alianças pode explicar diversos aspectos menos claros das políticas anticíclicas, inclusive o fato de que os europeus reagiram mais rápido e de modo mais profundo à crise do que os norte-americanos. Esse superrealismo político europeu está bem descrito por Grabendorff e Seidelman (2005) em sua análise dos dilemas e das antinomias da União Européia. A crise obriga a rever o significado das esferas de poder e, especialmente, o da supremacia norte-americana. A supremacia econômica e política de cada país contém elementos culturais e técnicos que a identificam em seu tempo61. Não se pode pensar na 61

Essa concretude do tempo histórico como época e como modo de situar historicamente o capital foi tratado por Mészáros (2007) como “a tirania do imperativo do tempo do capital” e

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supremacia britânica sem sua ligação com a vitória ideológica da combinação de utilitarismo da classe dominante e de seus mecanismos ideológicos e religiosos de legitimação. O mesmo aconteceu com o projeto de poder norte-americano, que realizou o controle ideológico de uma maioria socialmente fluida, impregnada dos efeitos combinados de escravidão e de integração maciça de trabalhadores destituídos de seus mecanismos originais de defesa. O fator integração interna dessas nações poderosas continuou a afetar as modificações do conjunto, mas foi oportunamente absorvido pelo sistema de poder ao qual passou a contribuir. O componente de religião desempenhou um papel crucial nessa amálgama política, para isso bastando ver que a ocupação inicial das terras62 e os posteriores movimentos de emancipação dos negros nos EUA foram canalizados através de lideranças religiosas, com a mesma indefectível Bíblia e com o mesmo culto do individualismo operoso e antípoda de quaisquer movimentos de classe. O controle do sistema de poder se realizou mediante mecanismos de flexibilização controlada na esfera política, permitindo absorver as tensões que se formam na esfera econômica. A expansão do comércio desempenhou um papel fundamental, fazendo a ponte entre uma economia rural dispersa e uma produção industrial regionalmente concentrada. O controle do sistema se manteve sólido mediante a incorporação de vantagens que se obtêm através da expansão dos interesses de grande capital, no país e no exterior. A concentração do capital tornou-se um fato da economia mundial que deu a sustentação necessária para a internacionalização do dólar. A religião entrou nesse conjunto como uma referência unificadora, uma ideologia acima de qualquer suspeita de ser desagregadora, ou que não contribua para a perpetuação do sistema. Não há, portanto, porque se surpreender que a ofensiva do sistema de poder na geopolítica da energia se fizesse, justamente, sobre a base do fundamentalismo. O fundamentalismo surge, no fim do século XX, como uma expressão que designa irracionalismos políticos com fundamentos mais ou menos religiosos, com uma linguagem religiosa. Diferentemente do ocorrido nos primeiros cem anos de formação do sistema capitalista de produção, a partir da década de 1920, houve uma inversão da racionalidade

adiante (2008) colocando a formação da consciência de classe como uma decorrência de uma inserção histórica específica. 62 O ideal de um sistema de pequenas e médias propriedades – farms – e de seus ocupantes dedicados a trabalho familiar – homestead – correspondeu a uma imagem de uma sociedade pré-­‐ industrial, tal como bosquejada por Benjamin Franklin, baseada em trabalho árduo e frugalidade.

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instrumental63 inicial do sistema, quando a mecânica da racionalidade da produção foi transformada em artefato político pelos autoritarismos, especialmente pelo nazismo, e utilizada como mecanismo de poder com uma teleologia de poder supra-econômico. A expansão do poder de monopólio e a subseqüente formação de redes mundiais, combinando sistemas de produção e distribuição, colocaram o tema da eficiência como de eficiência de cada sistema, ignorando os fatores de racionalidade do sistema produtivo em seu conjunto. Há uma nova trajetória de irracionalismo64, que escolhe símbolos próprios, tal como fez o nazismo, ou que cria versões simplificadas das referências religiosas das nações triunfantes e desempenha uma função fundamental de controle político dos grupos ideologicamente mal estruturados, majoritários na sociedade de consumo de massa. A trajetória ideológica do novo irracionalismo arrebanha o poder da mídia sobre esta sociedade de massas, onde se substituem os valores de coletivos locais – a partir dos familiares – por valores do individualismo. A individualidade indiferenciada dá suporte à visão de Negri e Hardt (2005) sobre a multidão, que rematam uma longa trajetória de percepção e de crítica da sociedade de massas, desde Ortega y Gasset (1960) a Elias Canetti e a estes novos pós-anarquistas e quase-marxistas. A invocação da categoria massa social em lugar de classes revela uma dificuldade orgânica em reconhecer o trabalho como categoria ordenadora do mundo social. Quanto dessa rejeição procede de observação da realidade social e quanto é projeção de intenções ainda está por esclarecer. A sociedade nacional de classes está fragilizada diante da internacionalização da divisão do trabalho, mas isso significa apenas que há novos dados sobre o modo de alinhamento das classes e não quer dizer que a condição de classe tenha sido revogada. Desviar a atenção do conflito de

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Neste excurso precisaremos revisar o significado praxeológico de racionalidade instrumental, distanciando-­‐nos do significado original dado por Habermas a esse termo em sua Teoria da ação comunicativa (1987, vol I), para nos ocuparmos da racionalidade enquanto princípio de uso da faculdade da razão, como ocorreria na tradição kantiana. Habermas já tinha se colocado perante a historicidade do discurso em seu Dialética e hermenêutica (1987), em seu debate com Gadamer, mas não tinha superado o viés de substituir o tempo genuinamente histórico pelo tempo contextual da subjetividade. 64 Precisamos retomar o desafio levantado por Lúkacs (1964) em sua análise histórica do irracionalismo, para mostrar que ele foi capaz de encontrar novos modos de reprodução, utilizando a combinação de mídia e marketing como as armais mais letais do grande capital no controle do consumo. O irracionalismo se desenvolve, simultaneamente, no plano de uma negação do fundamento histórico em favor de um pragmatismo imediato e no espaço em expansão ocupado pela mídia vulgarizadora.

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interesses entre classes pode ser mais uma manobra sutil a favor da famosa harmonia social dos ideólogos do Ancien Régime. A crise simplesmente revela tensões longamente fermentadas, que se precipitam sobre o tecido social. Mais que a crise, o realinhamento do poder mundial detonou uma revisão do princípio de poder hegemônico, que se identificou com a supremacia norteamericana. A suposição de unipolaridade ou de poder incontestável passou a se enfrentar com áreas políticas impenetráveis65 e com esferas de poder econômico e político, dotadas de dinamismo próprio, que geram relações de complementaridade fora do alcance do poder do bloco hegemônico66. O poder hegemônico passou a ser um poder restrito, que tem que reconhecer limites e negociar, inclusive com países mias fracos. Esses deslocamentos de poder aparecem com sinais inesperados para o mundo do capital, tais como são o poderio de empresas públicas e a intervenção do Estado nas grandes empresas dos países mais ricos. Desses eventos e da compreensão de seu significado como reversão da visão neoliberal parte uma leitura de desmonte da economia neoclássica e, com ela, de todo o paradigma marginalista. As novas iniciativas de saneamento de grandes corporações deficitárias por parte do governo norte-americano e dos europeus desvelam a verdadeira linha de defesa do sistema central do capitalismo, que é a posição das megaempresas, tanto daquelas emblemáticas como a General Motors, como de outras desconhecidas do público no controle do processo de acumulação de capital. A aliança Estado-empresa, que conduziu a etapa superior da segunda revolução industrial e transferiu para os pequenos capitais e para os trabalhadores uma noção mecânica de eficiência baseada em aproveitamento indireto do trabalho foi instrumental para sustentar os objetivos de uma acumulação sacralizada, mas encontrava seu fosso na contradição entre a centralidade do lucro financeiro e a eficiência na esfera da produção. Que significa um equilíbrio entre fundos para investimento e liquidez, senão um cálculo bancário do custo do pleno emprego? 65

O conceito de áreas de poder impenetráveis vem a ser necessário para explicar o mundo atual do poder mundial, em que há países que não poderiam derrotar o poder principal, mas tampouco poderiam ser derrotados ou invadidos por ele. Não são simplesmente territórios identificados com uma presença social contínua. São manifestações territorializadas de poder que se revelam imunes à supremacia política e militar. 66 O exemplo mais recente e mundialmente mais expressivo é a formação do bloco apelidado de BRIC, que reúne China, Índia, Rússia e Brasil, com maior capacidade de crescimento no PIB mundial e que considera operações financeiras fora da esfera do dólar.

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Como se sustenta eticamente uma aliança entre Estado e empresa em que os critérios privados de emprego dos capitais têm como regra básica o desemprego como custo social necessário para preservar a taxa de lucro? Espera-se que o crescimento do PIB crie novos postos de trabalho, mas a demissão de trabalhadores é uma parte essencial reconhecida da estratégia do grande capital para preservar sua taxa de lucro. O conflito entre investir e empregar e desempregar acontece na economia real, longe da lógica financeira do capital. Essa constatação obriga a revisar um problema teórico básico. Há uma diferença fundamental entre uma teoria da produção formada na perspectiva do desenvolvimento econômico e uma teoria monetária da produção. A primeira considera a relação entre a taxa de crescimento do produto e as variações na distribuição da renda. A teoria monetária da produção reflete apenas interesses do capital e observa a demanda como a um requisito da reprodução do capital. O principal pressuposto de uma teoria monetária da produção – do qual não escapou Keynes – é que ela considera modos definidos e invariantes de relacionamento do sistema bancário com a produção, onde a rentabilidade dos ativos financeiros é plenamente comparável com a da produção. Por extensão, entende-se que se trata de um sistema de ativos equivalentes, cuja gestão pode ser apenas financeira, independente das condições operacionais da gestão industrial. A eficiência do grande capital poderia ser aferida pelo desempenho na bolsa de valores e seus grandes referenciais seriam: (a) uma relação custos/riscos onde os riscos são expurgados por contratos públicos e por estratégias de ampliação do grau de monopólio; e (b) uma relação lucros/riscos, onde a eficiência marginal do capital é, de fato, estabelecida pelos rendimentos garantidos oferecidos pelo sistema financeiro. No marginalismo keynesiano, a intervenção do Estado seria aferida por efeitos globais para ativar a demanda efetiva. Não considera a composição da demanda nem a distribuição da renda, que são aspectos que mereceram a atenção de Kaldor e de Robinson, no campo keynesiano e de Prebisch e Aníbal Pinto, dentre diversos economistas latino-americanos. Os efeitos dinâmicos dos investimentos são vistos através do mecanismo do multiplicador, que considera a propensão a consumir como variável indicativa da disponibilidade de renda. Na prática, o multiplicador do emprego seria um pseudo-efeito na formação de capital, que é o verdadeiro sustentáculo de sua

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reprodução, mas não contempla o papel do Estado nas transformações estruturais da indústria67. O modo de ver a dinâmica da economia também tem um significado ideológico que agora deve ser explicitado. A diferença entre a percepção do dinamismo do sistema através do multiplicador e não do acelerador tem como conseqüência sacrificar a complexidade real pela simplificação financeira e em adotar a igualdade entre poupança e investimento sem questionar a realização do dinheiro engajado no financiamento da produção. A brilhante síntese do desenvolvimento contraditório da teoria oferecida por Shackle (1981) recupera a substância polêmica da contribuição de Myrdal em sua etapa “ortodoxa”, mas ignora totalmente o giro dado por ele ao procurar realizar uma pesquisa econômica socialmente realista e socialmente significativa68. Assim, a leitura reflexiva do movimento keynesiano pára um passo antes de ter que reconhecer o papel da análise social da economia em Marx. A nova grande questão, que se encontra nos fundamentos da crise hoje em curso, resulta da separação dos interesses da reprodução do grande capital frente aos da sustentação da base nacional hegemônica. Numa visão em retrospectiva do processo recente de formação da crise no alto capitalismo, pode-se admitir que a versão fundamentalista da irracionalidade, característica da década de 1990, apenas dava foros de geopolítica a objetivos de uso militar para sustentar hegemonia econômica. Esse fundamentalismo corresponde a algumas organizações sócio-políticas norte-americanas dificilmente explicáveis, tais como a John Birch Society ou a Daughters of American Revolution. Certa literatura do período entre guerras, onde se incluem as obras de Sinclair Lewis, Erskine Caldwell e John dos Passos, constitui um testemunho de uma sociedade com uma juventude à deriva e sem absorver as novas manifestações do individualismo da pequena classe média. O reconhecimento recente por parte do governo norte-americano, de que não 67

Este aspecto foi trabalhado por Hollis Chenery em seu Structural change and development policy (1979). A indústria tem que ser vista como um campo estruturado da produção e não como cifras de produto e coeficientes extraídos do desempenho de fábricas. Entristece ver que a análise industrial recuou de modo inescusável rumo a pseudo problemas de competitividade que vão na direção oposta de enfrentar a complexidade do sistema e de chegar a políticas para a produção industrial em seu conjunto. 68 A obra principal de Myrdal, o “Drama Asiático” (1968) ficou até hoje ignorada no Brasil, onde ele é conhecido por suas obras menores, ou lembrado por monetaristas, aparentemente sem que se perceba que o grupo sueco, de que ele foi o mais famoso, representa uma discordância antecipada e radical com os pressupostos da Teoria Geral de Keynes.

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havia armas nucleares no Iraque e que Saddam Hussein nada teve a ver com o ataque de 11/9/2001 corrobora esta observação. Objetivamente, a política externa do fundamentalismo mobiliza argumentos do irracionalismo medieval, como o curioso “creacionismo”, com teses tais como intervenções defensivas, ou como a “expansão natural” de Israel69. São argumentos que não se sustentam perante o racionalismo operacional do capital, mas que não podem ser ignorados, dados seus efeitos finais na reprodução política do poder.

A introversão do processo O processo do capital se extroverte ao incluir mais pessoas e mais recursos e ao impulsionar a produção e a ampliar os usos de recursos e tecnologia. As turbulências do processo da formação do capital alteram a relação entre incorporação e valorização e exclusão e desvalorização, fazendo com que o sistema viva de suas próprias forças. A substituição de movimentos de crescimento pela queima de recursos acumulados leva a outra disputa de poder, qual seja, de decidir quem paga a conta da crise. A crise se desenvolve segundo reações dos participantes do processo econômico que agem racionalmente em função de seus interesses, criando, entretanto, contradições quando são consolidadas para a sociedade em seu conjunto. Historicamente, as políticas econômicas tornam-se parte integrada dos processos da economia porque seus efeitos se fundem com os processos do capital e do trabalho, determinando novos modos específicos de participação para os diversos agentes sociais e alterando horizontes de renda e de mobilidade com que cada um deles trabalha. A política econômica surgiu como um campo de interesse quando se tomou a organicidade da presença do Estado na economia, isto é, quando se identificou o agir do Estado como um modo de planejar. Na raiz da lógica da política econômica está o pressuposto de um Estado interventor, que se considera como protagonista do processo econômico e não só como participante compensatório. Encontram-se teóricos da política econômica entre reformistas como Tinbergen (1961), Prebisch (1949) e entre os responsáveis do planejamento estatal soviético, mas onde sempre foi necessário o questionamento dos 69

Pelo que se pode ler, não há diferenças significativas entre essa doutrina de expansão natural e as doutrinas de espaço vital adotadas por regimes autoritários europeus.

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objetivos a serem alcançados, que é uma tarefa que, na prática, só pôde ser enfrentada em regimes políticos onde foi possível discutir objetivos. Como são processos que se renovam e mudam de feição, distinguiremos as diferenças entre os efeitos iniciais propostos das políticas econômicas e seus efeitos finais, que surgem depois que elas são aplicadas e refletem as idiossincrasias e os defeitos de competência. Vista na distância do tempo e lida através de seus próprios depoimentos, a teoria econômica se apresenta como um movimento intelectual espontâneo, que se realizou por obra e graça da genialidade de alguns pensadores e não pelo fato de que eles tivessem que responder a problemas concretos de seu tempo. No entanto, a crise econômica que eclodiu em 1929 foi cultivada pelos resultados da Primeira Guerra Mundial, que alteraram o sistema mundial de trocas, enfraqueceram os centros europeus do capitalismo e deixaram um espaço que foi ocupado pelos Estados Unidos, mas sem absorver a crise de demanda no mercado internacional. O desastre das economias do Conesul, nessa época, é um testemunho irrefutável dessa brecha. A virtual falência da orgulhosa economia argentina teve sua correspondência na crise da economia baiana, que não tinha mais a quem vender fumo nem cacau. O tema para uma teoria da recuperação da demanda internacional estava colocado pela incapacidade do marginalismo positivista para enfrentar processos determinados por causas indiretas. A magia de um mercado auto-regulado, explicado pela lei de Say, se desvanecia nas novas condições de funcionamento da economia internacional. Além disso, o mundo da regulação financeira do mercado encontrava as novas opções de política

representadas

pelas

variedades

do

planejamento,

especialmente

do

planejamento econômico soviético, que foram olimpicamente ignoradas pelas potências ocidentais. Definiam-se os contornos de uma economia de guerra, que se tornaria imperativa a partir de 1939. No relativo à recomposição da economia internacional, formara-se uma brecha conseqüente da substituição de uma economia líder que operava com um elevado coeficiente de importação por outra que importava relativamente muito pouco enquanto absorvia vultosos investimentos de outros países. A crise se reproduzia como uma queda irrefreável da demanda internacional esfriando as iniciativas de industrialização periféricas. Nos anos que se seguiram à eclosão da crise de 1929, houve uma busca de

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políticas eficientes para compensar esse fosso70 por parte de vários países integrados aos circuitos internacionais com variados resultados, que assinalaram uma guinada na direção da industrialização. Suas políticas contradizem a imagem difundida de que os norte-americanos foram os únicos inovadores com políticas keynesianas. A instrumentalização para enfrentar a depressão começou na América Latina antes que Keynes aparecesse e mediante políticas inspiradas na necessidade. Em 1930, os chilenos criaram a Corporação de Fomento, os argentinos criaram o Banco Industrial da República Argentina e o México criou a Nacional Financeira. Os norte-americanos incorporaram os preceitos da política de emprego de Keynes sem questionar a ligação entre essa dimensão social da política econômica e a visão monetária do sistema de produção a que se filiava Keynes. Mesmo Hansen (1954), que tinha uma visão prática de homem da pequena produção, caiu nessa armadilha teórica de generalizar sobre o sistema produtivo com a visão dos banqueiros. Não poderia confundir a liquidez geral no sistema financeiro com a disponibilidade de crédito para produção. Trata-se, portanto, de definir como o governo intervirá e não se ele intervém. A suposição de que o governo deveria reativar o sistema produtivo significava realmente que a parte do Estado na aliança política do poder econômico deveria ser realizada de modo direto, injetando poder de compra no sistema, além dos contratos que ofereceria às empresas. O mecanismo considerado é um dispositivo global de intervenção financeira, que se orienta pelo volume de operações financeiras, isto é, que é atraído pela atividade bancária e financeira, tendo sempre os bancos como referência institucional. É inevitável considerar que essa perspectiva monetária, trabalhada por Keynes desde seu Tratado da moeda, se formula sobre uma concepção de capital homogêneo e onde o epicentro da teoria é uma teoria monetária da produção. Na perspectiva teórica do problema, portanto, faltam dois elementos essenciais a essa política de multiplicador, que são os de composição do capital e de distribuição da renda. São referências que levam a distinguir entre modelos simplificados de crescimento econômico e planos de desenvolvimento. Sempre e quando se revelam as conseqüências dos desdobramentos no tempo das políticas públicas, torna-se inevitável considerar que os impulsos de dinâmica do sistema produtivo envolvem diferenças de 70

É oportuno mencionar que no Brasil o governo de Epitácio Pessoa, na década de 1920, adotou as primeiras medidas que podem ser reconhecidas como de substituição de importações.

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composição dos novos investimentos frente ao capital em operação e que a distribuição de seus resultados altera a repartição da renda em seu conjunto. As diferenças de composição entre o capital investido e o dos novos investimentos se convertem em correspondentes situações de tecnologia, que representam custos e demanda de crédito. Por sua vez, o efeito distribuição da renda embutido na concentração do capital e na precarização do emprego se traduz em variabilidade da demanda que só pode ser apreciada quando se comparam períodos, isto é, quando se examinam as limitações de representatividade da análise quantitativa do processo. A conclusão inevitável é que as alterações na distribuição da renda resultam em efeitos na composição e na magnitude da demanda que se transmitem através das modificações na composição do capital. Com estes elementos de experiência, vê-se porque as políticas anticíclicas não podem ser concebidas sobre o curto prazo e porque devem apoiar-se em referências realistas atualizadas do funcionamento do sistema produtivo, onde os efeitos na composição do capital e na distribuição da renda responderão por possíveis alterações do consumo em médio prazo. Assim, não há como ignorar a necessidade de rever a teoria do consumo para colocá-la em termos compatíveis com a explicação do ciclo e a do desenvolvimento. Trata-se, no essencial, de reconhecer o fundamento objetivo do comportamento do sistema correspondente a seu modo e nível de organização frente a fatores impregnados de subjetividade, tais como a preferência por liquidez ou a propensão a consumir. Quando se escolhe e aplica uma política econômica, enfrentam-se condições ambiente concretas dentro das quais se colocam os elementos de subjetividade dos agentes econômicos. Certamente, há uma cultura de expectativa de lucros do grande capital, mas tal como a experiência mostra, também há uma cultura de supor que os governos serão constrangidos a transferir os recursos que forem necessários para salvar as grandes corporações, simplesmente porque elas são a espinha dorsal da economia mundializada. No entanto, as mesmas disputas de defesa da taxa de lucro se reproduzem na esfera do grande capital e as compras de participação e as disputas por fatias de mercado prosseguem, inclusive, ultrapassando os objetivos das políticas públicas de salvaguarda das empresas.

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Uma hipótese a considerar é que a reprodução do grande capital, na qual já se incorporaram os desígnios do capital especulativo, depende do que Mészáros (2007) denomina de imperativo do tempo do capital, que é o que surge da imposição à sociedade do tempo da reprodução do capital incorporado no sistema de produção. A reprodução do grande capital envolve complexas cadeias de decisões e, freqüentemente, faz com que as grandes empresas controlem empresas de menor porte, que são parte dos grandes interesses. A mobilização da sociedade para garantir a reprodução do capital resulta em exaurir o tempo próprio da vida das pessoas, que são coagidas a um esforço conducente a um vazio ontológico. As pessoas trabalham para sua própria negação, em um sistema cuja lógica orgânica consiste em rejeitá-las. No que a sociedade descobre a negatividade da salvaguarda do grande capital, desenvolve-se uma introversão do processo social da política econômica, cuja tecnicidade deixa de poder ocultar seu significado ideológico. Volta a ser necessário explicar quais são os destinatários dos benefícios da política econômica, que também se explicita como uma ação pública. Subrepticiamente, volta-se a enfrentar a questão ideológica relativa ao sentido de finalidade da ação pública: proteger o grande capital, o pequeno capital e setores médios de renda ou os trabalhadores em geral? A complexidade da composição social dos países mais ricos não permite conduzir este argumento sobre uma relação geral de classes, mas tampouco dá lugar para desconsiderar seu papel na estruturação das relações de poder. Tudo isso envolve um problema prático relativo a como projetar efeitos em mais longo prazo de políticas anticíclicas, isto é, a como convertê-las em políticas de desenvolvimento.

A dialética do ciclo e a do desenvolvimento Nos parágrafos anteriores procuramos expor as ligações entre os ciclos e as condições de desenvolvimento, por extensão, levantando as correspondentes conexões entre as políticas controladoras dos ciclos e as políticas propulsoras do desenvolvimento. As motivações da luta contra o movimento depressivo do ciclo e da luta para superar o subdesenvolvimento procedem de diferentes condições de classe. Tradicionalmente, as chamadas políticas cíclicas são desenhadas para enfrentar os movimentos negativos do ciclo. São políticas compensatórias, organizadas sobre condições operacionais definidas

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em curto prazo, mesmo quando reconhecem que a gênese dos ciclos ocorre em períodos em que se sobrepõem oscilações de curta e de média duração e em que a visibilidade do processo diminui sobre o horizonte de tempo, mas onde a visão em longo prazo se ajusta continuamente. Em cada momento da trajetória do sistema econômico coincidem movimentos engendrados em diferentes momentos, que também interagem de diferentes modos uns com os outros. É a leitura dinâmica da interposição dos prazos com que operam os diversos componentes do capital. Também, é a lógica de compensar movimentos negativos, mas não é a de gerar novos movimentos positivos que alterem a capacidade das economias nacionais para mudarem. Por isso, a necessidade de trabalhar sobre os nexos entre as conseqüências das políticas anticíclicas e das políticas de desenvolvimento é um tema que ocupa os momentos de insônia mais profundos dos que tratam dos problemas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento. Um argumento que se impõe reconhecer neste campo é que as sucessivas ações em curto prazo têm efeitos cumulativos que fazem delas verdadeiras políticas de maiores efeitos sobre durações mais longas. O curto prazo não está constituído de ações esporádicas senão de ações que integram efeitos em prazos mais longos. A acumulação de efeitos introduz um argumento relativo a dispersão ou a convergências das ações em economia. Nelas, a questão do desenvolvimento fica latente como um problema que não se nega, mas que não se tem como tratar. No entanto, a questão do desenvolvimento se manifesta através das conseqüências das políticas anticíclicas e com seus efeitos acumulados e não previstos. Nelas, a questão do desenvolvimento fica subsumida, como um problema que não se nega, mas que não se tem como tratar. O desafio do desenvolvimento se manifesta através das conseqüências das políticas anticíclicas e de seus efeitos acumulados e não previstos. Na realidade, o movimento negativo da economia pode ser visto como um problema de conjuntura ou como uma tendência que afeta negativamente as perspectivas de desenvolvimento, portanto, cujo significado só se percebe quando é colocado segundo o modo como afeta ao futuro da economia. Uma rápida revisão dos aspectos de transformação social que estão subentendidos na dinâmica manejados pela teoria indica alguns princípios de dinâmica do mundo da economia que não se pode deixar de considerar. Seriam eles o multiplicador do

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emprego, o acelerador da despesa, a causação circular cumulativa dos efeitos de dinâmica e a entropia do sistema produtivo. A eles somaremos os efeitos da concentração do capital na continuidade da acumulação, que é o modo de ver como os diferentes efeitos da mecânica do processo deságuam em um processo econômico e político, em que favorecem algumas mudanças necessárias ao desenvolvimento, enquanto cerceiam outras e, em todo caso, que modificam as condições sociais e políticas do processo de desenvolvimento. O problema todo gira em torno da continuidade da acumulação, que é um pressuposto inerente ao sistema do capital. A suposição que o processo de desenvolvimento pode prosseguir é compatível com essa premissa de uma acumulação sem prazo para terminar, mas é negada ou questionada pelo pressuposto de comportamento cíclico, que acarreta aceitar como natural a hipótese do ciclo negativo que interrompe a acumulação. A seguir, trata-se de estabelecer o desenvolvimento como movimento de auto-superação da sociedade. Se esse processo consiste em superar inércias e reverter movimentos negativos, desenvolvimento será superar tendências do subdesenvolvimento, onde os ciclos negativos operam como vetores dissonantes do movimento geral do capital. As crises obstruem ou tergiversam a trajetória do capital. Com essa percepção da realidade, será preciso ver a gestão anticíclica da economia como uma dimensão inseparável da política de desenvolvimento. Se o crescimento é oscilatório, se está sujeito a movimentos de irreversibilidade e de entropia, a gestão da crise atual é parte de uma política concebida em longo prazo. Além disso, se as crises apontam a novas condições e objetivos para o crescimento da economia obrigam a refazer os horizontes de desenvolvimento com que se trabalha. Nesse contexto colocam-se os espaços de manobra em que opera a política econômica reconhecendo um papel ativo ao Estado na fiscalização e na participação em grandes empresas e estabelecendo padrões de eficiência junto com argumentos éticos que são contraditórios com a premiação pela concentração do capital. O poder de fiscalizar tem um aspecto aparente, mas pertence a uma realidade em que disputam espaço forças políticas que controlam os meios formalizados da política.

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Volta-se a uma questão essencial da dialética do desenvolvimento, que é a de combinar os objetivos de aumentar o produto e distribuir a renda com os outros objetivos de criar condições sociais e políticas compatíveis com esse objetivo. Será preciso colocar as políticas anticíclicas como parte de políticas de desenvolvimento em longo prazo. Este objetivo principal exige que se considerem quatro referências essenciais do funcionamento do sistema produtivo, que são as de: (a) modificações nas condições técnicas de uso do capital disponível; (b) modificações no quadro da ocupação total, compreendendo a composição de empregos regulares e ocupações precárias; e (c) modificações no contexto das relações de poder na condução da economia. Em síntese, os obstáculos e as vantagens com que se conta para superar o subdesenvolvimento mudam ao longo dos tempos da formação do capital e da conseqüente composição das relações de classe. A análise das relações entre o poder econômico e o político envolve uma dimensão de previsão que é incompatível com a visão mecanicista da economia (Badaloni, 1989). Se, por um lado, as políticas determinadas pela compensação dos ciclos geram efeitos que condicionam as políticas de desenvolvimento, estas, por sua vez, causam efeitos sobre a composição da demanda, onde o acelerador da despesa influi no comportamento cíclico da produção. As interdependências entre estas duas abordagens de política dão um sentido historicamente novo à intervenção dos governos nacionais na condução do grande capital. Torna-se, portanto, necessário examinar o potencial destas novas políticas como instrumentos anticíclicos e de desenvolvimento. Tanto as políticas anticíclicas como as de desenvolvimento são complexas e geram alguns resultados previstos e outros inesperados, mas que em seu conjunto correspondem a novos padrões de possibilidades de agir do Estado.

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5. Alienação e ideologia na formação do capital. As idéias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época. Marx71 Passaram os tempos em que a força de trabalho se submetia incondicionalmente às leis de mercado e também os tempos em que o Estado era prescindente em matéria de distribuição da renda. Raul Prebisch72

Preliminares

Esta pesquisa começa com a observação de que a alienação não é um estado senão é um processo que desenvolve seus próprios modos de reprodução, incorporando e modificando as instituições e as relações reais entre os capitais e os trabalhadores. À medida que as relações de trabalho se tornam mais indiretas elas também desenvolvem mecanismos diretos de controle que podem ser comunitários ou de auto controle. A vigilância mútua entre os membros de corporações, a censura da mídia, o sentimento de culpa promovido pelas religiões, são mecanismos eficazes para promover novos modos e instâncias da alienação, que deverão ser examinados numa perspectiva emancipatória não européia. Os processos históricos da alienação A alienação é o processo pelo qual se faz a ponte entre os modos de controle social da sociedade patrimonial pré-capitalista e a sociedade capitalista avançada. Evoluem as condições concretas e as referências simbólicas da alienação. Desse modo se constroem as condições objetivas pelas quais se realiza a exploração do trabalho na produção capitalista. Nas transformações do capitalismo e da sociedade moderna as condições da alienação mudam junto com a organização social do capital, portanto, em consonância com as condições objetivas de sobrevivência dos trabalhadores. No bojo dos movimentos de assalariamento e de desassalariamento, foram quebradas as referências de responsabilidade do Estado pelo emprego e pela renda dos trabalhadores e a filosofia do neoliberalismo simplesmente deu uma explicação doutrinária para uma tendência generalizada do grande capital de se desentender da renda da classe dos trabalhadores.

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Karl Marx, A ideología alemã Discurso de despedida no XXI período de sessões da CEPAL, México, 24 de abril de 1986.

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A alienação quebra o sentido de solidariedade de classe dos trabalhadores, tornando-os individualmente mais expostos às pressões do capital. O reconhecimento da objetividade da alienação torna necessária uma revisão da teoria – em seu sentido mais amplo de filosófica e social – pelo menos desde os rumos postos pela obra de Hegel e seguindo pela de Marx para registrar os elementos concretos das relações de produção que surgem nas transformações das sociedades de hoje. A originalidade das novas sociedades ascendentes envolve composições do antigo com o moderno, que não são parte dos processos das sociedades européias.. As condições especiais de diferenciação social criadas pela colonização fizeram com que a alienação se processasse concomitantemente de distintos modos, no plano da produção simples e no da produção de alta tecnologia. A articulação entre as esferas da produção de alta tecnologia e as de baixa tecnologia é a marca mais nova do modo operacional do grande capital, que transfere custos e riscos para a produção periférica e garante lucros elevados a baixo risco. Mas é preciso registrar a originalidade do grande capital que aproveita vantagens das situações modernas e das arcaizadas. Os processos da alienação são movimentos que se renovam, que mudam de forma segundo o controle dos interesses do capital se traduz em novos elementos ideológicos da produção capitalista avançada. Não se trata de mapear o mecanismo original da alienação que sustentou as formas básicas de exploração na produção capitalista industrial, senão de ligar a progressão dos movimentos de alienação com os da organização social da produção. Deste modo define-se um tratamento não ideológico da alienação, ou de ver a alienação como um componente de um processo histórico concreto de formação de capital. Se ela começa como uma operação que se realiza no plano da subjetividade, imediatamente se resolve objetivizada como uma estratégia de luta pelo poder político na economia. Ao ver a alienação como processo objetivo de poder torna-se necessário segui-la como ela se realiza nos diferentes ambientes da produção, como se converte no circuito economia->política->economia. Começamos por reconhecer que a alienação passa por sucessivas e diferentes formas ao longo da história, correspondendo a diferentes condições de organização social da economia e da política. Primeiro foi conduzida pelos processos da colonização, passando de formas impostas pela força, pela dominação da

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exploração econômica privilegiada a formas mais sutis de controle ideológico, com mecanismos de valorização tais como símbolos de status da combinação de elementos da política e da religião. Em diferentes dosagens, segundo o componente religioso foi o catolicismo ou foi alguma das diversas variedades de protestantismo, em todo caso foi a combinação de política e religião sempre o caldo básico da construção das estruturas de poder que conduziu a alienação, operando principalmente sobre grupos sociais ascendentes, que são os mais expostos a novas influências. O panorama social da alienação torna-se e mesmo as formas tradicionais de alienação, como o trabalho subjugado do meio rural, são penetradas de separação, tal como acontece com a difusão de novos meios de comunicação sobre os grupos de baixa renda. O recrudescimento de religiões sem teologia, ou de religiões involucionistas, constitui uma demonstração das novas formas de irracionalidade que surgem nas brechas da racionalidade instrumental do capitalismo desigual. Esses movimentos de irracionalidade representam contradições da racionalidade operativa com que opera o capital tecnicamente avançado mas que são funcionais à racionalidade da reprodução orgânica do capital. Servem aos objetivos implícitos do sistema de poder econômico e político, traduzindo-se em uma mobilização ideológica que alcança os mecanismos de reprodução do poder. Nesse ponto não há como separar a racionalidade econômica do capital de sua racionalidade política. A alienação herdada Há uma diferença insuperável entre o discurso da luta pelo desenvolvimento que brota da consciência social da periferia do sistema mundial de acumulação de capital e o que se forma como concessão, ou mesmo como cessão dos países detentores das posições centrais dos movimentos de acumulação e de concentração do capital. O movimento geral de acumulação e concentração do capital não só é desigual em tempo e espaço, como e principalmente se realiza mediante a construção de diferenças sociais mais ou menos prolongadas. A consciência social do desenvolvimento é a de uma luta pertinaz para superar os processos do subdesenvolvimento, que ressurgem através do controle da renovação tecnológica e do capital financeiro e resistem a interpretações simplificadoras enquanto mudam constantemente de forma. A referência inevitável é a trajetória das origens até o quadro de hoje. Significa tratar com as marcas das diversas versões de

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colonialismo e dominação, compreendendo a escravidão, a servidão e a pobreza aguda crônica generalizada. Este sistema de poder opera através de um conjunto de mecanismos de alienação que separam os trabalhadores de seu contexto original de identidade. O atual sistema de poder representa a substituição do velho colonialismo por um sistema complexo de dominação, cujo eixo é uma aliança do grande capital com os Estados nacionais poderosos, com uma adesão das elites dos diversos países e um controle institucional do poderio militar. A concentração internacional de poder se traduz em formações nacionais interdependentes, que operam de modo interligado. Esta nova aliança torna necessária uma criticas das estruturações políticas a partir do desempenho econômico. A questão social da ideologia pertence à problemática da reprodução do mundo material da produção. É um problema central do capitalismo numa época em que os modos de funcionamento da sociedade do capital mostram maiores e mais complexos mecanismos de irracionalidade. Como em tempo percebeu Lukacs, há uma trajetória do irracionalismo, que se move desde um terreno filosófico até o da gestão direta dos capitais aplicados. A rigor, há trajetórias interligadas entre tudo que se processa no plano dos conceitos e da linguagem e o que se desenvolve no da realização de mais valia e no que impacta na distribuição da renda. Se são as idéias da classe dominante que predominam, é preciso perguntar quanto a classe dominante é consciente de seus interesses, quanto seus integrantes agem como classe e quanto têm as competências necessárias para cuidar de seus interesses. A explicação histórica do processo do capital não pode prescindir dos componentes de alienação e de ideologia, porque eles são os determinantes dos processos de poder que ligam a esfera da economia com a da política e se tornam as âncoras de uma análise social que com freqüência acede aos riscos e encantos do personalismo. Tampouco pode substituir a análise do poder historicamente construído pela dos modos de vivenciar o poder. Por isso não se irá muito longe se em vez de tratar de situações históricas concretas de poder e dominação se desenvolve um raciocínio limitado a referencias entre autores, onde a crítica é apenas uma discordância. Assim como a teoria da Física se distanciou de experimentos concretos, a teoria do mundo da economia se

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separou da ancoragem de referências a processos concretos e se satisfez com criticar pensadores contraditórios com esse processo ou se refugiou em modelos simplificantes. Ao reconhecer o papel ativo da ideologia na formação do sistema de produção a teoria deve tomá-la como parte integrante da realidade social histórica, segundo ela está integrada no mundo da economia e da política.

Justamente, o que se cobra da

explicação da ideologia é estabelecer sua função na realização da esfera material e não só na reprodução da própria esfera ideológica. Se a ideologia é o campo de manifestação de idéias de classe, a alienação é o mecanismo que transforma as idéias de classe em ferramentas de poder, que dão ao capital a capacidade de conduzir o processo de captação de valor, isto é, de converter a mais valia em parte integrada do sistema operacional do capital. Esse processo se realiza segundo a maturidade dos capitalistas e de suas instituições para combinar a gestão do capital acumulado com a busca de novas oportunidades para aplicar capital novo. Em todos lugares e momentos a ideologia reúne os dois aspectos de refletir o conhecimento de um momento anterior do mundo social e de reagir ao funcionamento do mercado onde operam. A ideologia é um reflexo de condições de vida historicamente identificadas, pelo que não pode ser apenas o discurso do campo imaterial da vida social, desprendido da movimentação do sistema produtivo. O que liga os movimentos da ideologia com o plano das condições individuais das pessoas é a alienação. Neste esforço precisamos mais de uma análise do contexto histórico que das teorias, mas não podemos prescindir de uma revisão delas, porque finalmente elas situam nossa capacidade de ver os processos históricos. A reflexão sobre este tema traduz-se em um exercício de análise comparada das obras de Hegel e de Marx e não na de um ou do outro. O propósito de convalidação de Marx filósofo através de uma crítica desqualificadora de Hegel perde a riqueza dessa complementaridade inerente ao desenvolvimento da obra de Marx. São dois projetos pessoais de trabalho, em que o segundo não poderia acontecer sem o primeiro, mas onde o primeiro construiu uma noção de totalidade que jamais foi superada. A explicação da materialidade nas transformações da sociedade moderna levou Marx a desenvolver uma crítica da teoria de Hegel sobre o Estado, como parte de uma colocação maior da dialética da formação

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social do poder, compactada em sua filosofia do Direito73. A descoberta da complexidade do sistema socioprodutivo só se realizaria plenamente no primeiro volume de O Capital, quando Marx inverteu a ordem ontológica da exposição em favor de uma ordem categorial, numa manobra aristotélica, de apoiar-se na categoria mercadoria que encerra duas armadilhas mortais. Primeiro, porque não existem mercadorias individuais, senão elencos de mercadorias, onde o valor de cada uma delas depende do das demais. Segundo, porque o conteúdo de trabalho de cada mercadoria muda de modo inevitável, segundo o sistema incorpora tecnologia. Criticar Hegel seria um passo necessário na direção de uma maioridade ontológica. Marx centrou sua crítica nesse texto, mas não desconhece outras formulações anteriores de Hegel.74 Tornou-se consensual entre os leitores de Marx que a afirmação do rumo de suas pesquisas começa com uma ruptura com o idealismo de Hegel, de quem, entretanto, absorve o método dialético e a visão histórica. A crítica de Marx a Hegel envolve uma combinação de elementos positivos e negativos, em que sua crítica parte do conceito central da dialética hegeliana, a

superação/subsunção representada pela expressão aufheben, que se

encontra no prólogo da Fenomenologia; e que se defronta com a contradição dada pela inter-relação do raciocínio dialético, quando Hegel separa o processo do Estado do processo da sociedade civil. A argumentação desenvolvida nos Manuscritos depende desse salto de raciocínio despregado na Crítica da filosofia de Hegel, de 43, em que a disputa conceitual na verdade se revela como uma querela sobre a historicidade da sociedade e do Estado. Nada a ver com a versão popularizada de uma inversão superficial do uso do método dialético.

A querela de Mézsáros sobre a alienação A categoria da alienação ocupa um determinado espaço na doutrina de Marx, que recebeu diferentes leituras no campo marxista, divergentes mesmo quando parecendo semelhantes. Desde logo, é preciso entender que a alienação em Marx é uma síntese conceitual de um processo de desligamento do trabalhador com sua condição de produtor, onde se registram a fragilidade de sua posição no mercado de trabalho. Apresentam-se aqui comentários à Teoria da Alienação em Marx por Istvan Meszáros, 73

G.W.F.Hegel, Elementos preliminaries de uma filosofia do Direito, Lisboa, Presença, 1984. Marx conhecia a Fenomenologia do Espitito e a Ciência da Lógica, mas devemos entender que não conheceu as Lições de História Universal, que só foram publicadas depois de sua morte.

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que se coloca na chamada corrente historicista do marxismo, basicamente, seguindo a obra de Georg Lukács, centrando esforços na explicação da ideologia na sociedade de hoje. O objetivo destas reflexões é a teoria da alienação e não uma exegese da obra de Meszaros, mas convém esclarecer que seu ensaio sobre a teoria da alienação em Marx ocupa um lugar significativo numa seqüência de análise sobre o componente ideológico do sistema social, que marca uma diferença fundamental frente a outras correntes de pensamento que separam a subjetividade do sujeito historicamente consistente. Esse debate tem uma trajetória especial no contexto do marxismo, que está em torno do reconhecimento do sujeito como ser social e da determinação da personalidade como decorrência do sistema em que a vida social se realiza. Lukács geralmente é identificado como fundador do marxismo ocidental com seu ensaio História e consciência de classe, mas é autor de uma notável leitura de Hegel

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e de

uma importante análise crítica da ideologia enquanto parte do sistema social do capitalismo. Especialmente, em seu último trabalho, que foi a Ontologia do ser social, Lukács oferece uma análise da historicidade na análise de Marx, que envolve a interação entre os componentes materiais e os ideológicos do processo social e que desqualifica qualquer análise separada da ideologia. Meszáros retoma uma parte importante da proposta de Lukács, mas se separa dessa tradição, na medida em que omite uma análise histórica concreta.

Usar experiências concretas, ou referir à

pluralidade histórica do capital, não significa sucumbir à maré da “economia nacional”, que significa descartar a própria pluralidade da história e supor que todos os movimentos do capital podem ser percebidos desde o centro mundial da acumulação. 76 Logicamente, toda essa especulação se remete à obra de Marx, em que se destaca a importância de seus primeiros trabalhos na construção da crítica do sistema capitalista de produção. Marx identifica o problema da alienação em dois momentos especiais e diferentes de suas primeiras obras, que são sua crítica da filosofia do direito de Hegel e o Manifesto Comunista. As teses desenvolvidas na crítica da filosofia do direito de 1843 foram resumidas e integradas no corpo analítico mais complexo que são os Manuscritos 75

Georg Lukács, El joven Hegel, Barcelona, Ariel. 1967. A economia ortodoxa está, toda ela, fundada em pressupostos da economia nacional e trata dos temas da economia internacional a partir de uma visão de economia nacional. A internacionalidade do capital e a mobilidade do trabalho entram como campos adicionais que se exploram, mas cuja exploração não muda em nada a perspectiva da análise.

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Econômicos e Filosóficos de 1844, que, por isso, passaram a constituir o corpo de análise – sistema em status nascendi, como o denomina Meszaros – apesar de ainda não terem incorporado a crítica histórica da materialidade do sistema do capital, que surgiria com os Grundrisse. Nos Manuscritos já se encontram os elementos básicos de uma teoria da exploração, que, entretanto, passa a incorporar os elementos daquela dimensão histórica que permitirá contrastar o sistema capitalista de produção com seus sistemas antecessores. A alienação passa a ver-se como elemento essencial da produção capitalista, que se aprofunda à medida que a produção se torna mais indireta. Desde aí fica superada a idéia de uma análise da alienação que não se fundamente em dados da história e que não trate especificamente do capitalismo. Já no Manifesto o tema central é a alienação imposta pelo capital, onde por um lado os trabalhadores são isolados como pessoas e por outro lado são agrupados como operários. A alienação converte-se em controle social. Em ambos momentos, a noção de alienação surge como detecção de um processo social concreto, que tem um pé no controle dos trabalhadores e outro pé no controle de umas seções do capital por outras com a ajuda dos próprios trabalhadores. As duas formas de controle variam ao longo do processo de acumulação, compondo situações em que as posições das pessoas são incomparáveis com momentos anteriores do processo e onde as pessoas são desvestidas de seu caráter histórico e podem ser substituídas ou terem sua identidade apagada. A alienação atinge ao sistema socioprodutivo em seu conjunto e não só àqueles que estão trabalhando hoje. No que pode ser o contrário da alegada empregabilidade, o que há realmente é que as pessoas se tornam descartáveis, que sua qualificação pode ser anulada, e junto com ela sua capacidade de pensar e agir de modo autônomo. A alienação é o processo que torna possível a exploração, portanto, não se limita à esfera da ideologia. A grande força da alienação é que ela explica a energia que conduz a produção capitalista através do sem sentido da acumulação. Istvan Meszáros realiza uma exaustiva revisão dos fundamentos civilizatórios da alienação, reunindo suas raízes ideológicas junto com suas pistas nos processos concretos da produção burguesa. Constrói um importante modelo explicativo, que foi recolhido em suas obras posteriores, especialmente em O Poder da Ideologia. É uma contribuição inestimável, que, entretanto, nos deixa diante do problema crucial de distinguir as diferenças entre

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identificar ideologia como parte da construção ideológica da produção capitalista, ou como parte da progressão das contradições da organização social da produção burguesa. Teremos que ver a alienação como uma força que encontra novas formas de expressão no ambiente da produção moderna e no da produção ultra moderna. O propósito de explicar a explicação da materialidade da sociedade moderna levou Marx a desenvolver uma crítica da teoria de Hegel sobre o Estado, que é parte de uma colocação maior do mestre da dialética sobre a formação social do poder, que está compactada em sua filosofia do Direito77. Com o conhecimento que se tem hoje do pensamento de Hegel em seu conjunto, que não estava disponível para Marx, impõe-se visualizar o projeto de Hegel, em sua forma final, tal como se vê hoje. O objetivo final de Hegel é uma teoria do poder na formação da sociedade moderna que passa por uma economia política, mas que é, essencialmente, uma filosofia do poder. É necessário ressaltar que Marx centrou sua crítica nesse texto, mas que não desconhece outras formulações anteriores de Hegel.78 Tornou-se consensual entre os leitores de Marx que a afirmação do rumo de suas pesquisas começa com uma ruptura com o idealismo de Hegel, de quem, entretanto, Marx absorve o método dialético e a visão histórica, que aplica a sistemas historicamente situados. No entanto, costuma haver muita simplificação nesse argumento, atribuindo a Marx um tipo de crítica muito inferior ao escopo de seu projeto intelectual. Pode-se identificar a raiz dessa crítica em um ponto na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em que diz Marx “ A subjetividade éuma determinação do sujeito, a personalidade uma determinação da pessoa. Em vez de concebe-las como predicados de seus sujeitos, Hegel autonomiza seus predicados e logo os transforma em forma mística em seus sujeitos. [...] Hegel autonomiza os predicados, os sujeitos, mas ele os autonomiza separados de sua autonomia real, de seu sujeito”79 A nosso ver, a crítica de Marx a Hegel é muito mais complexa que isso e envolve uma combinação de elementos positivos e negativos, em que sua crítica parte do conceito central da dialética hegeliana, a

superação/subsunção representada pela expressão

aufheben, que se encontra no prólogo da Fenomenologia; e que se defronta com a contradição dada pela inter-relação do raciocínio dialético, quando Hegel separa o 77

G.W.F.Hegel, Elementos preliminaries de uma filosofia do Direito, Lisboa, Presença, 1984. Marx conhecia a Fenomenologia do Espitito e a Ciência da Lógica, mas não poderia conhecer as Lições de História Universal, que só foram publicadas depois de sua morte. 79 Karl Marx, Crítica da filosofía do Direito, São Paulo, Boitempo, 2005, pp.44. 78

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processo do Estado do processo da sociedade civil. A argumentação desenvolvida nos Manuscritos depende desse salto de raciocínio despregado na Crítica da filosofia de Hegel, de 43, em que a disputa conceitual na verdade se revela como uma querela sobre a historicidade da sociedade e do Estado. Na abordagem de Marx as transformações que acontecem na esfera do Estado são parte integral das transformações da sociedade em seu conjunto, inclusive, porque somente através da análise das interações entre o Estado e a sociedade civil é possível penetrar na metamorfose política do capital. Numa leitura linear da crítica de Marx, dir-se-ia que o Estado hegeliano separado da sociedade reduz-se a uma realidade positiva, cujo único produto é a burocracia. De fato, nesse momento do pensamento de Marx surge uma identificação crítica da burocracia, cujo sentido de finalidade se diferencia do modo histórico do Estado e se torna um aparelho da burguesia. Marx dedica algumas páginas à burocracia na Crítica da filosofia em que se antecipou à temática de Weber, vendo, entretanto, o papel da burocracia como instrumento de poder do capital. Mas não se pode esquecer que foi justamente Hegel quem rompeu com o jus naturalismo

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para erigir o direito como formalização

histórica. Qual será, então, o processo que desveste a condição histórica do Estado? Marx focaliza sua crítica na objetivização do predicado feita por Hegel, que permitiu a este último tratar o Estado como sujeito do poder, com um sentido de finalidade que é a reprodução do poder do soberano, isto é, do monarca, por separado da legitimidade que lhe é dada pelo povo. \ Assim, essa crítica que começa como uma análise do processo da análise, torna-se uma reivindicação do fundamento antropológico de processo do poder, onde surge o povo como presença essencial da sociedade. O povo é o princípio ativo da dialética do poder. Mas o povo não é uma entidade amorfa, não é uma multidão regida apenas por solidariedades momentâneas, senão carrega uma história com processos próprios de coesão e de conflito. O povo brasileiro interage com a história do Brasil. Faltará, portanto, resolver o problema de ligar essa crítica do processo político do poder com a materialidade da economia. Esta se transforma junto com a composição do capital e com a das forças do sistema político.

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Ver Norberto Bobbio, Quatro ensaios sobre Hegel

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Esse será o programa de trabalho da crítica da Economia Política, que não pode se eximir de enfrentar a inter-relação entre os processos pretéritos e os atuais. A historicidade da análise social da economia é uma qualidade a ser preservada e que permite acompanhar as mudanças de composição e de rumo do sistema produtivo. Há uma diferença radical entre o papel do descobrimento da teoria da alienação na formação do corpo de idéias de Marx e o significado que lhe é atribuído na leitura de Meszáros. A proposta de Meszaros compreende uma identificação do sujeito da análise, que, afinal, é sujeito do processo de reflexividade que surge no contexto da sociedade burguesa, que é esta consciência social crítica. A identificação do sujeito é um processo que extroverte as diferenças de situação das pessoas por sua identidade como trabalhadores ou simplesmente como pessoas – o que remete essa análise ao corte antropológico do contexto social. Para Marx, tal como ele coloca em sua crítica da filosofia do direito de Hegel e como desenvolve na Ideologia alemã, o sujeito se realiza mediante a práxis e esta é a matriz de que parte Lúkacs na sua História e consciência de classe. A derivação constante de práxis – identidade – práxis é o fundamento dialético do movimento ideológico contra-hegemônico que situa a representação do trabalho no processo do capital A questão é que nessa análise social há um humanismo que é mais que um humanismo ético, porque qualifica o humanismo de processos sociais específicos. Nessa qualidade, entra o trabalho de Meszáros sobre a questão do judaísmo , que ele trata como uma marginalidade e como uma tradição de individualismo e independência. Observe-se que no estudo de Meszáros se cruzam duas vertentes de leitura dessa marginalidade, que lhe permitem tratar o judaísmo como fonte de liberdade. A cultura oficial será uma prisão cultural, porque se converte em imposição irracional de uma determinada forma. Por exemplo, o formalismo metrificado da poesia francesa, ou o viés empirista da filosofia inglesa. Marginalidade significa dispor de liberdade para pensar os processos sociais além de seu enquadramento atual, por isso, em condições de expor seus fundamentos ideológicos. Com a teoria da alienação se questiona a combinação do movimento concreto de separação do trabalhador do processo de produção com o movimento de transfiguração ideológica do processo produtivo em seu conjunto, que reverte sobre todos seus

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participantes e não só sobre os trabalhadores, que são vitimados por essa separação. A alienação compreende processos da produção material e processo simbólicos, em que o controle do universo simbólico passa a ser manejado como uma mercadoria colateral que se torna essencial ao capital, que é a publicidade. A alienação é um movimento gerado pela transposição do poder do capital para a esfera do trabalho, onde ele passa a reger o modo como as pessoas vêm a ser trabalhadores funcionais à reprodução do capital, ou como protagonizam comportamentos de resistência e procuram se emancipar da tutela do capital. A renovação do debate sobre a alienação O trabalho de Meszaros mostrou a necessidade de reconstruir o debate sobre a alienação, agora, dizemos, incorporando-o à critica da colonização. O essencial do processo da alienação é que o envolvimento progressivo da alienação supera os horizontes de percepção dos participantes do processo de poder, dando-se que o escopo da alienação é o do nível histórico do processo e não o da situação de cada trabalhador no processo. As condições de alienação variam segundo os integrantes da sociedade são atingidos por movimentos gerais do capital, tal como pela difusão da mídia eletrônica, ou por estratégias específicas do grande capital. Logicamente, pesam as iniciativas dos diversos grupos para ampliarem seus espaços de poder, tal como acontece com os grupos de rendas superiores, que usam sua educação e sua mobilidade para se associarem ao bloco de poder. Em síntese, o processo de alienação é um aspecto essencial da sociedade do capital não se restringe às condições de pessoa alguma em particular. Trata-se de um traço essencial da sociedade do capital e não de pessoas. Por isso, e não por se tratar em geral de um contexto histórico em que mudam os significados das relações de produção, é preciso não perder de vista as alterações dialéticas do arcabouço conceitual, que tornam necessário reconhecer que acontecem mudanças de significado de conceitos aparentemente invariantes. Conceitos tais como o de indústria, usado por Meszaros como invariante, deve ser substituído pelos conceitos de grande capital e de pequeno capital e com uma extensão da análise do aparelho produtivo, que reconstrua a ligação entre as formas de produção e os mecanismos políticos e operacionais do capital. Ao escolher a denominação indústria Meszaros cai na armadilha que foi evitada por Marx, que consiste em confundir o modo técnico com o modo de organização social.

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O modo técnico, que é a produção industrial, se resolve mediante diferentes escalas de tamanho dos diversos capitais, cuja organização é a produção industrializada. A organização social é a que liga a grande indústria ao grande capital e ao capital financeiro e que gera relações de trabalho que aprofundam a alienação. Cabe aqui, portanto, a observação de Sartre, que demarcou a diferença entre a visão progressivaregressiva, que está no centro da prática da dialética desde Hegel; e a visão geométrica da estrutura conceitual, que se reporta apenas a um movimento do processo.

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No

mesmo caminho, Maurice Godelier lembra que “ os conceitos de economia são, segundo Marx, representações do visível”.

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Na economia crítica os conceitos

aparecem com seus contrários: emprego vs desemprego, lucro vs salário etc. O que não é visível são as relações sociais de produção, que estão por trás do emprego e do salário. A distinção aristotélica entre aparência e essência está na raiz desse pensamento crítico. A critica de Marx é uma combinação do que é visível com o que não é visível. Ao procurar explicar o processo de alienação através de um jogo de posições aparentemente fixas, Meszáros revela situações de contradição, mas compromete o poder explicativo da análise e deixa em aberto uma questão,

de método e de

interpretação, relativa à relação entre os níveis de abstração com que se desenvolve a análise e a generalidade dos problemas. Assim, diante dessa percepção dos problemas históricos da alienação, cabe indagar quanto se pode generalizar sobre a questão da alienação na sociedade de hoje sem perder a capacidade de registrar a pluralidade de situações concretas em que ela se apresenta? Esse é um problema ao qual inevitavelmente se chega quando se reconhece que Marx desenvolveu seus conceitos sobre uma fundamentação histórica concreta. A essência da teoria marxista da alienação é a captação desse movimento histórico que substitui posições e erode a identidade do ser social. A renovação das condições históricas da alienação 81

“ Desde que se introduz a temporalidade, deve considerar-­‐se que no interior do processo temporal o conceito se modifica. A noção, pelo contrário, pode definir-­‐se como o esforço sintético para produzir uma idéia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas, e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas.” (1965). Cabe agregar que as modificações no quadro conceitual alcançam o significado ou alcançam o conceito enquanto significante. 82 Maurice Godelier, (1965).

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O tempo da cooptação local e direta de trabalhadores e demais participantes mal definidos do mundo da produção por parte de representantes simples do capital já passou e os processos de alienação passaram a ser conduzidos por sistemas complexos que operam de modo indireto. A renovação dos mecanismos de alienação corre por conta de transformações do sistema produtivo em seus aspectos organizacionais e operacionais. No decorrer da segunda metade do século XX os movimentos do grande capital alteraram os processos de alienação. A universalização de procedimentos que veio junto com a globalização financeira e com a condução da hegemonia pelas multinacionais, impôs padrões culturais que se identificam com os das nações que lideram no eixo tecnologia-financiamento. Os sistemas e as organizações que se distanciam desses padrões passam a ver-se como desvios de uma racionalidade inquestionável que deve ser incorporada por todos. Daí surge uma suposta reversão da alienação, em que ser alienado é não estar incorporado na alienação geral de todos 83.

83

Nada mais oportuno para descrever essa inversão da alienação que o Ensaio sobre a cegueira de José Saramago.

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6. Criação, perda e recuperação da totalidade social No todo nada há de vazio ou de supérfluo. Empédocles

Os modos do todo Como colocou sinteticamente Aristóteles, o que se cria já nasce com a marca da corrupção, pelo que o que se detecta como definido do futuro já é parte integrante do passado. A imanência da destruição é o que assegura O mundo social representa um desafio ao conhecimento nos dois sentidos de penetrar na problemática da sobrevivência e de auto-descobrimento do sujeito do processo social. Perante esse amplo desafio, as ciências sociais se dividem em torno do tempo e de uma visão do mundo social que se forma desde as diferentes perspectivas daqueles que se identificam mediante projetos de poder sobre outros e dos que não participam desse tipo de projeto de poder. A totalidade será um atributo de um determinado espaço de tempo histórico e corresponderá a situações históricas específicas. Por isso, as tentativas de síntese ficam do processo social ficam aprisionadas em um determinado projeto de história de época, como aconteceu com Polanyi (2000) e com Elias (1994), apesar de que o primeiro pretendeu oferecer uma ancoragem genuinamente secular para a atualidade enquanto o outro procurou renovar no mapeamento da pluralidade de dimensões fugazes do que é secular. A indagação sobre o significado de totalidade no campo social existe desde que há grupos estáveis, mas a ascensão da burguesia projetou um novo conceito de totalidade que se realiza sem rupturas sociais iniciais. A compreensão do mundo social sugere uma incursão nos conceitos de todo e totalidade historicamente construída que é a grande definição do esforço critico de Marx, corporificada no conceito lukacsiano de histórico concreto. O mundo social é uma totalidade ou é uma totalização parcial e provisória que se modifica? Ou é uma totalidade composta de totalidades e insondável, como infinitude, como propôs Nicolas de Cusa. É preciso começar por distinguir o todo em sua objetividade e a totalidade como uma propriedade do todo. O todo é móvel porque se auto-renova e seus elementos se repõem e suas perdas de energia sempre se compensam ou ele não será o todo. O acesso ao todo é sempre parcial e diferente para uns e outros e segundo onde eles se encontram. Todos são iguais no caminho ao todo, mas alguns sabem disso e outros ainda não. A totalidade é a qualidade do todo, mas ele

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mesmo não tem qualidades nem atributos, que seriam sinais de parcialidade. O contrário do todo seria o nada, mas como o nada só pode existir como conceito o todo não tem contrário. Na esfera social o caráter seletivo das totalizações dá lugar a uma totalidade positiva, de tudo e todos que são reconhecidos como incluídos e seu negativo, que é a totalidade dos excluídos. O progresso do capitalismo produz diferentes momentos de exclusão, com diversos tipos de excluídos e uma ordem do mundo da exclusão que se passa a ver como o mundo da informalidade. Os excluídos não são um universo pulverizado de indivíduos, mas controlados pela ordem oficial e e carregam ordens anteriores ou criam sua própria ordem como meios de defesa.

A totalidade social como parcialidade e como circunstância Como mostrou Lucien Goldmann (1967) a noção moderna de totalidade foi gerada pela sociedade urbana ascendente do capital, correspondendo à presença da burguesia como principal força unificadora dos espaços nacionais. A totalização burguesa ligou a noção de sociedade à de mercado. Associou as liberdades civis a participação no mercado, logo convertendo os cidadãos em consumidores, isto é, transferindo os direitos das pessoas às mercadorias. Desse modo definem-se pautas de ação com noções próprias de tempo. O reconhecimento da categoria colonização impõe considerar uma totalidade a ser lida a partir da separação essencial entre os componentes da sociedade partida que se reproduz a partir de sua divisão interna inicial. O movimento da colonização se fundamenta em um principio separador que supõe diferentes condições de tempo para colonizadores e colonizados. A noção moderna de totalidade foi gerada pela sociedade urbana ascendente do capital, que ligou a noção de sociedade à de mercado e associou as liberdades civis à participação no mercado e onde se definem suas pautas de ação, com sua própria noção de tempo. É uma totalidade da sociedade burguesa, onde prevalece o pressuposto de participação universal na produção e no consumo. Uma totalidade que surge de um ambiente de conflitos e consensos de interesses. O mercado é o ambiente dos negócios mediante os quais esses interesses

se

comunicam. O mercado

perfeitamente livre seria tão utópico como uma sociedade sem pressões de poder. As

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desigualdades de poder não seriam um desvio nessa realidade senão um traço essencial do mundo da economia burguesa, na qual os processos do capital são sempre temporários. A distinção entre o que é permanente e o que é temporário denota sempre o reconhecimento de diferentes escalas de tempo, com processos cuja duração pode revelar-se maior ou menor que o previsto, em função do aparecimento de imprevistos. Por exemplo, o uso maciço de carvão continua por muito mais tempo depois que esse combustível foi declarado técnica e ambientalmente inadequado. A formação de uma totalidade social é um processo sujeito a avanços e retrocessos, em que os modos de incluir e de excluir pessoas estão expostos a alterações em um mesmo padrão de organização, tal como aconteceu no contexto do escravismo, com o aumento do número de escravos que se tornaram trabalhadores a soldo e na produção industrial, que passou a substituir salários por contrato por peça.

Dessa realidade surge a

percepção de uma totalidade de processo e não de estado, de uma totalidade constituída de combinação de movimentos e não de situações. A apresentação de um conceito de totalidade social tem duas raízes. A visão de uma totalidade cósmica copernicana, que transmite um sentido de unidade de corpos diferentes e uma totalidade no princípio de autoridade, onde o fundamento religioso cedeu ao político e onde o centro do poder monárquico entrava um crescente conflito com os interesses do capital. A secularização do poder resulta em uma requalificação do tempo (MARRAMAO, 1995) que praticamente exclui as perspectivas de futuro indeterminado e inclui uma continua transformação do passado. Trata-se da mais profunda revolução do mundo moderno, que além de apresentar novas categorias do tempo desenvolve nova relação entre o tempo e o ser, tanto no plano do ser puramente ser, como em Heidegger (1974) como no plano do ser social como no hegelianismo de Lúkacs 84. Há, portanto, uma diferença entre aquela percepção de totalidade emanada da harmonia celeste e a do meio social conflitivo.

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O fundamento hegeliano da Ontologia do ser social não só não pode ser negado como deve ser explorado como uma dimensao do discurso de Lukacs que começa com seu monumental Jovem Hegel.

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A noção de totalidade se forma do reconhecimento de elementos de solidariedade que garantem a coesão do conjunto social. Na América em geral ela se forma através de um processo colonial que se faz às custas da destruição das sociedades indígenas (RIBEIRO, 1996), com uma gradual diferenciação do projeto original de poder e adotando modos de organização pré-determinados pelas formas de produção, mineiras ou rurais, com suas correspondentes formas de comércio. Historicamente, surgiram núcleos que combinaram uma organização local com uma articulação externa e as sociedade “regionais” evoluíram para situações nacionais através de processos de supremacia interna de poder econômico e controle institucional, que representaram novos modelos políticos diferentes dos europeus colonizadores. A totalidade nacional demandou soluções de composição de regiões fortemente diferenciadas, tal como aconteceu nos países de grande extensão territorial e de hegemonia de cidades nos países de pequena extensão territorial. A construção de uma totalidade social no ambiente latino-americano correspondeu a uma variedade de possibilidades de Estados nacionais, com as peculiaridades de sistemas de poder econômico e social. O principal esteio do sistema político foi o poder rural que sustentou uma classe dirigente, diferentemente do sistema da mineração que permaneceu sob controle de interesses internacionais. Essa classe internamente poderosa mas dependente do comércio internacional teve que se adaptar a mudanças no esquema do mercado e na conseqüente estruturação do poder político. Oportunamente a classe dos proprietários teve um papel decisivo na produção de uma ideologia de conservadorismo tradicionalista que se projetou nas forças armadas, transformando-as em tropas de ocupação internas, identificadas com as grandes potências. Esse processo – que ainda está a espera de uma explicação mais completa – foi o retrato fiel dos movimentos autoritários das décadas de 1960 a 1980. Historicamente, a classe dos proprietários tornou-se o eixo de um processo de extensão dos interesses do grande capital mercantil, com seu projeto de induzir a produção das mercadorias que pretende trocar. Os proprietários desempenham o papel primordial de controlar a força de trabalho necessária ao funcionamento do sistema. No desenvolvimento do sistema mercantil o papel dos proprietários teve que mudar para se adaptar às transformações do sistema de financiamento e às mudanças nas condições de mobilidade dos trabalhadores. Assim será preciso distinguir entre o papel funcional dos

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proprietários e o rentismo no sistema produtivo em seu conjunto. A classe dos proprietários torna-se o lócus de um processo de diferenciação de interesses no bloco dominante porque detém os meios políticos do controle do poder, porém perde espaço para os interesses mercantis que, além de deter as vantagens de controle do financiamento da produção ficam com o controle dos acessos a mercado. A classe dos proprietários gera a elite que adiante conduz a atualização do bloco de poder, mas cria também representantes contestatórios, estimulados pelas crises, pela espoliação do comércio A percepção de totalidade sempre foi o ponto de partida de um pensar independente e a totalidade social, desde o logos à energéia e à praxis, é a marca de pensar o mundo social como um coletivo dotado de vida própria e de uma subjetividade construídas na história.

A totalidade social se forma continuamente através dos mecanismos de

inclusão e de exclusão de pessoas e de grupos segundo eles ganham ou perdem posições no sistema de relacionamentos que perfazem esta totalidade denominada de sociedade. Primeiros os bruxos, depois os artesãos especializados e mais tarde os operários perderam posição, salário e status na sociedade industrial moderna. A ruptura entre capital e trabalho estabelece uma distinção entre as pessoas que são identificadas como detentoras de controle de capital e que dependem de sua capacidade de ofertar trabalho desejado pelo capital. A estruturação do mundo social em classes estabelece uma abrangência e regras de inclusão, segundo os grupos realizam a passagem desde os movimentos mecânicos do trabalho repetitivo para as inferências em defesa de interesses e a conseqüente formação de consciência social. A consciência do trabalho é uma forma de subjetividade que se desprende da esfera mais simples da sobrevivência e que se projeta como potencialidade sobre os relacionamentos que se definem sobre as progressivas situações de necessidades e de escolhas criativas de tempo retirado das tarefas de sobrevivência. Assim como o trabalho simples não é comparável com o complexo em momento algum do processo produtivo, as situações do trabalho tornam-se incomparáveis ao longo do tempo. O potencial de autonomia do trabalho negado ao capital é um aspecto essencial para quem trata de transformações atingida por formas de dominação coletiva como a colonização. A observação cobre iniciativas na esfera da economia doméstica e que

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transcendem à escala de mercado local em feiras livres e em artesanato, assim como empreendimentos que se convertem na esfera local articulada com escalas mais amplas de mercado, portanto, que em seu conjunto representam trajetórias de formação do sistema produtivo na perspectiva do trabalho que interagem na totalidade social. O capital trouxe um sentido de totalidade forçada em que todos são constrangidos a estar à disposição das opções de emprego oferecidas pelas iniciativas do capital, o que significa que estão igualmente expostos ao desemprego determinado pelas opções de tecnologia e organização preferidas pelos capitais e não têm como se protegerem das tendências de desemprego seletivo e dirigido. É uma redução do problema da ocupação aos termos da produção capitalista. Mas como os rejeitados pelo sistema não se autoeliminam – exceto quando emigram – o que acontece de fato é uma outra regra geral do sistema, pela qual a perda de uma ocupação remunerada leva a estratégias de busca de renda real alternativa. No entanto, como essas estratégias divergem da lógica da reprodução conduzida pelo capital, têm que prosperar segundo outras trilhas de formação de renda e patrimônio. A análise urbana de cidades latino-americanas mostra como se organizam processos de formação de patrimônio a partir de moradias mínimas em favelas, tanto pela expansão dessas habitações como pelos negócios imobiliários que se desenvolvem nos circuitos de baixa renda

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. A tendência a que as coisas se processem desse modo é reforçada

pela concentração do capital que condiciona o nível e a composição do emprego nos diversos setores da economia à demanda de força de trabalho pelo grande capital. As relações técnicas entre indústrias exprimem interdependências de emprego que indicam como as indústrias de grande porte e de alta tecnologia transmitem impulsos diretos às demais indústrias ou como induzem seu comportamento através de controle financeiro. O campo social é sempre uma totalidade governada pela experiência, onde a identificação do homem surge de sua dupla relação direta com os demais e de sua relação indireta com o conjunto das experiências reconhecidas. A vida social envolve construção e desconstrução constantes, e quem o domínio da memória é uma vantagem 85

Há muitas referências a serem aduzidas sobre experiências de pesquisas em cidades latino-americanas. Começamos por referir ao trabalho pioneiro de Larissa Lomnitz sobre os modos de sobre vivência de grupos marginalizados em poblaciones na Cidade do México e vamos referir também a pesquisas em Salvador em bairros como em Pau da Lima e Suçuarana na década de 1990, quando pudemos constatar esses circuitos de negócios.

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e um modo de poder. O reconhecimento da totalidade é um movimento positivo que, entretanto, revela suas contradições no que limita a totalidade ao horizonte da totalização realizada pela expansão desigual do capitalismo. Como pensar uma totalidade social que decreta a inutilidade dos rejeitados? A crítica do desenvolvimento desigual é a mesma do modelo de civilização que se fez sobre essas progressões de desigualdade. Conduzir a polêmica sobre o desenvolvimento como um problema da civilização moderna do capital envolve o compromisso implícito de ir ao fundo dos processos geradores de desigualdade. O fundamento da questão é o controle da força de trabalho, que tem sido alcançado mediante a desorganização dos sistemas anteriores e a pilhagem do trabalho. A totalidade no universo da burguesia seria necessariamente contraditória e conteria o germe do conflito de interesses que em primeira mão seria entre capital e trabalho, mas que se manifestaria em conflitos de interesses entre os capitais sempre em pugna por posições vantajosas em mercado. Nesse movimento, o concurso do Estado foi essencial desde os governos conservadores da era pós-napoleônica até os atuais neoliberais sob a mesma fórmula de contratos públicos para empresas com influência política. A questão efetivamente consiste em que o nível e a composição do emprego formal estão determinados pelo mecanismo do emprego criado pelo capital, onde há uma relação orgânica entre o emprego formal e o universo das demais atividades que se designa como informais. Logicamente, para aqueles classificados como informais essas atividades não são informais nem dispensáveis. A informalidade é uma falsa definição, que deve substituída por outra, que seja capaz de reconhecer a diferença entre o que se apresenta como custo social da reprodução da mão de obra para a economia na visão do capital e o que se enfrenta como custo da defesa da renda familiar para os trabalhadores. A dominância é a função do poder extravasado sobre outros, pelo que é uma situação temporária de poder, de duração e formas variáveis, que se assenta sobre uma combinação de imposição e subserviência, decorrente de uma composição de meios materiais e ideológicos com que se constitui o sistema produtivo. A dominância está sempre sob a pressão das contradições de interesse incorporadas no modo de funcionamento do sistema. No mundo contemporâneo a dominância é resultado de uma combinação de poder econômico e político, conduzida por uma aliança de interesses

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privados com os Estados nacionais, que torna ingênuas as chamadas políticas de privatização.

A recuperação da totalidade social Nada muda mais depressa que o passado. William Waak

A rigor, a recuperação da totalidade social surge da eclosão de movimentos sociais que concretizam a presença de segmentos sociais alijados

do cenário do poder pelo

colonialismo e por suas derivações. Significa uma totalização que inclui a pluralidade antes negada. A atualização do sistema mundial do capital tem se feito às custas de enormes perdas em guerras e em crises de ajuste entre a reprodução do sistema produtivo e do capital financeiro especulativo. A transferência de custos sociais aos trabalhadores – na forma de contenção dos salários e de desemprego – veio acompanhada de contradições no centro da supremacia mundial, com diferenças de interesses entre os EUA e os países europeus, que já se definia no relativo aos conflitos do Oriente Médio, mas que se tornaram ostensivos no relativo a relações com nações ascendentes, especialmente com a China. A unidade do sistema torna-se, de repente, questionável quando há divisões de nações reconhecidas e quando as condições de associação entre nações mudam, oscilando entre relações diretas e o uso de órgãos internacionais que funcionam como espaços de negociações indiretas. Segundo situações transitórias que aparentemente são flutuantes, mas que estão ancoradas em preceitos de longo prazo, as nações variam entre uma ordem colegiada como a União Européia e uma imposição regional como são as relações dos EUA no hemisfério norte. Conceitos tais como os de Europa e de América Latina designam realidades em que a totalidade nacional se vê como um contexto processual, em que conflitam forças unificadoras e forças dispersivas, portanto, cuja solidez varia de um caso a outro. A substituição do mundo colonial por um mundo pós colonial é muito recente e não se completou, já que o sistema de poder pós-colonial, chame-se de hegemonia ou de supremacia, herdou vários dos elementos de controle do trabalho gerados naquele ambiente mas voltou-se contra eles quando passou a exercer poder em demitir e em conter os salários dos grupos de média e baixa renda, ao tempo em que defende ostensivamente o direito de pagar quaisquer cifras que julgue conveniente aos gestores do grande capital.

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O movimento de recuperação da totalidade social é produto das alterações do mundo político que se desdobraram a partir das guerras de independência, tanto das bem sucedidas como das mal terminadas, que deram voz a povos até então percebidos apenas como reservatórios de força de trabalho. Nesse contexto as propostas de políticas de desenvolvimento apareciam como outorgas dos países desenvolvidos, dirigidas para resolver problemas de bem estar mas não contemplam realmente a rejeição da desigualdade e preservam os mecanismos de dependência ideológica. O “perigo” latente representado pelas ex-colônias – países que foram criados como colônias ou que foram colonizados – apresenta-se de diferentes modos segundo são aliados cronicamente convenientes como a Índia ou nações essencialmente suspeitas como qualquer nação islâmica, dadas as tradições do medo medieval da expansão islâmica. A grande fratura da totalidade ocidental que se formou da quebra do princípio do poder imperial romano, que jamais foi completamente apropriado pelos projetos medievais de poder de inspiração germânica (D’Hondt, ; Le Goff, ) deixou o espaço o espaço que foi invadido pelo impulso unificador islâmico. A referência unificadora representada pela Igreja tornou-se logo contraditória com os projetos nacionais de poder referendados por direito divino e em conflito com a religião oficial organizada. A principal ameaça representada pelo islamismo é justamente sua unidade interna, que permite tratar com uma totalidade de todo o corpo social. O colonialismo criado pelo capital ascendente desenvolveu formas de separação social que se projetaram ao mundo do capital industrial através das diferenças entre o centro e a periferia da acumulação, onde o centro é conduzido pelo grande capital de alta tecnologia e a periferia é comandada por uma composição de grande capital de baixa tecnologia com Estados nacionais fracos. O mundo pós colonial torna-se a um tempo uma transição entre o mundo politicamente ungido pela religião e o mundo pós Revolução Francesa, legitimado pela sociedade de classes e despojado da legitimação religiosa. Mas sua autenticidade fica em jogo e a consistência dessa totalidade torna-se incerta. O mundo do colonialismo do capital industrial veio a configurar uma ordem internacional conduzida por uma tensão entre interesses de grande capital das metrópoles e sistemas pré-industriais de produção de matérias primas que envolveram combinações de produção primária – extração, agricultura ou mineração – com negócios

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que combinavam indústria e comércio

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. A nova totalidade social é a dos processos da

nova sociedade desigual, que gerou suas próprias regras de inclusão e de exclusão. Os trabalhadores de classe média não são mais obrigados a permanecer em seus empregos iniciais, mas passaram a lutar para preservar seus salários e seus postos de trabalho, para permanecerem em empresas que cobram lealdade de seus empregados, mas trabalham com estratégias de contenção de salários e controle do tempo de permanência dos empregados na empresa. Na nova totalidade social a incerteza se distribui desigualmente, junto com

diferenças do sistema educativo, que funcionam como

divisores de águas dos movimentos de inclusão e de inclusão nos circuitos de altos salários e empregos garantidos. O processo da desigualdade opera simultaneamente no plano internacional e no plano interno de cada país, configurando uma separação entre os que têm renda e e mobilidade para obterem renda e os que estão constrangidos a aceitar as opções de trabalho disponíveis. Há uma questão relativa a uma totalidade definida pela impossibilidade de poder concomitante com outra, formada a partir das contradições e convergências da formação social. Nada mais longe da macroeconomia baseada em cifras globais de procura e oferta.

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Inserir nota sobre a visão marshalliana de negócios em diversos setores

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7. O humanismo negativo do capital

Uma antropologia da história Assim como a visão dialética da história tornou inevitável uma sociologia como disse Marcuse, a visão histórica do mundo social levou a uma antropologia crítica que nada tem a ver com a antropologia cultural nem com a do resgate de etnias. A construção do alto capitalismo é um processo de despersonalização das decisões que em seus últimos resultados é um movimento de desumanização do mundo do capital. A antropologia imanente em Marx de que nos dá conta Mészaros, é a resposta da história de classes que se abalança no interior dos movimentos do capital para desenhar as grandes insatisfações e decepções da época do alto capitalismo e do capitalismo avançado.

A distancia entre o capital e o trabalho As atividades em sociedade são realizadas por pessoas que nem sempre são percebidas ou reconhecidas com o significado pleno que esse termo representa.

No mundo

econômico do capital há uma série de processos que desmontam o significado histórico da pessoa como e enquanto representativa de humanismo, que é substituído por aspectos funcionais dos indivíduos ou por sua afiliação a aparelhos ideológicos tradicionais, tais como igrejas ou partidos políticos fisiológicos. Estes funcionam como sistemas de poder e de reconhecimento, enquanto os anteriores são como aparelhos de resistência à perda de identidade conduzida pelos processos de controle social realizado pelo capital. As referências pessoas ou indivíduos são pólos de significância na sociedade do capital, onde os aspectos externos e os internos da individualidade são reduzidos por critérios de classe social utilizando argumentos estamentais associados a preconceitos herdados do colonialismo escravista. A grande contradição do capitalismo de priorizar o individualismo e cercear a individualidade impregna o sistema em seu modo operacional e em sua ideologia de poder. Falta voltar a sua base material que são pessoas. A atividade econômica é realizada por pessoas que aparecem como integrantes de diversos grupos com variados graus de permanência, com condições pré-determinadas

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de associação das quais se separam quando alcançam condições favoráveis de mobilidade. A identidade das pessoas na qualidade de trabalhadores depende de condições internas e externas a suas atividades; e sua continuidade na qualidade de trabalhadores depende de uma relação incerta e obscura entre a situação de estar ocupado ou desempregado, bem como de depender de situações erráticas de mercado para planejar a vida profissional. Na relação entre identidade e consciência de classe a precariedade do emprego tem um papel decisivo na determinação de formas básicas de solidariedade e a sobrevivência é atribuída ao sucesso individual. Não é que haja relações líquidas entre pessoas sólidas, senão que os traços de identidade das pessoas se tornam menos nítidos e que as relações entre as pessoas reflitam o clima defensivo em que elas vivem. A questão relativa aos interesses aflora através da erraticidade da renda. No atual mundo desigual e disperso do capital, a preservação dos interesses do capital em seu conjunto e independente de quem sejam seus integrantes, depende de uma centralidade do interesse individual que corresponde a uma identificação da esfera privada com a da individualidade e sublima a qualificação da condição das pessoas pela exploração delas mesmo como trabalhadores. A continuidade do capital depende de uma apropriação maciça de valor, que tem sido obtida mediante exploração, que é uma captação de valor que não beneficia os trabalhadores na escala de seu esforço. As duas leis básicas de alienação e exploração constituem um conjunto que é administrado através da divisão do trabalho e do controle dos usos de dinheiro e de tecnologia. Subjaz que o processo do capital trata com a individualidade genérica mas ignora pessoas e empresas concretas. Significa, também, que a sobrevivência de uns e outros só é necessária no que eles são funcionais à reprodução do sistema. Irracionalidade e crise.

Os efeitos da concentração de capital em termos de uma

crescente instabilidade do sistema socioprodutivo significam uma exposição inevitável a tendência à crise, levando a uma nova leitura do problema da irracionalidade do movimento do capital. Nessa perspectiva, são dois aspectos complementares de crise que se cruzam: a intermitência ou o encadeamento de movimentos cíclicos e o perfil estrutural da instabilidade do sistema, evidenciado pelos momentos de queda da

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demanda, mas que devem ser procurados no modo como as crises se formam, que no perfil de cada uma delas em particular. A diferença entre eventos específicos de crise e processos geradores de crise está na raiz do funcionamento do sistema, em que a lógica da reprodução do capital financeiro tende a reduzir a pluralidade de problemas concretos da indústria nos de gestão financeira do capital. Ao revisar os principais movimentos de capital na esfera mundializada nos últimos decênios vê-se que há principalmente dois grandes padrões de mobilidade do capital. Um deles é conduzido pela mobilidade financeira garantida por grandes massas de liquidez, que é a marca dos grandes operadores de capital financeiro, tanto de operadores individuais como de bancos, e opera sobre a expansão do terciário no mundo ocidental. Mas não se pode descuidar que esse movimento tem se abastecido de contratos que dependem da economia real e em grande parte em países periféricos. Por isso, contém ligações profundas com os movimentos da economia real, com sua pluralidade de mercados e de localizações. O outro movimento mundial é o que vem de novas formas de economia real, com novas escalas de demanda e capacidade de processar tecnologia. O fenômeno China mostra que há em marcha um movimento de escala mundial que segue um caminho alternativo de superação da segunda revolução industrial, realizando o movimento contrário, de expandir a esfera financeira na proporção da necessidade da produção real, ao invés da licença incontrolada do capital financeiro no Oeste. A distância entre o controle direto do trabalho nos locais de produção e o controle indireto, que se realiza através do controle das oportunidades de emprego dos trabalhadores, veio a sustentar o discurso da “sociedade do conhecimento”, que é um eufemismo da diluição da responsabilidade do Estado perante a regularidade da renda dos trabalhadores e seu acesso a emprego. Nesse ambiente de queima de perspectivas de renda dos trabalhadores, há, de fato, novas condições de exploração, que põem em relevo a necessidade de ver o movimento da produção em seu conjunto, entendendo a exploração indireta como um aspecto essencial do modo de acumulação do capital avançado e ainda, reconhecendo que a destruição de empregos regulares é um custo social de certa etapa da acumulação do capital, que pode prosseguir ou ser revertida. As condições de mobilidade do trabalho surgem por contraste desse movimento e da capacidade acumulada dos trabalhadores de representarem seus próprios interesses.

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A polêmica sobre a mobilidade do trabalho abre horizontes para diversas abordagens, que batem de frente com os problemas de organização social da produção, ou que roçam com as manifestações de irracionalidade embutidas nos comportamentos dos capitalistas. 87 A mobilidade em seus dois aspectos, de capacidade de mudar de emprego e de capacidade de migrar, também deve ser vista como a materialidade da condição social dos trabalhadores. Por isso mesmo, pode dar lugar a pesquisas sobre os processos materiais da produção e sobre os processos ideológicos do controle da produção. Há um componente de controle social – resultando em dominação - e um componente de resistência à dominação, que surge como as contra-estratégias mencionadas por nosso autor. Esses dois componentes se desenvolvem segundo as condições objetivas em que se encontram em cada sociedade. São diferentes condições de resistência em sociedade unificadas por um processo de capital que envolve a todos e em sociedades em que há fraturas, como a da escravidão, que resultam em processos diferentes e interligados. O trabalhador integrado ao capitalismo surge como ser social quando assume sua consciência de classe (Lúkacs, 1926) e quando se torna membro desse sistema de controle, apropriação e alienação. Nestas notas coloco-me na perspectiva da questão humanista, ou da questão do fundamento social, tal como visto através do capitalismo. Quando exclui, o capitalismo, induz uma estratégia de resistência por parte dos trabalhadores, que compreende luta por salário, por redução da jornada de trabalho e migrações, que em seu conjunto refazem o caminho da restituição da identidade, que é o caminho da contraposição à dialética da civilização, tal como denunciado por Marcuse.88 A estratégia de De Gaudemar, de valer-se de um longo prólogo, que funciona como um similar do VI Capítulo Inédito do Livro I de Marx, isto é, de um texto que antecipa o trabalho e adianta inferências do conjunto, tem um papel especial, que, adiante, ressurge no capítulo 3, intitulado O conceito marxista de mobilidade do trabalho, que é o centro teórico do estudo. De fato, em Marx, a produção da força de trabalho, isto é, quando o 87

A questão da irracionalidade – um contraste entre uma racionalidade superficial e instrumental – e uma irracionalidade essencial, inerente ao sem sentido da acumulação de poder, é um aspecto que liga a acumulação de capital à concentração de poder político, portanto, que é uma chave da análise das contradições da concentração do grande capital. A partir do trabalho seminal de Lukács – O assalto à razão, trajetória do irracionalismo de Schelling até Hitler – desenha-se uma linha de reflexão, que virá a ser uma crítica interna da sociedade econômica e da sociedade política de hoje. 88 O discurso da dialética da civilização é parte da leitura freudiana de Marcuse do capitalismo. Ver Eros e civilização ( Rio de Janeiro, Zahar, 1981).

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trabalhador mercantiliza seu tempo, socialmente necessário.

89

é o momento em que se define o trabalho

A pesquisa teórica transcende os objetivos imediatos de

explicar as condições atuais de determinados tipos de trabalhadores, para ter que se referir aos trabalhadores em geral e a trabalhadores específicos. Nessa orientação há, portanto, um viés inconfesso, de procurar legitimidade mediante um retorno aos fundamentos filosóficos do debate, pelo que, assumindo os termos e os modos de diálogo entre Sartre e Althusser. Nada de errado com isso, mas, na perspectiva de uma leitura realizada no Brasil de hoje, torna-se imperativa uma atualização ideológica. Aquilo que depois ficou definido como Marxismo Ocidental não seria um cacoete saxão, mas um sinal da transferência do debate dos sindicatos para as universidades, ou seria uma desvinculação de pensar e agir. Neste último sentido, tornaria necessária uma revisão do próprio conceito de agir, se apenas como ação partidária ou se como um agir nas diversas dimensões da vida social. A rigor, o ser social não tem como não agir. Primeiro, é preciso dar conta do imperativo do humanismo embutido no conflito da mobilidade, que, de fato, descreve o mecanismo de sujeição do trabalhador ao controle do capital. Não há como escapar de um humanismo, do mesmo modo como não há como escapar de ter uma ética, seja um humanismo conducente a uma superação de condições que descrevem a todos, ou seja um humanismo que convive com as separações do campo social, que são aceitas como “naturais”, tais como foram nas sociedades escravistas, desde a antiguidade até hoje. A questão do humanismo não esgota o problema social da emancipação, já que o humanismo pode ficar num plano genérico, sem entrar no miolo da questão da relação de classes. O fundamento humanista da mobilidade do trabalho está ligado à condição da relação entre classes, isto é, um humanismo que deve enfrentar a realidade do conflito social em sua variedade e profundidade, que não pode ficar no plano indeterminado de uma ética separada da situação social histórica.90 Tal situação é o ambiente da participação dos 89

É preciso lembrar que o trabalho socialmente necessário é o tempo médio de trabalho necessário a um dado nível de desenvolvimento do sistema produtivo. O trabalho socialmente necessário diminui nos setores que incorporam tecnologia e onde a força de trabalho se qualifica mais. 90 Distinguimos a discussão de uma ética socialmente representativa de uma ética abstrata socialmente indeterminada de expoentes da filosofia idealista, tais como Appel e Jonas. A questão levantada por

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diversos integrantes do processo, que podem mudar de posição, tal como mudar de sua posição específica como e enquanto trabalhadores, tanto como podem passar de capitalistas a trabalhadores, ou de trabalhadores a capitalistas, entretanto, sempre mediante processos que estão integrados nessa situação.91 Entre a mobilidade forçada e uma mobilidade autônoma, há uma diferença fundamental de condição social, dos diversos tipos de trabalhadores nas diversas sociedades nacionais. Precisamos extrair o que há de universal – dentro da produção capitalista – no relativo a condições de autonomia de decisão dos trabalhadores, e o que há de circunstancial. Entendo que as diferenças de autonomia são registros claros das diferenças de condições de classe. O argumento levantado por muitos dos que integraram a chamada teoria da dependência, de que as diferenças são antes de raça e cultura que de classe, constitui uma simplificação histórica surpreendente, porque pressupõe que as relações de raça e cultura não foram geradas em um sistema de controle internacional do capital, que, justamente, fundamentou o projeto europeu de dominação. Tal simplificação não registra as diferenças étnicas só existem para fins práticos no capitalismo como meio de dominação, e que foram usadas do mesmo modo, nos países europeus e em suas aventuras coloniais na América. Segundo, não há como separar o processo de produção da força de trabalho das condições de mobilidade dos trabalhadores concretos. Vale sublinhar, com De Gaudemar, que a força de trabalho é a mercadoria do trabalhador, que é ele próprio, mas que é uma alienação de sua pessoa. Assim, quando ele desenha o fundamento de mercantilização da força de trabalho, termina por chegar ao conceito – a meu ver duvidoso – de liberdade positiva e de liberdade negativa (pp.131). A liberdade negativa é o negativo da versatilidade do trabalhador. A perda dos instrumentos de trabalho, ou a inviabilização da pequena produção rural determinam essa perda de mobilidade própria, que constrange o trabalhador a aceitar assalariamento, mesmo quando em condições extremamente desfavoráveis. Nesse sentido, o mapeamento das condições de mobilidade depende do mapeamento do processo de produção da força de trabalho.

Lukács na sua crítica do irracionalismo ganha atualidade frente aos desafios da sociedade periférica fraturada.

91

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Estamos, portanto, diante de uma ética do individualismo, que pretende se legitimar, alegando que todos têm direitos iguais de tentar enriquecer. Essa ética admite os desastres das maiorias, do mesmo modo como as forças de segurança hoje falam em danos colaterais, quando erram alvos e atingem inocentes. Depois de se ter trabalhado com os desastres sociais causados pela escravidão e pela colonização, essa igualdade de oportunidades parece tão real como a concorrência perfeita. A questão ética ressurge de modo mais radical que quando foi exposta por Adam Smith.

B. O processo social de produção de força de trabalho é aquele mesmo processo que induz deslocamentos dos usos do tempo das pessoas, para que elas se tornem trabalhadores a serviço do capital. Esses deslocamentos jamais foram espontâneos. Foram induzidos ou foram conduzidos pelo poder do capital associado a força militar. Sua forma extrema obviamente é a escravidão, mas é preciso ter claro que ela sempre esteve associada a um grande número de formas de dominação que têm permitido reduzir as pessoas livres a trabalhadores, tal como indica a própria denominação de reduções indígenas. Não se pode ir muito mais longe nesta reflexão sem tratar do papel da escravidão na formação do capitalismo moderno. Ver Marx em Miséria da Filosofia. A produção social da força de trabalho tem aspectos quantitativos e aspectos qualitativos, onde os primeiros abrangem o número de pessoas e seu vigor físico e os segundos tratam da qualificação atual e da capacidade de atualizar a qualificação. A produção de força de trabalho, portanto, gera uma magnitude variável, cuja capacidade de decidir com autonomia varia segundo se forma sua consciência social e segundo ela é atingida por novas estratégias de dominação do capital. A variação quantitativa da força de trabalho resulta dos dois grandes fatores, que são a pressão do capital em expansão sobre populações de sociedades pré-industriais e de migrações, que refletem a variedade das condições objetivas de mobilidade dos trabalhadores. O papel dos bandeirantes na formação do contingente de trabalho dominado no período colonial no Brasil, forçando a entrada dos índios no sistema produtivo e o papel das migrações forçadas de nordestinos, são fundamentais

na

provisão de força de trabalho na formação da economia de São Paulo. As subseqüentes

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variações quantitativas, tais como aquelas representadas pelo deslocamento maciço de trabalhadores na corrida da borracha, foi alcançada por conta de fatores da expulsão de trabalhadores, de regiões que não eram capazes de absorver seu próprio crescimento demográfico. Observa-se que esses movimentos, que se apresentam como quantitativos, têm uma expressão qualitativa, no fato de que em todos os casos os grupos de trabalhadores deslocados, especialmente os indígenas, dispunham de um conhecimento prático e tradicional incomparável, que veio a ser a principal base da adaptação do sistema produtivo, cuja mecânica foi européia, mas cuja fisiologia foi americana.92 Em resumo, não há movimentos puramente quantitativos, ou todo movimento quantitativo que representa trabalho simples contém um traço distintivo de qualidade. No relativo aos aspectos qualitativos propriamente ditos, há um significado adicional relativo à não substutibilidade dos recursos humanos qualificados e à oportunidade em que eles entram no sistema produtivo. A qualificação é um atributo volátil, que se repete mudando sempre de composição, que pode incorporar valor indefinidamente, mas que está sujeita a rupturas tais como aquelas determinadas por mudanças nas tecnologias básicas. O resultado final desse processo é a historicidade da força de trabalho, que por sua transformação substancial, não pode ser considerada como uma mercadoria comparável com as demais. As máquinas são projeções de trabalho acumulado, mas que passou para o controle do capital. O que se coloca com a disputa sobre a substituição de trabalho atual por trabalho anterior, é que o aumento do controle do capital sobre o valor social produzido torna-se maior que a mais valia extraída. Nesta etapa da acumulação, a estratégia do capital ultrapassa o objetivo de aumentar a quantidade de mais valia extraída e vai ao objetivo de aumentar a capacidade de extrair mais valia.

92

Sem a contribuição dos indígenas como poderiam os negros se adaptarem ao novo continente? A história oficial não se ocupa muito das relações entre os dominados e não dá muito peso às comunicações entre os diferentes grupos de africanos e entre eles e os índios e mestiços no ambiente complexo da colônia. No entanto, esse outro lado da formação sócio-cultural tem um papel insubstituível na explicação das camadas sociais dos que buscam e ampliam espaços nos espaços de trabalho contratado na sociedade pós colonial, como artesãos e como donos de oficinas tais como de alfaiates, barbeiros, instrumentistas etc.

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C O que dá crédito ao gênio de Aristóteles é ter descoberto na expressão de valor das mercadorias uma relação de igualdade. Foi a limitação histórica da sociedade de seu tempo que lhe impediu desentranhar em que consistia a rigor essa relação de igualdade. Marx, L. I pp.26 A compenetração da história leva-nos a ver a sociedade em geral através de sociedades concretas. Assim, nossa sociedade é nosso objeto inevitável, que define nossas limitações para entender o mundo. Temos uma sociedade ex-escravista, marcada por relações de dominação quase escravistas, penetrada pelos aspectos mais sombrios da Inquisição

e

do

Estado

expropriador,

que

sempre

teve

um

componente

internacionalizado e um componente isolado, genericamente definido como restrito a circulação local. O fundamento ideológico é o mesmo da alienação! Como a maior parte das leituras desta sociedade se faz mediante visões que representam preferências ideológicas de se identificar com nações mais avançadas, isto é, como são visões das elites condutoras dos movimentos de modernização, tendem a suavizar esse subsolo sombrio da formação da sociedade brasileira. Essa manobra de suavização retarda a compreensão objetiva do processo. Essa manobra de suavização retarda a compreensão do processo que dependeu, justamente, do exercício da violência, tanto da violência física como da violência ideológica, que consistiu em negar a capacidade de desenvolver um nova identidade que nega o colonialismo apenas por se afirmar. De Gaudemar trabalha com as referências do Marxismo Ocidental através das leituras de Althusser, mas, a nosso ver, deixa escapar o sentido histórico do debate, que, justamente através de Althusser se transforma em discussão categorial. Esse é o desvio do debate que o torna separado da realidade de que tratamos. Para captar este contexto, a análise filosófica tem que recuperar seu caráter de análise social, para perceber o estatuto histórico das sociedades onde acontece o relativo aos trabalhadores. A categoria de prático inerte trabalhada por Sartre refere-se exatamente ao contexto do trabalho anterior realizado, que não pode voltar ao sistema em sua forma inicial, mas que pré

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condiciona o trabalho atual. Por isso, a nossa leitura dessa questão remete-se à relação orgânica entre esse prático inerte de o prático ativo, isto é, a relação orgânica entre a esfera do trabalho anterior e a do trabalho atual, que é por onde se realiza o mecanismo social da acumulação. No entanto De Gaudemar nos oferece uma leitura criativa de Adam Smith, que nos leva de volta à abordagem de Marx da obra do escossês, mas que, para nós tem um escopo muito mais amplo, que coloca a complexidade do tratamento da combinação dos aspectos éticos com os das práticas da sociedade econômica. Como já tinha assinalado Dobb 93 , o fundamento ético da doutrina de Smith garantia a integração da justificativa individual com a justificativa coletiva e via a divisão do trabalho como um dispositivo de liberação de opções de participação no sistema produtivo. A ponte entre Smith e Marx, descuidada pela maioria, em favor das referências a Ricardo, opõe-se exatamente a essa redução da análise a um cruzamento de conceitos. O contraste com a análise atemporal de Ricardo torna-se mais claro e significativo. A polaridade entre leis naturais e leis institucionais, levantada por Smith, obriga a trabalhar com referências históricas do processo social, numa posição que seria, adiante, confirmada pela filosofia da História e do Direito de Hegel. A oposição de Sartre a Althusser está nesse ponto, onde o Marxismo Ocidental se revela como exercício intelectual daquele ocidente europeu, 94 que não se resigna a ter deixado de ser colonialista e que continua a produzir novas modalidades de racionalização para uma posição de predomínio em suas relações com os latino-americanos. Temos aqui uma questão relativa à validade do intelectual como tal, como representante de uma visão sintética do mundo social e como integrante de uma posição de classe, Deter uma visão sintética do mundo social é uma situação que, inevitavelmente, qualifica a visão de classe, mas não a substitui.

Pelo contrário, representa uma

responsabilidade adicional, de atualizar a crítica ao nível da complexidade da época. 93

Maurice Dobb, Theories of production and distribution since Adam Smith , idelology and economic theory, Cambridge, Cambridge University Press, 1973. 94 Uma referência necessária nesse ponto é o trabalho de Perry Anderson Considerações sobre o marxismo ocidental (Boitempo, 2004), onde se vê que, ao tornar-se uma disciplina acadêmica o marxismo perde seu compromisso com uma teoria do conflito social. Nestas notas encontramos a necessidade de rever o próprio conceito de Ocidente, ressaltando como as potencias ocidentais de fato são impérios baseados no controle de territórios fora dessa parte do mundo.

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Isso é o que diferencia O Capital das obras que refletem sobre os dados de época de outros textos. A crítica da Economia Política aponta, justamente, ao fato de que ela, em seu desenvolvimento, passou de ser uma teorização historicamente consciente, para ser uma teoria separada da experiência histórica. Essa separação culminaria com a economia neoclássica, que procurou construir uma análise formalmente consistente, entretanto desprendida de qualquer compromisso com consistência material. Suas referências empíricas fenômenos isolados, que, por isso, podem ser denominadas de estudos de casos. A crítica de De Gaudemar ao empobrecimento da fundamentação histórica da análise espacial, teria que ser estendida à análise neoclássica em geral, entendendo que, na perspectiva neoclássica a análise territorializada é sempre uma aplicação de princípios analíticos gerais e o espaço é sempre um objeto, cujas alterações são externamente determinadas, mas que não devolvem efeitos aos movimentos do capital. A grande questão está em que se o espaço é alterado por uma atividade social ele é, em essência, social e não pode ser reduzido a uma condição historicamente inespecífica. Esse é o ponto crucial da separação das heranças kantiana e hegeliana. Na última espaço e tempo são dimensões da história e não são princípios atemporais explicativos, nem são categorias ahistóricas. Estão conjugados no percurso das experiências da sociedade, que tem seu próprio espaço-tempo. Por isso, tampouco essas dimensões podem ser reduzidas à generalidade da Física, onde a vida surge apenas como um dado biológico e não como vida social. A originalidade da vida social e sua tendência a gerar modos e formas de organização que sustentam trajetórias próprias que se distanciam de suas situações iniciais. As grandes linhas da dinâmica do poder mundial combinam a concentração de capital com a atualização de um bloco histórico de poder. O desenvolvimento do sistema moderno de produção não está restrito às perspectivas dos países mais ricos de hoje, senão que compreende mudanças nas relações entre os países que chegaram a posições de liderança internacional, os que têm alcançado situações de maior poderio econômico e os que permanecem relegados a posições de completa dependência. Pelo contrário, vemos que a dinâmica da concentração de capital desenvolve efeitos contrários de peso, tais como o aumento da competitividade dos grandes países periféricos, que passam a se beneficiar da exportação de empregos dos países mais ricos. A originalidade desse novo movimento é que ele absorve essa faixa de mercado, mas que não depende de capitais ocidentais, por mais que um grande número de empresas ocidentais cria empresas na

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China para captar aquele mercado interno. Tudo nos mostra que há uma maior exploração dos trabalhadores nos países orientais, mas que é um movimento de acumulação que escapa do controle do Ocidente. Trata-se, portanto, da relação entre exploração e acumulação, ou de como o movimento da exploração confirma ou modifica o movimento da acumulação. O que dá unidade a esta parte da análise é a hipótese que a exploração seja equivalente num sistema socioprodutivo onde coexistem capitais que operam diferentes taxas de lucro. Será preciso substituir aquela análise do capital que se apóia numa visão de indústria que confunde empresa com indústria, ou que não distingue a mobilidade do capital entre empresas e entre empreendimentos, que, portanto, não pode perceber que uma parte fundamental da exploração consiste, justamente, em administrar essa pluralidade de situações. A exploração é como se materializam relações contratuais de trabalho muito desiguais e onde os trabalhadores são compelidos a trabalhar mais por remuneração equivalente. A teoria da exploração é o grande tema do Livro III de O Capital, que ao desenhar os movimentos dos capitais específicos em busca de sua reprodução, explica as condições de exploração que se instalam em cada uma delas. A polêmica sobre a exploração ganha novos matizes quando se situa nos termos da atualidade do sistema produtivo, que é algo que foi feito por Paul Sweezy há cinqüenta anos e que tem que ser reavaliado hoje, quando a análise do capital monopolista ressurge como a análise de uma economia mundializada e que opera mediante oligopólios e com a prevalência da lógica do capital financeiro. Seus desdobramentos tornam-se referências necessárias de uma análise regional que supere a análise organicista tradicional. As condições sociais variam entre diferentes sociedades nacionais. Historicamente, sociedades que foram escravistas, tal como a sociedade brasileira, herdaram formas de controle dos trabalhadores fundadas no autoritarismo patriarcal. A análise da exploração no capitalismo avançado seguiu o rumo da explicação do capital monopolista e do debate sobre o papel do oligopólio na acumulação do capital integrado em alta tecnologia e no capital financeiro. Exploração aí consiste em como aumentar a massa de lucro numa economia cuja demanda é bloqueada por uma distribuição desigual da renda. A dissolução do emprego formal, com as estratégias de defesa da renda dos

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trabalhadores, não supera o fato de que há fossos entre grupos de renda que não se explicam somente como falta de mobilidade vertical, senão como separação entre grupos sociais, e que apontam a novas formas de conflito, que estão bem representadas pela articulação de uma sociedade econômica criminal paralela e pela desvalorização da vida humana em geral. A análise da exploração atual no Brasil tem que reconhecer a pluralidade de formas de controle social com que opera essa economia desigual e que se atualizam mediante diferentes regras para o grande e para o pequeno capital. O segundo ponto que nos interessa é a situação histórica da exploração, com seus fundamentos no controle da força de trabalho e dos mecanismos de comercialização das diversas formas de trabalho. A extração de mais valia está historicamente limitada pelas condições materiais do desenvolvimento da produção, mas a exploração sempre pôde manter seus termos de exploração absoluta, que é a escravidão. Isso acontece com a proliferação de atividades em que há monopólio das oportunidades de emprego, mesmo quando são atividades aparentemente avançadas. A exploração se desenvolve como um atributo do sistema do capital e depende da combinação do controle do trabalho no local e tempo da produção, com o controle fora do processo de produção, que é onde no essencial, o capital assume o risco de converter o produto físico da produção em dinheiro. Nas condições de hoje, a questão da exploração tem que ser revisada, porque a concentração da comercialização na esfera internacional representa uma separação entre as condições de contrato de trabalho nos estabelecimentos produtivos e o modo de contratar trabalho na comercialização,, que permite ao grande capital operar com uma segmentação das condições de contrato de trabalho, assim como dá ao capital uma vantagem especial sobre a organização territorial dos negócios. As condições sociais e técnicas da exploração mudam, junto com as transformações da produção industrial. Na expansão da segunda revolução industrial, a exploração avançou de modo linear, isto é, acompanhou a seqüência da renovação tecnológica que se dava, principalmente, de modo previsível, seguindo padrões de transformação gradual do sistema produtivo. Mas, com o aprofundamento desse processo, e com a conseqüente expansão da comercialização da produção industrial, os controles indiretos do trabalho tornam-se predominantes. A queda do emprego formal e a desqualificação

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de treinamento, praticamente retiraram a capacidade de reivindicação dos movimentos sindicais, que passaram a funcionar como um recurso residual, ou foram simplesmente desqualificados.É preciso ter clara a diferença entre o controle da força de trabalho, que se organiza a partir do processo produtivo e o controle da comercialização, que se desenvolve sobre a gestão do capital imobilizado, que opera de fora para dentro do sistema produtivo. O controle da comercialização torna-se um controle sistêmico, capaz de determinar o próprio programa de produção. Entre a produção e a comercialização há diferentes condições objetivas de realizar esse controle do trabalho, em que o controle na produção compreende o controle permanente ou o controle temporário dos trabalhadores, enquanto o controle da comercialização é indireto e permite operar com diferentes condições de contratação de trabalhadores. Está claro que a linha divisória entre escravidão e trabalho assalariado não dá conta da complexidade do problema, onde há uma variedade de movimentos de aumento do controle e de lutas de independência, e onde aumentam as formas de controle indireto do trabalho sobre as formas de controle direto. Como nos mostrou Marx, a mola central da produção capitalista consiste em transformar a força de trabalho em mercadoria. Mas essa é uma mercadoria especial, que está submetida a processos simultâneos de valorização, que oscilam segundo evoluem as condições de captação e de controle de recursos físicos. A discussão da mobilidade do trabalho que cabe na realidade do Brasil tem que levantar uma questão fundamental, relativa ás rupturas das condições de mercantilização da força de trabalho, que não se limita às condições de mercado de trabalho, senão que abrange todas as condições sociais e psicológicas da auto compenetração dos trabalhadores, em sua qualidade de proprietários de sua força de trabalho. A peculiaridade da força de trabalho é que ela pode, ao mesmo tempo, ser mobilizada para objetivos diferentes daqueles do capital, configurando condições de resistência, que se manifestam, principalmente, em relação com o Estado. As duas tendências, de controle e de resistência, se desenvolvem segundo a capacidade dos gestores do capital para desenvolverem processos de apropriação que envolvem os recursos naturais e o uso espoliativo do trabalho, assim como incluem a capacidade dos trabalhadores para resistirem.

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Uma rápida revisão dos processos de apropriação espoliativa 95 no Brasil de hoje mostra que há uma atualização e um aperfeiçoamento dos mecanismos de captação de recursos naturais e de trabalho, que precisa de mais recursos e de mais trabalho para reproduzir o capital já acumulado. A presunção de que o crescimento da economia acontece sempre em seus segmentos mais modernos não procede, já que há um aumento generalizado de atividades extrativas, causado pelo aumento da população marginalizada, assim como há um uso cada vez maior dos segmentos mais atrasados da economia por parte de empresas acionadas por capital financeiro perfeitamente integrado no mercado. A captação de trabalho combina a manutenção de salários baixos, na esfera pública e na privada, com um controle político dos cargos melhor remunerados e da corrupção, junto com um controle combinado dos preços. Avançou nos últimos tempos, combinando o controle dos sistemas de previdência na parte avançada da economia com a apropriação mais brutal na parte que usa trabalho não qualificado, desde a reincidência de escravização dos trabalhadores até a manutenção de setores que se reproduzem em condições técnicas superadas, mas que são funcionais à reprodução dos setores mais avançados. Assim, a produção rural familiar realiza a tarefa de reproduzir aquela força de trabalho que oferece mão de obra barata para as tarefas mais desqualificadas e pior pagas do sistema, como substituta do trabalho escravo, antes que como exército de reserva de operários. A questão que se apresenta no Brasil é que a inclusão não é uma mudança de status, senão uma fronteira entre uma esfera de funcionamento do efetivamente assalariado a preços de mercado e o trabalho submetido pela falta de opção de contrato. A submissão causada pela falta de opção de emprego gera uma paralisação dos trabalhadores, que em nada se parece com a mobilidade que pode ser atribuída ao espaço de mercado desigual de trabalho. Temos, portanto, uma situação própria do desenvolvimento histórico desta sociedade, que deverá ser atacada por uma análise interna do problema de dominação das oportunidades de emprego. Resumindo, é preciso garantir o caráter histórico da análise. B.

95

Vamos preferir essa expressão a acumulação primitiva, por entender que ela melhor descreve o modo de apropriação e que se atualiza com a modernização do sistema produtivo

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O modo de converter força de trabalho em mercadoria é que distingue as condições de desigualdade de renda das condições sociais de ruptura de classe. A sociedade tradicional usou combinações de trabalho escravizado com trabalho dominado em diversas situações e com pequenos componentes seletos de trabalho livre, em diversas formas de associação e de subordinação. Ao ampliar-se a esfera da produção capitalista e aumentar o componente de trabalho contratado, ampliou-se, também, o campo social sobre o qual o capital passou a poder extrair mais valia. Subsequentemente, como esse componente de produção capitalista passou a incorporar renovação tecnológica, criou, também, a base material sobre a qual tornou-se possível extrair mais valia relativa. O trabalho escravizado seria cada vez menos atrativo para o capital , porque seria incompatível com a renovação tecnológica. Para o capital que se expande na economia pós escravista, o problema consiste em garantir as condições adequadas para prosseguir na captação de mais valia, o que só se dá quando ele abre novas fontes de produção que absorvem mais trabalhadores, portanto, que ampliam a extração de mais valia, assim como aumentam as compras locais de bens salários e de serviços aos trabalhadores. Isso foi o que a economia brasileira fez, com a expansão dos segmentos tradicionais de exportações, agrícolas e mineiras, tais como o café, o cacau, o fumo e o minério de ferro pouco elaborado. A massa de salários pagos converteu-se em compras locais, enquanto as rendas dos proprietários fluíam no sentido da concentração do capital. Finalmente, a substituição de trabalho escravo por trabalho contratado significou que o trabalho passou a ser apropriado junto com sua mobilidade, isto é, que a mobilidade se tornou um elemento adicional da produção de mais valia. Esta é a tese principal que sai desta segunda parte da revisão do tema. A originalidade da América Latina é que a mercantilização da força de trabalho tem se feito conduzida por uma combinação do segmento exportador do sistema produtivo com a operacionalização do Estado, como responsável dos serviços sociais de utilidade pública, compreendendo a construção e a operação dos sistemas de infra-estrutura e dos serviços prestados com ela. O sistema produtivo “moderno” surge como um objetivo de Estado, já seja de iniciativas promovidas pelo Estado ou apoiadas por ele, em todo caso, por associação do Estado com os proprietários da terra. Isso aconteceu no Segundo Império no Brasil e no Porfiriato no México. Na maior parte dos casos, as indústrias

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surgiram aproveitando espaços de mercado criados pela demanda controlada por essa combinação. A expansão do mercado interno é um processo indiretamente subordinado ao segmento internacionalizado da economia, pelo que o mercado de trabalho está subordinado à dinâmica da exportação, e, através deste, ao modo de relacionamento com a economia mundial, que é onde se realizam os conflitos essenciais entre a dinâmica do poder econômico e político, que tem lugar na esfera da hegemonia, mesmo que em posições secundárias; e os países periféricos, mesmo quando são mais poderosos que essas nações secundárias da hegemonia. Essa peculiaridade do bloco hegemônico hoje merece atenção especial. Precisamos situar historicamente o bloco histórico, em sua internacionalidade, como primeiro passo para entender que ele compreende uma combinação de nações, do mesmo modo como compreende uma composição de classes, instituições e etnias. A nação hegemônica sustenta sua hegemonia num tecido de interesses que envolvem outras nações ricas e segmentos de classe de nações que são classificadas como periféricas. A hegemonia torna-se uma empresa coletiva do capitalismo, onde são os grandes interesses comuns do grande capital, especialmente o controle da energia e dos minerais estratégicos que dão sentido à coesão do bloco mundial de poder. Daí , que um aspecto fundamental da composição do poder mundial de hoje é a série de transformações ocorridas no contexto do bloco mundial de poder, com alterações na relação entre a nação hegemônica e seus aliados, onde há interesses convergentes e divergentes, e onde questões como comércio e energia têm sido fundamentais na definição do quadro de referencias em que se coloca a condução do capital financeiro. Ao longo da Guerra Fria formou-se um sistema de lideranças, que foi aperfeiçoado no modelo de uma OTAN que passou a incluir nações que antes foram contendoras e que substitui o poder político efetivo das Nações Unidas. Nesse ambiente, países tais como a Bélgica, a Holanda, Portugal e mesmo a Espanha, são beneficiados de disporem de condições privilegiadas de financiamento no contexto da União Européia e voltam a exibir um desempenho de expansão de capital - que não se confunde com exportação de capital, já que captam capital nos países onde investem – que lhes dá um novo perfil expansionista que seria impossível em suas reais condições de economias nacionais de pequena escala e sem crescimento significativo de seu próprio mercado. Está claro que são movimentos subordinados ao aval da relação da União Européia com os Estados

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Unidos, mas são parte de uma estratégia defensiva ofensiva, porque são países que dependem da demanda de outros países para reproduzirem seu capital. Por oposição desses movimentos, a reprodução da periferia é um dado essencial do problema, que tem seu próprio modo de acontecer. Nas nações que surgiram como periféricas e que continuam nessa condição, há um encontro dos interesses dos grupos locais dominantes com os interesses dos capitais dos países do bloco hegemônico, cuja principal explicação é que a sustentação da dominação interna se faz sobre as premissas de um sistema de poder baseado no controle das oportunidades de lucrar, que envolvem controle de privilégios e exclusão das maiorias. Longe de ser uma simples subordinação aos interesses dos capitais das nações mais ricas, trata-se de um mecanismo de aliança dos dirigentes dos países periféricos, que procuram sua identidade mimetizando-se com as sociedades mais ricas e prósperas. C. Ao descobrir a relação entre a mobilidade do trabalho e a captação de mais valia, encontra-se com que esta análise se remete à questão que foi primeiro levantada por Adam Smith, relativa à necessidade dos capitalistas individuais, de garantirem a disponibilidade de oportunidades de investimento, suficientes para realizar a reprodução do capital acumulado. De fato, os capitalistas precisam dispor de força de trabalho suficiente e com as qualificações adequadas, e precisam dispor dessa força de trabalho sem incorrer nos custos de sua formação. Isso significa que na dinâmica do capital é sempre a etapa anterior que sustenta a seguinte e que a superação da etapa anterior é administrada em função dos resultados da seguinte. Essa é a manobra que o capital tem feito para viabilizar o passo seguinte de cada movimento da acumulação, que depende de que o bloco de poder mantenha o controle sobre os recursos humanos engajados na etapa anterior de acumulação. No contexto político do movimento de acumulação, o grande capital controla as opções de investimento,

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já seja pelos mecanismos de oligopólio, ou seja pelo controle da

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A suposição de mobilidade irrestrita do capital, que é essencial à teoria marginalista em suas diversas correntes, não contempla o fato de que as oportunidades de investimento são controladas pelo grande capital em geral, ou por capitalistas que dispõem de vantagens especiais de posição social. A capacidade

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tecnologia e do financiamento. A partir desse dado, há distribuição dos espaços de mercado, por associação com o grande capital ou por vantagens locais do poder político. As condições para ocupar esses espaços são fundamentais. De fato, o capitalismo cria escalas diferenciadas nos modos de usar a força de trabalho, com diferentes regras contratuais, desde o mercado de trabalho de que participam as elites internacionalizadas até os mercados locais em que ficam confinados os trabalhadores menos favorecidos do sistema. O operário, identificado com trabalho manual em fábricas, torna-se uma minoria, não só porque o assalariamento é reduzido, como porque há maior pluralidade de formas de trabalho. A diferenciação dá lugar ao aparecimento de regras de adequação entre esses diferentes patamares, que são indicativas de desigualdade de renda ou de rupturas na estruturação social. Substitui-se a visão estritamente econômica da renda por uma visão social, em que a renda se vê por sua capacidade de escolha entre possibilidades de consumo. Como fica a liberdade de decidir dos consumidores que cujas compras são programadas pelo capital e cujas opções são pré-definidas pela vigilância da sociedade da obediência? A questão que nos defrontará a seguir será a de examinar essas regras de adequação, de como elas surgem, como se renovam e como são administradas, portando, como se convertem em meios de poder. Por aí se encontra como se desenha o perfil da exploração no mundo desigual da periferia do capitalismo avançado. A diversidade de condições de capitalização coincide com uma pluralidade de condições de qualificação real do trabalho,

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portanto, de

condições objetivas para manejar a razão entre o número de pessoas que precisam trabalhar para sobreviver e o número dos que constituem um verdadeiro exército de reserva do sistema produtivo. A captação de trabalho se efetiva sobre uma existência de trabalhadores dotados de qualificações que os separam entre os que podem efetivamente vir a participar de contratos de trabalho suficientes para garantir subsistência familiar e os que não têm condições de aspirar a esses contratos de trabalho. Mas, como a demanda de trabalho qualificado não se amplia sequer na escala do contingente de novos trabalhadores com maior formação, há uma pressão crescente para a emigração de garantir a reprodução do capital depende do acesso a aquelas oportunidades de aplicação de capital que permitem produzir em escala e que podem conviver com as taxas de juros disponíveis no mercado. 97 Diferente da qualificação formal dada pelo sistema de educação, que não mede seus resultados em termos de capacidade de participar do sistema produtivo.

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 de trabalhadores qualificados, o que vem a ser um modo indireto de subsidiar o crescimento das economias mais ricas, especialmente a dos Estados Unidos.

Â

124 Â


8. Acumulação geral e restrita As questões gerais da acumulação A dimensão regional da análise social expõe as combinações de condições sociais e de restrições de recursos físicos da produção capitalista, que situam o desenvolvimento dos meios de produção e que são dados que antecedem e situam a determinação das escalas de mercado. Assim, a dimensão regional do processo social leva a discutir as condições concretas da acumulação na sociedade de hoje, reconhecendo que as possibilidades de acumular são restritas e desiguais em cada situação no tempo e no espaço, para todas as economias nacionais, desde a economia hegemônica, que reúne as maiores condições para acumular, até as economias periféricas mais pobres. No capitalismo avançado no mundo contemporâneo o essencial é que a acumulação de capital muda de mãos, sejam nações ou particulares, e se realiza mediante maior fluidez dos mercados. Estas colocações logicamente envolvem uma conceituação de dinâmica econômica. Há duas grandes matrizes da compreensão de dinâmica, que correspondem, respectivamente, à mecânica e à genética do capital, e que aparecem como uma teoria do crescimento do produto social e como uma teoria do desenvolvimento do sistema produtivo. A mecânica da economia (Hicks, 1965) trata do crescimento do produto social, considerando as grandes variáveis que

participam desse crescimento e

registrando as inter-relações entre elas, bem como as inter-relações entre o produto e o capital. Não considera as relações sociais subjacentes nos movimentos do produto. A genética do capital vê o produto como um resultado dos movimentos e das transformações do capital e de suas relações com o trabalho. Vê a composição do produto social como interdependente da composição do capital. Uma primeira observação de que todas as economias operam com limitações, torna necessário explicar em que consistem essas limitações e de que modo elas interagem com as transformações do sistema de produção em sua escala mundial, portanto, que se trabalhe com uma teoria da acumulação restrita e desigual. Logicamente, são diferentes limitações que afligem economias em diferente situação de

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desenvolvimento. Há restrições para que as sociedades simplesmente se reproduzem, desde as simples às mais complexas, bem como há restrições para que se consolidem e ganhem em complexidade e restrições para que se mantenham em determinadas posições no concerto mundial. Uma segunda observação, depois de verificar que a acumulação acontece num quadro de condições restritivas, é que essas restrições variam ao longo do tempo, isto é, que a capacidade de acumular aumenta ou diminui ao longo do tempo. As variações na capacidade de acumular envolvem elementos dos recursos físicos, da composição e magnitude do capital, bem como elementos culturais e institucionais. O jogo de tensões internas e externas, que se apresentam em cada situação específica, reflete as condições de estruturação dos Estados nacionais e das regiões em seu conjunto e ao mesmo tempo. Em resumo, as variações na capacidade de acumular estão associadas à capacidade de usar efetivamente o capital, o que significa uma combinação de controle de variáveis locais e variáveis representativas de condições de mercado. As posições das economias nacionais variam ao longo do tempo, segundo elas ganham ou perdem capacidade para produzir atrair e reter capitais e trabalho qualificado, portanto, segundo o desempenho de cada uma delas se situa no processo do capital em seu conjunto. Tal participação muda segundo varia a capacidade de atrair e reter capital e trabalho, já que o poder de concentrar capacidade de produzir depende da capacidade de produzir mercadorias que o mercado pode absorver. Há condições diferenciadas de acumulação, que decorrem das diferenças de escala de capital, das estruturas de mercado – tais como oligopólio e monopólio – e das condições de transformação do trabalho. A análise do sistema capitalista de produção em seu conjunto trata com um movimento geral de formação de capital, que se torna progressivamente mais complexo e que desenvolve interdependências também cada vez mais complexas, substituindo formas de capital e substituindo modos de engajamento de trabalho. A leitura desenvolvida por Marx trata do sistema capitalista em seu conjunto, assim como as teorias macroeconômicas desde então subentendem uma economia mundial – quando não mundializada – que não é mais que a produção capitalista em seu conjunto.

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Isso significa, no essencial, que a teoria macroeconômica presume: (a) condições simétricas de acumulação para todos os capitais que estão integrados no processo produtivo, (b) condições equivalentes de todos os mercados – nacionais e por produtos – para sustentarem um movimento geral e integrado de acumulação e (c) capacidade dos capitais e dos trabalhadores para se adaptarem às modificações na composição técnica do capital. Isso mostra que a teoria macroeconômica convencional opera com uma simplificação incompatível com a realidade. Primeiro, porque na prática, diferentes capitais têm diferente capacidade de acumular, já que têm diferentes condições para participar do mercado. Segundo, porque a capacidade das pessoas de participarem do processo produtivo na qualidade de trabalhadores depende da atualização do trabalho, isto é, que eles tenham a capacidade de realizar aqueles trabalhos requeridos pela composição do capital. Terceiro, porque a capacidade dos capitais e dos trabalhadores para se adaptarem à atualidade da acumulação é inevitavelmente desigual, em função de diferenças de qualificação, de informações e de capital para realizarem essa atualização. As simplificações da análise macroeconômica refletem a perspectiva mecanicista da teoria marginalista, que considerou (a) condições invariantes de mercado e (b) diferenças de escala das empresas, que não alteram seu comportamento no relativo à composição de seu capital. Essas simplificações são perfeitamente aceitáveis quando se trata de problemas que podem ser colocados de modo representativo num quadro de análise instantânea ou de análise a curto prazo. Mas levam a erros crescentes e cada vez menos previsíveis, quando os períodos de análise se estendem, ou quando é preciso considerar margens crescentes ou variáveis de incerteza. No relativo ao campo regional, a análise macroeconômica faz duas opções, sobre a comparabilidade dos agentes e das transações, que significaram que a economia mundial opera segundo os mesmos padrões, no centro e na periferia, com diferenças que se limitam às escalas do capital, e com desigualdades que podem ser explicadas mediante diferenças de renda.

A dificuldade é que as desigualdades ficam

indeterminadas, já que esse esquema de raciocínio não prevê de onde surgem as desigualdades nem como elas se eternizam. Pelo contrário, a principal questão macroeconômica a ser preservada pela análise do sistema produtivo em seu conjunto,

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consiste na continuidade do sistema produtivo em seu conjunto, apesar da incidência de fatores erráticos

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e de alterações nos padrões comportamentais dos fatores

incorporados no sistema. Além disso, a teoria macroeconômica corrente, mesmo aquela que se distancia da ortodoxia neoclássica, tem dificuldade para registrar que as mudanças de velocidade do processo econômico são concomitantes com alterações irreversíveis na composição do capital. Entretanto, esse é um aspecto que deverá ser pesquisado com cuidado, dada sua posição central numa teoria da acumulação restrita.

A teoria geral da acumulação A afirmação da produção capitalista enquanto modo operacional da sociedade moderna tornou necessária uma explicação do sistema produtivo em seu conjunto, com seu modo de funcionamento e suas contradições. O trabalho de Marx expõe a fundamentação histórica do capitalismo. Mostra como ele se afirma, através da superação de formas de capital que não foram capazes de incorporar sistematicamente os resultados econômicos do controle da tecnologia aos resultados políticos do controle do trabalho. Ao realizar essa ligação, o capitalismo canalizou as forças da captação de trabalho compatível com a reprodução e ampliação do sistema de produção, definindo as contradições de interesse entre capitalistas e proprietários de um lado e trabalhadores e excluídos de outro lado. A teoria geral da acumulação visualiza o conjunto dos movimentos de recomposição e de expansão do capital – composição e mudança – que viabilizam a acumulação, tratando com as escalas operacionais do capital em seu conjunto. Presumese que o horizonte efetivo de acumulação está dado pelo conjunto dos elementos técnicos, culturais e institucionais com que o sistema econômico opera. A teoria geral da acumulação apóia-se em alguns pressupostos que devem ser explicitados. Primeiro, que sempre há oportunidades de investimento acessíveis 98

A erraticidade é um aspecto essencial do sistema produtivo, segundo ele tem que registrar e incorporar outras experiências.

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suficientes para sustentar a reprodução do capital em sua totalidade. Segundo, que essas oportunidades de investimento sempre estão reguladas pelas tecnologias mais avançadas. Terceiro, que sempre há mobilidade dos capitais entre as oportunidades de aplicação, suficientes para compensar as diferenças de escala entre grande e pequeno capital e entre as diferenças de tecnologia. 99 Esse é o ambiente da economia articulada na esfera mundial, em que os capitalistas operam de modo equivalente

e em que as diferenças de escala dos

capitais não alteram o elenco das aplicações. Isso significa que os diversos capitalistas têm acesso efetivo à totalidade das opções de acumulação. Marx não cai nesse erro de simplificação, porque considera diferenças de composição de capital no sistema em seu conjunto e entre empresas específicas. Mas a questão não está superada, porque as diferenças de acessibilidade dos diversos capitais não se restringem a um dado conjunto de capitais, senão a uma relação entre a formação de empresas e a proliferação de oportunidades de investimento. Essa questão só se revela em sua real complexidade quando se consideram processos de adequação e de desadequação dos capitais ao ambiente tecnológico em que o mercado opera. Esses processos só podem ser percebidos por uma teoria da ação social, entretanto, por uma teoria que ligue as ações aos grupos sociais que as realizam, isto é, de uma teoria histórica do agir social.

Elementos de uma teoria da acumulação restrita e desigual

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O trabalho de Marx pode ser visto como uma teoria geral da acumulação, que trata do movimento do capital em seu conjunto, tomando como principal referência histórica a formação do capital n o centro da economia mundial. O significado dessa teoria é a explicação da materialidade da sociedade moderna, que é, essencialmente, a sociedade do capitalismo. Essa teoria contém os elementos necessários para acompanhar os modos e as tendências da produção capitalista como tal, e para situar as contradições acarretadas pela produção capitalista na sociedade em seu conjunto. O registro da experiência dos países periféric os obriga a pensar na diversidade de condições históricas em que a acumulação acontece, que , justamente, revelam seus limites. Para as sociedades periféricas, faz-­‐se necessária uma teoria da acumulação que represente as condições históricas em que elas funcionam.

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O tratamento dos problemas do desenvolvimento econômico e social, ou do desenvolvimento desigual, ou da perpetuação de uma periferia sub-industrializada,100 obriga a rever esses pressupostos, indicando a necessidade de contar-se com uma teoria da acumulação capaz de refletir as condições concretas em que se realizam movimentos específicos de acumulação no contexto de cada economia nacional. Há várias razões para entender que se precisa de uma teoria da acumulação restrita e desigual, começando pelas condições cíclicas em que se dão os dados mundiais da acumulação em geral, continuando com os dados representativos dos sistemas produtivos específicos e dos dados da mobilidade do capital e do trabalho em cada um deles e entre eles.

A produção capitalista

funciona mediante sistemas

desigualmente capitalizados e com diferente capacidade de se capitalizarem, que, por isso, só podem se desenvolver alterando suas condições atuais de funcionamento. As desigualdades na capacidade de se capitalizarem decorrem de progressões de fatores favoráveis e desfavoráveis, que aparecem de modo cumulativo ou de modo incidental, resultando em padrões que têm componentes previsíveis e componentes erráticos. Previsibilidade e erraticidade são atributos do sistema produtivo que resultam de combinações de ações socialmente desenvolvidas com dados básicos da dinâmica da natureza, com a peculiaridade de que a dinâmica da natureza se manifesta sobre uma variedade de escalas de tempo e as ações sociais se desenvolvem na escala de tempo da ação social. Assim, as perspectivas de mudança do sistema em seu conjunto e dos sistemas que o compõem, jamais podem ser atribuídas a uma única causa, nem a uma única causa dominante. A leitura da ascensão das grandes potências, e, principalmente, a leitura do declínio dos impérios (Cipolla, 1987) mostra conjuntos de relações causais, que se alternam e substituem, que obrigam a admitir que há uma variedade de situações em 100

Neste trabalho trataremos apenas de modo preliminar um aspecto essencial do problema que são as filtrações de capital dos países periféricos para os centrais, que, finalmente, tem sido o mecanismo central do colonialismo e foi incorporado pelo capitalismo avançado. A filtração de capitais acontece porque membros integrantes das economias mais poderosas transferem recursos, ou porque membros integrantes das economias periféricas vão investir seus capitais nas economias centrais. Mas, no conjunto, há um mecanismo geral que transfere uma parte da formação de capital dos países subdesenvolvidos para os desenvolvidos.

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cada experiência de expansão ou de declínio, com alguns traços comuns no relativo a controle dos recursos naturais e controle do trabalho. A explicação da acumulação restrita passa por uma leitura da reprodução do capital. A reprodução do capital na prática é a reprodução do sistema do capital, isto é, é a reprodução do capital em seu conjunto e igualmente a reprodução do sistema produtivo do capital. O sistema do capital compreende o capital diretamente engajado no processo de produção e o capital em forma financeira. Tal como mostrou Marx, a proporcionalidade entre esses dois componentes é determinada na esfera da produção, mas a capacidade do componente financeiro de se mover fora do sistema de produção tem, de volta, a capacidade de influir na esfera da produção, já com a lógica da comercialização e não mais com a lógica da produção. Isso quer dizer que o capital só pode acumular na extensão em que o desenvolvimento do sistema permite. Isso também significa quanto o sistema precisa acumular para se manter. Mas que só pode acumular daqueles modos permitidos pela composição do capital. O que discutimos aqui como uma teoria da acumulação restrita é a parte da teoria que trata dessa combinação de possibilidades e restrições que estabelecem a situação histórica atual do sistema, com sua situação histórica e suas restrições institucionais. A noção de acumulação restrita vem de que o sistema pode ampliar ou restringir suas possibilidades de acumular, segundo se alargam ou estreitam as capacidades dos participantes do processo, para participarem de novas condições de controle sobre a formação de capital. A acumulação restrita trata dos processos que se realizam em cada economia nacional e que não necessariamente se propagam a outros países ou regiões. A suposição de que o processo de acumulação não necessariamente é contínuo, ou que está sujeito a fatores de descontinuidade, que podem ser predominantes, e que os resultados que são efetivamente alcançados são o saldo de sucessos e fracassos de inclusão e exclusão, de períodos seguidos de variada duração.

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Como, na prática, todos países funcionam com dotações limitadas de recursos e com oferta e demanda em escalas também limitadas, o ambiente atual da formação do capital é sempre o da acumulação restrita. Nesse caso o que se entende como acumulação restrita não é uma situação limitada da acumulação geral, senão é uma instância do processo de acumulação. Assim, para os fins da teoria, é parte da construção da teoria geral, da acumulação e é um componente essencial de uma visão crítica da acumulação em seu conjunto. Assim, a teoria da acumulação é uma dimensão do corpo teórico que explica o conjunto dos movimentos de transformação do capital e do trabalho na economia moderna. O mecanismo que caracteriza a acumulação restrita pode ser exposto nos seguintes passos. a. A relação entre uso potencial e uso atual de recursos comparada com as tendências de uso dos recursos incorporados na relação entre tecnologias velhas e tecnologias novas. b. A relação entre usos de tecnologia e usos de trabalho, tal como registrado na relação entre qualificações velhas e qualificações novas. c. A relação entre os usos de recursos e a aplicação de capital necessária para realizar o produto social compatível com a reprodução do capital em seu conjunto. d. A relação entre a produção do capital e a configuração do mercado, compreendendo a composição das compras efetivamente realizadas. O mecanismo da acumulação restrita pode ser descrito a partir do uso efetivo de recursos para produzir, ou através da demanda social que determina o uso de recursos. A segunda opção parte da esfera das trocas, por isso refere-se a uma situação circunstancial que não necessariamente se mantém ou se repete. Essa impossibilidade de ligar organicamente a situação com o processo de que ela é parte, torna inprofícua

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essa abordagem, que pode ser útil apenas para examinar situações hipotéticas de conjuntos de alternativas.101 A primeira opção, isto é, de partir de condições concretas de uso de recursos. O controle da acumulação coloca-se perante situações históricas de disponibilidade de recursos e de tecnologia, portanto, considerando as condições técnicas de uso dos recursos. Essas condições técnicas representam, portanto, a escala de viabilidade conferida pelo perfil da demanda. O capital será atraído a gastar com tecnologia na medida em que essas tecnologias foram absorvidas pelo mercado . Conseqüentemente, a acumulação só poderá prosseguir em cada país e em cada região se houver uma expansão de demanda suficiente para sustentar a reprodução de capital suficiente para manter o capital acumulado. Na prática esse mecanismo não pode ser tomado em sua forma genérica, porque os movimentos de acumulação acontecem em países que são incorporados ao sistema mundial de produção em posições desiguais no relativo a controle sobre o destino da renda que geram, portanto, de controle sobre sua formação de capital. Nunca houve, realmente, um problema de escassez de poupança nos países e nas regiões que acumulam pouco, senão um problema geral de saída de riqueza, que vem desde as formas mais simples de pilhagem sos sistemas coloniais até as modalidades mais modernas de controle dos sistemas de comercialização. A periferia do sistema capitalista está constituida de nações que foram e são objeto de uma acumulação depredatória, que tem impedido sua emancipação econômica. Nessas condições, a acumulação surgirá do controle da formação de renda antes que da formação de renda; e não poderá jamais ser tratada como um problema apenas técnico de quantitativos de crescimento, senão como o resultado de produção e comercialização. A produção de riqueza será apenas um dado preliminar de um problema muito mais complexo, que se resolverá na esfera da comercialização, compreendendo o controle político da circulação. 101

É o espaço da teoria dos jogos em que as alternativas podem ser temporais mas não são históricas. Trata-­‐se com séries temporais mas não com progressões históricas.

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A acumulação restrita é, também, irregular, porque em cada país depende mais de fatores externos que de fatores internos e porque essa dependência tem mudado de forma, mas, substancialmente, tem tido a mesma importância para as atuais periferias, desde sua anterior situação de colônias até sua atual condição de economicamente dependentes. As teorias do desenvolvimento que se desenvolveram nas décadas de 1940 a 1960 focalizaram em mecanismos do comércio e em condições da formação do capital. Por decisão própria ou como desdobramento da matriz teórica com que trabalhavam, ativeram-se à perspectiva de produção, que trataram por separado da perspectiva da distribuição e sem levar em conta

o papel do controle político da esfera da

comercialização. Observe-se que há uma aparente contradição entre o tratamento dado por Prebisch, Myrdal e outros, às políticas de desenvolvimento, em que procuraram criar mecanismos contrapostos ao controle político do comércio; e a concepção fundamental do eixo análise-política, que continuou preso aos preceitos de uma teoria da produção, razão que levou a aceitar a premissa da falta de poupança – suficiente e oportuna – para uma acumulação historicamente suficiente. A perspectiva de análise da acumulação restrita torna logicamente necessário considerar o papel do controle político da comercialização na fixação da formação de capital, que é o movimento prévio da continuidade da acumulação. O foco da análise desloca-se para a internacionalidade do controle político dos mecanismos que ligam o controle político da comercialização com o controle financeiro da mobilidade do capital. O que limita os horizontes da acumulação em cada país é a internacionalidade desses controles financeiros. O pacto implícito do capital financeiro com a estruturação do controle político da comercialização tem a aparência de uma sólida estabilidade, mas não é mais estável que um vento constante. A polêmica histórica descobre que a racionalidade separada de sua raiz ontológica torna-se uma perversão. A teoria da acumulação precisa de uma teoria histórica da ação social, isto é, de uma teoria que relacione as ações com os grupos que as realizam. A questão teórica levantada pela Economia Política Crítica consiste em situar as ações como conseqüência do modo como os grupos se formam e desenvolvem.

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