Economia aplicada

Page 1

ECONOMIA APLICADA

Fernando Pedr達o

1


Sumário Introdução PRIMEIRA PARTE:

A ESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA DE PRODUÇÃO

O mundo social, técnico e político da economia Trabalho, tempo e valor Valor, mercado e preços Natureza, sistemas de recursos e ambiente físico Capital e capitalismo Trabalho e trabalhadores SEGUNDA PARTE: A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA PRODUÇÃO Formas de organização da produção Formação social, classes e cultura Colonialismo, colonização e dominação. Mercado e estruturas de mercado Tecnologia As relações econômicas internacionais Estado, sociedade civil “nacional”e capacidade de intervir A realidade histórica das empresas O capital financeiro TERCEIRA PARTE: A OPERACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA DE PRODUÇÃO A industrialização e a produção industrial Comércio e capital mercantil Economia rural O modo energético da produção Acessibilidade e transportes Problemas sociais e econômicos da educação Saúde pública QUARTA PARTE: O AMBIENTE HISTÓRICO DA ECONOMIA Regiões e cidades Ambiente social e físico Informalidades Acumulação geral e restrita Bibliografia

2


Introdução A teoria surge para enfrentar problemas da realidade, já seja para resolvê-los ou para oculta-los. A legitimidade da teoria vem de sua capacidade para se colocar explicitamente diante dos problemas que encontra e para apresentar um encaminhamento no tratamento deles. Assim, uma introdução a uma ciência social representa um compromisso de ligar a visão em perspectiva histórica dessa ciência com sua capacidade de intervir na atualidade. Isso significa apresentar a problemática de hoje como parte de uma trajetória; e ver a compreensão teórica como um processo social, que faz da teoria um campo polêmico e a objetivização de um esforço de compreender o processo social. A Economia Política é uma ciência em movimento, cujo objetivo básico de busca de leis gerais explicativas do funcionamento do sistema de produção se encontra com uma constante reorganização do material histórico, envolvendo problemas de reavaliação do significado dos eventos quando eles ocorreram. Por sua vez, tratar a atualidade apresenta outra dificuldade, que é a de estabelecer a distância crítica necessária com os acontecimentos, para situar o imediato em suas raízes mediatas, de modo a ultrapassar os preconceitos e a subordinação que estão impregnadas no material que informa os acontecimentos. Em muitos sentidos, uma introdução é uma síntese e é um exercício de confronto com a subalternidade. A idéia básica que conduz este trabalho é que a forma atual do sistema de produção é o resultado de um processo histórico que incorpora e exclui mecanismos e modalidades de produzir e de consumir, incluindo e excluindo pessoas e grupos sociais e absorvendo e descartando recursos naturais. A noção de que o atual sistema de produção sucedeu a outro sistema e pode ser substituído por outro, provém dessa compenetração da história. A formação do sistema de produção resulta de conflitos e de composições sociais de diversas ordens, desde pequenos conflitos locais a grandes guerras e desde fenômenos naturais a movimentos ideológicos, tanto políticos como religiosos e como os dois combinados. Na prática há um sistema internacionalizado de produção e de comercialização da produção e há um grande número de sistemas nacionais e regionais desigualmente articulados. A análise em perspectiva histórica do sistema de produção é, acima de tudo, uma análise da totalidade histórica, que não pode perder de vista as grandes e as pequenas linhas da história, as continuidades e as descontinuidades, com a relação básica entre a luta pela sobrevivência e a luta pela acumulação de capital. Para tratar com esse sistema, a economia é uma ciência social historicamente fundamentada e deve ser tratada como tal. Não é uma caixa de ferramentas, como alguma vez escreveu uma economista inglesa, nem pode ser um conjunto de teoremas apoiados em alguns axiomas não criticados nem historicamente fundamentados. O exercício da teoria social incorpora a velha polêmica relativa à possibilidade de acumular-se conhecimento, assim como enfrenta a questão inicial, de que os estudos sociais não podem ficar subordinados a uma teoria do conhecimento formulada sobre processos não sociais. 3


Os livros de introdução à economia têm variado em seus objetivos, desde tentativas de introdução ao funcionamento do sistema produtivo a livros de introdução à análise econômica, que terminam por serem apresentações de esquemas convencionais de análise, que retiram todo caráter polêmico da economia. Há raros exemplos de tentativas de combinar a introdução à realidade da economia com uma introdução à teoria. Salvo engano, são livros que não refletem os conflitos de interesse e de pontos de vista, nem exprimem o modo como a economia se apresenta para todos que não controlam a formação de capital nem a comercialização, pelo que, na prática, tacitamente, refletem os interesses do poder constituído. Apresenta-se aqui uma introdução ao funcionamento do sistema produtivo, que não é o mesmo que uma introdução à análise econômica, nem muito menos uma introdução a um corpo doutrinário consensualmente aceito. Pelo contrário, trata-se de uma introdução ao debate em torno dos problemas fundamentais da economia que, justamente, põe em tela de juízo o corpo de análise que, geralmente apresenta como indiscutível. A expressão economia social indica que se trabalha com uma ciência social onde o aperfeiçoamento de mecanismos de análise não substitui o progresso de um pensamento socialmente pertinente. Considera-se que a economia deve ser tratada em sua relação com a natureza de um lado e de outro lado em sua expressão nas relações sociais em seu sentido mais amplo. Finalmente, entende-se introdução como uma introdução à complexidade do sistema e não como uma simplificação que se realiza sem explicar os critérios de simplificação. Há dois aspectos principais dessa proposta. O primeiro deles é situar-se numa perspectiva crítica da economia, que significa ver o processo econômico como algo historicamente situado, que tende a mudar de forma, que, portanto, não pode ser um sistema invariante. O segundo é registrar a pluralidade de pontos de vista com que se vê a economia, e considerar as experiências dos países ditos periféricos e sua atualidade. O fato de que o sistema não é invariante torna a análise instantânea um simples caso particular, que não pode ser generalizado para analisar o sistema em geral em suas diversas situações. A pluralidade de participantes resulta em pluralidade de pontos de vista, que torna inadequado supor que o sistema funciona mediante uma única racionalidade. Por fim, reconhecer que o sistema opera com composições decrescentes de recursos não renováveis torna improcedente a suposição de que a economia opera sempre em condições de escassez relativa. É preciso contemplar situações de escassez absoluta onde há esgotamento de recursos não renováveis. Estas três objeções reduzem a aplicabilidade da análise estática marginalista à condição de análise de situações restritas e anômalas, que não pode ser tomada como base para explicar o funcionamento do sistema produtivo. A Economia Política crítica deve registrar essas limitações do corpo teórico consagrado pela academia e trabalhar com dois princípios reitores, que são os de relativizar a análise estática, colocando-a em seu contexto histórico e de considerar explicitamente as experiências dos países periféricos como referência da teorização. Para registrar as condições de pluralidade de participações e de esgotamento de recursos, é preciso identificar as diferentes situações dos que participam do processo 4


econômico, isto é, tanto em suas posições, como parte de classes sociais, como em sua condição de integrantes de formas pré-capitalistas de produção. A realidade social da economia hoje é de funcionamento de um sistema capitalista de produção que se beneficia da existência concomitante de formas anteriores de organização da produção, que, entretanto, se atualizam como resultado de estratégias de interesses constituídos. São duas observações fundamentais. Uma delas é que o sistema de recursos naturais opera com riscos crescentes de esgotamento de muitos dos seus componentes; e a outra, é que os recursos humanos tendem a se tornar um conjunto constituído de componentes cada vez mais qualificados e onde há um componente crescente de pessoas que são expelidas do sistema produtivo ou que são impedidas de participar dele. Em síntese, a teoria econômica trabalha com um objeto de análise que tende a mudar de determinados modos, segundo acontece a perda e o esgotamento de recursos físicos e segundo avança a qualificação dos recursos humanos. Não é um desgaste uniforme dos recursos, cuja diminuição se sente a depender de quais recursos se pretende dispor para produzir. A diminuição das reservas de cobre torna-se menos importante ao aumentar o uso de fibra ótica para transmissão de energia. Tampouco é um movimento uniforme da qualificação dos recursos humanos. Há qualificações que se tornam socialmente mais importantes e outras que perdem importância. O que importa é a adequação dos conjuntos de recursos físicos e dos conjuntos de recursos humanos ao sistema de produção tal como ele opera. Esses dois aspectos, de uma atualização progressiva dos usos dos recursos às tecnologias predominantes, e de adequação das qualificações às expectativas de engajamento das pessoas no processo produtivo, envolvem um problema de tratamento do tempo no mundo social, que se torna o principal determinante da análise econômica nas condições de hoje.

5


I

A ESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA DE PRODUÇÃO

6


1. A economia como ciência social O imperativo social em ciência Pode-se começar por observar que não se pode desistir de conhecer a realidade social, porque todas as demais formas de conhecimento dependem da valoração que se lhes dá a partir da percepção do mundo social. Assim, independentemente de controvérsias acadêmicas sobre a cientificidade do conhecimento do mundo social, ele é indispensável e destitui quaisquer objeções de epistemólogos que desejam ficar longe do “lodaçal metodológico” do campo social. 1 Com o desenvolvimento das ciências em geral, desde o fim do século XIX, e, especialmente, com o desenvolvimento da análise científica desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que identificou novos campos disciplinares e aprofundou uma reflexão científica central,2 tornou-se necessário estabelecer com clareza que se entende por teoria e por análise em economia e que se aceita como análise econômica. A teoria será uma consolidação consensual de teoremas individualmente estabelecidos, ou será um conjunto dotado de uma visão crítica da totalidade social? Neste trabalho entende-se que a justificativa histórica da economia é sua pertinência aos problemas da sociedade, portanto, que a teoria econômica, em sua qualidade de teoria social, tem que manter essa visão crítica da realidade e da própria teoria. O desenvolvimento de uma analise econômica acrítica, voltada para explicar mecanismos e sem sentido de totalidade, tem dado lugar a certo tipo de dogmatismo, cujo resultado imediato e mais visível é um pensamento único do tipo de análise que se tornou ortodoxa, que é um empobrecimento conceitual e um autoritarismo teórico. No ambiente social de uma teoria social crítica, haverá componentes da teorização realizada que serão preservados e outros componentes que serão abandonados, por se tornarem irrelevantes, ou mesmo por obstruírem a compreensão da realidade. Não se espera consenso no campo da teoria social, dentre outras razões, porque uma teoria consensual perde a capacidade de registrar o componente de conflito das relações sociais. Reserva-se aqui o estatuto de teoria para conjuntos de observações sintéticas interdependentes, entendendo-se que essas observações isoladamente são teoremas cuja demonstração não necessariamente garante a validade da teoria em seu conjunto.3 No campo social as teorias derivam sua validade de sua sustentação na realidade social e a 1

Alusão a uma observação de Karl Popper. Quando se toma o processo social como objeto central da análise, observações como essa tornam-se irrelevantes. 2 Uma visão sintética dessa reflexão central encontra-se em Anthony Giddens, Novas regras do método sociológico (1978). 3 Distinguiremos teoria de doutrina, assim como distinguiremos teoria de teoremas. Teoria será uma construção de observações não contraditórias e interdependentes que se desenvolvem num movimento explicativo de um objeto. Doutrina será uma visão teórica ligada a um sujeito de teoria. Teoremas serão observações teóricas que não necessariamente estão estruturadas como teoria.

7


demonstração formal é apenas um requisito inicial da teorização. A prova final da teoria social, como disse Gunnar Myrdal 4(1968), é sua pertinência perante a realidade. Generalizações teóricas logicamente consistentes e não pertinentes à realidade podem ser aceitas como especulações desprendidas de qualquer condição de veracidade, mas não devem ser aceitas como teoria. O estatuto de ciência social da economia Entende-se aqui, que, para estudar economia é preciso estabelecer que se entende por economia em geral e situar historicamente a atividade econômica, nos modos como ela é realizada em sociedades específicas. A atividade econômica é o componente material da atividade social e envolve interesses convergentes, divergentes e conflitantes. Contém uma cultura da produção e do consumo e envolveria a formação de instituições de Direito Público e de Direito Privado. Compreende aspectos gerais de toda produção capitalista e aspectos específicos de cada país, naquilo em que cada sociedade econômica contém componentes da produção considerada moderna e componentes da produção considerada tradicional ou não modernizada. Em suma, a área de interesse da economia corresponde a uma ciência social que tem ligações com o conhecimento da esfera do social e com o conhecimento da natureza. Assim, a economia é uma ciência social na medida em que trata dos interesses que se confrontam e combinam na sociedade. A compreensão geral da economia surge do acúmulo e da variedade de experiências, com tudo que elas significam em termos de determinar as posições e as trajetórias dos grupos sociais na formação de riquezas. O corpo da teoria formou-se a partir das experiências de alguns poucos países e está apoiado em generalizações não controladas, isto é, depende de afirmações que não necessariamente se sustentam quando se consideram outras experiências de outros países ou mesmo outras experiências dos países que se tomou como fonte de experiência. O estatuto de ciência da economia dependerá de que o controle das generalizações seja parte da análise, portanto, que se examinem as possibilidades e as limitações inerentes ao horizonte de referências históricas com que se trabalha. Alguns dos pressupostos da teoria marginalista, que sustentam a análise ortodoxa, tais como os de escassez relativa, de monetização homogênea e irrestrita dos sistemas econômicos nacionais e de soberania do consumidor não se sustentam, nem mesmo para as economias mais ricas. A hipótese de mercado perfeito não se apóia em exemplo concreto algum da realidade. Finalmente, a curva da demanda é apenas um leque de possibilidades num dado momento não determinado e não tem utilidade alguma, quando se situam os processos econômicos no tempo real de sua duração.5

4

Gunnar Myrdal, Asian Dramma, an inquiry on the poverty of nations, (Nova York, Random House, 3 vols. 1968). 5 Esta crítica da curva da demanda foi apresentada por Roy Harrod em seu Second dynamic essay, The Economic Journal, 1960.

8


A crítica das generalizações a partir das experiências é parte do desenvolvimento da teoria desde seu início, mas para nós é preciso ver esse aspecto como uma base necessária do reconhecimento da identidade das sociedades que têm sido objeto de mecanismos de dominação, tanto externa como interna. A história da Revolução Industrial foi escrita como se ela fosse um fenômeno da economia inglesa e não dependesse dos recursos diretamente extraídos pelos ingleses da Índia e indiretamente do Brasil. 6 Trata-se, portanto, de ver o processo social da economia como um processo de poder, e chegar a uma explicação da formação de um corpo teórico explicativo desse processo, com seu desdobramento em um corpo de análise adequado para refletir nossa realidade social. Frente ao reconhecimento atual da pluralidade de participantes e de modos de participação na economia, é preciso reconhecer que se trata de uma ciência social, sobre a qual há diferentes pontos de vista. Segundo diferentes pontos de vista, entende-se que a economia é a ciência que estuda como melhor atribuir recursos escassos entre diferentes objetivos, ou como a ciência que estuda como usar recursos escassos para atender as carências ou necessidades da sociedade. A primeira dessas posições é a da corrente que ficou conhecida como marginalista, que se concretizou na análise neo clássica e nas políticas econômicas neo liberais. A segunda se identifica com os economistas históricos, socialistas e economistas do desenvolvimento econômico. Sempre houve um pensamento econômico, desde as civilizações mais antigas. No Egito antigo houve uma política de pagamento em espécie de trabalho para obras públicas – drenagens, irrigação, pirâmides – nos meses em que a agricultura estava impedida pelas inundações. Na Grécia arcaica, Hesíodo fala dos tempos marcados pelas atividades de lavoura e colheita. Na Mesopotâmia antiga a codificação dos direitos das pessoas envolvia direitos econômicos. A primeira formulação sintética sobre a organização das atividades econômicas é de Aristóteles no séc. IV a.c. (Política) quando distingue a esfera doméstica e a esfera pública de atividade, identificando como valor de uso o trabalho realizado na esfera doméstica (cooperação) e como valor de troca o trabalho que se realiza na esfera pública (concorrência). O uso do dinheiro seria a ligação entre essas duas esferas de usos de tempo. Identifica-se aí a diferença entre trabalho escravo e trabalho contratado, em que no primeiro se compra a força de trabalho das pessoas e no segundo se compra o tempo de trabalho. O cristianismo apresentou uma ética de solidariedade entre todos, em substituição da solidariedade entre grupos restritos da sociedade, que tinha marcado as antigas sociedades teocráticas militares. Na Idade Média os teólogos condenaram os ganhos em mercado, evidenciando o conflito de interesses entre os senhores feudais que controlavam os trabalhadores e o trabalho no ambiente rural e os comerciantes das cidades que se separavam desse domínio. No século XIII São Tomás de Aquino formalizou pontos de 6

A maior parte das mercadorias transacionadas no período da primeira revolução industrial, inclusive de tecidos e de materiais de consumo semi elaborados, foi produzida pelas nações dominadas, cujas tentativas de industrialização foram abortadas pela influência dos países mais poderosos, como é o caso do clamoroso tratado de 1811 entre a Inglaterra e Portugal, que deu vantagens privilegiadas aos comerciantes ingleses no Brasil e proibiu a industrialização do Brasil.

9


vista de certa corrente católica, condenando formalmente os juros, que considerou como roubo. No século XIV, entretanto, surgiam casas bancárias no norte da Itália e as ordens militares religiosas, especialmente a dos Templários, tornavam-se entidades dotadas de grande poder financeiro. A rejeição e ridicularização dos pontos de vista medievais explica-se apenas como uma defesa irracional da racionalidade do capitalismo, que se legitima desqualificando outras visões de mundo como inválidas.7 A partir do século XV a expansão econômica das nações da Europa ocidental, começando pelas do Mediterrâneo e prosseguindo às do oeste e do Mar do Norte, deu novo rumo ao pensamento sobre economia, que passou a representar dois tipos de interesses: o dos monarcas, representando o Estado, e o dos comerciantes. Autores como Jean Bodin, Serra, Francis Bacon, verbalizaram pontos de vista do interesse do Estado. Outros, como Thomas Mun, North e outros, tornaram-se portavozes dos interesses mercantis. O crescimento econômico do oeste da Europa ganhou impulso com a estagnação e o declínio do Império Bizantino, que foi uma potencia econômica desde o ano 900 até o século XIV e que continuou mantendo uma presença estratégica até sua queda em 1453. A falta de referências ao Império Bizantino na história econômica do capitalismo é um primeiro gesto discriminativo, que se repetiria na leitura da economia mundial que ignorou todo o papel dos países latinos e da bacia do Mediterrâneo na formação da economia do capitalismo 8 (Braudel, 1992). Preconceito e discriminação sempre formaram o outro lado do colonialismo e da dominação, funcionando como meios de desqualificar os povos e os grupos que se tornavam subordinados. O projeto de expansão ultramarina de Portugal que foi o primeiro projeto de poder político imperial, gestou-se, pelo menos desde o século XIV, com D. Diniz e foi um projeto claramente econômico, desde a conquista das ilhas do Atlântico até o estabelecimento de feitorias na costa africana (Frédric Mauro, 1988). O grande objetivo de alcançar e dominar a Índia, na realidade o Império do Grão Mogol, revela uma visão estratégia global, cuja verdadeira raiz é o declínio e a destruição do Império Bizantino. A projeção da visão do poder do Império Bizantino no Mediterrâneo era dominante no século XIV, assim como, de que o Mundo Islâmico era algo imediatamente próximo. No entanto, a visão histórica produzida pelos países-do-Mar-do-Norte caminhou no sentido de desqualificar todos os poderes assentados na parte oriental do Mediterrâneo. Torna-se irônico que hoje as nações americanas sigam aquele caminho de ignorância deliberada na formação de sua própria visão de mundo.

7

Uma observação de Manuel Castells (1999) ao mistério que cerca a decisão da dinastia Ming chinesa de desistir de fazer voltar a esquadra que chegara à Índia, por considerar que os ocidentais sendo rudes e bárbaros não valiam a pena de serem dominados, de certo modo reflete uma avaliação da subseqüente invasão da China pelos ocidentais, que sugeriria candidez, além de arrogância infundada, dos chineses, que finalmente pagaram o preço por subestimarem os ocidentais. É uma leitura que consagra a observação que já fizera Myrdal (1968), quando diz que a modernização é a linguagem da dominação ocidental. 8 A referência à obra de Fernand Braudel aqui é fundamental. Destacam-se duas de suas obras, que são O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico (Lisboa, Martins Fontes, 2 vols.1983) e Gramática das Civilizações ( São Paulo, Martins Fontes, 1989).

10


Nos Tempos Modernos – isto é, entre o fim da Renascença e a Revolução Francesa – foi quando predominaram os pontos de vista dos mercantilistas, que foram esses representantes dos interesses do comércio. Há uma corrente de mercantilismo que considerou que as nações seriam mais ricas se retivessem mais ouro e outra corrente que considerou que a riqueza viria de produzir mercadorias que trocar com quem tivesse o ouro. A primeira ficou conhecida como Bulionismo e a segunda, defendida por políticos como Colbert, enveredou pelo fomento aos setores produtivos. A política do Marquês de Pombal em Portugal pretendeu restaurar a prosperidade do Império Português mediante uma política de fomento aos setores produtivos e criação de monopólios nas colônias. O Padre Antonio Vieira defendeu uma política de criação de companhias dotadas de poder de monopólio para promover a prosperidade da colônia brasileira. Observe-se que o projeto cultural do Iluminismo não viu nada da pluralidade – e oposição – de visões de mundo conseqüente do colonialismo. É preciso pensar que o Iluminismo foi uma abertura de racionalidade das nações colonialistas. A razão colonialista surge, justamente, dessa incapacidade de ver que há um problema colonial No século XVIII, a partir dos trabalhos de Isaac Newton e de Emmanuel Kant, formou-se um amplo movimento que valorizou a razão como fonte única de conhecimento, que foi denominado de Iluminismo, no tempo em que se estabeleceram leis universais que mostravam um universo mecânico previsível. O Iluminismo derivou no convencimento da necessidade ter uma ciência que explicasse a natureza, que se passou a chamar de Ciência Natural. Logo procurou-se o equivalente, numa ciência que explicasse a sociedade. Tal ciência denominou-se de Economia Política, segundo a expressão cunhada por Antoine Montchretien. O papel histórico de Adam Smith foi de dar um caráter de ciência aos estudos sociais na perspectiva racional do Iluminismo, satisfazendo os requisitos de método de Galileu. A partir da década de 1750 surgiu na França um grupo de intelectuais que formulou uma explicação do funcionamento da economia nacional em seu conjunto. Liderados por Bernard Quesnay, Turgot, Dupont de Nemours, se denominavam Economistas e ficaram conhecidos como Fisiocratas, porque sua explicação da economia como de uma corrente circular de riqueza tinha semelhança com a noção da fisiologia humana e da circulação do sangue. Os Fisiocratas foram os primeiros a falar de um produto social, que denominaram de produto líquido. Outros pensadores dessa época, como David Hume, focalizaram no papel do comércio como estimulador da expansão da capacidade de produção. Dentre os últimos mercantilistas destacam-se William Petty e James Steuart, além dos chamados Sociólogos Escoceses, como Ferguson, Thornton e West, que adiantaram diversas das idéias – como a teoria da renda da terra - que mais tarde ficaram identificadas como dos chamados economistas clássicos. Desde o século XVI os movimentos do racionalismo, isto é, que tomaram a razão como única fonte valida de conhecimento, alcançaram seu ponto mais alto no início do século XVIII, com as obras de René Descartes e de Isaac Newton, e finalmente com a filosofia de Emmanuel Kant. Esse movimento em seu conjunto, com os diversos aspectos que assumiu na França e na Alemanha, ficou conhecido como o Esclarecimento ou como o 11


Iluminismo9. O Iluminismo estabeleceu a razão como única fonte legítima de formação do conhecimento científico. No contexto do Iluminismo surgiu a Ciência Natural, para explicar o funcionamento da natureza. Procurou-se uma ciência que a complementasse, explicando o funcionamento da sociedade. Tal ciência veio a ser a Economia Política. Economia Política ou economia simplesmente? A Economia Política em seu papel de ciência geral da sociedade procurou identificar leis gerais do funcionamento dos sistemas econômicos nacionais e das relações internacionais, sem atentar para as condições históricas em que esses sistemas funcionam e que mudam ao longo do tempo. A busca dessas leis gerais invariantes de funcionamento do sistema seria o correspondente ao que fora alcançado por Isaac Newton para a natureza com sua Mecânica Celeste e com a lei da gravidade. A crise do fundamento científico aparece, justamente, quando se descobre que o fundamento histórico impõe restrições ao mecanicismo. A busca de leis gerais que expliquem o funcionamento do sistema econômico em seu conjunto tornou-se a principal característica dos economistas geralmente denominados de Clássicos – Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus e outros – que procuraram estabelecer observações generalizáveis a todas as economias nacionais. Entretanto essa visão da economia foi fortemente criticada por outros, como Sismondi de Sismond, que acusaram os Clássicos de produzir uma teoria do Império Britânico e que vieram a representar os pontos de vista de nações menos poderosas. A compreensão de que o processo de produção está sujeito a oscilações e que a produção está sujeita a tendências gerais dos negócios, levou a que se procurasse explicar esses movimentos da economia, que se denominaram de ciclos. Entenderemos ciclos como variações que se realizam ao longo do tempo e que resultam em alterações da composição do capital. A rigor, portanto,os ciclos decorrem do modo como se realiza a acumulação de capital, e todos os ciclos são irreversíveis, isto é, cada ciclo tem um lugar específico na história. 10 Há ciclos de diferente duração, desde ciclos de curto prazo, que acontecem com uma dada composição de capital e ciclos de médio prazo, quando estão associados a alterações significativas da composição do capital. Por exemplo, variações na intensidade do uso dos sistemas de transportes, ou alterações dos serviços de transportes resultantes de inovações tecnológicas e de escala dos transportes. Finalmente, há ciclos de longa duração, que correspondem a reorganização dos sistemas de produção em seu conjunto. Por

9

Sobre o Iluminismo, consultar Sergio Paulo Rouanet, As razões do Iluminismo (Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1987), além da Dialética do Esclarecimento de Theodor Adorno e Max Horkheimer. 10 Algumas referências da literatura sobre os ciclos econômicos são aqui mais que oportunas. Destacam-se Joseph Schumpeter, Business Cycles (Philadelphia, Porcupine, 1989), John Hicks, Una aportación a la teoria del ciclo económico, (Madrid, Aguilar, 1954) Gottfried Haberler, Prosperidad o depresión, (México, Fondo de Cultura Econômica, 1956) além da contribuição de Karl Marx, enfeixada em El Capital (México, Fondo de Cultura Económica, 3 vols, 1956).

12


exemplo, alterações do modo de produzir que resultam de modificações na integração dos transportes com outros setores da economia. O comportamento cíclico do sistema de produção está associado ao modo de formação de capital, que resulta num movimento mais amplo de concentração do capital e ao desenvolvimento desigual das economias nacionais. Há aspectos das transformações do sistema produtivo que têm sido irreversíveis, tais como o aumento dos usos de energéticos e como o a diminuição relativa do emprego frente ao aumento da produção de bens e serviços. A questão fundamental, relativa a se os movimentos cíclicos são eventuais, ou se são manifestações de uma tendência do desenvolvimento do sistema capitalista de produção, terá que ser considerada toda vez que se reconhece o processo da economia como um processo social historicamente situado. Paralelamente, agravam-se os problemas ambientais, decorrentes de poluição do ar, da água e do solo e subsolo. Os custos sociais da disposição de resíduos, sólidos e líquidos, tornam-se uma dificuldade crescente para que o sistema de produção continue a se expandir em suas atuais modalidades de produção industrial e de consumo. Mas a compreensão do fundamento sociais desses custos torna-se mais difícil, quando se trata de decidir quem pagará por eles. A intervenção direta do Estado, para proteger o ambiente de custos gerados por interesses privados é uma nova forma de fundo público, cujo custo final, em termos de carga tributária, tem que ser esclarecido. Pagam os que causam os custos, ou se rateiam os custos entre todos? A questão ambiental, que foi oficialmente reconhecida em 1968,11 e que surgiu como parte da linguagem dos países ricos, grandes consumidores de energia e detentores de poucos energéticos e com reservas limitadas de energéticos, tornou-se um questionamento do caráter destrutivo do sistema de produção e fonte de nova referência ética do processo. A ambigüidade do discurso de proteção ao ambiente continua até hoje, dada a prática impossibilidade de obrigar os países mais ricos e poluidores, especialmente os Estados Unidos e o Japão, a cumprirem os tratados subscritos pelas demais nações. O significado social da análise das transformações do ambiente obriga a desenvolver estilos de análise que registrem a interação entre a sociedade e o meio físico e não apenas que procurem reduzir os impactos do agir social atual sobre o meio físico.

2. Natureza, sistemas de recursos e ambiente físico no sistema de produção 2.1. O reconhecimento da natureza O modo de ver o mundo natural mudou, radicalmente, desde a concepção de Physis dos gregos, em que o homem era tido como parte da natureza até a visão moderna – formada desde o século XVI - de controle irrestrito da natureza pelo homem e à visão 11

Referência à reunião de Founex na Suíça, que precedeu a primeira conferência latino-americana de meio ambiente – México, 1971 – que, por sua vez, antecedeu a conferência mundial de Estocolmo de 1972.

13


ecológica, que reconhece a necessidade de adaptação da sociedade ao meio natural, e aceita que o homem é parte da natureza. Processos de aquecimento global que se aceleram sem razão aparente, vulcanismo e maremotos são manifestações que indicam que o aumento do conhecimento do mundo natural também é o do reconhecimento das limitações do poder da sociedade para tratar com o mundo natural. Na perspectiva de hoje há um problema fundamental relativo ao progresso da ciência, corresponde a combinações irregulares, de desdobramentos de um corpo de conhecimento estruturado e de modificações desse corpo de conhecimento. Nesse sentido, o verdadeiro significado da passagem da ciência dominada pela mecânica clássica para uma ciência referenciada pela mecânica quântica, isto é, de uma ciência que trata de um universo plenamente previsível para uma oura que trata de um mundo imprevisível e incerto, encontra-se no modo como a sociedade absorve essas mudanças de conhecimento, portanto, como se consegue fazer ciência. No campo social, trata-se de um progressivo reconhecimento da complexidade desse objeto de estudo que se torna parte da formação do sujeito que realiza a reflexão cognitiva. A compreensão moderna de ciência ficou, de certo modo, referenciada pela polaridade entre as perspectivas de Marx e de Weber, respectivamente, de uma ciência social que se constrói a partir de sua condição histórica e de uma ciência que pretende manter-se neutra frente a essas valorações. A ciência positivista – que não é o mesmo que a positividade do conhecimento - No ambiente ultramoderno, em que ingressam a critica da irracionalidade e da dominação colonial, a ciência social tende a ver a natureza como um campo cujo significado é dado pelo modo como a sociedade interage com ela (Boaventura Santos, 1998) e cujo destino incide sobre o da sociedade. Esses dois movimentos, de desdobramentos e mudanças, podem caminhar juntos ou por separado, e, em todo caso, envolvem o fato de que o modo de incorporar conhecimento científico mudou, passando a compreender o conhecimento demonstrado, que sempre se reconheceu como científico, e um conhecimento conjetural ou inferido, que não é convalidado por mecanismos iniciais de demonstração. O fundamental é que eles revelam contradições no desenvolvimento da ciência, que não é um campo sobre-humano, senão um campo de força historicamente constituido no qual interagem forças sociais. Recompor uma visão de conjunto da ciência tornou-se uma tarefa imperativa para todos que entendem que ciência deve ser praticada com independência de critério e com sentido crítico, isto é, consciente das contradições de sua formação.12 A ciência é um problema da sociedade em seu conjunto e não apenas dos cientistas. A própria subordinação dos cientistas a superpoderes públicos e privados, que marcou o século XX, desde o nazismo às atuais potências hegemônicas e às multinacionais, mostra como esse argumento é necessário.

12

Um trabalho de grande interesse nesse sentido é, de Isabelle Stengers, A invenção das ciências modernas (São Paulo, Editora 34, 2002). A autora situa historicamente o desenvolvimento da ciência e traz ao debate da produção social de ciência a visão de uma transformação da relação entre sujeito e objeto.

14


A renovação da ciência surge da incorporação dos conceitos de complexidade, irreversibilidade e incerteza, resultando do reconhecimento do dinamismo da natureza. A visão mecanicista formada no século XVIII teve que abrir espaço para a originalidade da vida, para um sentido geral de transformação do ambiente em que se vive e para a exposição do conteúdo energético da vida e da formação social em geral. Há uma profunda mudança na compreensão de natureza na primeira metade do século XX, que surge de uma visão ampla do processo social da ciência e da compreensão do conhecimento científico (Whitehead, 1949). A impossibilidade de desconhecer os avanços da ciência e de ignorar as inter-relações entre os diversos campos do conhecimento, coloca as ciências sociais, e em especial a economia, diante da necessidade de rever seus pressupostos sobre os fundamentos da vida social na natureza e de oferecer explicações sobre os modos como a vida social atinge a natureza. Nesse contexto, torna-se necessário reconhecer de quais modos se realiza a relação entre sociedade e natureza, entendendo que essa relação se altera continuamente, segundo o desenvolvimento da produção exige novas matérias primas. A atualidade dessa relação é um ponto de sincronia de uma infinidade de processos de diferente duração e diferentes momentos em que se iniciaram. Diferentes durações e diferentes velocidades dos processos resultam em condições também precárias de sincronia. O tempo dos processos aparece de diferentes modos para diferentes sociedades e para diferentes grupos numa mesma sociedade. O tempo depende de como se vive no tempo. A compreensão ultramoderna 13 da natureza compreende uma pluralidade de escalas de tempo sobrepostas umas às outras, desde a escala de tempo geológico, com processos milenares, que, entretanto, incidem na escala de tempo histórico, até uma escala de tempo histórico que se fraciona em processos de diferentes durações, portanto, que leva a uma revisão da esfera do contemporâneo. A compreensão de tempo envolve a compreensão historicamente determinada dos espaços que se formam durante o tempo (Ray, 1993), isto é, dos tempos com seus espaços. A visão atual de natureza (Prigogine, 1986) separa-se da concepção mecanicista, naquilo em que reconhece a vida como parte da natureza e no que reconhece as limitações do conhecimento e do processo de conhecer. A ciência reconhece a força da história e da perspectiva histórica do mundo físico (Stengers, 2002), quando reconhece que o mundo físico tem uma história. A ciência deve desenvolver modos de compreender o mundo físico, que sejam compatíveis com o modo de se reproduzir do próprio mundo físico.

13

Usamos aqui a expressão ultramoderna para nos referirmos à visão científica decorrente da incorporação dos conceitos de complexidade, relatividade, irreversibilidade e incerteza, que significa a visão de ciência da segunda metade do século XX. Parece inadequado referir-se a esses desdobramentos da ciência moderna como se eles identificassem uma situação pós-moderna, que, de algum modo, indicaria que se suplanta tudo que é moderno em seu conjunto. Uma questão fundamental que se coloca no debate sobre modernidade e pósmodernidade, é uma espécie de retorno ao bom senso, que pode parecer uma atitude simples à primeira vista, mas que representa um confronto aberto e radical com a visão de ciência e de método patrocinada pelo chamado realismo crítico, que, finalmente, desenvolve uma discussão sobre demonstração que se revela herdeira de Descartes.

15


A análise do campo social passa a ter que considerar combinações de escalas de tempo muito extensas e escalas de tempo muito pequenas, sem, entretanto, poder admitir situações totalmente destituídas de tempo, ou seja, situações genuinamente atemporais, que entretanto são aquelas representadas pela análise estática em economia 14. Essa constatação reduz a análise econômica estática à condição de análise excepcional ou de uma análise que só pode ser considerada por sua consistência formal, mas que não pode ter a pretensão de ser aplicável. Indiretamente, isso significa a desqualificação do movimento da análise social de partir de uma análise estática para chegar a uma condição de análise dinâmica. Do mesmo modo, torna-se necessário considerar as condições objetivas em que se trata dos processos da natureza. A natureza tem suas regras próprias de reposição e é atingida por processos sociais concentrados em certos pontos, tais como são os problemas de poluição concentrada ou de esgotamento de recursos necessários à reprodução da vida social. Mesmo que o mundo natural em seu conjunto opere com movimentos de reposição em escala muito maior que a da ação da sociedade, esta ação pode desequilibrar a reposição do sistema social nos pontos que se tornam mais sensíveis por concentrarem o povoamento. 2.2. A formação dos sistemas de recursos físicos A atividade social acontece no espaço-tempo de processos históricos, que estão impregnados de conseqüências de outros processos anteriores e concomitantes e que representam experiências para os que deles participam. Os processos de produção e de consumo carregam, subsumidos, modos de fazer as coisas que são parte de modos anteriores e que condicionam o modo como se incorporam processos novos. A conservação de processos anteriores não é um simples vestígio, senão uma propriedade do sistema produtivo em sua forma atual. Em todo momento a atividade econômica altera os processos em curso, mediante as modificações na organização social da produção e mediante a renovação tecnológica. Mesmo nas sociedades mais simples, a mudança surge como resultado da experiência que se acumula. Por isso, a mudança é sempre parte de uma tendência a mudar, que permite que a mudança apareça nos diversos níveis de uso de tecnologia e não apenas em segmentos de ponta ou em segmentos seletos. Na visão de hoje, a atividade econômica é realizada mediante um conjunto de formas de produção, que são organizadas por interesses do capital e que empregam trabalho e usam recursos naturais. Por isso, para entender em que consiste o sistema de produção, é preciso começar por entender que são recursos naturais, capital e trabalho. A sociedade percebe os recursos através dos interesses do capital e dos do trabalho, pelo que, a construção de uma visão dos recursos resulta da compreensão que os detentores do capital e os do trabalho têm de sua relação com a natureza. Os recursos naturais são parte integrante da natureza, portanto, esta pesquisa começa com uma renovação da conceituação de natureza. A natureza é o aspecto visível do mundo físico que funciona com as regras de reprodução do mundo físico. A compreensão 14

Em economia somente a hipótese de tempo nulo sustenta a análise instantânea que é a utilizada pela análise neoclássica.

16


científica da natureza é a de um ambiente dinâmico, dotado de regras próprias de transformação, que está afetado por influências externas e de seu próprio interior. A visão de natureza desenvolvida pela civilização ocidental e especialmente no racionalismo moderno, é que a sociedade progride aumentando seu domínio sobre a natureza. Diferentemente dela, a compreensão ecológica da atualidade é que a sociedade só pode sobreviver se encontrar meios de se adaptar ao modo de se reproduzir da natureza. A sociedade industrial gera mais resíduos do que pode processar. Por trás de ambas colocações encontra-se uma noção de limite. Essa é a visão ecológica da relação da sociedade com a natureza, que substitui a visão industrial moderna, que se baseia em dominar a natureza. A visão ecológica da natureza é, também, de um sistema complexo que se reproduz mediante sua diversidade que perde em capacidade de se reproduzir quando perde sua diversidade. A relação da sociedade com a natureza é complexa, porque a natureza é o aspecto visível do mundo físico, que é essencialmente complexa; A noção de complexidade é hoje necessária na compreensão atual de ciência e envolve reconhecer que nosso conhecimento é sempre parcial (Cohen, 1965), tendendo a sofrer correções quando se expande. A natureza em si é um grande sistema determinado pela situação cósmica da Terra e constituído de recursos de superfície e do subsolo imediato e da atmosfera, que estão ao alcance da humanidade. O conhecimento da Terra como de um sistema integrado forma-se a partir da década de 1960, com as pesquisas sobre os deslocamentos do fundo dos oceanos e com o progresso da meteorologia. Os movimentos dos continentes resultam em produção e destruição de solos e determinam a disponibilidade de água. As condições de habitabilidade no planeta resultam de uma combinação de disponibilidade de recursos e de clima, que podem variar de modo significativo ao longo do tempo. Observe-se que a Groenlândia já foi uma região boscosa e que o Saara foi menos árido que hoje. O essencial são os processos que ampliam ou que restringem a habitabilidade numa e noutra parte do planeta. A habitabilidade vem a ser a possibilidade de estabelecer um povoamento estável. As condições de habitabilidade resultam das forças naturais, que aparecem como conjuntos de manifestações, em que algumas delas são expressões de movimentos de muito longa duração e regulares e outras são expressões de movimentos súbitos e que não necessariamente se repetem numa escala de tempo perceptível pela sociedade. Fenômenos como El Niño sempre existiram , mas só depois que são percebidos se passa compreender sua influência no povoamento e na formação da vida social – e é como se eles não existissem antes. O sistema em seu conjunto está sujeito às leis da termodinâmica. A natureza é energia e a vida social depende de uma capacidade de direcionar usos de energia para fins socialmente necessários. A disponibilidade de energia rege a vida, pelo que o sistema em seu conjunto é entrópico, isto é, perde energia de modo irreversível. O sistema é, essencialmente, instável e sua instabilidade aparece na forma de vulcanismo, alterações na disponibilidade de água e alterações climáticas. A grande questão da sobrevivência da humanidade reside em sua capacidade de usar as formas de energia que estão ao seu alcance.

17


Os sistemas estão constituídos de recursos com variada capacidade de renovação, segundo sua própria recuperação e segundo a intensidade com que são usados. Na linguagem corrente, distinguem-se recursos renováveis e não renováveis, mas, a rigor, todos recursos devem ser considerados como não renováveis numa escala milenar de tempo. Mas as alterações dos sistemas de recursos podem ser bruscas e acontecerem em poucos anos ou em momentos. Os sistemas de recursos físicos são atingidos pela sociedade, que apropria recursos para se manter e que altera os sistemas naturais, geralmente perturbando sua reprodução e deslocando o equilíbrio hídrico, principalmente mediante desflorestamento. O modo de se apropriar de recursos tem variado em muitos aspectos nos últimos anos, mas continua sendo altamente predatório, isto é, a captação de recursos se faz sem respeitar o modo de auto-regeneração dos sistemas. Por exemplo, extrai-se mais madeiras dos bosques que sua capacidade de reposição. A extração de madeira tende a ser substituída por menor diversidade de espécies, pelo que a homogeneização é um indicador de perda de energia do sistema, que, nesse caso, está representada pela heterogeneidade. Assim, para os fins da atividade econômica, a noção de hoje de sistemas de recursos é sempre de sistemas locais de recursos, estruturados em recursos de superfície e de subsolo e realimentados por sua relação com a atmosfera no movimento de evapotranspiração. Os sistemas de recursos têm um dinamismo próprio, que aparece através de variações na vazão dos rios, na produção de solos e nas variações de temperatura ambiente. O aproveitamento dos recursos depende de tecnologia, isto é, de que se saiba como usá-los, e, de fato eles são utilizados para produzir aqueles bens e serviços que são transacionados em mercado. Mas a tecnologia se desenvolve em resposta de interesses em aproveitar recursos, portanto, como uma questão a ser tratada como uma projeção de interesses econômicos no mundo do conhecimento e não como um desdobramento de criatividade ou mesmo de pesquisas espontâneas. O Brasil, por exemplo, tem grandes reservas de água subterrânea que ainda não foram aproveitadas por problemas de disponibilidade de capital e de tecnologia. Historicamente, a sociedade valorizou os recursos naturais segundo sua capacidade para aproveitá-los, o que quer dizer, segundo desenvolveu tecnologias que lhe permitiram usar os recursos. O ferro e o manganês passaram a ser valorizados quando se desenvolveram as usinas siderúrgicas e o uso desses metais se generalizou. Minas de estanho que foram abandonadas na antiguidade como exauridas foram reabertas e aproveitadas com a tecnologia de hoje. Os minerais radioativos tornaram-se estratégicos porque se tem a tecnologia para aproveitá-los. Os recursos aparecem como sistemas naturais, que se encontram em sua localização original, cuja exploração representa custos de extração, deslocamento e armazenagem. A possibilidade de translado de recursos físicos, tal como se faz na exportação de minérios, significa capacidade de transportar os minérios além dos custos do transporte propriamente dito. Mas certamente há uma diferença entre os recursos não utilizados e os que são incorporados pela sociedade, que passam a ser valorados por seus atuais e potenciais e não mais pela posição que ocupam na reprodução dos sistemas . Essa mudança no modo de ver 18


os recursos torna-se clara no relativo aos rios, que se procura proteger considerando seu papel visível hoje, mas que têm um outro papel na condução da transformação dos sistemas complexos que são as bacias hidrográficas. As combinações de recursos integrados na produção são aqueles conjuntos que a sociedade consegue explorar com o capital, a tecnologia e a qualificação de trabalho de que dispõe. A composição do trabalho que se utiliza tem que refletir esse nível de capitalização e de qualificação, para que o sistema produtivo preserve sua capacidade de se auto-repor e de se expandir. Por isso, ao longo do tempo, os países que se desenvolveram mais foram sempre aqueles que conseguiram atrair os trabalhadores qualificados que podem integrar seu sistema de produção. O estudo dos recursos chega â análise dos modos como eles têm sido captados pela sociedade. A sociedade busca recursos segundo as técnicas com que sobrevive e acumula riqueza. A colonização foi sempre o meio pelo qual alguns países usaram os recursos e a capacidade de trabalho de outros para seu proveito. A historia da sociedade capitalista moderna é a história da concentração de riqueza propiciada pela colonização. O sistema de produção se amplia e expande junto com as tecnologias de aproveitamento dos recursos e desenvolvendo estratégias seletivas de uso de recursos. Assim, supõe-se, em princípio, que a sociedade tende a procurar técnicas de produção que alcancem seus objetivos de produção, utilizando menos energia para produzir e para distribuir os produtos produzidos. No entanto, o sistema de produção se amplia segundo os interesses embutidos no sistema capitalista de produção, que, em princípio, tendem a conflitar com a lógica da ecologia. 15 Numa análise atual desse processo, é preciso partir do básico, que é o fato de que toda produção representa um uso de energia e que qualquer ampliação de um sistema produtivo significa um aumento de dispêndio de energia. O modo de usar energia, isto é, o que denomino de modo energético da produção, 16 pode ser alterado mediante substituição de tecnologias, mas não há como escapar de um aumento líquido do uso de energia. Assim, a expansão do sistema de produção faz-se a expensas do sistema de recursos naturais e submetida a condições de entropia, isto é, de perda de energia, segundo esse aumento de uso de energia leva a mudanças maiores e mais freqüentes entre as formas de energia. O resultado final do processo, portanto, é que diminui a disponibilidade dos diversos recursos. O sistema de produção se reorganiza para se adaptar às alterações das condições de custos de produzir e de distribuir os produtos, substituindo tecnologias, em busca de alternativas que lhe permitam resultados mais eficientes com os recursos disponíveis. Nesse 15

Uma análise adequada dessa perspectiva da relação entre a reprodução natural do sistema de recursos e a reprodução do sistema de produção capitalista, encontra-se em James O’ Connor, Causas naturais (México, Siglo XXI, 2001). 16 A noção de modo energético da produção envolve intensidade e modos de uso, entendendo-se que diferentes modos de uso de uma mesma tecnologia têm diferentes resultados no impacto final de emprego de energéticos. A alteração do modo energético da produção será, portanto, uma síntese que afeta a educação em seu sentido mais amplo.

19


sentido, supostamente, haveria um movimento substituiu-se o uso de carvão pelo de petróleo e cabe antever que se criem tecnologias para aproveitar outros combustíveis que permitam substituir o petróleo. No entanto, é preciso reconhecer que as decisões estão montadas sobre sistemas de interesse movimentados pelo lado dos diversos capitais, com seus respectivos modos de organização. A esfera dos interesses dos grandes capitais atrai ou condiciona as decisões locais formando sistemas nacionalmente articulados. Escassez relativa e absoluta A noção de escassez é fundamental em economia e, em princípio, surge da observação de que há mais necessidades que recursos disponíveis para atendê-las. Evidentemente, trata-se de saber quais recursos são escassos e para quem. A noção de escassez envolve situações físicas e situações sociais, compreendendo os efeitos sociais finais de falta material de determinados recursos e de falta de recursos para certos grupos sociais. A subnutrição e a fome em geral são problemas que afetam determinados grupos sociais e que não necessariamente atingem uma sociedade em seu conjunto. No entanto, essa noção de fato indica que a escassez resulta de que muitas pessoas não dispõem dos meios necessários para adquirir os bens e serviços de que necessitam. Não há um estado de escassez, senão há um processo social que cria, amplia e aprofunda a escassez, segundo aumentam as necessidades de um número cada vez maior de pessoas. A falta dos bens e serviços seria um aspecto de escassez material, enquanto a falta de capacidade para adquirir os bens é que seria uma escassez econômica. Assim, a escassez aumenta junto com a concentração de renda. A seguir, é preciso distinguir que a escassez material relativa resulta de que a disponibilidade dos bens é relativa, quando seu uso pode variar ou quando alguns bens são mais escassos que outros. Será, portanto, preciso reconhecer que há uma escassez material absoluta quando alguns recursos simplesmente se acabam ou não estão disponíveis. As jazidas de minerais são exemplos claros de recursos que se esgotam por completo, dando lugar a escassez absoluta. A escassez relativa deve ser vista segundo diferentes níveis de intensidade, desde situações em que pode ser absorvida pelo sistema de produção e em que pode haver alternativas de recursos, até situações em que impede a produção e em que não há condições de usar recursos alternativos. O principal exemplo nesse caso é a água, para a qual não há substitutos. Finalmente, é preciso reconhecer que a escassez tem um perfil específico em cada sociedade e em cada época, segundo a escassez dos recursos socialmente estratégicos afeta os usos dos demais recursos. Daí ser preciso compreender que as interdependências entre os recursos fazem com que a escassez de alguns recursos se reflita na de outros. Por trás do aspecto simples de escassez há uma situação complexa de interdependência orgânica entre os diversos tipos de recursos naturais, inanimados e animados , de que participam recursos que são claramente não renováveis, com recursos desigualmente renováveis.

20


A escassez se agrava com o aumento da população, com a concentração da renda e com o controle dos sistemas de recursos por interesses que os exploram com fins de lucro privado. Nas sociedades industrializadas, formam-se padrões de usos de recursos – a partir de um padrão de uso de energia – que se tornam praticamente irreversíveis. Os conflitos de interesse em torno dos recursos tornaram-se ainda mais graves, ao aumentarem os custos do tratamento de resíduos, que passam, inevitavelmente, para a esfera pública, seja a da administração urbana, seja a esfera nacional, quando é preciso administrar custos que transcendem a escala de possibilidades das cidades. Os interesses sobre os recursos passam a desenvolverem-se nos dois níveis, que são os de controle da extração de recursos “novos” e controle dos resíduos dos usos de recursos. A economia da exploração de recursos completa-se com a economia da disposição de resíduos e com a economia do reaproveitamento de recursos modificados pelo uso. Noutras palavras, a ação da sociedade no mundo natural constitui uma totalidade que compreende as ações anteriores e as atuais. As minas que foram exploradas até o esgotamento representam perdas anteriores que se convertem em fatores negativos das possibilidades de exploração do mundo atual. Na atualidade há sempre um espaço para revisão das ações anteriores, em que a renovação tecnológica pode abrir novas condições de aproveitamento de recursos considerados esgotados Outro ponto importante é que o aumento dos resíduos sólidos e líquidos não degradáveis torna a questão dos resíduos o principal problema das sociedades industrializadas de hoje, onde se confrontam os diversos interesses vinculados aos ganhos na produção que gera resíduos, comparados com os ganhos na economia da disposição dos resíduos. A economia da disposição de resíduos enfrenta um problema técnico e um problema social, em que tecnicamente há uma perda irrecuperável do valor social e energético dos materiais utilizados e em que as técnicas de manejo de resíduos, de fato, minimizam essa perda sem jamais eliminá-la por completo. Há um dado essencial da sociedade moderna, em que ela gera cada vez mais resíduos não tratáveis e que os custos sociais do manejo de resíduos são transferidos para grupos sociais mais pobres e para regiões menos ricas. A economia do manejo de resíduos certamente é muito mais ampla e complexa que a de manejo de lixo, porque compreende a economia do manejo do lixo, em que há um componente de resultados tecnicamente importantes; e compreende um sentido mais amplo de desperdício, tal como o que acontece nas serrarias, no rejeito de material pescado, nas perdas de vegetais alimentícios de todo tipo. O problema geral de desperdício, levantado por Paul Baran na metade do século passado, revela-se cada vez mais atual,17 porque o desperdício tornou-se um modo de aproveitar as margens de lucro que surgem da reposição imposta de produtos que se tornam obsoletos, ou que simplesmente são descartados por estratégias de marketing. Nesse contexto histórico, a consciência social da ecologia aparece como um discurso idealista desigualmente aceito pelos governos e pelas empresas, vez que suas prescrições se confrontam com esses interesses. O problema prático de situar o discurso 17

Paul Baran, The Political Economy of Growth, N.York, John Wiley, 1956.

21


ecológico no contexto histórico concreto de interesses é o que define a atualidade e o significado social da questão ecológica, revelando os conflitos e consensos que se formam em torno da comparação entre resultados atuais e possibilidades futuras de produzir e de sobreviver. A escassez, portanto, revela uma qualidade do que é escasso, que tem um papel específico e contraditório na nova abundância de elementos que são considerados descartados e nocivos quando se acumulam. Diremos que a escassez reflete uma situação negativa móvel, que combina o que não se tem com o que se perde ou desperdiça e com o aparecimento de elementos que devem ser destruídos ou neutralizados. As modificações do ambiente físico da produção Os argumentos que se alinham, a partir da análise das transformações do sistema de recursos físicos e das alterações de sua composição, levam a tomar como referência da economia em geral – da produção e do consumo – o ambiente físico em que opera o sistema social de produção. As modificações do ambiente físico da produção são constantes em todas as partes do mundo e se fazem presentes com diferentes graus de urgência, segundo os movimentos de transformação natural e os produzidos pela sociedade tornam-se convergentes. O vulcanismo e os terremotos são dados naturais irrecorríveis, que podem se tornar localmente mais graves quando se combinam com uma ocupação predatória, com desflorestamento e com a destruição de solos e de rios. A industrialização internacionalizada, antes que a concentração do povoamento, mas, certamente, somando-se a ela, tornou-se um fator determinante das condições sociais em que se realizam a produção e o consumo. A concentração da industrialização em alguns países traduziu-se em que esses países subordinaram a exploração de recursos aos seus objetivos e, indiretamente, regularam as possibilidades dos demais países de realizarem sua própria industrialização. O discurso sobre os limites do crescimento que apareceu no início da década de 1970, representou uma visão mundial das possibilidades e das restrições aos usos mundiais dos recursos na perspectiva dos interesses dos países industrializados. Mas a emergência de muitos países, que antes tiveram os usos de seus recursos externamente determinados, revelou o miolo do problema mundial de “poder” que, essencialmente, consiste no controle da energia. Há países que usam mais energia do que produzem, outros que têm pouca capacidade de produzir energia e outros que exportam energia sob diversas formas. A maior parte dos países mais ricos é deficitária em energia e funciona mediante sistemas de captação de energia de outros países. Nesse contexto, distinguem-se as condições próprias das formas de energia localmente consumidas – onde a maior de todas é a hidrelétrica – das condições de formas de energia que podem ser transportadas, tais como os combustíveis fósseis: carvão, petróleo etc. A peculiaridade do petróleo é ser uma forma de energia que pode ser exportada em grandes quantidades sobre grandes distâncias e que pode ser industrializada(s) em diferentes lugares. Por isso, o petróleo tornou-se a principal mercadoria dos sistemas de produção e consumo de energia, tornando-se determinante das condições de habitabilidade em países que precisam importar energia para sustentar seus sistemas de produção.

22


O quadro do ambiente físico da produção é obviamente dinâmico e envolve o fato de que alguns países reúnem condições de prosseguir com a expansão de seu sistema de produção, enquanto, tanto dentre os mais ricos como dentre os mais pobres, têm um horizonte restrito de sustentação de seu sistema de produção, ou mesmo que só terão condições de prosseguir nos níveis atuais de seu sistema de produção se contarem com a energia de outros. É a diferença fundamental entre a maioria dos países que se industrializaram desde o século XIX e alguns dos que se industrializam hoje. As previsões de alterações do ambiente físico da produção se acentuam, porque os países industrializados e energeticamente deficitários na prática não conseguiram converter seus sistemas de usos de energia, ou consideram que poderão mantê-los mediante seu atual poderio político e militar. É a principal questão que fica em aberto no século XXI, cabendo considerar em todo caso que a incapacidade de converter os sistemas de uso de energia à capacidade de produzir energia torna-se o ponto central do balanço de poder na escala mundial. No Brasil, são fundamentais as alterações do ambiente físico da produção, desde aquelas que foram produzidas pelo sistema colonial de produção e que se acumularam até hoje, que condicionam as possibilidades de habitar e de produzir, até as alterações mais recentes, que surgem dessa relação entre necessidades e capacidade de produzir energia. Distinguem-se os problemas decorrentes de depredação pretérita, os problemas relativos aos custos atuais para ampliar a produção de energia e os problemas atuais conseqüentes de práticas depredatórias. Em sua forma atual, o sistema de produção combina formas técnicas de produzir atuais com formas antigas, utilizando usos de recursos tecnicamente superados como meio de elevar a rentabilidade nos segmentos mais modernos do sistema. Historicamente, o problema mais grave é que as intervenções depredatórias se acumulam e atingem, concentradamente, os centros nervosos do sistema de vida e do sistema produtivo, que são as bacias hidrográficas e as grandes cidades. As metrópoles tornam-se focos irreversíveis de alterações dos sistemas de recursos, cujos efeitos se espalham sobre territórios cada vez mais amplos. Apesar de esforços ainda tímidos de controlar ou reduzir o componente energético nos produtos finais que se usam, há um efeito acumulado que impede que a recuperação dos sistemas seja completa e que faz com que aumente o efeito entrópico do aumento de produção. Assim, há um desafio imediato de reduzir ao máximo o conteúdo energético da produção e um desafio que se estende ao futuro, de encontrar modos de substituir usos de recursos não renováveis pelos usos de recursos renováveis, de modo a reduzir o efeito entrópico no sistema de recursos. O fato de que a recuperação de resíduos se torne um grande negócio não encobre o fundamento negativo desse negócio, que varia junto com o caráter depredatório da produção e do consumo. Há um desgaste da eficiência e da autonomia do sistema produtivo, que se encontra com tarefas inevitáveis e crescentes de dispor de resíduos. Que tem que ser apreciada por seu perfil qualitativo e não só por sua escala e magnitude. Por trás do problema tecnológico do manejo de energia, há um problema social de reorientar o aproveitamento econômico do desgaste de recursos, em que se forma um outro mecanismo de exploração, baseado na captação de trabalho marginalizado, mas que usa formas

23


capitalizadas no reprocessamento dos resíduos. Verifica-se que a estratégia de manejo de resíduos é essencial para o planejamento da nova produção. 4. Trabalho e trabalhadores Trabalho como atividade social atual O trabalho é sempre atual, é o esforço que se realiza socialmente para produzir. Quando se fala de trabalho anterior, trata-se daquela propriedade da história, de reunir os momentos anteriores no contexto de hoje. Em cada momento que se revê o trabalho, se realiza uma operação de revalorização do tempo concretamente insumido no processo de produção à luz das valorações de hoje, isto é, se julga o significado anterior da técnica à luz de seu potencial produtivo de hoje. Daí, que sempre há uma simplificação nos critérios com que se apreciam os pesos relativos das diversas atividades na formação do produto social. Ora, o tempo que se gastou anteriormente para produzir velas, quando não havia luz elétrica, não se compara com o valor do mesmo tempo gasto quando as velas são socialmente menos necessárias. As variações no tempo de trabalho socialmente necessário mostram que há algo a mais que a capacidade de comparar quanto custou à sociedade o trabalho usado com o que custa hoje; e que é a capacidade de decidir como o trabalho pode ser usado. Essa capacidade representa a liberdade que o trabalhador pode ter sobre sua força de trabalho. A atualidade do trabalho é que explica porque a sociedade pode julgar trabalhos anteriores independentemente de quanto custaram quando foram realizados. O verdadeiro critério é quanto custariam se fossem realizados hoje, porque indicaria quanto representaria em termos de liberdade de decisão dos trabalhadores. Se os trabalhadores se encontram igualmente coagidos a realizar tarefas que lhe são impostas, portanto, se os ganhos em eficiência no uso da força de trabalho, os incrementos de renda que tenham apenas dissimulam a realidade de que as condições sociais de exploração são as mesmas. A exploração aparece como uma prática tanto mais abusiva quanto restringe mais as opções dos trabalhadores quando há maior variedade de formas de trabalho tecnicamente ao seu alcance. A identidade social do trabalho O primeiro dado deste tema é que a expressão trabalhadores tem sido usada para designar todas as pessoas que precisam vender tempo de trabalho para obterem renda e que não necessariamente encontram ocupação. É diferente do trabalho realizado pelos capitalistas, que é usado para mobilizar o trabalho dos trabalhadores. Na análise do trabalho hoje no Brasil, tanto como nos demais países latinoamericanos, e para não dizer nos africanos, é preciso começar por recuperar o fundamento histórico do processo de trabalho, em que as relações de trabalho são relações concretas que resultam da formação das nações e que não podem ser tratadas mediante generalizações sobre o mercado de trabalho, nem mediante as experiências 24


das nações colonizadoras e hegemônicas. O significado social do trabalho resulta do modo como se trabalha hoje, de como alguns podem e outros não podem trabalhar. A análise do trabalho tropeça com duas grandes dificuldades, que são as de precisar ultrapassar os dados da aparência das condições em que se realizam as diversas modalidades de trabalho e em sociedades em condições de capitalização diferentes; e de explicar a relação entre as alterações na composição do trabalho e a produção social de trabalho qualificado, isto é, de trabalhos dotados das qualificações atualmente necessárias. Antes, alguém que sabia fazer barcos seria mão de obra permanentemente qualificada, enquanto hoje esse mesmo trabalho depende de um conhecimento de informática que não depende mais das habilidades manuais do construtor de barcos. O que parece ser uma substituição de trabalho por equipamento é o resultado de um controle da incorporação de capital constante no sistema produtivo, tanto sob a forma de equipamentos como sob a forma de redes de organização de serviços que viabilizam os usos dos equipamentos. Esse controle da formação de capital permite aos detentores de capital deslocarem os trabalhadores para condições de maior incerteza, que lhes permitem captar mais valia. Por sua vez, a relação entre as alterações na composição do trabalho e a produção social de trabalho qualificado é o resultado de uma disputa em torno de quem absorve os custos da qualificação, em que os detentores do capital procuram transferir esses custos para o Estado e para os próprios trabalhadores, enquanto se desenvolve uma luta dos diferentes grupos de trabalhadores em torno de alguns objetivos de obterem os meios necessários para se qualificarem. A desigualdade de condições em que os diversos grupos trabalham, junto com o lastro negativo da sociedade autoritária pósescravista, estabelece as condições de desfavor em que se move a maior parte dos que precisam trabalhar. Entenderemos como trabalho livre aquele que o trabalhador realiza por opção e não por ser o único modo de sobreviver. Os movimentos da economia mundial que se estenderam desde a década de 1970, e que levaram à renovação do mercado de trabalho, com destruição de grande parte dos postos de trabalho identificados com tecnologias anteriores, projetaram a imagem de que o esforço de trabalho foi diluído por um movimento misterioso, que substitui trabalho por conhecimento, ou que simplesmente chegou a um perfil teórico da produção em que o trabalho pode ser simplesmente eliminado, sem a necessidade de ser substituído por um trabalho de robôs. Não se trata somente de quanto trabalho efetivamente se realiza, senão de quais trabalhos são socialmente necessários para que o sistema produtivo se reproduza. Tal elenco de trabalhos necessários muda, segundo muda a composição do capital na economia internacionalizada em seu conjunto. Trabalho é o esforço socialmente realizado cujos resultados se incorporam no circuito da vida dos diversos grupos sociais, e que se materializam em termos de suas condições de sobrevivência e de sua capacidade de formar patrimônio. A expansão do capital gerou a especialização do trabalho e proliferaram as formas de trabalho que não estão referenciadas pela sobrevivência, senão pela própria formação do capital. Conceitualmente, a distinção entre sobrevivência, conforto e acumulação de patrimônio é tênue e incerta e está sujeita a fatores climáticos e culturais, mas na prática não há dúvida alguma entre a luta pela sobrevivência e a capacidade de 25


acumular capital. Não se trabalha a esmo. Trabalho torna-se o esforço deliberado para chegar a objetivos previstos, sejam eles socialmente positivos ou negativos. Em todo caso, o que nos confronta é a necessidade de explicar o trabalho que se realiza nas sociedades de hoje, especialmente, nas sociedades periféricas avançadas, como a brasileira. Isso significa reconhecer a complexidade social do trabalho, isto é, que não se trata de uma atividade de um homem genérico, senão das pessoas como integrantes de sociedades, e, nessa qualidade, de parte de uma sociedade historicamente definida. Como um desdobramento da noção de trabalho abstrato, que situa todos os trabalhos específicos num contexto do trabalho em geral, é preciso tomar em conta que o significado do trabalho muda ao longo do tempo, segundo as sociedades precisam de diferentes combinações de trabalho e segundo conseguem transformar o esforço direto em esforço indireto. São os próprios trabalhadores que mudam, por incorporarem mais experiência, ou por perderem acesso aos meios de ganhar experiência. A qualificação do trabalho se mantém como parte de uma seqüência viva de participação em processos que são vivenciados por certos segmentos de uma sociedade e que se transmitem de determinados modos. A qualificação dos sapateiros pode continuar se aperfeiçoando, enquanto a qualificação dos chapeleiros fica restrita pelo clima e pela moda. Em economia entende-se trabalho como um esforço que tem conseqüências, isto é, como um esforço que pretende chegar a resultados em termos de produção, mesmo que não sejam resultados imediatos e mesmo que não se veja a relação entre a realização do trabalho e a sobrevivência dos trabalhadores. A conseqüência do trabalho é a produção, em que se materializa o valor gerado pelo esforço de trabalhar. No entanto, há muito trabalho que fica frustrado, já seja porque não se conclui ou porque é direcionado de modo não compatível com o sistema de produção. Muitas colheitas frustradas não são apenas resultado de condições climáticas desfavoráveis, senão de incapacidade de perceber quais produtos poderiam germinar e que resultam em decisões equivocadas sobre que plantar. Muitas obras públicas são interrompidas ou abandonadas por erros iniciais de previsão, assim como muitos programas de pesquisa são suspensos antes que dêm resultados. O trabalho frustrado torna-se um custo social que se distribui pela sociedade seguindo o padrão de distribuição da carga tributária, portanto, carregando as desigualdades que lhe são inerentes. Não se pode reduzir a funcionalidade do trabalho à visão individual de cada capitalista ou de cada trabalhador, senão, para explicar o significado dos diversos trabalhos que são realizados é preciso situá-los no contexto em que são realizados. Os diversos trabalhos que se realizam em cada momento e em cada lugar são de determinados conjuntos que constituem a totalidade social do trabalho historicamente situado. A noção de trabalho abstrato, introduzida por Hegel e desenvolvida por Marx 18 , exprime o significado genérico da totalidade do trabalho historicamente

18

A noção de trabalho abstrato aparece pela primeira vez na Fenomenologia do Espírito, onde Hegel trata da “certeza de si mesmo”. O que se entende como trabalho abstrato é uma síntese de uma

26


concreto, que, por representar certo universo de experiência, passa a representar uma idéia desprendida de qualquer das experiências que representa. Há uma velha polêmica em economia, acerca do que sejam trabalho produtivo e não produtivo, que, em termos atuais, pode ser colocada como uma diferenciação entre o trabalho cujos resultados são socialmente úteis, o trabalho socialmente indiferente e o trabalho que é socialmente pernicioso. É uma avaliação prática que tem um fundamento ético. Primeiro, distingue-se o trabalho que se volta para atender a uma demanda que é compatível com a reprodução da sociedade, um trabalho que nada agrega mas não prejudica e um trabalho que é contraditório com a reprodução da sociedade. Exemplos disso são, a produção de medicamentos, a produção, a produção de alimentos com componentes inúteis vendidos como se fossem úteis e a produção de drogas. Segundo, distingue-se o valor que se dá ao trabalho que se realiza aproveitando os conhecimentos disponíveis e o trabalho que se realiza mediante soluções tecnológicas inferiores ao nível do conhecimento médio disponível. A avaliação ética do problema envolve decidir quem fica com os resultados do trabalho e quem decide sobre a partilha dos resultados do esforço de produzir. Assim se vê se os trabalhadores têm acesso aos produtos de seu trabalho, ou se os resultados do trabalho são apropriados por alguns poucos e não chegam aos trabalhadores em geral. No final, o controle dos resultados do trabalho é o controle das pessoas dos trabalhadores, com o que isso significa em termos de obstruir sua capacidade de fazer outras coisas que sejam preferíveis segundo seus critérios pessoais. Outra distinção, de Marx, relativa à reprodução do capital, vê trabalho socialmente necessário e trabalho que não é necessário para a reprodução do sistema produtivo. Diremos que há trabalho socialmente necessário, trabalho socialmente indiferente e trabalho socialmente contraditório. O trabalho socialmente necessário é aquele requerido para a reprodução do capital, o trabalho socialmente indiferente será aquele que não contribui para a reprodução do capital, mas que não é nocivo à sociedade e o trabalho socialmente contraditório é aquele que é nocivo à sociedade. O trabalho socialmente indiferente será aquele cuja não realização não afeta negativamente o funcionamento do sistema produtivo. Não parece haver outro modo de classificar o trabalho que se realiza em torno da produção e da distribuição de drogas, senão como trabalho socialmente nocivo. Na sociedade moderna, a composição do trabalho é regulada pela composição do capital, quer dizer, que os trabalhos que são requeridos são aqueles que são compatíveis com a composição técnica do capital. São necessários mecânicos que possam trabalhar com os carros de hoje e não são necessários mecânicos para modelos de carro da década de 1920. No entanto, há espaços de mobilidade para a criatividade dos trabalhadores, que podem encontrar meios de vender diretamente seus serviços. A pequena economia urbana que foi realizada nas cidades brasileiras pelos libertos e por outros pobres marginais do sistema escravista, foi um exemplo desse tipo, que deu determinada pluralidade de formas de trabalho que acontece em determinados momentos historicamente determinados e não é uma abstração completamente separada da realidade.

27


lugar a grande parte da tradição dos vendedores ambulantes. O problema é que essas formas locais de produção são apropriadas pelo capital organizado, ou passam a ser operadas por ele. A produção de alimentos passa a ser realizada por empresas concessionárias de serviços de alimentação para empresas ou pelos que controlam os postos de venda. A Economia Política distingue a força de trabalho, representada pelo trabalhador com suas qualificações, do trabalho propriamente dito, que é o esforço efetivamente realizado pelo trabalhador com suas qualificações. Distingue-se a qualificação enquanto propriedade do trabalhador e a qualificação do trabalho que efetivamente se realiza, que depende das condições de uso dos equipamentos por parte dos trabalhadores. A remuneração obtida pelo trabalhador corresponde ao preço do trabalho no mercado de trabalho, que não necessariamente remunera o valor incorporado na força de trabalho por essas qualificações com que ele vem ao mercado de trabalho. Ocupação e emprego Distingue-se emprego de ocupação, porque a ocupação indica quanto o trabalhador é efetivamente demandado a desempenhar tarefas enquanto o emprego indica que os postos de trabalho disponíveis são ocupados por trabalhadores. Diferentes trabalhadores empregados encontram-se em diferentes condições de ocupação, e, justamente, a diferença entre emprego e ocupação permite que o número de empregos varie de modo diferente da intensidade da ocupação dos trabalhadores. A capacidade de extrair resultados do emprego depende da adequação da ocupação, que, evidentemente, é uma indicação mais clara da eficiência do trabalho. A noção de emprego é tipicamente parte da economia industrial. Supõe que há atividades ou tarefas que são completamente comparáveis, portanto, que é possível reduzir o esforço de trabalho a medições homogêneas. Expressões tais como o emprego na indústria ou no setor de turismo, na prática escondem essas diferenças de intensidade e de adequação do trabalho realmente realizado e desconsideram o fato de que se trata da intensidade da ocupação dos trabalhadores, que é alcançada mediante participação nos diversos setores da produção. Um mesmo trabalhador pode participar da produção e do setor de turismo, ou pode ser funcionário público e comerciante ou pode ser dentista e pecuarista. Assim, a noção de jornada de trabalho, tal como é usada por Marx, é um argumento explicativo da organização da produção industrial, mas que só pode ser estendida à generalidade da produção industrializada no entendimento de que ela é uma síntese de formas operacionais, muitas das quais não são industriais. Ocupação é um conceito estritamente econômico, enquanto emprego é um conceito que envolve qualificações legais e institucionais. Por oposição desemprego é um conceito utilizado de modo confuso, porque indica um número de trabalhadores que perde seus postos de trabalho, assim como indica a relação que há entre o número total de postos de trabalho e o número de trabalhadores que precisa da remuneração ligada aos postos de trabalho. Finalmente, subemprego envolve 28


subutilização do tempo dos trabalhadores e subutilização das qualificações dos trabalhadores. A compreensão de emprego e ocupação vem de que se perceba que o desenvolvimento do capitalismo moderno compreende os movimentos de assalariamento e de desassalariamento, que têm se alternado segundo as necessidades da acumulação de capital e que hoje entram num processo generalizado de desassalariamento, conseqüente de certas tendências da renovação tecnológica. O desassalariamento pode ser irreversível e pode dar lugar a outras formas de organização do trabalho que reduzam a incerteza da renda familiar dos trabalhadores. Isso envolve mudanças de atitude por parte dos trabalhadores, que não poderão esperar que o Estado resolva seus problemas de emprego e renda. Subentende-se que as relações entre os trabalhadores e o Estado têm que ser revistas. O emprego jamais teve o caráter de permanência que lhe deu a classe média e o capital jamais pretendeu empregar ninguém. Empregou apenas enquanto precisou e nos menores números necessários. Mas, como houve grandes números de pessoas empregadas, pelo menos comparado com a situação anterior, em que, praticamente, não houve emprego, supôs-se, equivocadamente, que a indústria emprega. As aspirações de emprego tornaram-se parte da utopia da classe média, que supôs ter chegado ao governo junto com a burguesia. Renda pessoal e renda familiar A diminuição do emprego assalariado repercute em diferenças de qualidade de vida que estão associadas às condições do emprego protegido por legislação trabalhista. A pressão para retirar essa proteção, que se tem justificado com o argumento de que essa proteção representa custos, cuja eliminação permitiria a criação de mais empregos, na verdade escamoteia um dado fundamental da questão, que é o chamado desemprego tecnológico, que é o resultado da substituição de trabalho direto por trabalho indireto. Entretanto, com isso evade-se uma questão básica, qual seja de que o desemprego tecnológico é realizado em muitas situações em que a eliminação de postos de trabalho não resulta em ganho social algum, tal como em obras públicas de pequeno porte e em muitos negócios e formas de produção em que não renovação tecnológica significativa. O salário é a denominação da renda obtida pelos trabalhadores pela venda de seu tempo de trabalho. O salário é a renda individual dos trabalhadores, que entretanto deve sustentar uma família. Assim, é preciso distinguir famílias que vivem apenas com um salário e famílias que conseguem que vários de seus integrantes obtenham salário. A medida correta das condições de vida dos trabalhadores é sua renda familiar, com suas condições de regularidade ou de incerteza, com sua segurança ou falta de segurança e com suas perspectivas de aumento ou falta de perspectivas de aumento. Observa-se que a maioria dos trabalhadores no Brasil recebe rendas inferiores ao custo de reprodução de sua família, portanto, que não recebe rendas suficientes 29


para melhorar suas condições de participação no mercado de trabalho. O aumento da proporção dos que trabalham em cada família tem o aspecto positivo da liberação pessoal dos trabalhadores, especialmente das mulheres, mas tem o aspecto negativo que indica que os trabalhadores estão praticamente limitados a sua renda familiar atual, com poucas opções de investir mais em educação. Salário, exploração e taxa de lucro O salário reflete o preço do trabalho em mercado, que significa os preços dos diferentes trabalhos com sua especificação técnica, resultando no preço de mercado de cada tipo de trabalho, portanto, para cada condição de trabalhador. Fatores tais como o crescimento da população, a diminuição dos postos de trabalho e o aumento das exigências de qualificação, permitem que os trabalhadores sejam contratados por preços inferiores ao valor que agregam à produção. Tais condições gerais dos sistemas de produção somam-se às condições específicas em que os trabalhadores são contratados e o trabalho é comandado pelo capital. Na produção propriamente dita, os gestores do capital organizam os usos do tempo dos trabalhadores, extraindo uma mais valia da diferença entre valor produzido e salário pago e uma mais valia adicional – a mais valia relativa - por administrarem a renovação de tecnologia com o conseqüente realinhamento dos usos do tempo dos trabalhadores. Numa leitura de hoje desse problema, distinguiremos os aspectos de intensidade e de adequação do trabalho, em que a intensidade significa simplesmente que se realiza trabalho com as técnicas disponíveis na organização prevalecente do trabalho, enquanto a adequação significa que se realizam os esforços adequados à finalidade de produção que se pretende alcançar. Há restrições internas do processo de produção, que levam a focalizar na adequação, tais como os custos do componente de energia da produção, e há restrições externas, tais como os custos ambientais da produção, que se tornam um imperativo social que as empresas não podem mais deixar de considerar. A taxa de exploração do trabalho, tal como entendida na economia política, abrange tudo isso e consiste em que os capitalistas contratadores de trabalhadores obtêm da venda dos produtos valores superiores aos que lhes retornam como salário. Nas condições operacionais do sistema produtivo hoje é preciso incluir o aspecto de incerteza do emprego, que aumenta a vulnerabilidade dos trabalhadores e que tem resultado em diminuição do salário real da maior parte dos grupos de trabalhadores. A exploração que se realiza durante a produção é acrescida pelo que se denomina de fundo de salário, que resulta de que os capitalistas contratantes obtêm os resultados do trabalho durante um mês e pagam salários no final de cada mês, depois de venderem os produtos do trabalho, criando a situação de que o trabalhador paga seu próprio salário. A versão inicial da teoria do fundo de salário foi formulada por Marx, mas não leva em conta que o tempo que transcorre entre a realização do trabalho e o recebimento dos salários corresponde a uma administração dos riscos com que se trabalha, em que os capitalistas têm a oportunidade de agirem no mercado 30


de capitais com os recursos destinados ao pagamento de salários. A capacidade dos capitalistas de mobilizarem o fundo de salário aumenta com a concentração do capital, que facilita a formação de monopólios e oligopólios e que impõe referências e restrições à qualificação dos trabalhadores. É uma transformação geral do mercado de trabalho, que se organiza a partir do comando da divisão do trabalho. 19 Tudo isso corresponde à formação dos lucros na esfera dos capitais individuais. No entanto, em cada sistema de produção os capitais individuais atuam no conjunto das condições em que operam todos os capitais em seu conjunto. Esse é o ambiente em geral da atuação dos diversos capitais. Tal ambiente em seu conjunto, é o mercado de capitais, isto é, é o ambiente em que se define como os capitais controlam os resultados do produto social, assim como é o ambiente em que se vê a relação entre o capital e o trabalho n a distribuição dos resultados da produção. A taxa de lucro é a participação do capital no produto social nacional e se forma da capacidade dos diversos capitalistas de concorrerem no mercado, para o que se inclui a apropriação dos resultados da produção por parte dos capitalistas, que administram a contratação de trabalhadores e o fundo de salário. Daí que a explicação da formação do lucro Emprego formal e informalidades A expressão emprego refere-se às condições legais da contratação de trabalhadores. Varia de um país a outro segundo a legislação prevalecente e em todo caso, está condicionado pelo controle da maior parte dos postos de trabalho. Na economia informatizada e globalizada de hoje, tem havido uma tendência decrescente dos postos de trabalho, que modificou, decisivamente, a contratação de trabalhadores e submete a maioria dos trabalhadores a condições de incerteza e de precariedade da renda familiar. Entretanto, não se pode reduzir a complexidade dos problemas estruturais de subemprego, que vêm das origens da exploração colonial com os movimentos atuais de desassalariamento. 20 Algumas categorias de trabalhadores têm emprego garantido em função de especialização. Mas aí, também, há um mecanismo perverso, porque o custo social da 19

Esse movimento foi objeto de bem conhecida análise de Harry Braverman ( Rio de Janeiro, Zahar, 1977), que o caracterizou como a degradação do trabalho no século XX. 20 A especificidade do fundamento histórico do problema tem que ser registrada, sob pena de se reduzir os problemas estruturais de subemprego em geral a problemas imediatos de fechamento de alguns tipos de emprego. Pode-se ver, CEPAL, Subemprego, problema estrutural, (Petrópolis, Vozes, s.d.). O subemprego provém da incapacidade do sistema produtivo colonial para absorver a força de trabalho e aparece claramente nas análises de base histórica, tal como em Helga Hoffmann, Desemprego e subemprego no Brasil (São Paulo, Ática, 1980). A perspectiva estrutural do emprego é parte de uma visão estrutural histórica da formação social, onde a crise atual do emprego aparece como uma crise estrutural do capital, que se manifesta no esgotamento do chamado taylorismo e do fordismo, isto é, de formas de organização da produção compatíveis com o predomínio do complexo siderometal[urgico. No relativo a essa visão dos problemas estruturais do capital, cabe ver Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho (São Paulo, Boitempo, 2002).

31


qualificação dos trabalhadores recai quase por completo neles mesmos. A renovação tecnológica altera freqüentemente a lista dos empregos garantidos. A retração do Estado como produtor tem um efeito negativo imediato em seu papel como empregador, apesar de que a médio prazo há uma recomposição de funções da esfera pública, que abre novas opções de emprego. Como a qualificação do trabalho depende da incorporação de conhecimento técnico por parte dos trabalhadores, a curto e a médio prazo, há uma tendência a uma progressiva desvalorização da qualificação formal dos trabalhadores, que resulta em perda de sua capacidade de acompanhar a qualificação requerida do trabalho no mercado, com a conseqüência de perdas salariais e em pressão para a emigração de trabalhadores qualificados, dos países periféricos para os países centrais. Esse fenômeno hoje atinge o Brasil, onde há um notável aumento da emigração de trabalhadores qualificados e onde se verifica um aumento dana presença de profissionais de nível superior em concursos para trabalho não qualificado. O oposto do emprego formal é a informalidade, que indica que trabalhadores obtêm renda por fora dessas condições legais. Hoje há diversas formas de informalidade, que interagem no mercado de trabalho. Distinguimos uma informalidade de pobreza, que é a informalidade conhecida de todos, uma informalidade de elite, que é praticada por profissionais qualificados, que encontram meios de operar escapando da tributação, e uma informalidade de contravenção, que é praticada por contraventores e criminosos em geral. Essas formas básicas de informalidade se complementam do fato de que há situações de informalidade eventual e de informalidade habitual e que os trabalhadores freqüentemente transitam entre situações de formalidade e informalidade, muitas vezes participando dessas duas situações ao mesmo tempo. No nosso meio hoje o que mais importa é conhecer os mecanismos que ligam as esferas formal e informal, no que eles representam estratégias dos trabalhadores para incrementar sua renda familiar, já que uma grande parte dos trabalham no mercado formal também participam do mercado informal. O emprego deixa de ser visto apenas como uma questão individual, para revelar seu significado como fonte da renda familiar. Distinguem-se situações diferenciadas, entre as dos trabalhadores que estão restritos a um único lugar e que não têm como mudar de emprego, e as situações dos trabalhadores que conseguem superar a imobilidade. A capacidade de comandar as condições de engajamento na produção torna-se o grande diferencial no mercado de trabalho, que, finalmente, comanda as opções de permanecer num mesmo lugar ou de mudar de lugar de trabalho e de profissão. Na atualidade combinam-se os efeitos negativos do que se chama de desemprego tecnológico, que é o fechamento de postos de trabalho por efeito de renovação tecnológica, com os efeitos negativos da concentração de capital, que concentra os postos de trabalho nos lugares sede das empresas esvaziando os postos de trabalho das regiões mais pobres. É uma distinção apenas formal, para um processo cujo significado social está, pelo contrário, no modo como representa um movimento

32


complexo e combinado de controle da renovação tecnológica construído sobre a concentração do capital. Igualmente, é preciso registrar que a informalidade deixa de ser uma situação complementar do emprego regular, para tornar-se a principal regra de ocupação no mercado, pelo que a maioria dos trabalhadores convive com a incerteza de renda conseqüente de ter rendas da informalidade. Hoje torna-se necessária uma análise da informalidade que a situe no ambiente social da destruição dos postos de trabalho e no ambiente de novas estratégias dos trabalhadores qualificados, que oscilam entre estratégias de informalidade e emigração. Taxa de salário Taxa de salário é a expressão que designa a proporção da renda nacional que vai às mãos dos trabalhadores, por comparação com a taxa de lucro, que é a proporção da renda nacional que fica em mãos dos capitalistas e dos gestores do capital. Historicamente, a taxa de salário indica a composição técnica do capital, que estabelece os requisitos de trabalho que são necessários para produzir e reflete o controle do capital sobre a renovação tecnológica e põe essa composição técnica num determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas. No Brasil a taxa de salário tem permanecido abaixo dos 40%, indicando condições desfavoráveis crônicas para a maioria dos trabalhadores. As diferenças entre as taxas de salário que se encontram entre as regiões do país surgem como indicadores de diferenças entre as situações de exploração e de diferenças entre as capacidades de empregar das distintas regiões. No conjunto, isso mostra como a acumulação de capital tem se feito mediante a captação dos incrementos de mais valia que surgem no aumento da produção. A taxa de salário indica uma relação fundamental entre a renda que os trabalhadores recebem e os resultados finais de seu trabalho, que estão registrados através da intensidade e da adequação de seu trabalho. Tais indicações, entretanto, não retornam aos salários, que continuam determinados pela relação entre o número de pessoas que procuram emprego e o número dos postos de trabalho disponíveis. Assim, a taxa de salário é uma aproximação preliminar das condições de exploração dos trabalhadores numa economia nacional em seu conjunto, em que coincide uma grande variedade de condições e de formas de ocupação, resultando em diferentes condições de controle do trabalho por parte dos próprios trabalhadores. Tal controle será a mobilidade do trabalho, que representa a capacidade dos trabalhadores para decidir que fazem e que se compara com as necessidades de determinados trabalhos por parte do sistema de produção. De um lado, são necessárias pessoas que realizem a limpeza das cidades e que controlem o tráfego terrestre e aéreo. De outro lado, as pessoas têm diferentes capacidades para decidir se querem realizar trabalhos socialmente necessários ou não e para decidir quais trabalhos irão realizar. Todos precisam sobreviver e nem todos contam com os recursos necessários para estudar violino ou para se prepararem para serem médicos ou físicos teóricos. Há uma 33


diferença fundamental entre o que são trabalhos socialmente necessários para a reprodução do capital e o que são trabalhos necessários como meios de engajamento de trabalhadores atuais com as qualificações que têm. A mobilidade do trabalho A síntese da participação dos trabalhadores na produção é sua mobilidade, que pode ser positiva ou negativa, isto é, pode aumentar ou diminuir ao longo do tempo, e, segundo os trabalhadores permanecem numa única posição ou mudam de posição em seus empregos. Os trabalhadores podem passar a empregos melhor ou pior remunerados e com maior ou menor garantia de estabilidade ou com maior ou menor incerteza de renda, segundo suas qualificações ou segundo como conseguem entrar em mercados de trabalho que jamais foram completamente abertos. Para cada trabalhador individual, mobilidade significa capacidade de deslocarse de um emprego a outro. Para o sistema em seu conjunto, mobilidade significa que haja trabalhadores capazes de realizar as novas tarefas que são demandadas pela substituição de tecnologias no capital. Na medida em que a capacidade dos trabalhadores de se deslocarem em busca de salário torna-se menor que as modificações nos requisitos de trabalho qualificado, há uma perda da capacidade dos trabalhadores de se adaptarem às transformações do sistema de produção, indicando que o sistema tenderá a trazer trabalhadores de fora. Por outro lado, na medida em que os trabalhadores ganham em capacidade de se deslocarem em busca de salário mais que a capacidade do sistema de se atualizar, encontra-se que a qualificação do trabalho tende a levar os trabalhadores a buscarem outras opções de emprego. Assim, como para o capital a regra de ouro oculta é reduzir o emprego para aumentar o lucro, a regra de ouro do trabalhador é reduzir sua dependência em relação com qualquer emprego em particular. Essa redução de dependência surge como parte da mobilidade dos trabalhadores. A questão da mobilidade ganha novos significados, segundo aumentam os movimentos migratórios entre sociedades com poucas opções de mobilidade e sociedades com mais perspectivas de mobilidade para diversos tipos de trabalhadores. Em última análise, a mobilidade dos trabalhadores se traduz em sua capacidade de se desprenderem da demanda local de trabalho, portanto, a emigrar. Mas, como a emigração é uma situação de risco, de fato, há uma separação entre a reprodução do sistema e a sorte dos trabalhadores. Dois aspectos fundamentais da mobilidade do trabalho na sociedade de hoje são a vida útil dos trabalhadores e sua capacidade de se reinserirem no sistema produtivo. Com a precarização do emprego, aumentaram as diferenças entre aqueles perfis profissionais que permitem uma vida profissional mais longa e os que resultam em situações profissionais de curta duração. O prolongamento da renda torna-se ainda mais importante quando se constata que aumenta a vida útil das pessoas e que sua capacidade de trabalho pode ganhar com sua experiência. Algo semelhante acontece no relativo à capacidade das pessoas de retornarem ao mercado de trabalho 34


depois de uma aposentadoria formal ou mesmo de saírem do mercado de trabalho porque sua atividade foi extinta. Ambos aspectos indicam alterações significativas na capacidade dos trabalhadores de buscarem uma renda familiar mais prolongada e mais capaz de se adequar as incertezas do mercado de trabalho. A ampliação das possibilidades dos trabalhadores de superarem as condições imediatas do mercado de trabalho em seu lugar de origem vem a ser base da estratégia de sobrevivência dos trabalhadores enquanto pessoas e enquanto classe social.

5. Formas de organização da produção No mundo moderno, a produção está organizada pelo modo capitalista de produção, que é a modalidade genérica de sociedades econômicas baseadas na propriedade privada do capital e na contratação de trabalho. A produção mediante contrato de trabalho comanda as demais formas de produção. Entretanto, a relação imediata entre capital e trabalho se realiza mediante estruturas institucionais que se formaram no ambiente do capital mercantil escravista, mantendo ou reproduzindo formas de controle que não podem ser explicadas pelo mecanismo capitalista de mercado. Na América Latina em geral, no Brasil em particular, a organização da produção industrializada estendeu-se sobre formas de produção que funcionaram com o pressuposto implícito de disponibilidade de trabalho barato, ou onde os trabalhadores são descartáveis.21 O modo capitalista de produzir compreende uma produção que se realiza segundo princípios capitalistas, isto é, que opera com conhecimento de custos e de preços, com o objetivo de obter lucro, valendo-se de sua capacidade de extrair valor do trabalho; e compreende formas de produzir que estão articuladas pela produção capitalista, mas que não funcionam em correspondência com informações de mercado. Observações empíricas realizadas em diversas oportunidades, em diferentes regiões do Brasil, desde o NorNordeste a estados do Nordeste e do Sul, entre 1986 e 1998, mostraram que a maior parte dos produtores rurais produz sem dispor de estimativas de custos de produção e sem elementos objetivos dos rendimentos físicos da terra, mesmo quando se trata de produtores que estão integrados ao mercado, inclusive realizando produtos para exportação. Nas diferentes nações, a modalidade genérica da produção capitalista assume uma grande variedade de formas, refletindo a trajetória de cada país e o modo como ele participa da internacionalização dos negócios em torno de cada mercadoria. Longe de uma ruptura clara entre uma situação escravista e outra não escravista, há uma variedade de situações, 21

A leitura da história leva a revisar a tese de W.Arthur Lewis relativa a uma suposta oferta ilimitada de força de trabalho. De fato, no ambiente colonial escravista, houve oferta abundante de trabalho indígena em muitos lugares, mas a força de trabalho escrava foi, basicamente, cara. A força de trabalho aparentemente abundante foi a de mestiços e índios constituindo a periferia da produção escravista. O centro do mecanismo é a capacidade do sistema de dominação de manter os trabalhadores sem opções de emprego, constrangidos a aceitar emprego ou ocupação transitória mal pagos.

35


que são parte de uma concentração do poder econômico, que combina formas escravistas com situações formalmente não escravistas, entretanto, que mantêm um controle total do mercado de trabalho. As estratégias de resistência dos trabalhadores, que vêm desde as fugas de escravos às greves de operários e de funcionários, se desenvolvem entre as restrições dadas pelas limitações de opções de ocupação remunerada e de migração, em última análise, sobre os dados locais das relações de trabalho. Historicamente, a produção capitalista expande-se num universo constituído de diversas formas de produção, tanto daquelas reconhecidas como capitalistas como de formas de produção ditas pré capitalistas, ou que, simplesmente, não evoluem junto com as formas capitalistas. Isso significa que o sistema de produção em seu conjunto tem a complexidade inerente à combinação de formas de produção de que está constituído. O sistema evolui segundo se alteram cada uma das formas de produção e o conjunto das formas de produção. Reduzir isso a uma dicotomia entre o que é capitalista e o que não é capitalista é uma simplificação que reduz a complexidade social às situações técnicas do capital. Numa abordagem que reconhece a pluralidade de modos de organização e de condições operacionais em que opera a economia brasileira, é preciso tomar em conta como o sistema produtivo compreende formas novas e antigas em combinações diversas. O essencial da realidade social é uma complexidade, que se constrói historicamente, congregando os participantes da vida social com suas respectivas experiências. A ordem capitalista sobrepõe-se a uma ordem mercantil-escravista em que a acumulação de capital se faz mediante extração de trabalho de escravos e de dominados em geral, que são totalmente desvalorizados e que têm completamente negada sua capacidade de decidir sobre os usos de seu tempo. A separação entre trabalho escravo e trabalho livre só teve sentido quando se limitou aos espaços nacionais das nações organizadas nos moldes capitalistas, que, justamente, protagonizaram a colonização. Nas nações colonizadas, o trabalho não livre – escravo ou dominado – é submetido a um tipo de exploração que está externamente ligado à ordem econômica do país metropolitano, que com maior probabilidade pode ser o país capitalista. O argumento central com que se trabalha nesta seção é que o mercado de trabalho de hoje surge de uma relação direta entre o funcionamento de sistemas nacionais de trabalho assalariado nos países colonialistas e o funcionamento de sistemas de trabalho escravo e dominado nas nações periféricas e colonizadas. O desenvolvimento do mercado de trabalho nas sociedades periféricas está ligado às transformações do mercado de trabalho nos países mais industrializados e funciona como um mecanismo complementar daquele. Essa relação se torna mais clara quando se vêm movimentos pelos quais as empresas dos países centrais transferem empregos seletivamente para pontos dos mercados de trabalho dos países periféricos, ou quando empregam seletivamente trabalhadores dos países periféricos em seus estabelecimentos. No entanto é um mecanismo complexo cujo fundamento são as inter-relações entre os investimentos das multinacionais em seus países de origem e nos demais países para onde elas se deslocam. 22 22

Alguns exemplos tornaram-se notórios. Empresas européias que se instalaram no Brasil desde o início da década de 1990, com as privatizações, passaram a trazer “executivos” de seus países de origem, que em sua maioria são quadros intermediários, que em muitos casos nem sequer já trabalhavam nessas empresas.

36


As formas específicas de organização técnica da produção brotam do modo mais geral de organização social, que tem sido o lugar dessa complexidade. De fato, no campo geral da produção capitalista criaram-se diversas formas locais, que conviveram com diversas formas de associação e com componentes de trabalho livre (Franco, 1997). Por mais que a escravidão se reproduziu no âmbito da própria escravidão – ex-escravos que se tornaram escravistas – há componentes de trabalhadores livres – tripulações de navios e outros – que viabilizaram a extração de trabalho escravo. O essencial é que surgem alterações do sistema produtivo pelas quais aumenta mais a absorção de trabalhadores não escravos ou não dependentes mais que a incorporação de escravos, e que o mercado de trabalho progressivamente inclui situações de ocupação em que os trabalhadores têm mais mobilidade entre empregos e podem procurar melhores remunerações. A mobilidade do trabalho torna-se uma mobilidade dos trabalhadores, que podem se deslocar entre situações de trabalho, mesmo entre situações adversas, mas onde passam a poder defender seus interesses. 23 Em seus aspectos técnicos, o sistema é objeto do movimento geral de industrialização da produção, que no essencial significa que os diversos setores da produção tendem a operar segundo moldes de organização semelhantes aos da indústria, isto é, tendem a reproduzir as formas de cálculo de custos e de controle da produção que são típicas da indústria. Mas, como o modo industrial de produzir não pode ser integralmente reproduzido nos diversos campos da produção, a industrialização da produção significa, de fato, que a gestão dos recursos procura acompanhar os padrões organizacionais da indústria, sem necessariamente poder usar as mesmas referências de eficiência. Tomando como referência as formas básicas de organização da produção manufatureira – artesanato, manufatura e indústria propriamente dita – encontra-se que o mercado compreende usos de recursos naturais, de capital e de trabalho, em todas essas formas e inclusive, que há diversas experiências de atualização tecnológica em formas tradicionais de organização, tal como no artesanato. Outras formas colaterais de produção continuam funcionando, em articulação com a produção capitalista, e inclusive produzindo para o mercado, sem, entretanto, serem pautadas pelos princípios de organização do capital. Nesse sentido destaca-se o extrativismo ou produção extrativa, que atende necessidades de sobrevivência e gera excedente físico significativo que chega ao mercado. No sistema de produção tal como ele funciona hoje, as formas mais modernas de contratação de trabalho convivem com atividades do extrativismo e grande parte da Adicionalmente, criaram empresas prestadoras de serviços às quais passaram a dar todos seus contratos, evadindo assim os controles nominais a que são submetidos pelas agências reguladoras brasileiras. 23 Ressalta-se que, segundo documentos que vieram à luz recentemente, tais como correspondência entre fazendeiros, a mobilização da sociedade para destruir o Arraial de Canudos no final do século XIX foi determinada por interesses de proprietários rurais, que reagiram contra o abandono de suas terras por parte de trabalhadores rurais que foram se incorporar aos seguidores de Antonio Conselheiro. O argumento da “falta de braços no campo” continuou durante o século XX no Nordeste, referindo-se, principalmente, à disponibilidade de trabalhadores para as propriedades do semi-árido, onde o pagamento aos trabalhadores continuou a ser ínfimo.

37


população sobrevive sem ter emprego formal e sem ter perspectivas de chegar a ter emprego formal. Assim, a pluralidade de formas de organização social do trabalho é, também, uma pluralidade de formas de organizar seqüências de formas de produção. O essencial do processo do capital aí é a capacidade de contratar, que pode ser acionada para contratar pessoas que são engajadas em formas atualizadas de produção e em formas arcaicas. No meio rural encontram-se combinações de extrativismo, de pequena produção familiar, de grande propriedade, em que hoje também entram formas não agrícolas de produção, tais como artesanato e manufaturas, em modalidades empresariais e cooperativas, que tornam os espaços regionais mais complexos e que tomam rumos não convencionais em seu desenvolvimento. No que hoje se vê no Brasil como uma nova economia rural, encontra-se uma grande variedade de combinações de formas de produção, viabilizadas por uma renovação das formas de organização social da produção, tais como associações, cooperativas e convênios. Nas cidades, principalmente nas grandes cidades, desenvolveu-se uma grande variedade de formas de produção, que criam novas formas de articulação entre a esfera doméstica e o mercado, com novas modalidades de comércio, com combinações de trabalho em tempo parcial. A redução do número de postos de trabalho em emprego formal impôs a necessidade de novas estratégias de sobrevivência à maioria dos trabalhadores, que não podem depender de um salário mínimo como referência de sua sobrevivência.24 Tornase preferível contratar trabalho temporário, qualificado tanto como não qualificado, mantendo uma ocupação mais sensível aos ciclos econômicos e menos dispendiosa. Entende-se artesanato como uma forma de produção em que a divisão do trabalho não dilui o papel central das habilidades individuais dos produtores, em que a produção finalmente depende de habilidades pessoais no manejo de ferramentas. O artesanato evolui segundo se modificam os modos de usar instrumentos por parte dos trabalhadores qualificados. Na manufatura há divisão do trabalho, trabalha-se principalmente com ferramentas e complementarmente com máquinas. A produção industrial é feita com máquinas e os trabalhadores tornam-se complementos das máquinas. O essencial continua sendo a organização social da produção, que se reveste de diversas formas técnicas e que se vale de equipamentos de diversos modos. Um mesmo elenco de equipamento pode ser usado de diferentes modos, segundo como se organiza socialmente a produção, tanto por diferenças na competência com que elas são usadas como na finalidade que se dá a cada uma delas. A versatilidade no sistema produtivo depende inteiramente do trabalho, que representa uma capacidade de adaptação a novas funções e a novos modos de desempenhar as mesmas funções.

24

Através de diversas pesquisas realizadas por estudantes em cursos de economia na Bahia, dirigidas por este autor, foi possível identificar que uma família de trabalhadores com quatro integrantes cerca do ano 2000 precisaria trabalhar pelo menos 300 horas – comparado com as 164 horas previstas na legislação trabalhista para obter uma remuneração suficiente para sobreviver consumindo a cesta básica de alimentos prevista em lei.

38


Tudo isso eventualmente se integra com alterações técnicas propriamente ditas. A substituição dos antigos controles elétricos da produção por controles eletrônicos e, destes últimos por controles digitais resultou numa reorganização das unidades produtivas, que passam a descentralizar atividades e a operar em combinações de tempo muito restritas, com uma programação eletrônica dos componentes dos produtos e com sistemas de compras internos em cada grande empresa. Esse movimento dá a ilusão de que o sistema se reorganiza em função de novos dados técnicos, obstruindo a visão de que o sistema procura novos dados técnicos que se adaptem a suas transformações sociais. As formas de produção são, cada vez mais, combinadas pelos capitais que são mais sensíveis às opções de renovação tecnológica e em todo caso, que operam com mais flexibilidade no relativo à qualificação dos recursos humanos. A substituição de formas fabris básicas, que têm sido denominadas de fordismo, por formas de organização que focalizam na qualificação dos recursos humanos, revela a verdadeira natureza do capital, que está, justamente, em reduzir riscos qualificando-se para acompanhar as modificações do mercado. Isso tem a ver com a própria compreensão de que sejam os estabelecimentos produtivos, fábricas ou empresas prestadoras de serviços. Hoje, o sistema produtivo funciona guiado por grupos econômicos internacionalizados, que utilizam as formas de produção mais convenientes para cada situação da produção, mas que se confrontam com os modos de funcionar que são dados por cultura e tradição. Daí, que o modo de operar dos grandes grupos internacionais envolve uma despersonalização da produção e da propriedade que não é aceita pelos interesses tradicionais do capital. Entretanto esses poderes dos grupos econômicos enfrentam resistências organizadas na esfera política, em parte por indução de grupos de trabalhadores e em parte pelo dinamismo da esfera política, fazendo com que o sistema de poder econômico enfrente resistências inesperadas. A capacidade de subcontratar, dada pela maior facilidade de transporte e pela automatização dos controles de qualidade, permite que os grandes capitais combinem grandes fábricas com pequenos empreendimentos, assim como, que operem com pequenas unidades de tecnologia elevada. Desenvolvem-se novas formas de controle dos pequenos capitais por parte dos grandes capitais, cuja estratégia passa a ser de usar seu próprio capital como meio de alavancar capitais mais vultosos para seu controle. Trata-se, portanto, de ver como as formas de produção se combinam ao longo do tempo, segundo prossegue a acumulação de capital, e não de ver as formas de produção como situações separadas umas das outras, tal como se dá na análise econômica convencional. Finalmente, as formas de produção são os modos pelos quais a sociedade estabelece as condições em que os trabalhadores podem participar da produção. 6. Formação social, classes e cultura A predominância da corrente neoliberal e da análise neoclássica em economia levou a um discurso oficializado que nega a relevância da análise de classes e que volta, 39


tacitamente, à exclusividade da perspectiva monocultural da segunda revolução industrial. A visão de uma sociedade tecnocrática desideologizada, onde as diferenças sociais se reduzem a desigualdade de renda, portanto, onde, no limite, haveria mobilidade irrestrita do trabalho, tornaria desnecessária e obsoleta a análise de classes sociais. Entretanto, a experiência da segunda metade do século XX mostra, justamente, o contrário, com a frustração de processos de desenvolvimento e com a experiência de processos de modernização combinados com movimentos de atualização da ruptura de classes e com movimentos de exclusão seletiva, mostra a atualidade da análise do conflito social em seu principal fundamento que é a relação de classes. Essa desqualificação da análise de classes está ligada a um movimento teórico que consiste em reduzir a análise de classes a um modelo abstrato, tal como Anthony Giddens sugere que tenha sido a análise de Marx dessa matéria (Giddens, 1983, pp. 24 a 26).25 As modificações no contexto de relações das sociedades desigualmente industrializadas como o Brasil, evidencia a futilidade dessa visão abstrata da estruturação social. A análise de classes revela-se indispensável, inclusive, porque os novos fenômenos de alienação e de subalternização das elites tornam necessária uma visão crítica da própria hegemonia e das sociedades que constituem o bloco de poder. Paralelamente, a controvérsia acerca de cultura aprofunda-se nas sociedades que não participam do controle da formação de capital - ou que se tornam periféricas dos processos ideológicos - à medida que emergem mais pontos de vista reivindicatórios de identidade, que rompem com padrões autoritários de legitimação, por sua vez presumindo unidade étnica e de classe. Trata-se de uma controvérsia igualmente profunda e complexa em países de grande e de pequeno porte, assim como em regiões que têm se modernizado, tanto como em regiões que continuam submetidas a formas tradicionais de poder. Em todo caso, é uma questão essencial para o Brasil, cuja consciência do atual depende de resgate dos principais aspectos traumáticos de sua formação, que são as diversas formas de violência ligadas à escravidão. O debate que ruma a descobrir a complexidade do panorama cultural, paralelamente, leva a ver que se trata de uma complexidade datada, produzida mediante trabalho historicamente situado, o que quer dizer, que perfaz um percurso irreprodutível de produção, de um corpo social gestado sob condições gerais de hegemonia e sob condições específicas de definição de um modelo de sociedade econômica subalterna, entretanto, ligada às condições materiais e ideológicas da modernização, segundo ela se deu ao longo do tempo. Mas essa pressão do que se reconhece como modernização começou antes mesmo que se iniciasse esta colônia íbero-americana-africana. Por isto, nesta reflexão é preciso dispor de uma compreensão de hegemonia capaz de lidar com a problemática deste

25

Giddens substitui a generalização de experiências concretas por uma modelagem abstrata, que, logicamente, justifica abandonar uma análise de classes que, de entrada, não é representativa de movimentos da formação social. Essa operação já tinha sido criticada por Maria Sylvia de Carvalho Franco (1987), em estudo sobre a formação social brasileira. Nas páginas seguintes Giddens justifica indiretamente essa operação, tomando como referência a visão hegeliana do processo social (pp.31 e 32). Mas não resolve o problema fundamental conseqüente da dinâmica das classes, com sua renovação e suas relações submersas no cotidiano dos contratos de trabalho.

40


trajeto de modernização. Nisso, cabe distinguir entre hegemonia, enquanto exercício de um poder aceito; e supremacia, como manifestação do poder principal, aceito ou imposto. Se, como disse Myrdal (1968), a modernização é a linguagem da dominação européia, essa linguagem torna-se ela própria problemática, à medida que se converte em um campo em que se realizam os conflitos entre as nações participantes do bloco mundial de poder; em que a dinâmica da mundialização do capital ultrapassa o horizonte de possibilidades de dominação da Europa; e em que o mecanismo das migrações leva os mesmos problemas para o interior dos países mais ricos. Uma colocação atualizada desse problema não pode ignorar que o principal mercado que se abre hoje para o capitalismo avançado está na Ásia. Atrai as principais atenções dos Estados Unidos e sinaliza tendências de mercado. Por contraste, enfatiza a incapacidade dos países latino-americanos para ultrapassarem o círculo de frustrações de seu endividamento e de operar expostos a variações mortais da taxa de câmbio. Há uma balcanização da América Latina, cujo principal exemplo hoje é a Argentina. Há graves perdas de identidade no México e uma crise do Estado na Colômbia. As contradições da Europa, entre a esfera germânica, a eslava e a latina, permitiram a recomposição da hegemonia norte-americana, que em princípio estava em declínio no fim da década de 70 ( Tavares, 1998), dando lugar a outra imagem de Europa, multiétnica, associada menor no controle mundial do grande capital, mas submetida a conflitos internos inexplicáveis pela racionalidade operacional do capitalismo avançado. Língua, cultura, religião, etnias revelam-se mais intransigentes e cruéis que na África. A pressão unificadora dos povos-do-Mar-do-Norte para chegar a uma Europa pasteurizada tem algum sucesso, mas enfrenta uma diversidade de interesses e de ancoragens extra continentais muito maior que parecera umas duas décadas antes. No ambiente da supremacia norte-americana, o panorama cultural do centro do poder revela um outro plano de complexidade e de contradições, que não se confunde mais com sua matriz nos povos-do-Mar-do-Norte, já que a referência de uma relação principal com a Ásia significa, de fato, uma capitis diminutio do papel dominador dos europeus. O domínio financeiro é um dado fundamental desse tapete de poder, mas esse não é um dado exclusivo. A penetração cultural faz-se, simultaneamente, no nível culto, mediante a legitimização do discurso científico empirista, da destituição da crítica; e no nível da divulgação, onde se combinam uma imensa difusão de literatura quase técnica e quase científica, com uma surpreendente mediocrização nas principais formas de comunicação de massa. A imagem projetada ao exterior dessa sociedade magmática é de quebra de limites da mobilidade vertical e de formação de espaços legais que permitem absorver migrantes em modos não conflitivos de inserção, bem ao contrário de uma história de discriminações, segregações e formação de guetos. A modernização expande-se em contraponto com a produção de novos mecanismos de controle social, integrados com a expansão do poder internacionalizado. Mudam as condições objetivas da modernização e mudam as referências subjetivas de quem moderniza e de quem é modernizado. Não se trata de uma contenda superficial, nem de um conflito entre correntes doutrinárias, senão de uma visão cultural da modernização, que se 41


revela em sua plena complexidade e força. O controle da tecnologia fabril passou a articular-se com o controle do consumo e finalmente com o controle da formação de opinião. Controlar a televisão torna-se um meio de antecipar tendências de consumo e pressões sobre a tecnologia da produção, finalmente, de subverter a ordem política conquistada. A discordância surge da rejeição da visão antropológica, que tem se alimentado, principalmente, do esforço de conhecer tudo que é periférico e suplementar da expansão do capital, versando sobre os chamados povos primitivos, ou em todo caso sobre todos aqueles que estão sujeitos à tutela dos países condutores do progresso. A descrição de costumes, religiões e da formação da linguagem, deixa uma insatisfação fatal, já que não necessariamente liga os processos pretéritos com as regras da sociedade modernizada. Na prática, o estudo das sociedades consideradas civilizadas corresponde à sociologia, enquanto as demais, com vocação para serem vistas como pitorescas e para serem tuteladas, cabe à antropologia. Não é uma caricatura de uma situação pretérita da ciência. A tutela aumenta diariamente, à medida que se consagram mecanismos de legitimação. A compreensão de cultura ficou sujeita à ambigüidade de representar algo que sustenta o movimento civilizatório, ou algo que se reproduz à margem do movimento da civilização. Na América em geral, cultura tem sido um campo em que se exercitam o olhar generoso e complacente dos povos detentores da modernização, primeiro franceses e ingleses, hoje norte-americanos; que assusta, pelos perigos de uma suposta latinoamericanização da Europa (Beck, 1999). Certamente, há mudanças importantes nessa substituição de europeus por norte-americanos, porque em que pese a postura do discurso norte-americano unificador do poder, não há como negar a importância dos primitivos e dos inferiores na constituição do poder econômico e militar americano, que hoje os obriga a cortejar seus povos dominados. Há progressos no reconhecimento do outro ou dos outros; e outra compreensão de mobilidade, que pesa negativamente sobre o prestígio europeu. No contexto americano, tem havido uma atitude sobre cultura nos países de herança indígena e outra nos países mais influenciados pela presença africana, onde os países que reconhecem mais o fundamento indígena são aqueles em que o mundo ameríndio chegou a ter uma história própria. Mas o menoscabo pelo fundamento indígena é o mesmo. Cultura, em todo caso, ficou na contramão da história e das atividades emancipatórias, que estão determinadas pelo aparecimento e pela diluição de classes. Assim, não há porque surpreender-se com o isolamento entre uma visão histórica e uma visão cultural de cultura, porque o aspecto cultural foi funcional a certo tipo de interesses ligados à reprodução dos controles tradicionais modernizados. Entretanto, os estudos de cultura no nosso admirável mundo periférico e antigo, geraram uma contradição dessa postura, porque trouxeram diversos novos elementos de pluralidade da realidade social, que se deixa de ver como um campo de relações que podem ser reduzidas a um esquema de reprodução de elementos equivalentes, para revelar-se, justamente, como um espaço de não equivalentes. Por isso, há uma pressão real para remover essa separação, dada pela constatação de que foram s mutações ocorridas na ordem 42


mundial que sustentaram essa separação entre os espaços da modernização e os do isolamento, porque essas mutações são sempre novas, porque a modernização não é um movimento uniforme; e porque o isolamento é, repetidamente, quebrado pelas pressões da modernização desigual. A desigualdade é um risco embutido na modernidade e nos controles das sociedades desiguais (Beck, 1998), que entretanto o capitalismo tem afrontado com sucesso, ao desenvolver mecanismos mundiais de controle político com legitimação do bloco de poder, como são as novas edições do Tribunal de Haya e da Organização Mundial de Comércio. Por isso, a discussão sobre cultura passa por uma brecha ampla e profunda na virada da década de 70, tal como aconteceu com a análise regional, com a do meio ambiente, com a da população e com a dos transportes. Não custa muito ver que se trata, realmente, de um conjunto de novas condições de controle da esfera de relações internacionalizadas, que não por acaso, se expande em forma seletiva, escolhendo qual trabalho valoriza e quais desvaloriza. Com a disputa mundializada pelo mercado - não muito diferente da que se desenvolveu na virada do século XIX para o XX - tornou-se impraticável continuar com um perfil de análise baseado em preceitos de divisão de campo de interesse que não são mais imaginativos nem mais criativos que os das divisões disciplinares preconizadas pelo positivismo comteano mais primário. A disputa do método, tal como visualizada por Adorno (1963), é também uma disputa em torno do significado da colocação de problemas, que em última análise é uma disputa pelo controle sóciopolítico da cultura. Conduzir a indústria cultural é um modo de decidir sobre cultura (Adorno & Horkheimer, 1966), que é sempre externo à cultura conduzida. No Brasil, a contrarevolução liberal, que se espraia sobre o edifício inacabado de uma sociedade semi-industrializada, já deixou pelo menos dois resultados, contraditórios entretanto palpáveis, de crise do Estado e de redefinição dos canais de acesso ao corpo social contínuo de trabalhos equivalentes. A convivência de esferas econômicas de trabalho não equivalente é o fundamento da economia subalterna globalizada. A discussão de direitos é um desdobramento inevitável. Citamos Carlos Nelson Coutinho (2000), quando diz que os direitos denominados de sociais são, realmente, condições materiais historicamente obtidas, nada parecendo com direitos naturais. O crescimento do antivalor financeiro corresponde ao declínio do valor reconhecido ao trabalho vivo, isto é, aos que precisam de trabalhar para viver. Trata-se do conjunto de movimentos de uma grande mudança dirigida, que situa a problemática cultural como parte submetida dos realinhamentos conduzidos pelas alianças do grande capital na esfera pública e na privada. A deconstrução do Estado, empreendida desde a década de 80 e acelerada desde o início da década de 90, corresponde ao desmonte do capitalismo nacional e à substituição da lógica da produção pela lógica da representação de interesses externos e pela da especulação. A desqualificação do capitalismo nacional também significa o fim da lógica de um uso de recursos nacionalmente consistente, e sua substituição por usos de recursos segundo o interesse do capital internacionalizado, segundo sua distribuição de investimentos entre países e regiões.

43


Nesse mundo, cultura tornou-se uma manifestação datada e delimitada de experiência, ligada à secularização do poder, como diz Marramao (1995), a ser avaliada em função da monopolização do capital que controla os circuitos internacionais de prestação de serviços. Perde-se a generalidade da cultura, admite-se a necessidade de recuperar as raízes históricas das manifestações culturais. Assim, é preciso deixar claro que nossa compreensão de cultura se caracteriza por não separá-la da totalidade construída pelo mundo social. Nosso problema consiste em como manejarmos a categoria totalidade no plano do concreto. Historicamente, nossa totalidade não é a da economia-mundo vista da Europa. A produção brasileira de cultura confunde-se com a produção da cultura brasileira, simplesmente porque não há como escapar da presença dos movimentos de modernização, que constantemente a experiência anteriormente acumulada e constantemente desqualificam as experiências circunstanciais atuais. Este é o ambiente da sociedade de classes, com suas diversas instâncias de exclusão e de alienação. Cultura, enquanto denominação de experiência reconhecida, surge inevitavelmente como referência geral de uma pluralidade que se desdobra segundo trilhas abertas por diferentes modos de viver e conviver, antes que por preferências e formatação ideológicas, em condições de sobrevivência. Cultura é portadora de identidade, porque como diz Sodré (1999), "identidade é de fato algo implícito, em qualquer representação que fazemos de nós mesmos". Implícito, mas não necessariamente reconhecido, já que a pluralidade de condições de inserção social faz com que muitos dos elementos de um mesmo contexto cultural sejam alheios, distantes e mesmo, rejeitados. Então, cultura é um campo aberto, que se distingue de civilização, que envolve escolhas ideológicas, vetos estéticos, valorações de hegemonia assentadas sobre modos conduzidos de cooperação, tal como fomos encontrar em Heller (1999) " Mas o multiculturalismo significa freqüentemente algo mais. Algumas vezes é o contrário da busca de compreensão e do reconhecimento mútuos, bem como da colaboração entre as culturas. Torna-se a senha para um separatismo agressivo, que penaliza a identidade múltipla e ordena a lealdade absoluta." (pp.29). Civilização historicamente situada envolve adesão a uma visão de mundo legitimada. Afinal, o poder hegemônico é visto como o portador - o fiel - da civilização ocidental, ficando por definir que é ocidental. A negação do multiculturalismo pode significar uma reafirmação da versão européia de civilização 26 , bem como uma negação das versões eticamente incompatíveis com o utilitarismo europeu. A relação do bloco ocidental com os muçulmanos é a mais reveladora dessa situação. Longe de uma repetida afirmação do tradicional - podemos desconfiar que se trata de desejo de abrigar-se em raízes que garantem identidade por diferença - impõe-se a dura necessidade de enfrentar como ficam a formação e a reprodução de classes no ambiente hostil de destruição do emprego e desvalorização do trabalho. A leitura subalterna da tradição leva a novas perplexidades, no relativo a como se apropriar do passado, a como 26

A rigor, a visão de civilização ocidental representada por alguns países da Europa ocidental, que são os do Mar do Norte. Tal visão, reconhecidamente, inclui diversos preconceitos com a Europa realmente latina e com os eslavos.

44


olhar para anteriores e atuais poderes dominantes; e como ler a subalternidade mais geral que pauta as ações do bloco de poder no país. Afinal, porque os saxões são dominadores mais legítimos que os ibéricos, ou porque os ibéricos são afetivament6e mais próximos de nós que os saxões? Qual o fundamento cultural da dominação? Precisamos voltar a Weber para articular um discurso atualizado, ou tomamos a iniciativa de contestar a supremacia. Uns e outros são parte de um mundo de relacionamentos, em que os vínculos afetivos podem ser periodicamente reinventados, ou em que o controle da mídia produz imagens diariamente. Os marginalizados ficam destituídos do Estado nacional antes que ele consolide um estilo próprio de poder legítimo para conduzir as relações de poder entre estados. As classes são a representação da modernidade, não só da fabril. Não ficam restritas às definições iniciais, porém foram reconhecidas como a referência por excelência do contexto de relações guiadas por interesses centrados no contrato de trabalho, com uma densidade histórica de experiência, que é precisamente sua base cultural (Lúkacs, 1978). Mas pertencem a sociedades dotadas de diferentes condições de reflexão. A generalização do trabalho livre - ou não escravo - não resolveu o problema central da falta de forma social do país, que continuou reproduzindo-se através das desigualdades (Arantes, 2000, pp.24), que são parte de diferentes condições de sobrevivência. A questão nos chega marcada pela indefinição da individualidade, que é um obstáculo preventivo da equivalência. Na trama desigual de relações de classe nas regiões brasileiras, despontam novas relações com outros excluídos, de aquém e de além mar, que têm o duplo efeito de encaminhar algumas tímidas menções de solidariedade; e de levantar outros aspectos de subordinação, agora às estratégias de controle dos países hegemônicos para os postergados dos países dominados. Por exemplo, novas formas de catequese, agora realizadas por missionários que esvaziam conflitos de interesse e adequam comunidades para serem úteis a empreendimentos internacionais. Há um problema fundamental de equivalência, que separa os que são parte do sistema de classes dos ficam à margem dele. Procura-se, desesperadamente, por equivalência, tal como se procura pelos valores humanos da construção social. De fato, a destruição do controle das oligarquias e de seus herdeiros no capitalismo nacional, descobrem-se condições de relacionamento entre os diversos dominados e mesmo entre uns dominados daqui e outros que não têm como exercer dominação, que termina por quebrar supostos laços de solidariedade local, que nada mais eram que elementos da dominação tradicional. Logicamente, cresce a suspeita sobre esses "colegas" de exclusão, cuja primeira prioridade é serem membros, mesmo de segunda classe, da União Européia ou dos Estados Unidos. A principal referência de nossa reflexão é a deconstrução das estruturas institucionais - especialmente da esfera do Estado - que se prolonga na desnacionalização das empresas e o controle externo da prestação de serviços, tal como se vê na publicidade e no turismo de redes. Esses movimentos à primeira vista parecem progredirem ao léu, segundo guinadas do mercado. Quando muito se vê que estão associados ao perfil operacional do Estado nacional, que gera essa pseudo separação entre um Executivo gestor

45


e um Legislativo regulador.27 Mas, por debaixo desse acaso plural, há uma composição política da modernização que, essa sim, regula o cotidiano do Estado com o de interesses de uma esfera privada cada vez menos clara, cada vez mais escorregadia. Junto com a deconstrução do Estado em geral, há uma reconstrução da esfera privada - muito menos comentada - que atinge a todos, portanto, que chega ao coração do contexto cultural. Antes de ir mais longe nessa reflexão, é preciso de uma vez situar, que a globalização significa o controle externo da esfera privada, chegando até à reprodução dos grupos de baixa renda e ao controle de sua mobilidade. A aparente facilidade com que alguns trabalhadores passam de uma sociedade periférica como a brasileira, para a norteamericana, a japonesa, a alemã, não oculta o fato de que entram como trabalhadores de segunda classe, como parte de um mecanismo de aproveitamento do mercado de trabalho dos países periféricos. A desigualdade de condições da migração apenas reafirma a desigualdade de acesso ao mercado interno de trabalho. Não vamos, portanto, supor que a deconstrução das estruturas institucionais é um fenômeno restrito ao Estado, ou que pode ser captado mediante a análise exclusiva da esfera do Estado. Pelo contrário, envolve as composições de poder que se cristalizam na esfera nacional em seu conjunto e nas esferas locais, com personagens reconhecíveis apenas em suas regiões de origem, mas integrados nos circuitos internacionais, tal como os pequenos empregados de pequenas empresas que compram produtos para as grandes empresas multinacionais. A deconstrução é generalizada, envolvendo a subordinação ou evaporação dos capitais localmente formados, mediante a manipulação de diferenciais de taxas de juros. Tem seu correspondente ideológico no expurgo das referências não internacionais do capital, que se revela, agora, plenamente desvestido de valores tradicionais e de solidariedades locais, almejando unicamente uma mirífica posição de "global player". À parte de quaisquer inferências sobre a possibilidade de haver uma teoria do Estado sustentando a deconstrução, há uma suspeita inevitável de que não há teoria alguma, que se trata simplesmente de acomodação das elites econômicas a um contexto de mudança que entra em conflito aberto com as necessidades de reprodução do corpo social dominado, cada vez mais numeroso. Não se precisa muito esforço para ver que as bases doutrinárias neo liberais não têm recursos analíticos para acompanhar essa contradição entre um ideal de eficiência internacionalizada e realidades locais necessariamente ineficientes. Nesse contexto, verifica-se a impossibilidade de trabalhar com a conceituação de cultura sem a referência de classe, isto é, a necessidade de construir uma conceituação de cultura que não fique separada da concretude dos processos formativos do corpo social. Se a cultura é a experiência de uma parte da sociedade, não pode ser concebida sem o elemento causador de que haja partes que não se fundem. E como a ruptura não é parte do 27

Uma tese colateral a ser examinada, é que a proposta do Executivo de tornar-se regulador resulta em autonegação de sua função, o que na prática só pode ser explicado como uma estratégia de governo para realinhar o poder do Estado na relação Estado - sociedade civil, que passa a ver-se como uma relação Estado sociedade civil - capital internacional, em que o Estado nacional procura uma posição ajustada a um contexto de relacionamentos internacionais de poder..

46


desdobramento próprio de cada experiência em particular, ela só pode ser situada no relacionamento entre os diferentes. A relação de classe é sempre o lado externo da relação de grupos que são expostos a modos de transformação que rompem, ignoram ou usam as relações tradicionais. No mundo de hoje, pressionado pela linguagem hegemônica da globalização, as relações de classe ressurgem como as principais representativas da modernização em seu sentido mais amplo, ou da funcionalidade das relações modernas na condução dos corpos sociais fraturados. A questão que nos aflige mais diretamente, é a descontinuidade da própria modernização (Chesnaux, 1995), no que ela promove outros movimentos subordinados de valorização e de desvalorização, submetendo as comunidades economicamente mais frágeis aos azares da internacionalização dos serviços. Desde o cotidiano da pequena agricultura, cuja eficiência técnica importa menos que os preços que obtém de produtos dirigidos para exportação, até o de indústrias que dependem de faixas marginais de mercado, a periferia econômica convive, diariamente, com a incerteza e com os riscos crescentes de uma modernização que oscila entre diferentes tendências tecnológicas. No novo mercado de trabalho, o antivalor especulativo do capital, como diz Francisco de Oliveira (1998), ganhou os direitos de explorar trabalho que é repetidamente desvalorizado, quando as oportunidades de trabalho são controladas pela mercantilização das pessoas e de seus valores tradicionais. A formação de capital baseada em estratégias de desvalorização é, sobretudo, um instrumento de desigualdade e exclusão. É revelador que a expressão povo seja desqualificada como denominação de coletivo representativo do contexto social, tanto como a expressão pessoa é desqualificada como representativa da individualidade. Justamente, como essas expressões referem-se diretamente ao fundo de subjetividade consagrado pela experiência, sua retirada sinaliza o processo histórico específico de simplificação dos papéis do povo e das pessoas nos usos de trabalho empreendidos pelos segmentos líderes da acumulação tecnologicamente avançada do capital. A desqualificação da pessoa é uma redução da individualidade, isto é, a base para uma separação mais profunda entre aqueles indivíduos plenamente reconhecidos, que formam grupos legitimados pelo poder estabelecido. Na nossa época, a questão cultura aparece em dois momentos fundamentais da modernização, que são os de degenerescência do capitalismo avançado em autoritarismos racistas na Europa na década de 30, copiados toscamente na América Latina no período de 54 a 84 ; e no de diluição das identidades nacionais no fluxo de internacionalização do capital monopolista, desde a década de 80, sob a globalização. Em ambos momentos há uma perplexidade, e a seguir, uma discrepância, entre a compreensão evolutiva de cultura, que abastece esse interesse acadêmico pelas sociedades primitivas; e uma visão histórica, que ressalta as interações entre a sublimação de experiência e as condições materiais de vida, com sua carga de conflito social. Aquele primeiro momento formou os recursos organizacionais para as multinacionais, que desde a década de 60 se organizaram neste segundo momento, que igualmente se valeram de autoritarismos, tal como ocorreu na América Latina desde 47 e que continuou até o período de 54 a 84, mas já contando com outros recursos de controle 47


indireto das maiorias. No Brasil pode-se apreciar um panorama muito especial de desenvolvimento desse controle indireto de combinação da mídia com o capital financeiro, desde a oratória pseudo populista de Carlos Lacerda até a linguagem pseudo modernizadora de Collor. Os grupos médios de renda urbanos - arvorados em classe média - tornaram-se instrumentos para um projeto de poder da oligarquia modernizada, em busca do controle do voto populista. O modo como se desenvolvem e organizam os controles sociais é um dado fundamental no país de estrutura social fraturada, cuja elite procura, insistentemente, uma linguagem desideologizada, que lhe permita apresentar o controle social como mera técnica, que surge através de expressões aparentemente instrumentais, tais como publicidade, marketing, divulgação, qualificação, intercâmbio. Não se trata somente de técnica como ideologia, como disse Habermas (1987), mas de estabelecer uma visão técnica do mundo, que exclui a carga ideológica objetiva da dominação. A redução do poder a técnicas é a desqualificação dos segmentos sociais tecnicamente qualificados; e é uma operação que está no coração da mudança dirigida, que atualiza a subalternidade. Essa visão técnica do controle social - inocentar o controle por ser apenas um controle, olhar o processo social por sua facticidade (Habermas,1999) - nada tem a ver com a suposta separação entre uma racionalidade instrumental da técnica, que se tornou a linguagem da burocracia - pública e privada - e um agir comunicativo, que seria a expressão do corpo social, a cultura torna-se uma expressão de reconhecimento dos integrantes da sociedade, colocando-se entre o movimento subordinador, conduzido pelo pacto das elites e a pluralidade de movimentos locais inspirados em valores pré industriais. A questão, obviamente, é o controle do controle, ou são os controles da comunicação que instrumentaliza a dominação, ou são os significados que se atribuem a esses controles inicialmente apresentados como bons, simplesmente por serem compatíveis com a modernização. A comunicação global é a verdadeira essência da globalização, que como diz Therborn (2000) começou há dois mil anos, com as religiões globais, mas aperfeiçoou-se rapidamente no capitalismo monopolista no século XX (Therborn, 1979). Além disso, ao longo do século XX, ampliaram-se diferenças no contexto da economia monopolista, passando-se daquelas empresas monopolistas citadas por Hobson e mesmo por Sweezy, para interesses monopolísticos que operam em diferentes setores e tipos de empresa. Em todo caso, pode-se considerar que há consenso em que há mudança, ou em que predominam elementos de mudança no contexto social de hoje, portanto, que uma discussão genérica de mudança torna-se insuficiente, precisando-se de referências para qualificar a mudança. Mudam as condições de mudar e muda o modo de mudar. A mudança é historicamente situada. Num contexto histórico em que predomina mudança, não há como esperar que se explique a realidade social a partir de um conjunto de referências de estabilidade, senão de algum modelo que trabalhe com tendências e regras da mudança. Há, portanto, uma questão relativa a saber qual perfil de mudança e de como ele evolui no tempo-espaço da sociedade.

48


As mudanças têm sido conduzidas por forças externas à reprodução das estruturas culturais, pelo contrário, atingindo-as ou desqualificando-as como apêndices inúteis no ambiente violento da sociedade de classes. Pode-se pensar que tem cultura quem pode. Quem não consegue fazer a ponte entre a tradição e a mudança é bruscamente desqualificado, tal como os ciganos no Nordeste de hoje, ou como as minorias que não encontram como fazer-se conhecer pela maioria. Observe-se como os japoneses tornaramse boas pessoas e poços de sabedoria depois que se tornaram numerosos e ganharam espaços de mídia. Os colombianos tornaram-se suspeitos e há nova maneira de olhar para os africanos, segundo eles podem ser identificados com países com chance de mudança, tal como a União Sul-africana, ou como são identificados com países com vocação para a falência, tais como Guiné, Burkina Fasu, Costa do Marfim e outros. A questão é que a atualidade da cultura faz-se sobre mitos; e logicamente os mitos são mais consistentes quando vistos à distância. Há uma relação subjacente entre cultura e civilização, que não só denota cultura como o campo em que se faz civilização (Anderson, 1997), como estabelece qualificativos - porque não reconhecer - estéticos de cultura. O bloco de poder que tem o controle da legitimidade cultural reorganiza-se constantemente, emitindo pareceres sobre que deve ser aceito ou rejeitado ou ignorado. Isso já está muito claro na academia brasileira há décadas; e torna-se essencial ao poder político. A academia será um microcosmo, mas é decisiva na formação ideológica do país. Nesse sentido, certa flexibilidade - ou permissividade - no relativo a traços do cotidiano ligados à quebra do controle da cultura - tal como a jamaiquização 28 no Brasil - pode ser vista como uma margem que não afeta o essencial, que é a definição de novas regras para incorporação de elementos de cultura negra, devidamente ocidentalizados, no contexto dos mecanismos de modernização. O problema não é a fratura - que é de origem - mas o caráter inconclusivo de tudo que se diz, pensa, escreve e fala sobre cultura. É como aproximar-se do processo por suas manifestações externas, sem encontrar o interruptor que ligar essa esfera externa com a interna, sem necessariamente ver a ligação entre essas festinhas, essas tradiçõezinhas, com a dura realidade da sobrevivência dos grupos utilizados na construção deste edifício sempre pela metade.29 O aparecimento de regras novas de mudança é uma interrogação assustadora, porque revela, progressivamente, as regras da dominação futura, no ambiente de 28

Essa "jamaiquização" descreve situações em que se manifesta uma energia de reivindicação frente a desigualdades identificadas com o colonialismo, mas onde o corpo social colonizado perdeu toda sua ancoragem com suas origens culturais. A colonização dos "povos do Mar do Norte", principalmente protestante, erradicou essa relação com o fundamento africano, que permaneceu clara nas áreas de colonização ibérica. A perda de autoreconhecimento africano desses grupos negros deu-lhes um perfil neo americano, que se viu com máxima clareza no contrate entre Jamaica, Trinidad e Cuba, em que a Jamaica foi o exemplo mais nítido dessa perda de raízes, Trinidad absorveu raízes indianas e Cuba manteve raízes africanas. 29 " ...veremos que estava ali, nessa apropriação crítica e muito refletida da idéia de formação pelo raciocínio literário, a chave da compreensão da evolução do conjunto da cultura brasileira. Se percorrermos um a um os principais componentes de nosso sistema cultural... verificaremos, com surpreendente regularidade, que onde os surtos inacabados foram a regra,... o ciclo formativo excepcionalmente completado, passa a ser o prenúncio de dependência ultrapassada, graças ao surgimento de uma causalidade interna...( Paulo Eduardo Arantes, 2000, pp.271). Observa-se que essa produção vocacionada como subalterna é apresentada como um sinal de progresso pela mídia. Progresso nesse meio torna-se algo apenas material.

49


mobilidade negativa, que é apresentado como posterior à existência de classes. A mobilidade negativa é a que resulta de progressões de movimentos de exclusão, que se torna a principal categoria explicativa de desenvolvimentos históricos adversos, em que além da perda de empregos individuais, destaca-se uma perda de capacidade de reprodução dos coletivos do trabalho. Revela e reitera as barreiras ao progresso dos que perdem posição no processo. Finalmente, na polaridade moderna de classes, os dominados ainda tinham cara; e sua cultura sobrevivia, justamente porque tinha status próprio de cultura dominada. A mobilidade negativa pode ser um processo socialmente localizado, ou significar uma negatividade generalizada do processo, em que se evaporem as condições de solidariedade das classes, rumo a uma sociedade colonial de massas subalternas. Pode, também, sinalizar um ambiente de perda progressiva de condições materiais e ideológicas de vida, em que se acentue o conflito em torno das oportunidades oferecidas pela modernização. Afinal, as migrações são um mecanismo de reajuste de pressões, que troca pressões atuais por futuras, que encaminha pressões se reproduzem em patamares de relações mais complexas, mudando de forma, mas mantendo seu caráter de tensionar o sistema social. Assim, a mobilidade negativa surge como uma poderosa força estruturadora da sociedade de hoje, responsável de deslocamentos em cadeia, diferentes e mesmo contrários àqueles conduzidos pelos efeitos positivos de mobilidade. A esfera atingida por ela é a dos que foram marcados para ficarem fora dos movimentos formadores de riqueza, ou que somente formam riqueza não legitimada. A mobilidade negativa é o efeito final de destruição de postos de trabalho em geral e de tipos de emprego específicos, passando pelas tendências de expulsão de população dos povoados e das cidades de pequeno e de médio porte em geral, com sua concentração nas grandes cidades, ou com sua emigração ao exterior. Mediante esses movimentos progressivos de expulsão, a mobilidade negativa tornase um outro potencial de mudança, contraditório com as tendências da acumulação de capital, que é justamente, da concentração de excluídos nas grandes cidades e nas áreas rurais onde se vislumbram expectativas de ocupação. Torna-se uma ameaça interna do sistema de poder, cuja única alternativa visível é intensificar e ampliar a repressão, portanto, desqualificando seu próprio discurso de inclusão. Não há como restringir o discurso crítico de cultura sem danificar o ideal civilizatório. Na prática, não há como discutir seriamente cultura nas sociedades de hoje sem reconhecer a centralidade da estruturação de classes.

5. Colonialismo, colonização e dominação Uma visão de conjunto do problema O processo da civilização compreende um componente de violência que é apresentado de diferentes modos pelos que exercem a violência e pelos que são vítimas 50


dela. A colonização é a expressão econômica e política de formas de violência coletiva, que funcionaram como meio de enriquecimento de nações e de pessoas e que deram lugar a processos de controle e de cooptação dos povos colonizados, através de suas elites. A prática da colonização e o sistema do colonialismo, com sua expressão terminal – a combinação de massacre 30 e escravização – estão nos fundamentos da formação dos países mais ricos, que se tornaram líderes da industrialização e que, posteriormente, passaram a apresentar-se como árbitros de ética, ambientalismo e mesmo de democracia. Precisa-se do que se pode denominar de uma leitura não central do tema, isto é, de uma leitura desse tema na perspectiva dos que foram ou são vítimas desses processos. A leitura não central é a que se constrói a partir da experiência das nações que foram ou são dominadas e que passaram por movimentos de progresso e de bloqueio de seu desenvolvimento, no contexto de relações internacionais institucionalmente desiguais. Assim, a leitura da colonização é, necessariamente, histórica, considera o contraponto de hegemonia e dominação e não analisa a formação de capital como um processo separado da formação das sociedades nacionais, senão como um processo que liga a formação dos Estados nacionais à formação de esferas internacionais de poder. Há uma teoria da dominação que se apresenta como uma teoria geral da dominação, patrocinada por Max Weber, que se remete aos fundamentos elementares da dominação, e que se apóia nos elementos ordenadores da sociedade moderna e que, apesar de suas próprias declarações, não é contraditória com a teoria genuinamente histórica da dominação, patrocinada por Karl Marx, que parte dos elementos constitutivos da sociedade organizada em torno do modo capitalista de produção. Os aspectos de objetividade e de subjetividade dessa teoria se complementam no contexto de uma explicação da “sociedade industrial”, que se toma como líder do capitalismo civilizador. Mas incorre-se na simplificação de considerar como sociedades industriais somente aquelas condutoras da industrialização. Ao reconhecer a pluralidade de processos econômicos, técnicos e culturais que estão incluídos na modernização industrial, e, por conseguinte, ao reconhecer a pluralidade de condições em que se encontram países em diferentes situações de industrialização, torna-se necessário substituir essa visão genérica da dominação, por uma outra que incorpore, como elemento fundamental, os modos de dominação que surgem historicamente no bojo da colonização e de suas diversas modalidades de atualização. O ponto de partida da análise do colonialismo é o controle dos recursos humanos e dos recursos naturais de umas nações por outras e a conseqüente desigualdade na autonomia de decisões políticas e econômicas. Uma análise econômica consciente do problema do colonialismo tem que começar por reconhecer a não equivalência de participação das nações na economia mundial. A análise econômica parte do pressuposto de 30

Eric Wolfe em Povos e culturas de Mesoamérica estima que nos primeiros cem anos de colonização uns 10 milhões de pessoas pereceram no conjunto México e América Central. Estima-se que uns 30% dos africanos escravizados pereceram no trajeto da África para a América entre 1500 e 1850, o que pode ter significado uns cinco milhões de pessoas. Estima-se que a população indígena do Brasil não seria inferior a uns seis milhões de pessoas em 1500. O extermínio de índios continuou até hoje, sob diversas formas, mas há sobejas informações de que no período colonial a dizimação dos indígenas foi sistemática e ligada ao objetivo de esvaziar terras para pecuária A brutalidade das práticas coloniais ficou registrada na mortandade dos índios obrigados a trabalhar nas minas da Bolívia, do Peru e do México e na produção de açúcar. Na produção açucareira a expectativa de vida dos escravos teria sido inferior a dez anos.

51


equivalência dos participantes dos mercados de capital e de trabalho, que é justamente o contrário da realidade histórica. Assim, para explicar os processos de desigualdade vigentes nas sociedades de hoje, é preciso expor a colonização em seu papel na formação de capital e no controle e na qualificação do trabalho. A visão do tema em perspectiva histórica leva a distinguir o colonialismo dos tempos antigos, impulsionado por uma combinação de pressão demográfica e ocupação violenta e comercial, o colonialismo iniciado no fim da Idade Média e que se estendeu pelos Tempos Modernos, conduzido pelos países da Europa ocidental, o colonialismo promovido pelo Imperialismo, entre 1847 e 1945, e o colonialismo econômico e militar de nossos tempos. As mudanças tecnológicas do colonialismo não impediram que seus custos sociais continuassem aumentando e que ele desse lugar a conflitos cada vez mais profundos entre nações e dentro de muitas nações. O colonialismo antigo, de que são abundantes os registros de gregos e fenícios, funcionou como um mecanismo de expansão por desdobramento de cidades Estado matrizes, resultando na criação de conjuntos de colônias que tiveram status político, econômico e militar semelhante e mesmo superior ao das cidades matrizes, tal como aconteceu com Siracusa e Cartago. A brutalidade do processo foi a mesma, implicando sempre em dominação das populações locais e em disputas intermináveis, que terminaram por demonstrar a incapacidade das cidades Estado para enfrentarem o império macedônio. A proliferação das colônias criou, desde cidades equivalentes a simples entrepostos, mas não houve freios ao crescimento das colônias por parte das cidades matrizes. Esse modelo de expansão colonial provavelmente se esgotou como conseqüência da substituição das cidades Estado por impérios, desde o macedônio ao romano. Sua reprodução em menor escala não compensou a tendência predominante, a que a colonização se tornasse um mecanismo a serviço da concentração mundial de poder. O velho colonialismo dos Tempos Modernos A economia de hoje foi moldada por movimentos de expansão econômica e política, realizados por meios violentos pelos países da Europa ocidental desde o século XV, que estenderam seus interesses aos diversos continentes e regiões do mundo, sob uma variedade de linguagens de justificação, mas que, no essencial, significaram simplesmente que esses países se convertiam em potências colonialistas, que se apropriaram dos recursos naturais de outros países e coagiram outros povos a trabalhar para eles. Essa expansão violenta renovou-se várias vezes, até os dias de hoje, sob diversas formas, criando o ambiente de desigualdade com que convivem as nações. Os fundamentos ideológicos dessa colonização confundiram-se com os da legitimação da civilização ocidental, que se presume portadora de valores superiores aos dos demais povos, e tornaram-se os fundamentos de um distanciamento entre os países hegemônicos e os países econômica e militarmente subordinados. Essa visão de superioridade estendeu-se aos Estados Unidos, que, se colocaram como portadores dessa atitude salvacionista desde a metade do século XIX, entretanto, com um sentido de territorialidade nitidamente diferente do dos europeus. Havia representação dos Estados 52


Unidos na China desde a Guerra dos Boxers e a esquadra americana forçou a Baía de Tóquio antes que houvesse completado a integração da costa da Califórnia na economia norte-americana. O mecanismo central da colonização é a apropriação de trabalho compulsório para gerar produtos que não são parte da estrutura do funcionamento do país colonizado e que se integram no sistema comercial do país colonizador. O trabalho compulsório pode ser absorvido diretamente na produção de mercadorias para exportação, ou pode ser absorvido indiretamente, em cada colônia, para sustentar o setor exportador. O fundamental é que os objetivos desse trabalho dos colonizados são os objetivos das nações colonizadoras e não se identificam com a formação de capital do país colonizado. A captação desse valor produzido geralmente se dá mediante um mecanismo de diferenciação entre a estrutura produtiva do país colonizador e a do país colonizado, em que o primeiro mantém o controle sobre as transformações do segundo. Ao longo do tempo o colonialismo assumiu diversas formas, mas em sua essência conteve, sempre, um princípio de desigualdade entre os povos, com uma manobra dupla, de afirmação de supremacia cultural por parte dos colonizadores e de negação do estatuto de civilização aos colonizados. Essa manobra funciona como justificativa para o uso da força e para a apropriação dos recursos dos dominados através do controle de sua capacidade de trabalho. Mediante os mecanismos mais sutis de alienação, que penetram primeiro nas elites e depois nos grupos médios de renda, através da cultura de massas, o colonialismo desenvolve novos meios de dominação, que vão desde a impregnação de jovens que são absorvidos pelos programas de intercâmbio cultural, até os universitários, que desenvolvem mecanismos de subalternidade em relação com os centros de ensino dos países colonizadores. A extração de trabalho, por persuasão, por coerção, e pela combinação de persuasão e coerção, é o fundamento do colonialismo, e pode ser induzida ou realizada pela força. A coerção do trabalho foi o modo pelo qual as potências colonialistas extraíram os recursos naturais das regiões colonizadas. Assim, o colonialismo dos Tempos Modernos transformou a escravidão em um sistema mercantil internacionalizado, junto com outros sistemas de quase escravidão com que obrigou as populações indígenas a trabalharem na produção mineira e na agricultura (Alencastro, 2000). Torna-se praticamente impossível examinar o problema geral da colonização sem tratar do problema geral da escravização. A colonização envolve sempre um mecanismo de subordinação que alcança sua forma mais completa na escravidão, mas que, junto com ela, desenvolve diversas outras formas de subordinação que criam sociedades fraturadas e preconceituosas. O racismo surge nas ex-colônias, como parte da formação de sua sociedade de classes, que se forma sobre os elementos constitutivos da sociedade patrimonial tradicional. Formam-se blocos de poder alimentados pela alienação dos segmentos de renda superior, que filtra para os grupos de rendas médias que estão associados aos grupos das maiores rendas, e, finalmente, passa para camadas populares na forma de preconceitos.

53


O colonialismo e a colonização são essenciais na formação da economia industrializada de hoje, mas têm sido ignorados no discurso da economia ortodoxa, que não toma em conta a formação social como parte necessária do sistema produtivo atual. No entanto, a colonização tem sido elemento central da formação de capital dos países que se tornaram hegemônicos desde o início dos Tempos Modernos, com diferenças de escala, de tecnologia e de poderio militar, entre uma primeira etapa, que foi do século XV até a derrota da Grande Armada, uma segunda etapa marcada pela integração da produção escravista até a independência dos Estados Unidos e uma terceira etapa que veio até as guerras napoleônicas e os movimentos de independência das nações latino-americanas.A colonização foi um aspecto essencial da formação do capital da Holanda, da França e da Inglaterra e está presente em todas as etapas do desenvolvimento do sistema produtivo até a atualidade, através de uma sucessão de formas técnicas e denominações. Ideologicamente foi processada ao inverso por esses países, que consideraram ter prestado um serviço à civilização mediante suas políticas e práticas de colonização. A prática do colonialismo sustentou uma ideologia de dominação, que se identificou com uma linguagem civilizatória e catequista, fornecida pelas religiões e por uma valorização das instituições européias. O colonialismo praticado por algumas colônias, tal como a escravização praticada por brasileiros na África, reproduziu essas estruturas ideológicas de dominação, mas, já desvestidas de sua justificativa original. Tornou-se um simples ato predatório pelo qual os colonizados se identificaram com seus colonizadores e reproduziram os mecanismos de violência. Desde o século XV, com a expansão dos interesses europeus na África e na Ásia e com a invasão da América, distinguem-se duas grandes ondas de expansão do colonialismo, em que a primeira projetou os interesses do capital mercantil, desde o século XV até o século XVIII e a segunda desenvolveu-se desde o início da industrialização até o presente. A primeira grande etapa do colonialismo foi iniciada por portugueses e espanhóis e continuada e ampliada por holandeses, franceses e ingleses. Assim, a maior parte da responsabilidade pelo extermínio de indígenas foi dos portugueses e espanhóis e, a partir do século XVIII tornou-se responsabilidade dos norte-americanos, que continuaram com essa prática até o fim do século XIX. Os italianos tiveram uma presença predominante na expansão mercantil, uma presença auxiliar no colonialismo da primeira etapa e uma presença secundária no colonialismo recente. Na grande etapa do colonialismo mercantil, há uma grande diferença entre o colonialismo português e espanhol e o praticado pelos ingleses, em que o primeiro focalizou na extração de mercadorias e o segundo mais na produção de mercadorias. Em ambos casos formaram-se sociedades coloniais dicotomizadas entre um segmento voltado enviar mercadorias para o exterior e um segmento que se organiza na produção local do elenco de bens necessários para economias locais autosustentadas. Em ambos casos a brutalidade foi semelhante, no entanto, no colonialismo inglês encontram-se espaços maiores para interesses privados, refletindo o arranjo político da sociedade inglesa, comparado com o absolutismo ibérico. A primeira onda do colonialismo baseou-se em combinações de extrativismo com produção de mercadorias simples, desde açúcar a fumo e a ouro e prata. A segunda onda do 54


colonialismo estabeleceu papéis para as colônias na industrialização, em que as colônias produziram as matérias primas para serem processadas nas fábricas inglesas. A economia escravista do sul dos Estados Unidos desempenhou esse papel de provedora de algodão para as fábricas do norte da Inglaterra, na prática funcionando como satélite da economia inglesa. O colonialismo gerou movimentos contraditórios, de formação de identidade dos colonizados, que se afirmaram contrastando com os colonizadores, entretanto, que ficaram com vínculos especiais, formando alguns tipos de comunidades internacionais, que ficam impregnadas das diferenças anteriores, entretanto, que passaram a funcionar como mecanismos complementares de identidade. As relações entre os antigos colonizadores e os antigos colonizados surgem novos modos de relacionamento, que vão desde fluxos preferenciais de migração a movimentos preferenciais de capitais, e, inclusive a algumas formas de solidariedade, especialmente entre os latinos. O colonialismo do imperialismo A expansão da produção capitalista que se realiza no ambiente criado pelo capital industrial, representado pela expansão de empresas mineradoras, empresas construtoras e operadoras de sistemas de infra-estrutura, especialmente de transportes ferroviário e marítimo, e de empresas que saíram a fomentar uma produção agro-pecuária complementar da economia da metrópole.31 O novo padrão de internacionalidade do capital resultou na criação de uma economia internacional organizada em dois níveis, em que um deles estava constituído de exportações realizadas por capitais formados nos países periféricos, associados a capitais comerciais dos países industrializados; e o outro estava constituído das exportações de mercadorias e de capitais dos países industrializados. Na organização das transações com mercadorias agrícolas beneficiadas, tais como café, cacau e algodão, os países industrializados, especialmente a Inglaterra, captaram uma parte importante do valor criado, através do controle dos canais de comercialização.32 No essencial, a condução do colonialismo fez-se através do comércio e do financiamento e não da indústria. Esse sistema passou a funcionar apoiado em grandes fluxos de migração, formados a partir de diversos conflitos sociais e políticos e em agravamento da desigualdade de renda na Europa, que resultaram em importante população de migrantes nos Estados Unidos, na Austrália, na Argentina, no Brasil, e, em menor escala, em outros países latino-americanos, como o Chile e o Uruguai. As migrações reduziram a pressão social no mercado de trabalho dos países industrializados, ao tempo em que reforçaram a qualificação dos recursos humanos de alguns países em ascensão, como os Estados Unidos, a Austrália, a Argentina, o Brasil, o Chile e o Uruguai. Foram especialmente importantes para os Estados Unidos, que melhoraram os quadros médios de seus setores de prestação de serviços e de indústria.

31

Este último foi o caso da Argentina, do Uruguai e da Austrália. No relativo ao cacau, estudos realizados sobre a economia baiana (A zona cacaueira, IEFB,1959) verificaram que as empresas controladoras do comércio ficariam com uns 35% do valor total produzido pela produção cacaueira. 32

55


A combinação da restauração de um bloco de poder conservador na Europa com a ascensão da produção industrial foi a plataforma de lançamento da expansão colonialista da segunda metade do século XIX, que assumiu as duas formas, de captação de matérias primas e de controle do mercado, através da venda, induzida ou forçada, de mercadorias e da captação de contratos públicos. A expansão dos capitais europeus fez-se em busca do potencial de crescimento das economias periféricas, traduzindo-se na formação de subsistemas integrados na esfera internacional, que somente mediante efeitos indiretos se projetaram no mercado interno, tal como aconteceu com o papel da produção de cereais e de carne articulada pelo sistema ferroviário. O controle dos transportes, ferroviário e marítimo, foi fundamental para a hegemonia inglesa, onde o sucesso dos capitais ingleses na Argentina tornou-se um diferencial negativo para a economia Argentina, comparado com os insucessos de capitais holandeses nos Estados Unidos. O controle do transporte marítimo foi outro ponto, em que os resultados da Guerra Civil beneficiaram aos Estados Unidos, acelerando sua autonomia no transporte de seus próprios produtos. Ao retirar a economia escravista da órbita da indústria inglesa, os norte-americanos construíram seu próprio sistema de domínio interno, que a seguir transvasou em suas investidas em Porto Rico, Cuba, Filipinas e Havaí e na apropriação de território mexicano. O colonialismo da etapa da industrialização acelerada, que se reorganizou e expandiu na segunda metade do século XIX, mudou de feição e orientou-se a produzir matérias primas selecionadas, abrindo ou abandonando minas, segundo variaram os preços do cobre ou do chumbo ou de quaisquer outros minerais. O miolo do processo consistiu em identificar quais mercadorias seriam necessárias como matérias primas, para obtê-las dos países colonizados, dado que a transformação industrial ficaria concentrada nos países centrais colonizadores. Em certas regiões o poder colonialista organizou sistemas produtivos independentes e subordinados, que funcionaram como parte integrante dos países centrais, controlados através da demanda desses produtos de exportação e de seu financiamento. Mas sempre numa posição subordinada no relativo ao controle do financiamento, dos canais de comercialização e no controle da renovação tecnológica. Cabe lembrar que o colonialismo foi um componente fundamental das políticas que conduziram as duas guerras mundiais, e que alguns dos principais conflitos que sucederam a segunda guerra mundial decorreram de nova ocupação de ex-colônias por parte dos antigos colonizadores, tal como aconteceu no Viet Nam. O colonialismo continuou no centro dos conflitos do sudeste da Ásia e nos conflitos da África, não só pela ocupação direta de territórios, como pela intervenção na constituição dos novos Estados nacionais, que foram constrangidos a se formarem com etnias incompatíveis. A desqualificação ideológica das nações que foram colonizadas continuou, mediante processos mais sutis, veiculados pelo controle da mídia e pelo sistema educativo, que se aperfeiçoou mediante a incorporação de modelos de análise dos países centrais e inclusive por uma escolha temática que também resulta em privilegiar os problemas e os modos de análise sustentados pela experiência dos países centrais. O colonialismo pós colonial

56


O principal fenômeno da mutação dos sistemas coloniais foi a criação da Comunidade Britânica de Nações, que deu nova roupagem legal ao sistema colonial, estabelecendo diferenças de status e margens de independência, que lhe permitiram transformar suas colônias num sistema de alianças seletivas, transferindo contingentes de população entre suas colônias e fomentando a adesão das elites. 33 O sistema conseguiu administrar seus problemas de racismo e manter uma coesão que durou além da capacidade da Inglaterra para manter o conjunto pela força. A Espanha manteve uma influência cultural com suas ex-colonias, que se tornou uma referência no quadro político mundial hegemonizado por nações saxãs. Depois da segunda guerra mundial, a aceleração da difusão tecnológica e os efeitos da crise energética nos arranjos produtivos das empresas mascararam a essência de dominação da expansão do capital, que passou para uma distribuição seletiva da renovação tecnológica e da qualificação do trabalho. Outras dimensões da mobilidade do trabalho mostraram alguns incentivos, mesmo quando transitórios, para políticas de modernização de alguns países periféricos. No entanto, a expansão da produção petroleira e a identificação de minerais estratégicos trouxeram novas formas de dominação, que combinam o poder econômico, o político e o militar. Assim, houve uma substituição do velho formato burocrático dos sistemas coloniais por uma expansão de empresas multinacionais que desenvolvem mecanismos de controle indireto igualmente eficazes que os anteriores; e que passaram a operar com apoio cada vez mais ostensivo de seus governos nacionais. A vitória da revolução chinesa em 1949 e a independência da Índia em 1956 puseram fim aos dois maiores espaços do colonialismo, que passou a enfrentar os movimentos de independência na África e em suas pequenas colônias na América. As mudanças nos fundamentos tecnológicos da Guerra Fria, com a entrada dos submarinos nucleares e dos foguetes intercontinentais, reduziram a importância das bases militares e modificaram o significado estratégico das guerras locais. A derrota dos franceses na Indochina e o impasse dos americanos na Coréia, mostraram que o equilíbrio militar não necessariamente acompanhava a hegemonia econômica e política. A derrota dos norteamericanos no Viet Nam completou esse quadro. Finalmente, alguns resultados contraditórios do fim do colonialismo no Oriente Médio deram lugar ao aparecimento de outros processos críticos, em torno do controle do suprimento de petróleo e da consolidação de uma potência pró Ocidente, Israel, que se desenvolve em crescente conflito com a configuração política e social da região em seu conjunto. Nesse conjunto, a independência das nações africanas tem um papel especial, pelo menos em três etapas. Primeiro, por sua afirmação e unificação interna em suas guerras de libertação. Segundo, por representar reivindicações seculares das nações negras. Terceiro, por apresentar ao mundo novas experiências de sociedades multiraciais, que representam 33

Os símbolos do poderio britânico, começando pela própria língua inglesa, pelo modo de vestir e pelos esportes, foram transmitidos como um padrão estético associado ao sucesso material. O estilo britânico transmitiria certa serenidade baseada na confiança da estabilidade do Império. A liderança científica completaria o quadro, tornando fútil qualquer pretensão de fazer ciência ignorando ou confrontando a herança saxônica. A economia especialmente, tornar-se-ia uma ciência social legitimada apenas pela referência britânica e depois, pela norte-americana.

57


um aspecto do movimento civilizatório que tinha se perdido desde a experiência islâmica na Espanha. A trajetória das lutas de independência, desde a luta de Lumumba no Congo até a de Mandela na África do Sul, representam essa trajetória. Nesse novo arranjo de poder do mundo após a segunda guerra mundial, o colonialismo tornou a mudar de feição, passando a combinar o objetivo principal de controlar as fontes e os suprimentos de energia com a transferência de trabalho menos valorizado e de atividades agressivas ao ambiente das nações colonizadoras para as colonizadas, desenhando novas formas de complementaridade entre as duas. Surgem arranjos combinados de empresas multinacionais, que destinam seus componentes menos avançados para os países onde os custos da mão de obra são menores. Com o passar do tempo e o alargamento dos mercados de alguns países periféricos, especialmente dos asiáticos, essa última estratégia torna-se contraditória com os interesses dos países industrializados, cujas empresas simplesmente passam a exportar emprego para os países considerados periféricos. Com suas formas pretéritas e sua capacidade de se reorganizar, o colonialismo reaparece como parte da produção da globalização desigual e deixa um problema ideológico fundamental, que se manifesta na alienação dos grupos dominantes dos países periféricos, que se sentem integrados aos países hegemônicos, e que contribuem para a desvalorização de suas próprias sociedades. O grande problema é que a solidariedade entre os países mais ricos herda conflitos pré capitalistas, tais como entre turcos e eslavos, entre indianos e paquistanêses e entre judeus e árabes, em que os ocidentais tendem a se configurar como inimigos externos. Uma compreensão histórica desses conflitos sugere que seus fundamentos etnoculturais terão que ser distanciados de seus fundamentos econômicos e políticos para que surjam espaços de diálogo. É revelador que a atual visão de internacionalidade, que surge com a globalização do capital financeiro desde a década de 1970, desenvolve um discurso da mecânica da globalização que desconhece por completo o componente de colonialismo que está integrado nesse processo. A função colonialista amplia-se nas empresas multinacionais, surgindo, tal como no século XVII, empresas dos países periféricos que se integram nessa função. No entrecruzamento de funções dos Estados nacionais com as instituições públicas e privadas de direito internacional, como as Nações Unidas e os órgãos internacionais de financiamento, surgem novas diferenciações entre as condições de autonomia política e financeira dos países, em que muitos dos sucessos alcançados em décadas anteriores se desgastam ou perdem, junto com as aspirações de desenvolvimento. A atualização do colonialismo continua sendo uma questão central da economia política mundial. Colonização, alienação e subalternidade A colonização deixou uma marca indelével ao deflagrar o processo mais amplo de alienação e preparar a transformação do universo colonial em universo subalterno. As dificuldades enfrentadas pelos países que foram colônias aumentaram em termos relativos, frente ao aumento da concentração de capital nos países maiores e mais ricos. O maior símbolo do novo distanciamento entre as nações é o endividamento externo, que resulta de 58


necessidades das moedas dos países mais ricos para viabilizar os relacionamentos externos, e, por meio deles, para sustentar o sistema produtivo já existente nos países periféricos. A luta em torno da dívida tornou-se extremamente difícil, pela simples razão de que para os países mais ricos é preciso que os outros estejam endividados. A sensação de impotência por parte das elites dos países periféricos leva-as a derivarem para uma falsa identificação com os países mais ricos, que resulta em separação de sua própria origem. Surge uma espécie de alienação normal, que é aceita como conseqüência inevitável de uma situação que se repete, de incapacidade de sair da posição de países dependentes. Nesse contexto, a colonização é substituída por uma subalternidade que legitima a hegemonia.

6. Mercado e estruturas de mercado No negócio da guerra não há vantagens permanentes. Sun Pin A compreensão de mercado A expressão mercado denota o espaço social das transações econômicas, onde as pretensões de compra respaldadas por capacidade de compra aparecem como procura e onde a disponibilidade de bens e serviços com preços aceitáveis aparece como oferta. Noutras palavras, o mercado é o espaço social das trocas, que se transforma constantemente, segundo variam as mercadorias trocadas, os vendedores e compradores e o modo como transacionam suas mercadorias. Por espaço social de trocas entende-se a composição dos participantes por nível de renda e classe social e inserção institucional. A noção de mercado, portanto, exige que se esclareça quem compra, quem vende, que se troca e como se organizam as trocas. O mercado está constituído dos participantes das trocas e das mercadorias que são trocadas, portanto, o mercado de fato se transforma, segundo mudam os participantes e mudam as mercadorias. Por isso, a configuração do mercado resulta das decisões daquelas empresas que são capazes de impor decisões sobre a escolha de mercadorias. Isso significa que o poder de influir no mercado não se limita à participação direta nas transações, senão que se estende à capacidade de pré determinar as transações, que é o modo de construir a participação no mercado. Isso nos leva a focalizar nas tendências de participação no mercado, antes que em analisar o jogo de inter-relações que constitui o mercado hoje. Sempre houve participantes que estão restritos à esfera local de trocas e outros participantes que operam numa escala internacional. Essas duas esferas de trocas sempre estiveram ligadas, direta e indiretamente. Igualmente, sempre houve mercadorias que são operadas apenas em escala local e outras que são transacionadas na esfera internacional. As operações de mercadorias na escala internacional pré condicionam as trocas de esfera local, porque têm o poder de penetrar nos mercados locais com preços externamente fixados e, desse modo, criar condições privilegiadas de comparação dos preços localmente determinados. 59


Na economia capitalista sempre houve uma tendência a que se amplie a esfera internacional de trocas, portanto, para que se desenvolvam mercadorias aptas a serem transacionadas na escala internacional. Essa tem sido uma preferência dos capitalistas, que buscam operar em escalas de mercado maiores que as dos seus concorrentes. Isso determina que a grande indústria tenha um estímulo para intervir no plano das tecnologias, direcionando a renovação tecnológica para esse tipo de desempenho. Por isso, a determinação da composição do mercado resulta principalmente da capitalização da grande indústria, que procura desenvolver produtos que lhe permitam romper com as restrições locais de participação no mercado. Outras iniciativas de pequenos capitais operados com recursos humanos altamente qualificados injetam originalidade no sistema, mas não alcançam escalas suficientes para deslocar o rumo dos investimentos. Desde o fim da segunda guerra mundial aprofundaram-se as articulações entre a expansão da produção industrial e a estruturação internacional do comércio, cuja operação em rede tornou-se a grande matriz estimuladora do crescimento das multinacionais da prestação de serviços (Castells, (1999).34 Isso significa que os interesses do capital trabalham no sentido de adaptar as mercadorias, para que elas que possam ser transacionadas na escala mais ampla possível de trocas , que é a escala internacional. Daí, que o modo de participar no mercado envolva estratégias dos participantes, para ampliar suas transações, portanto, a alargar suas possibilidades de alcançar ganhos maiores. Nesse sentido, a lógica da indústria é a mesma que a do comércio. Verifica-se que a operação industrial também é uma operação comercial. Desse modo, o mercado é sempre um espaço social em processo de mudança, onde muda o elenco dos produtos, mudam os participantes e as condições de participação. Historicamente, o mercado sempre compreendeu espaços locais de troca, que sempre foram as feiras livres, e operações a longa distância de produtos selecionados, pouco perecíveis e que têm aceitação geral. Ao longo do tempo o mercado tem mudado junto com as mudanças das condições de acumulação do capital e das estratégias operacionais das empresas. O desenvolvimento dos transportes tem um papel fundamental na integração dos mercados, permitindo que as mercadorias cheguem aos compradores em tempo útil. A previsibilidade dos tempos consumidos nos transportes permite operações a prazo e antecipadas, resultando na possibilidade de emitirem-se títulos sobre mercadorias, ligando a bolsa de mercadorias à bolsa de valores. O essencial é que o mercado se organiza em função do tipo de produtos que são transacionados e do tipo de participantes que vendem e que compram. Isso desde as feiras livres aos centros de consumo de luxo.A organização do mercado compreende aspectos organizacionais e institucionais, que é um modo de dizer que o mercado se organiza no ambiente de Estados nacionais ou de impérios, de tipos de empresas familiares ou 34

Trata-se da expansão de grandes cadeias de comércio integradas com restaurantes e hotéis e criando marcas próprias de produtos de consumo e absorvendo funções de financiamento tipicamente bancárias e que operam simultaneamente com diferentes tipos de estabelecimentos. Esse tipo de expansão do grande capital tem a capacidade de penetrar nos grupos inferiores de renda e de mobilizar grandes massas de recursos com elevada liquidez. As grandes redes de comércio consagram o controle do consumo e ganham uma posição estratégica no controle da difusão de novos produtos duráveis de consumo.

60


despersonalizadas e de uma pluralidade de moedas ou de uma moeda dominante e entre empresas que operam na esfera internacional ou que operam apenas em seu país de origem. Desde a noção genérica de mercado com que trabalha a análise econômica convencional até uma noção de mercado que contemple a variedade de condições de troca, há uma necessidade de tratar historicamente esse fenômeno, que vai das feiras livres ao mercado de títulos a futuro. Hoje há um mercado internacionalmente organizado onde são trocadas mercadorias de uso mundial e que são padronizadas segundo critérios internacionais. E há uma infinidade de situações locais de mercado, que se reproduzem operando com pequenos capitais e com produtos não diferenciados como mercadorias. A compreensão de mercado mudou sensivelmente com a integração internacional dos mercados a partir do mercado financeiro. No entanto, o mercado financeiro funciona refletindo uma combinação de elementos subjetivos e objetivos de previsões a longo, médio e a curtíssimo prazo, alimentando-se de dados da produção. Por isso, é preciso entender que o mercado em geral é uma denominação sintética de uma pluralidade de situações que não desaparecem no contexto do mercado geral. No ambiente do mercado globalizado funciona uma infinidade de empresas e de consumidores, cujas referências são exclusivamente locais. Os modos como as referências locais se articulam com referências globalizadas são variados e mudam ao longo do tempo, segundo algumas empresas entram ou saem do mercado de exportações e segundo muda a listas dos produtos que se comercializam na esfera internacional. Participam do mercado pessoas e diversos tipos de instituições em ambientes de troca que evoluem ao longo do tempo, segundo mudam as condições de troca em cada país e em cada região. As pessoas participam no mercado como capitalistas individuais, como trabalhadores e como consumidores. As instituições participam segundo sua definição institucional, que determinam suas condições de consumir e de formar capital. Nesse contexto encontram-se as empresas operadas por profissionais especializados, que procuram controlar o capital através do controle dos processos técnicos de produção. Empresas são entidades de direito privado que se formam para gerir determinados capitais com a finalidade de lucro. Empresas são, também, centros de decisão financeira, técnica, operacional e administrativa, que operam com custos e riscos calculados, para reproduzir seu capital. Isso significa que as relações específicas das empresas com o mercado dependem dos aspectos gerais da transformação do mercado. O que pode ser aceito como interferência institucional e como uso legítimo de influência política pode deixar de ser aceito, segundo variam as condições contratuais da sociedade econômica, ou segundo o poder de algumas empresas se exerce mais através de circuitos políticos que de operações econômicas propriamente ditas. A disputa por contratos públicos prossegue do mesmo modo que na segunda revolução industrial, indicando as verdadeiras contradições de interesses que se ocultam por trás das transações de compra e venda. Dada a concentração de capital, há algumas há algumas poucas empresas que comandam a renovação de tecnologia e um grande número de empresas que operam acompanhando a renovação de tecnologia. Mas a maioria das empresas opera com tecnologias superadas e com estilos de gestão inadequados para mudar de tecnologia. Isso 61


significa que o mercado opera com grandes diferenças de desempenho entre as empresas mais avançadas e as mais atrasadas, assim como entre aquelas que desenvolvem capacidade de crescer e aquelas outras que funcionam com seu perfil original de competência. Também significa que as diferenças de desempenho se acumulam ao longo do tempo, pelo que são poucas as chances de que o foco da concentração de capital mude de algumas empresas para outras. O fundamental, portanto, é a capacidade de gerir os conjuntos de tecnologia disponíveis para extrair vantagens localizadas em prazos definidos. Um aspecto fundamental das empresas hoje é sua capacidade para se adaptarem às condições ambiente do mercado e para superarem estilos autoritários de gestão. Nesse ponto conflitam os interesses pessoais, que levam a maioria das empresas, inclusive de grandes empresas, a continuarem como empresas familiares e as conveniências de uma gestão despersonalizada. Mercado de produtos, mercado de capitais e mercado de trabalho Mercado é a representação da troca de todos tipos de mercadorias, mas há diferentes tipos de mercadorias e, especialmente, algumas delas, cuja disponibilidade é determinada pelas condições de troca de outras. Assim, as variações dos preços das mercadorias são imediatamente visíveis, mas a influência das negociações de algumas mercadorias na formação dos preços das demais mercadorias não são igualmente visíveis. O mercado imediatamente visível é o dos produtos, sejam eles bens de consumo ou de capital e serviços, que representam atividades de produção que já foram realizadas. No entanto, o mercado de produtos é a cara externa do mercado de trabalho, através do qual se determinam as condições dos produtos. Numa visão em perspectiva da formação do mercado, é preciso registrar que o mercado de trabalho se formou sob condições de controle social, que combinaram o autoritarismo das formas políticas com o dos modos de apropriação violenta, 35 e com os modos de autoritarismo familiar, que funcionaram para sustentar o autoritarismo político. 36 O mercado de trabalho está regulado pelo número de oportunidades de ocupação regular ou freqüente, que é dado pelo modo como se gere o sistema produtivo e que se mantém estável ou tende a diminuir, segundo o sistema opera com tecnologias invariantes, ou segue determinados rumos de renovação tecnológica. Nesse processo vê-se que a qualificação dos trabalhadores, isto é, a educação voltada para qualificar para a produção, frequentemente é invalidada, quando a renovação tecnológica atinge grupos qualificados que se tornam desajustados frente ao perfil tecnológico da renovação do capital. Assim, no mercado de trabalho, os trabalhadores são mercadorias atualizadas ou desatualizadas, que se julgam frente ao mercado de produtos. Negociam-se produtos já disponíveis e produtos que vão ser produzidos, sobre cuja realização há informações confiáveis. A previsibilidade é um dado que varia entre setores da produção e produtos e que define o perfil de riscos dos novos empreendimentos. 35

Os estudos de história dão-nos hoje uma referência muito mais ampla que a recolhida por Marx, da Primeira Revolução Industrial. A apropriação violenta para nós é o fundamento colonial do capitalismo moderno 36 Ver o discurso de Herbert Marcuse sobre “a dialética da colonização” em seu Eros e a civilização (1982).

62


A formação dos preços dos produtos depende do controle do capital e do trabalho que tornam possível a produção.Por isso, o capital seleciona os produtos que vão ao mercado e retira aqueles que não têm um desempenho de lucro satisfatório, ou substitui desenhos de produtos para reduzir custos de produção, mesmo quando isso significa redução da vida útil dos produtos. A história da indústria automotriz é um exemplo bem conhecido dessa tendência. O controle do capital e do trabalho corresponde a outros dois níveis de mercado, que são o mercado de capitais e o de trabalho. O mercado de capitais está constituído de capitais que precisam ser aplicados para obterem remuneração suficiente para se reporem, e das empresas que precisam de capital para realizarem seus empreendimentos. Superficialmente, a demanda de capital é uma conseqüência direta da operação do capital e as empresas têm que comparar os custos de tomar dinheiro no mercado com os custos de retirar dinheiro de aplicações produtivas. No essencial, a demanda de capital responde a uma capacidade de alternar as aplicações, o que só acontece quando as empresas têm trânsito equivalente no mercado financeiro e na comercialização da produção. A demanda de capital depende da capacidade de autofinanciamento das empresas, por conseguinte, de sua capacidade de obterem lucros de diferenças entre os preços do dinheiro e a lucratividade de seus empreendimentos. A oferta de capital depende das perspectivas dos detentores de capital dinheiro em termos de uma relação básica entre riscos e lucros, onde a percepção dos riscos, por sua vez, depende da abundancia e da confiabilidade das informações. Isso significa que o capital poderá ir ao encontro da produção de bens e serviços segundo ela se compare com aplicações financeiras cuja relação riscos/lucros seja conhecida. A rigor, como os capitais não podem deixar de ser aplicados, a economicidade das decisões surge de comparações entre aplicações possíveis e não entre aplicar e não aplicar, isto é, só tem sentido julgar quanto uma aplicação de capital é pertinente quando ela é comparada com outras aplicações possíveis e em tempos compatíveis. Assim, há uma diferença entre as ordens de tempo com que se opera na produção de bens e de serviços e as ordens de tempo com que se opera na esfera financeira. No campo financeiro todas as operações são comparáveis, reduzindo-se apenas a um problema de tempo, enquanto na esfera produtiva as ordens de tempo estão postas pelos processos de produção. A intermediação financeira dos bancos desenvolve produtos financeiros a partir dessa relação riscos/lucros, que chegam ao mercado de capitais como produtos tipicamente financeiros, mas a determinação desses produtos depende de uma análise real do desempenho de empresas. Daí, que há uma diferença substancial entre a percepção de riscos e lucros por parte de empresas que operam na produção e de intermediários financeiros, que não têm acesso às estratégias de dissimulação de custos e de resultados que são praticadas pelas empresas. Além disso, a oferta de capital se forma, progressivamente, das ações de pessoas e de instituições, que detêm capital com liquidez suficiente para operar no mercado financeiro, e que representam diferentes atitudes em relação a riscos, desde pequenos capitalistas de classe média, engajados em sistema de poupança, até grandes aplicadores de capital, que podem se deslocar entre aplicações financeiras e participação em empresas. À 63


medida que o sistema bancário passou a controlar as pequenas aplicações mediante elencos regulados de aplicações em fundos de risco e rentabilidade controlados, o financiamento da economia ficou mais concentrado entre poucos bancos e o crédito aparentemente democratizado, passou, de fato, a ficar concentrado nas poucas grandes empresas que detêm o controle das principais aplicações. Esse mercado de capitais liga-se ao mercado de trabalho em dois momentos. Primeiro, através da interdependência entre a composição dos investimentos e as necessidades de trabalhadores com as qualificações necessárias para realizarem as tarefas implicadas nesses investimentos. Segundo, pela relação entre a composição do produto que se realiza e o modo como esse produto é vendido, isto é, a composição dos grupos que dispõem de renda suficiente para comprarem esses produtos. O mercado de produtos rebate no de capitais, e, através da dinâmica da formação de capital, chega ao mercado de trabalho. O mercado de trabalho está constituído das demandas de trabalho contratado e de trabalhadores que desejam ser contratados. Isso em momento algum esgota a absorção da força de trabalho disponível, nem reflete a totalidade do trabalho que se realiza, já que o trabalho que se compra e vende em mercado está subsidiado pelo trabalho que se realiza na esfera doméstica. Primeiro, porque não há um ajuste necessário entre a composição da demanda de trabalho e o aproveitamento da força de trabalho. Como o uso da força de trabalho é decidido pelas necessidades atuais da produção, tal como definidas pelos capitalistas individuais, não há um critério capitalista de aproveitamento pleno das qualificações dos trabalhadores O mercado de trabalho está por trás do mercado de produtos, no sentido em que há uma divisão entre aqueles participantes da sociedade econômica que podem responder rapidamente a estímulos da demanda, por exemplo, reforçando suas qualificações, e todos aqueles outros cuja qualificação já representa o esforço máximo que conseguem realizar para se qualificarem. De fato, essa capacidade de investir em qualificação é um mecanismo seletivo, talvez o mais importante de todos, porque reflete uma relação entre o esforço que se faz para se qualificar e o resultado final que se obtém, em termos de alcançar padrões reconhecidos de qualificação, tais como títulos, e em termos de qualificação efetiva, isto é, considerando esses padrões e a qualidade alcançada de qualificação. Estruturas de mercado Há duas abordagens, essencialmente diferentes, no relativo à compreensão de que há diferentes estruturas de mercado que operam de modo concomitante. Uma delas é a abordagem que vem da matriz de análise de Marx e que considera que o mercado se forma historicamente e que se transforma seguindo o desenvolvimento do sistema produtivo. A outra é uma abordagem inspirada na obra de Max Weber e em alguns elementos da obra de Joseph Schumpeter (1964), que focaliza nos aspectos institucionais do mercado, com uma perspectiva histórica entretanto onde o desenvolvimento das empresas e suas iniciativas de conformar o ambiente das transações predominam sobre os elementos gerais da formação da sociedade econômica. A constatação de que há oligopólio não substitui a análise das 64


tendências à formação de oligopólios. Autores como Alfred Chandler (1998) e como Fellner (1966) são nitidamente weberianos. A economia neoclássica tem pouco a dizer nesse particular. Todos os resultados específicos que se alcança situam-se em ambientes de mercado historicamente formados. Justamente no ambiente atemporal da análise neoclássica, a noção de mercado passou a ser de um campo de interesses que funciona com uma lógica uniforme e que tem comportamentos sensíveis à subjetividade de aplicadores plenamente informados. O mercado torna-se um personagem mítico, máximo representante dos interesses do capital. A expressão estruturas de mercado geralmente é usada para designar as principais formas como as empresas vieram a participar do mercado. Hoje há três situações principais, que são as de monopólio, de oligopólio e de mercado aberto, indicando processos de concentração de capital que resultam na formação de determinados oligopólios e de alguns monopólios. Por uma questão de bom senso, descartamos a expressão concorrência perfeita, que ainda é usada em grande parte da análise econômica neoclássica, que consta em grande parte dos manuais de economia, mas que se refere a uma situação ideal em que comprador algum nem vendedor algum têm o poder de alterar os preços. Todos sabemos que jamais houve concorrência perfeita, assim como, jamais houve situação alguma em que os preços sejam determinados apenas pelos produtos que estão sendo concretamente negociados. Na realidade, os preços se formam na combinação dos produtos disponíveis e dos produtos esperados – com variada margem de probabilidade de que efetivamente cheguem – no espaço social das trocas possíveis e em prazos que sejam compatíveis com a operação dos capitais em operação no mercado. As margens de controle de mercado dependem justamente de poderem-se combinar os dados da atualidade com os de previsões confiáveis. No contexto geral da tendência de concentração do capital, na segunda metade do século XX o oligopólio passou a ser a forma predominante de atuação do grande capital, que opera, simultaneamente, mediante empresas de grande, de médio e mesmo de pequeno porte e que, muitas vezes, opera em condições de oligopólio e de mercado aberto ao mesmo tempo. O que importa não é a escala de um estabelecimento, senão a escala dos capitais que participam num dado setor de negócios e que utilizam empresas de variados tamanhos, segundo elas se adaptam aos objetivos finais de participação no mercado. A mobilidade do capital, para transladar-se entre aplicações, e em prazos mais curtos, requer que as empresas ganhem destreza em desenvolver cadeias de investimento e, praticamente, de criar os espaços para os novos investimentos que se tornam estratégicos para o elenco de investimentos com que trabalham. O oligopólio é uma concorrência entre poucos grandes participantes, como disse Fellner, que funcionam como compradores ou como vendedores, segundo seus interesses. As condições de oligopólio levam a estratégias defensivas das grandes empresas, como antecipou Von Stackelberg, determinando um mercado diferenciado entre os que operam com margens de risco controladas e os que devem adaptar-se aos riscos do mercado. Os grandes concorrentes tendem a operar em forma de oligopólios, porque disputam os

65


potenciais de compra que derivam da composição atual das trocas e devem preparar-se para se adaptarem às transformações da demanda. O monopólio é uma situação extrema, que foi utilizada pelo absolutismo político, antes do desenvolvimento do capital industrial. O monopólio tem sempre uma conotação política. Nas condições de hoje, é mais realista pensar em termos de monopolização, isto é, de tendência ao monopólio, que num sistema fixo operando mediante monopólio. O movimento geral de concentração de capital tende a resultar em monopolização, principalmente em atividades em que só se pode operar com grandes quantidades de capital e em que é necessária grande massa de pesquisa. Mas as empresas líderes desenvolvem produtos, assim como desenvolvem estratégias de gestão em geral e de comércio em particular, que, simplesmente, não podem ser copiadas pelas demais. O pequeno capital opera basicamente em mercado aberto, isto é, em condições em que seus ganhos e sua acumulação não alteram o mercado e em que sua capacidade de fazer os preços é localmente restrita. Mas pode ter o poder de alterar os preços num dado lugar e num dado momento, tirando proveito de vantagens estratégicas localizadas e por períodos limitados, quando sua participação altera as condições gerais de concorrência, tal como acontece, por exemplo, com a organização do mercado de produtos definidos como orgânicos, em que a produção total é sempre uma fração pequena da produção em seu conjunto. Mercados especiais: energia e energia A essência do sistema produtivo é um uso de energia dirigido para consumo futuro, nele compreendidos os usos para fins produtivos e o consumo familiar. Além disso, como a energia se usa como meio de produzir outras mercadorias, está claro que o mercado de energia é único, e que desempenha o papel regulador dos mercados de produtos finais. Na separação entre indústrias de bens de capital e indústrias de bens de consumo, as primeiras transferem seus custos de energia para as segundas. Como há um componente de energia em toda a produção, o mercado de energia está subsumido em todos os demais mercados, mas aparece como um mercado de produtos finais, com produtos regidos por equipamentos de vida útil limitada e produtos que surgem de sistemas produtivos que, em principio, podem se perpetuar, tais como as usinas hidrelétricas e as unidades de energia solar e eólica. A disputa por energia se acirra, à medida que as fontes de energéticos se tornam mais escassas e mais caras. A segunda guerra mundial já foi uma guerra de energia. Países capitalistas emergentes militarizados e carentes de petróleo e de minerais básicos tentaram refazer sua base de recursos mediante a conquista de territórios estratégicos. Foram derrotados pelas maiores potências detentoras das maiores massas de energéticos e capazes de controlar a produção mundial de petróleo. Desde então, os deslocamentos no balanço mundial de poder acompanham as alterações no controle dos energéticos, em cujo contexto aumentou a participação da energia hidrelétrica e da nuclear. A unificação do uso de energéticos em função do petróleo teve o duplo resultado de dar unidade ao planejamento energético e de traçar uma linha 66


divisória entre a situação dos países que podem dispor de quantidades crescentes de energéticos e países cuja disponibilidade de energéticos é sempre inferior a suas necessidades atuais. Há uma tendência mundial dos países industrializados, de reduzir o conteúdo energético de seus produtos, que, entretanto, não tem sido suficiente para reverter a tendência geral ao aumento do consumo total de petróleo, pelo que o mercado energético contém uma tendência ao bloqueio antevisto no esgotamento das reservas. A seguir, estabelece outra divisão entre países que usam mais energéticos que produzem e países que exportam energéticos. Está claro que para se desenvolverem os países precisam ter acesso a quantidades crescentes de energia, mas, dada a restrição inerente ao declínio de reservas, está colocada a disjuntiva entre sustentar o crescimento mediante uma alteração tecnológica nos usos de combustíveis ou enfrentar restrições crescentes à sustentação do crescimento. Por sua mobilidade e pela variedade de seus usos produtivos, o petróleo continua como eixo do mercado de energéticos, apesar da sinalização de opções tecnológicas que surgem do desenvolvimento da produção de combustíveis de origem vegetal. A rigidez do sistema produtivo frente aos usos de petróleo se agrava com o aumento do consumo e a concentração da produção. A energia hidrelétrica torna-se um elemento estratégico dos mercados nacionais e regionais de energia, tornando-se uma vantagem absoluta de alguns países, como o Brasil, enquanto for possível ampliar a produção e o aproveitamento da energia hidrelétrica. No longo prazo essa fonte renovável está sujeita a restrições econômicas similares às dos combustíveis fósseis. Padronização e despadronização de mercadorias A integração da comercialização com a indústria deu lugar ao aparecimento de mercadorias padronizadas, tanto em bens de capital como em bens de consumo, desde parafusos a suco de laranja. A padronização de mercadorias viabiliza operações em grande escala, que se tornam necessárias para operar com produtos agrícolas. Terminais portuários especializados, uma indústria de embalagens e indústrias de beneficiamento de produtos. Entretanto, a concorrência se desloca para o controle da própria padronização, que, freqüentemente, é atingida por iniciativas de alterar as bases técnicas dos padrões aceitos, portanto, resultando em despadronização das mercadorias. Novas referências de qualidade são aceitas como básicas, modificando toda uma cadeia de operações, tal como tem acontecido, justamente, com produtos agrícolas e da pecuária. Esses movimentos são parte das alterações no controle de grandes capitais e da capacidade política desses interesses para fazerem-se valer. Mercado e poder político As estruturas de mercado estão solidamente articuladas com esquemas políticos de poder, pelo que é uma ingenuidade supor que as estruturas de mercado resultam somente de uma participação econômica das empresas em mercado. A concentração de poder econômico tem um valor político, assim como a concentração de poder político tem um 67


valor econômico. De um lado está a capacidade de realizar acordos e tratados que protegem interesses econômicos; e de outro lado estão estratégias econômicas que induzem situações políticas. Organizações tais como o antigo GATT ( General Agreement on tarifs and trade) e como a atual Organização Mundial de Comércio, são instâncias de negociação internacionalmente aceitas, que procuram funcionar como regulamentações das práticas de comércio entre países, mas que se defrontam com as diferenças de poder entre nações e não têm como tratar diretamente da esfera de poder das multinacionais. Nas condições atuais de funcionamento do sistema econômico, o poder político ganhou alguns contornos bem nítidos, primeiro, através da concentração das compras sobre setores estratégicos, por parte dos governos e das grandes empresas, e segundo, mediante o controle dos meios de comunicação. O Estado é o maior comprador, tanto nos países periféricos como nos países mais ricos e tem o poder de determinar quais produtos e quais características de produtos podem participar do mercado. O mercado surge como um campo de transações regulado pelas grandes compras, isto é, pela esfera pública e por um pequeno número de grandes empresas, em que os pequenos participantes e as pequenas transações têm papéis complementares ou colaterais. O papel de comprador e o poder de compra do Estado tornam-se essenciais na sustentação do mercado em geral e em especial do mercado dos produtos que se tornam estratégicos. Nesse sentido, não há um antagonismo entre Estado e mercado, senão uma série de situações em que os interesses privados e os interesses organizados na esfera pública se combinam em composições de conflito e de consenso, em que os grandes e os pequenos interesses se ajustam de modo estável ou instável. O Estado nacional continua sendo um fundamento insubstituível da formação dos capitais que operam no mercado internacionalizado.

7. Tecnologia Uma compreensão do tema Hoje é necessária uma renovação no modo de ver e tratar tecnologia, para registrar as mudanças de escala e de rumo no desenvolvimento da tecnologia na segunda metade do século XX, bem como para entender como esse desenvolvimento afeta as distancias entre os países e os grupos mais ricos e os países mais pobres e os periféricos em geral. Em síntese, é preciso expor como a tecnologia é socialmente produzida e como retorna à sociedade. Um primeiro movimento nesse sentido consiste em reconhecer que há diferentes modos de ver a questão tecnológica, pelos que conduzem a tecnologia e pelos que têm que se adaptar a ela e que a presunção de um discurso único sobre tecnologia significa apenas que se considera como válido apenas o ponto de vista dos que conduzem os usos de tecnologia. Está claro que há uma leitura interna e outra leitura externa da tecnologia, em que a primeira reflete o viés dos próprios tecnólogos, de procurar o sentido consequencial de

68


qualquer trabalho em tecnologia e que a segunda pode veicular a percepção e as dúvidas de estudiosos de outros campos de atividade. Os objetivos do desenvolvimento tecnológico lideram as pesquisas ou são considerados como meio de outros objetivos sociais e econômicos? A resposta a esta questão leva a diferentes modos de gerir a renovação de tecnologia. Técnica é o modo de fazer as coisas em geral. Tecnologia é uma coleção de técnicas ou é um sistema de técnicas ou ainda, é um estilo de fazer as coisas que depende de estruturas de conhecimento assimiladas, onde aumenta, progressivamente, o conhecimento comparado e verificado. Por isso, a composição do conhecimento tecnológico varia ao longo do tempo, segundo se incorporam novos elementos e se descartam outros. O conhecimento tecnológico é essencialmente dinâmico e as condições de usar tecnologia dependem desse dinamismo. Presume-se que o conhecimento tecnológico é produto de uma experiência testada e controlada, que, por isso, pode dar lugar a variações controladas no modo de fazer as coisas. Muitas das tecnologias tradicionais formaram-se apenas da acumulação de experiência prática, mas as tecnologias da era industrial estão sempre respaldadas por algum fundamento científico, apesar de que a pesquisa tecnológica não está beneficiada diretamente pela pesquisa científica propriamente dita. Assim, as tecnologias se desenvolvem em cadeias constituídas de componentes interdependentes e que, em cada momento, constituem blocos de tecnologia, que é a denominação que se dá aqui às combinações de tecnologias disponíveis em cada momento. Justamente, por ser uma experiência controlada, a tecnologia compreende aspectos técnicos propriamente ditos, aspectos culturais e aspectos institucionais, representando as condições sociais e os lugares e os momentos em que a tecnologia é aplicada. A verificação envolve a possibilidade de introduzir variações no modo de fazer as coisas, portanto, de construir um conjunto de informações que pode ser usado para finalidades diferentes das que deram lugar à construção da experiência. Assim, a tecnologia representa um domínio do modo de fazer as coisas que é propriedade de um certo grupo social, onde esse domínio reflete uma trajetória cultural e um processo organizado de produção de conhecimento, de verificação e de superação de formas de conhecimento. A vivência no uso de tecnologias não pode ser reproduzida em laboratório, porque, diferentemente do conhecimento científico, o conhecimento técnico se forma em experiência real na produção. Daí, que o desenvolvimento de tecnologias depende tanto de pesquisa científica como de observação direta dos trabalhadores envolvidos nos processos de produção. Um grande problema a ser resolvido consiste em fazer e consolidar uma ponte entre as observações diretas da produção com as pesquisas de tecnologia. Mas a tecnologia não é apenas um domínio consciente do modo de fazer as coisas. De fato, em cada tecnologia há um componente objetivo e um componente subjetivo, que representa os fundamentos culturais com que as tecnologias são usadas. Um mesmo conjunto de técnicas é usado com resultados diferentes segundo quem usa, onde usa e quando usa. Adverte-se, portanto, que é a acumulação de conhecimento aplicado numa 69


sociedade, que permite que as técnicas sejam adequadamente aproveitadas. Por isso, contrariamente ao que se difunde na “teoria” da gestão da tecnologia, há um aspecto fundamental de tradição na tecnologia, naquilo em que ela significa a transmissão de experiência de uma geração à seguinte. Na realidade, os aspectos mecânicos das tecnologias respondem segundo elas são absorvidas pela qualificação do trabalho em seu sentido mais amplo, compreendendo a qualificação dos gestores do capital e a dos executores do trabalho. As estatísticas de quebra de equipamentos são apenas uma parte de um problema de capacitação, que depende, inclusive, das condições de alimentação e de moradia dos trabalhadores. Um modo simples de compreender a tecnologia surge ao entender-se que há uma esfera de conhecimento prático, que consiste na repetição de práticas, que há um conhecimento técnico, que consiste na normalização de práticas e que há um conhecimento teórico, que consiste na reflexão sobre as práticas e as técnicas. A normalização das práticas permite usar o conhecimento prático fora dos lugares onde ele se formou. A reflexão sobre as práticas e as técnicas permite modificar o modo de fazer as coisas, isto é, permite inovar. Por isso, a renovação tecnológica é inseparável do trabalho científico e da existência de instituições capazes de realimentarem os usuários de tecnologia com os resultados de pesquisa e de desenvolverem análises comparativas de diferentes experiências. Em cada momento, a tecnologia é uma coleção de técnicas, portanto, está ligada à normalização de certos tipos de atividades. Há uma tecnologia da irrigação, que compreende os modos técnicos de irrigar. As tecnologias apóiam-se em experiências práticas e estão ligadas a alguma teoria, isto é, a alguma interpretação sobre como fazer as coisas, apesar de que as tecnologias não são teorias, no sentido em que não contêm uma visão crítica do modo de fazer as coisas. Por isso, a percepção do quadro geral das tecnologias varia fortemente, entre usuários de tecnologias específicas, que tendem a restringir suas observações a suas experiências diretas, e planejadores de tecnologia, da esfera pública e da esfera privada, que pensam em termos de estratégias de tecnologia e vêm processos tecnológicos. As tecnologias referem-se a modalidades de atividades e de combinação de atividades e de tipos de atividades que constituem campos de formação de experiência onde se podem renovar as tecnologias. Há uma tecnologia da construção civil, que aparece de diferentes formas nos diversos lugares do mundo, assim como há uma tecnologia de preparação de alimentos e de vestuário, que se desenvolve em cada lugar segundo as condições ambiente e as necessidades. Em cada campo de atividade há formas mais eficientes e formas menos eficiente de fazer as coisas, em diversas situações de intensidade de uso de capital. Uma tecnologia é sempre uma síntese de uma experiência de fazer determinados tipos de coisas, onde se descartam os erros que já se cometeram em tentativas anteriores. Por exemplo, a tecnologia da irrigação já descartou as práticas equivocadas em que se incorreu quando se começou a fazer irrigação mediante métodos que já foram superados. O conhecimento dos erros cometidos é parte do conhecimento de como fazer as coisas 70


corretamente. O desenvolvimento tecnológico requer uma revisão constante de procedimentos e de métodos, isto é, demanda um planejamento amplo, que, aparentemente, tem sido um dos campos em que a ideologia liberal aceita o sentido de interesse público, mesmo quando insiste em negar a importância do Estado. Assim, tudo que se faz é mediante um uso determinado de uma tecnologia com uma determinada competência. Por isso, toda vez que se fala de política tecnológica, é preciso conhecer quais são as tecnologias efetivamente utilizadas e quais as condições que permitiriam modificar o conjunto das tecnologias efetivamente usadas, assim como é preciso ter claro que as decisões sobre tecnologia sempre refletem interesses . No mundo da produção pré capitalista, em que os objetos podiam ser valorizados por sua perfeição e não necessariamente por sua expressão imediata no mercado, a tecnologia se aperfeiçoa mas não muda. No mundo da produção capitalista, que é um mundo de mercadorias, a tecnologia torna-se uma mercadoria, isto é, produz-se tecnologia a um preço, com uma finalidade restrita e como um produto substituível, para ser vendida como parte dos produtos. O mercado de tecnologia é progressivamente mais controlado, quando se passa de tecnologias simples para tecnologias mais complexas, cujo desenho depende da experiência com sistemas produtivos de grande densidade de capital, portanto, que ficam restritos às empresas que podem operar esses sistemas. Ao tratar da tecnologia na economia industrial moderna, é preciso distinguir a produção de tecnologia e a inovação tecnológica, que é quando as tecnologias entram no processo industrial de produção. Além disso, é preciso identificar a difusão de tecnologia, que é a generalização do uso de tecnologias dominadas que podem elevar a eficiência do sistema de produção em seu conjunto. Na prática, a inovação tecnológica é um processo operado por oligopólios, exceto naqueles casos de tecnologias de baixa densidade de capital. Daí que, no relativo ao movimento tecnológico da sociedade em seu conjunto há um aspecto de desempenho que afeta a todo o leque de tecnologias e que tem variado, de diversos modos, entre empresas de grande e de pequeno porte. Uma empresa pode ter um determinado desempenho tecnológico numa escala de tamanho e não conseguir manter esse desempenho quando cresce. A produção de tecnologia pode estar limitada ao campo experimental e laboratorial, mas geralmente está ligada a um processo industrial que financia essa produção. Inovação é quando a tecnologia entra no processo de produção. Difusão é quando ela se expande aos que não produzem tecnologia. Na prática, a difusão de tecnologia opera com tecnologias dominadas, isto é, que já deixaram de ter um valor estratégico para as empresas capazes de criar em tecnologia, mas que continuam permitindo obter resultados financeiros e físicos que são considerados como aceitáveis, ou que, em todo caso, não são superados pelos de outras tecnologias disponíveis. Os diferentes participantes do sistema de produção operam com diversos níveis de tecnologia e em diversas condições de aplicação das tecnologias disponíveis. Chamamos de padrões de tecnologia ao modo como as tecnologias são combinadas e usadas em sistemas produtivos operacionais por diferentes participantes ou por grupos de participantes. Por

71


exemplo, os padrões de tecnologia na irrigação na Bahia envolvem os usos de tecnologias de irrigação de grande e de pequena aspersão, irrigação por gravidade etc. Em cada padrão tecnológico distinguimos tecnologias básicas e tecnologias complementares, em que as primeiras são determinantes do conjunto da operação tecnológica e em que as outras estão pré-determinadas. Por exemplo, a tecnologia do motor de combustão interna, ou a tecnologia do transporte a vela, em relação com as tecnologias de direção de barcos a vela ou a motor. Algumas tecnologias tornam-se básicas quando passam a responder pela viabilidade de um setor estratégico da economia, tal como hoje acontece no Brasil com a tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas. Outras tecnologias perdem importância quando estão identificadas com segmentos em decadência do sistema produtivo, tal como são as tecnologias semi-artesanais da construção civil. Diremos que o conjunto das tecnologias utilizadas em cada momento e em cada lugar representa o que definimos como o modo tecnológico da produção. O modo tecnológico da produção é uma síntese dos usos de inúmeras técnicas, algumas delas em forma associada e outras em forma isolada. As combinações de tecnologia representam condições específicas de aplicabilidade, que envolvem os fatores do ambiente social e as características dos usuários das técnicas. Por exemplo, o modo tecnológico da produção agrícola no Brasil hoje compreende usos de tratores e de trabalho manual e de tração animal, segundo as condições sociais e as condições geográficas da realização da produção. Assim, segundo o modo como participam diversos interesses de capital num tipo de produção, convivem diferentes soluções tecnológicas em cada momento e lugar, constituindo o que denominamos de bloco tecnológico. Por exemplo, no bloco tecnológico da produção de aguardente há diferentes soluções tecnológicas de grande e de pequeno capital, entre uma produção industrial em grande escala em São Paulo e uma produção de menor escala e maior qualidade em Minas Gerais. O modo tecnológico do sistema pode mudar porque mudem as tecnologias mais elevadas, ou porque haja uma elevação dos padrões tecnológicos do sistema. Por exemplo, o sistema muda porque se introduzem novas modalidades de irrigação, ou porque se melhoram usos das diversas tecnologias que já são usadas. A elevação tecnológica pode ser um movimento que resulta de políticas das empresas que investem em renovação, ou pode ser a conseqüência de movimentos dirigidos à difusão de tecnologias. A visão geral da elevação tecnológica é a do interesse social, que tendencialmente difere da visão dos interesses privados, que julgam o perfil tecnológico apenas na escala de seus empreendimentos. Nesse sentido, é preciso distinguir as políticas de desenvolvimento de tecnologia das grandes empresas capazes de controlar a produção de tecnologia e as políticas dos países interessados em obter elevação das tecnologias médias usadas. Para a sociedade em seu conjunto, o que importa é uma elevação geral dos padrões de tecnologia nos diversos tipos de atividade, desde as mais simples às mais complexas. Na economia capitalista de hoje tornou-se essencial o controle da renovação de tecnologia, que é uma das principais vantagens do grande capital, em sua participação na 72


produção em seu conjunto. Isso permite controlar a entrada de novas tecnologias que diminuem o valor daquelas que já são usadas. Por exemplo, a tecnologia dos DVD reduziu o valor de mercado dos aparelhos de vídeo cassete. Assim, o controle de tecnologias vem a ser o modo instrumental como o capitalismo administra movimentos de desvalorização inseridos em movimentos mais amplos de valorização de capital em linhas novas de produção. A tecnologia da sociedade industrial forma-se, basicamente, a partir de pesquisa científica e da relação entre a pesquisa científica e a produção. Por isso, as políticas de desenvolvimento tecnológico vêm a ser, principalmente, políticas de formação de recursos humanos qualificados, combinadas com políticas de fomento a projetos específicos de pesquisa. Daí, a importância que se dá à relação entre as políticas de pesquisa de nível superior e as políticas de fomento e de difusão de tecnologias. Nesse sentido, a participação do Estado na pesquisa tecnológica tem sido um modo de socializar uma parte estratégica dos custos das empresas. Tem havido certa divisão tácita de tarefas entre a pesquisa básica, que é, majoritariamente, custeada pelo Estado e as pesquisas operacionais, em que tem havido maior participação de interesses privados, com uma participação crescente de projetos de realização conjunta de governos e grupos privados. O Estado encomenda e compra tecnologia, mas as empresas produzem tecnologia que passam a comercializar usando seu poder de monopólio. Em setores considerados estratégicos, tais como energia, água e desenvolvimento rural, o Estado tem absorvido a maior parte dos custos das pesquisas tecnológicas de base. Em educação as universidades públicas realizam quase todas as pesquisas de base e grande parte das pesquisas aplicadas avançadas. No Brasil, há uma reconhecida insuficiência de pesquisa, em quantidade e em qualidade, que não pode ser corrigida pelo sistema universitário em suas atuais condições de fragilidade. Assim, a estrutura institucional do setor de tecnologia tornou-se essencial para que o país possa realizar os movimentos necessários para manter-se atualizado em tecnologia e para que consiga alcançar resultados necessários para garantir sua capacidade de concorrer no mercado internacional. No entanto, esse é apenas um aspecto mais visível de um problema muito mais complexo de avançar numa progressão de renovação tecnológica compatível com a estrutura de recursos disponível. A dependência de tecnologias desenvolvidas em outros ambientes tem o efeito indireto negativo de conduzir a progressão da renovação tecnológica segundo padrões que se distanciam da estrutura de recursos disponível, portanto, que aumentam a vulnerabilidade do sistema produtivo a comandos externos. Falta maior sentido de adequação da produção tecnológica às condições físicas e sociais do Brasil. O desenvolvimento tecnológico na era industrial Desde o advento da indústria, o desenvolvimento tecnológico se vê, principalmente, em relação com o desenvolvimento e o uso de máquinas. Devemos corrigir que é o 73


desenvolvimento da capacidade de criar e usar máquinas, que é uma capacidade que se desenvolve quando o uso de maquinaria está sustentado por uma atividade organizada de pesquisa e de reaproveitamento da experiência na produção. Tal combinação inicialmente fica mais evidente na indústria, mas a questão principal está na combinação dos usos de tecnologia na indústria, na agricultura, nos transportes e na produção de energia. A produção de energia em larga escala é a verdadeira chave explicativa da expansão da produção industrial e da modernização da agricultura. Hoje, com a predominância da grande empresa, reduziu-se muito o papel dos tecnólogos autônomos e a produção e a difusão de tecnologia tornou-se uma matéria de grandes empresas e do Estado. Na primeira Revolução Industrial – 1776 a 1870 – houve um desenvolvimento tecnológico que partiu da reorganização social da produção no século XVIII (Mantoux, 1984) e que se afirmou com a máquina a vapor, James Watts, 1776, e com o motor de combustão interna. Essa etapa de desenvolvimento da tecnologia trouxe um grande número de achados específicos de tecnologia quando se começou a articular o conhecimento científico com soluções específicas de produção industrial. Surgiram a tecelagem industrial e a revolução dos transportes. Esse período termina com a integração do desenvolvimento da tecnologia industrial e o da indústria bélica, que se configura na Primeira Guerra Mundial. É importante comentar que a difusão de tecnologia na Primeira Revolução Industrial foi muito rápida e que por volta de 1840 já havia indústrias têxteis em Barcelona, operando em padrões similares aos da Inglaterra. No Brasil, a primeira fábrica surgiu na Bahia em 1849 e a transferência de tecnologia na indústria têxtil era comum no fim do século. O período entre guerras combinou modernização tecnológica, desenvolvimento científico e de artes voltadas para a indústria e culminou com a crise de outubro de 1929, que resultou em retrocesso na expansão do capital internacional, mas que foi, também, o período em que apareceram novas doutrinas da automação industrial, representadas pelo fordismo. Foi, também, quando as potências autoritárias criaram novas formas de organização da empresa, tais como os complexos industriais, que passaram a regular a renovação tecnológica. Mas foi um período em que se desenvolveram muitos projetos experimentais e que foram desenvolvidos projetos básicos que só foram aproveitados décadas depois. A Segunda Revolução Industrial é a era do desenvolvimento do complexo siderometalúrgico, que significou a industrialização da produção mineira e os altos fornos. Também é o período do cabo submarino e da regularidade dos transportes. É o desenvolvimento de uma tecnologia militar de precisão, com canhões de longa distância, armas automáticas, submarinos e o início da aviação militar. Estende-se de 1870 ao início da Segunda Guerra Mundial, com diferentes perfis no período de 1870 até a Primeira Guerra Mundial e no período de 1918 até 1939. Observe-se que no primeiro sub-período organizou-se a produção automotora e lançou-se a aviação. Mas no segundo sub-período surgiram os projetos integrados de produção hidrelétrica, de irrigação em grande escala e de agro-indústrias. Finalmente, foi nesse período que as grandes empresas incorporaram objetivos de desenvolvimento planejado de tecnologias com objetivos industriais.

74


É um período em que o avanço da ciência é maior que o de sua aplicação industrial, mas onde a ascensão de potencias militares leva a maior difusão de um controle tecnológico voltado para objetivos de Estado. Os movimentos de desenvolvimento científico iniciados no último quarto do século XIX por figuras tais como Max Planck, Bolzmann e Clausius, somaram-se às conquistas de Maxwell, Faraday e outros, aparecendo numa trajetória que inclui a teoria da relatividade de Einstein, o trabalho do grupo de Copenhague com Niels Bohr até a teoria da incerteza de Heisenberg. No conjunto, há um poderoso desenvolvimento da ciência entre a década de 1890 até a década de 1930, que foi, posteriormente absorvido na aplicação tecnológica, até a tecnologia da energia nuclear. A alteração da relação entre ciência e tecnologia torna-se uma questão central e surgem dúvidas quanto à possibilidade de um desenvolvimento científico que já não seja determinado por objetivos de tecnologia. Após a Segunda Guerra Mundial houve um formidável avanço na incorporação de técnicas e de instrumentos, que revolucionou a pesquisa aplicada básica de apoio à pesquisa científica e que foi repassada para a indústria. É o momento da revolução tecnológica que levou à combinação de substituição de materiais e desenvolvimento de novos materiais, tais como plásticos e cerâmica de alto desempenho, à combinação da revolução dos transportes com a das comunicações chegando à chamada telemática. Passou pelo mapeamento do fundo dos oceanos à teoria do deslocamento das placas tectônicas e a uma revolução na meteorologia. A nova revolução industrial saiu das fábricas e passou para a informatização da produção rural e às residências. Muitas tecnologias novas, tais como na medicina, foram repassadas da esfera dos usos militares para os usos civis, assim como houve uma passagem de pesquisas tecnológicas da indústria aeroespacial para usos civis. Esse movimento combinou-se com uma reorganização do sistema educativo, para ir ao encontro das novas necessidades de trabalhadores qualificados. No conjunto, diluiu-se a anterior distancia entre os usos de novas técnicas na grande indústria e por pequenos produtores e consumidores. Técnicas de informática passaram para um uso generalizado, que logicamente reverte no modo como as pessoas se qualificam para participar do processo produtivo. Dentre as novas linhas de desenvolvimento tecnológico, ainda, destaca-se a biotecnologia, que assumiu um papel fundamental na regularização da oferta de alimentos e na elevação do desempenho da produção rural, alterando, mais uma vez, a relação entre a indústria e a agricultura, assim como diluindo a distancia entre a produção de bens materiais e de serviços. No conjunto, a renovação tecnológica converteu-se numa ferramenta a ser usada como meio de substituir trabalho vivo por trabalho morto, ou para substituir custos de mão de obra cara por custos de mão obra barata. Distinguem-se dois movimentos principais: o de desassalariamento, que se realiza na indústria e passa os setores de prestação de serviços, e o de seleção da qualificação dos trabalhadores, que se distancia da educação formal tradicional e que exige uma substituição de objetos de conhecimento por processos de conhecimento,

75


Rumos do desenvolvimento da tecnologia Os rumos do desenvolvimento tecnológico refletem os interesses que controlam a pesquisa tecnológica. Na produção capitalista avançada, a maior parte do desenvolvimento tecnológico está ligado a empreendimentos do grande capital e resulta num aumento da densidade de capital na produção e no consumo, com a meta implícita de reduzir o trabalho vivo no processo de produção. No entanto, numa revisão mais ampla do sistema produtivo, observa-se de que os setores de produção em expansão de alta tecnologia têm empregado mais pessoas que antes, isto é, que há uma exportação de desemprego dos setores mais dinâmicos e avançados para os menos dinâmicos e menos avançados. Os movimentos de criação de novos empregos, de um país a outro, tornam-se uma preocupação dos países hegemônicos, que vêm muitas de suas empresas preferirem aplicar capital em prestação de serviços nos países periféricos. Nestes, as grandes empresas recorrem, quase sempre, à compra de tecnologia em mercado aberto, o que significa que compram tecnologia dominada ou que os produtores já aceitam vender sem que isso prejudique sua participação no mercado. Esse movimento de aumento da densidade de capital se materializa no alongamento da cadeia de produção e no aumento do valor incorporado nos processos de produção, que aparece na forma da mecanização dos processos produtivos. Paralelamente, resulta em alterações na capacitação dos trabalhadores, que passam a ser treinados como mediadores de uma maquinaria cada vez mais complexa, apesar de ficarem mais distanciados de uma compreensão cultural do processo de produção. A inovação surge quando se consegue romper a lógica de uma cadeia produtiva, introduzindo um processo novo ou modificando os modos de uso dos processos conhecidos. Por isso mesmo, a inovação depende do domínio do processo anterior, que permite distanciar-se dele. Na experiência de países industriais emergentes como o Brasil, convivem diversas tendências de uso de tecnologia, segundo convivem capitais que operam para diferentes mercados e escalas de produção. Geralmente se compram tecnologias específicas das empresas que as produzem nos países mais ricos, mas surgem inovações em diversos sistemas, desdobrando ou contrariando tecnologias dominadas, em setores em que se acumula experiência ao alcance de operadores e de planejadores qualificados. Observa-se que continuam em operação processos extrativistas e processos simples de produção, junto com tecnologias intensivas em capital, e que o avanço das tecnologias mais intensivas em capital fica restrito a certos setores da produção e não elimina os usos de técnicas primitivas. O essencial é o controle dos resultados do capital no uso das técnicas em seu conjunto, que é um problema econômico e não tecnológico. A gestão econômica da tecnologia coloca-se como um problema central da acumulação de capital, que, em última análise, procura resultados que lhe permitam multiplicar os resultados que obtém do trabalho qualificado. No fundo, a gestão tecnológica depende de uma gestão do mercado de trabalho e da mobilidade dos trabalhadores, que continua sendo feita mediante alianças formais e informais entre os interesses privados e o Estado. Há maior facilidade para pequenos e médios capitais, para absorverem novas técnicas, mas, ao mesmo tempo, torna76


se cada vez mais difícil permanecer no mercado sem realizar maior esforço para absorver tecnologia. A questão que se colocava na década de 1950 como de escolha de técnicas, revela-se como uma questão de escolha dentro de margens estabelecidas por rumos de desenvolvimento tecnológico que são definidos no espaços dos oligopólios. 8. As relações econômicas internacionais

As relações econômicas internacionais como objeto de reflexão e de política Não há muito mais de novo como teoria das relações internacionais que não seja uma nova consagração de um positivismo que oscila entre a versão autoritária de um internacionalismo subordinado a interesses nacionais e um internacionalismo que questiona a autonomia do poder nacional. A alternativa é a crítica histórica das relações internacionais, que situa os sistemas de poder de modo objetivo e avalia as participações em relações internacionais como associações de poder, realizadas por Estado e empresas. As relações são sempre múltiplas e entrecruzadas, pelo que é praticamente irrelevante pretender isolar as ações diretas dos governos de suas ações indiretas. A formação de uma economia de mercado sempre esteve ligada ao desenvolvimento de relações econômicas internacionais, que representaram composições de interesses convergentes e contraditórios que extravasam seus ambientes originais, resultando em sistemas de relacionamentos internacionais, que se identificam com determinadas condições de organização da produção e do comércio. O capital sempre foi, essencialmente, internacional, desde os tempos dos gregos e fenícios. Os impérios antigos, especialmente o romano, foram grandes espaços econômicos internacionais, articulados pela capacidade de um poder central de extorquir riqueza mediante seu poderio militar. As relações econômicas internacionais são parte de situações de poder que se prolongam no plano político e no militar Desde o fim da Idade Média, os interesses incorporados no comércio tornaram-se mais amplos que os dos próprios comerciantes e envolveram suas alianças com príncipes e com dignitários da Igreja. O projeto português de poder foi precursor em formar esse tipo de alianças. Afinal, o absolutismo dos Tempos Modernos surgiu de alianças entre príncipes e burgueses, que serviram, simultaneamente, para resolver problemas de supremacia dentro da esfera da nobreza e para resolver problemas de concorrência entre interesses burgueses. Formaram-se composições de poder que viabilizaram economicamente o absolutismo. A oficialização da pirataria foi parte desse movimento geral de justificação da violência oficial, que se tornaria o espigão central da construção dos novos impérios coloniais, do século XVI ao século XVIII, tendo seus principais representantes na Inglaterra, Holanda e França. As relações internacionais em seu conjunto são a totalização de relacionamentos simultâneos entre diversos países, em que, em cada momento essa totalidade de relacionamentos torna-se determinante das relações de cada país com países específicos.

77


Por isso, a teoria marginalista do comércio internacional afasta-se da realidade, quando cria um modelo de análise baseado em relações entre dois países e dois produtos. Aqui, também, a divisão de um problema em suas mínimas partes resulta no desvanecimento do problema e não em sua solução. A composição dos relacionamentos constitui uma referência geral necessária de como se trata o relacionamento com cada país, pelo modo como este afeta os movimentos gerais da composição dos relacionamentos. As relações econômicas com o país hegemônico são predominantes no conjunto, mas estão condicionadas pela variedade de outros relacionamentos. As relações internacionais se organizaram mediante o estabelecimento de rotas regulares de comércio, que significaram a identificação de participantes regulares e eventuais, em torno de uma seleção de mercadorias de aceitação ampla, que deram unidade aos circuitos de troca, desde a tinta vermelha dos fenícios ao açúcar dos portugueses. E as rotas regulares de comércio tornaram-se os caminhos do intercâmbio cultural e da formação de áreas culturalmente semelhantes, que sustentaram os movimentos da civilização. Finalmente, as invasões de bárbaros nas diversas partes do mundo foram rupturas desses padrões de semelhança, que classificaram negativamente aos representantes da ruptura. Regularidade e previsibilidade são características que estão associadas à construção do comércio internacional e que dependem do tipo de produtos com que cada país comparece ao comércio. Em suma, as relações econômicas internacionais sempre aconteceram entre conjuntos de países que tendem a variar ao longo do tempo; e tenderam a se ampliar até onde houve sustentação política e militar para o comércio. A relação entre a esfera econômica e a política pode ser direta ou indireta e pode ser uma relação explícita ou uma relação encoberta por relações culturais e religiosas, mas seus efeitos finais aparecem na preferência de alguns países de negociarem com outros ou no constrangimento que alguns países sofrem para ter que negociar com outros. Assim, as relações econômicas internacionais identificam países e representantes de interesses privados que realizam as trocas. Uma característica do desenvolvimento das relações econômicas internacionais, desde os tempos de gregos e fenícios, é que varia o elenco dos países que participam das relações internacionais, assim como varia o elenco de produtos que eles comerciam, e que a intensificação do comércio leva a que se melhorem os meios para comerciar, que eram as embarcações e os portos que apóiam o comércio e que hoje são as telecomunicações. Mas os principais protagonistas são os mesmos. As alterações da composição da lista de produtos surgem sempre de iniciativas partidas do comércio, que tem as melhores condições de perceber as oportunidades para novos produtos. Os comerciantes tomam iniciativas de oferecer produtos que os consumidores potenciais podem comprar, portanto, procuram colocar-se no limite das possibilidades do mercado, sem perderem-se de referências objetivas de que pode ser efetivamente vendido. Assim, na origem do processo está uma sensibilidade dos comerciantes, para perceberem o horizonte potencial de transações.

78


A combinação de fatores econômicos e políticos sempre esteve presente em todas situações das relações internacionais. Por isso, é preciso superar definitivamente as análises internacionais baseadas em relações entre dois países indeterminados – tal como faz a análise marginalista - e apresentadas em termos de análise de equilíbrio, isto é, análises que impedem que se perceba o contexto econômico internacional. A realidade é que as relações acontecem entre um número variável de países, que se ampliado e às vezes se restringe – tal como aconteceu no ambiente da bipolaridade de poderes e da guerra fria – onde o fundamental é a composição das participações e não o número dos participantes. Numa perspectiva histórica, a análise econômica neoclássica das relações internacionais torna-se significativa apenas como um caso específico de análise, cuja representatividade pode ser contestada até mesmo como caso especial, já que as relações entre dois países estão sempre enquadradas nas relações de cada um dos dois em relações com diversos outros países. A questão de método O método que se usa numa análise é fundamental para determinar os resultados que ela pode alcançar. Além disso, o modo de usar o método deve ser compatível com os objetos que se estuda. Para tratar com situações historicamente formadas, tais como as das relações econômicas internacionais, é preciso contar com uma abordagem histórica, que reconheça como surgem os relacionamentos entre os diversos e diferentes participantes da economia internacionalizada e que reconheça o encadeamento dos efeitos da acumulação de capital na estruturação atual dos relacionamentos. O modo de desenvolver essa análise deve contemplar as peculiaridades do comércio ao longo do tempo nas diferentes partes do mundo. Por exemplo, a noção de monopólio muda, quando se vê a diferença entre um poder absolutista que se prerroga certos monopólios e as condições do capitalismo avançado, onde há processos de monopolização.37 Uma análise que se organiza em torno de objetos genéricos e de situações ideais – dois países, duas mercadorias etc. – tal como aquela utilizada pela análise neoclássica, não tem como lidar com processos tais como os de concentração de capitais, formação de oligopólios, expansão de multinacionais, vinculação política de contratos etc.. Tampouco tem como registrar a presença de entidades não governamentais e de relações estamentais, tais como as das igrejas. Pelo contrário, a análise dos processos de mudança deve avaliar o significado das mudanças de elenco de países participantes e de mudança da lista de produtos. As relações internacionais da era do capital monopolista em que dominam poderes estatais hegemônicos não são semelhantes às relações que se realizavam no período da hegemonia britânica.

37

O monopólio do manjericão por Luiz XIV e do fumo pelo sultão otomano não se parecem com o monopólio do sal dos ingleses e portugueses nem com o da tecnologia nuclear. De um lado estão monopólios que representam controle sobre o sistema produtivo e de outro lado estão monopólios que apenas são reservas de consumo.

79


Explicitar os problemas de método que se encontram numa determinada linha de trabalho é avançar na direção de identificar o objeto e determinar a relação do estudioso com seu objeto. Uma análise organizada como análise estática pode oferecer fotografias da realidade, mas não pode captar processos. Do mesmo modo, uma análise que toma como objeto as relações que acontecem em um determinado conjunto de países não pode apreciar os efeitos das alterações do elenco de países envolvidos no relacionamento para a participação de cada um deles no conjunto. Em síntese, um contexto de relações com um elenco invariante de países e de produtos resultará em padrões de previsibilidade diferentes de um contexto de um elenco variável de países e produtos. O resultado final dessa comparação está em que as incertezas próprias da realidade das relações internacionais ficam artificialmente reduzidas, quando se consideram quadros invariantes de países e produtos, ou quando se deixa de considerar os fatores causadores da incerteza, que são, justamente, as alterações no quadro dos participantes, no modo de participar e nos produtos com que participam. A estabilidade das relações é uma miragem, mas também tem um significado prático efetivo, porque ajuda a estabelecer parâmetros de política, Seguindo o mesmo raciocínio, a república brasileira recém criada desenvolveu relações com os Estados Unidos, fundamentadas em referências políticas que já não eram válidas. Uma outra causa de perda de representatividade da análise está em deixar-se de considerar que uma estrutura de relações econômicas desiguais envolve um contexto de conflitos e ajustes, que não pode ser ignorado sob pena de perder-se o fundamento de relacionamentos em que se obtêm vantagens mercê da desigualdade e não onde a desigualdade é algo posterior e suplementar. Há, portanto, um problema objetivo da análise, relativo aos sujeitos e aos objetos de análise, segundo essa análise é perpetrada como uma manifestação de poderio intelectual das potências hegemônicas ou como uma afirmação de independência alternativa a essa hegemonia. Finalmente, e como conseqüência do anterior, estão as inter-relações entre a esfera política e a econômica, em que a análise e a política das relações internacionais tornam-se os lugares onde se formulam e operacionalizam interpretações teóricas dos processos de poder, compreendendo a racionalização do poder estruturado e a racionalização dos conflitos de poder. Grande parte da literatura disponível sobre os processos em curso de hegemonização contém justificativas do poder hegemônico, que é apresentado como um poder necessário para preservar certo estilo de economia mundial, que, por acaso, é a mesma que representa os interesses desse poder hegemônico. É o que se encontra nos textos de Gilpin, Kindleberger e outros, que se assemelham em essência às propostas da Restauração cerca de 1840. 38 O conservadorismo a se manifestar mediante uma racionalidade superficial combinada com uma irracionalidade essencial. 38

O discurso dessa Nova Restauração baseia-se numa grande simplificação do contexto histórico das relações internacionais, reduzindo ao mínimo o significado das experiências das nações hegemônicas, que são apressadamente classificadas segundo seu potencial aparente de crescimento e desconhecendo por completo os mecanismos de dependência do país hegemônico dos não hegemônicos, desde seu uso de força de trabalho desvalorizada ao seu uso de energéticos produzidos por esses outros países e, finalmente, a contribuição da formação de capital ao país hegemônico, mediante aplicações voluntárias e aplicações informais. Estimativas

80


Abordagens e perspectivas da análise No relativo à análise das relações econômicas internacionais, há uma diferença essencial entre as abordagens que descrevem os relacionamentos atuais como magnitudes agregadas de transações, desconsiderando quem realiza esses relacionamentos, e as abordagens que tratam da formação das relações internacionais. Por extensão, há uma diferença entre relatar os fatos dos relacionamentos e examinar quais instituições e pessoas realizam esses relacionamentos. A perspectiva histórica da formação das relações internacionais situa as transações de mercadorias e de capital como parte de fluxos de transações, que, por sua vez, são circuitos de negócios. O modo de fazer negócios deve se adaptar ao tipo de mercadorias que se transaciona, o que quer dizer que o modo de fazer negócio deve se atualizar, para acompanhar as mudanças que acontecem na esfera das mercadorias. Por exemplo, não se pode comerciar aviões de grande porte como se comerciam aparelhos eletrodomésticos. Trata-se, portanto, de situar a base doutrinária sobre a qual se avalia a separação entre a análise econômica habitual, de base marginalista, que trata da mecânica de relações entre economias nacionais em sua situação atual ou em ambiente de curto prazo e a análise da internacionalização do capital, que focaliza nos movimentos históricos da concentração do capital em sua expressão internacional. Entretanto a análise em perspectiva histórica contém essas duas abordagens, que se vê, respectivamente, como aspectos da análise das relações econômicas e como descrição de tendências do capital no âmbito internacional. Há aspectos que continuam como sempre foram e outros que surgiram com o desenvolvimento da produção capitalista. Desde a antiguidade, as relações internacionais são um campo especializado da economia. As transações internacionais podem ser esporádicas, mas quase sempre são parte de processos de relacionamento, que envolvem certa continuidade de operações, e que pressupõem certas especializações por parte dos diversos atores envolvidos. Tais relacionamentos incluem segmentos de produção e de comercialização, que se organizam em torno dos negócios internacionais. Essa especialização se estende desde a classificação dos produtos ao modo de transacionar e ao de vincular os movimentos dos produtos aos movimentos das moedas. Na leitura atual das relações econômicas internacionais distingue-se uma visão superficial e uma visão mais profunda do problema, cabendo entender que a visão superficial se fixa em movimentos específicos e em resultados visíveis, enquanto a visão profunda trata dos processos que conduzem as relações internacionais. É a diferença entre análises descritivas e análises que consideram os efeitos de relações de causalidade que se desdobram no tempo dos relacionamentos. Nem sempre são relações de causalidade imediatas nem são completamente explícitas, mas são o subsolo das cadeias de acontecimentos que fazem a história. Por exemplo, não se pode dissociar os movimentos de independência dos países latino-americanos das guerras napoleônicas, nem de seus efeitos oficiais recentes situam em 80 bilhões de dólares as aplicações brasileiras nos EEUU, que correspondem a uns 40% da dívida externa total do Brasil.

81


na Península Ibérica, tanto como não se pode separar as relações entre Portugal e a Inglaterra dos receios de Portugal perante a Espanha. A redução temática das relações econômicas internacionais ao comércio internacional separa os fatos econômicos do comércio de seus fundamentos políticos e de suas condições culturais, separando as relações comerciais do contexto político em que elas sempre se realizaram. Na realidade, ou se entende o capital mercantil em sua inteireza, com seus interesses e suas técnicas de comerciar, ou se trata das relações econômicas em sua internacionalidade. Somente assim se descobre que há uma diferença decisiva entre países cujo mercado interno lhes permite sustentar a produção que exportam e países que produzem apenas para exportar e cujo mercado resulta insignificante para reproduzir seu capital. Estes últimos dependem de reproduzir capital acumulado em circunstâncias anteriores favoráveis, tal como os pequenos países europeus que foram sede de impérios coloniais. A separação temática é um viés do positivismo, que deixa prejuízos graves para a análise social. Assim, a “velha” análise do comércio internacional de base marginalista trata por separado os fenômenos das transações, levando a uma separação artificial entre exportações e importações e, por conseqüência, a desconsiderar as inter-relações entre as transações correntes e os movimentos de capital. A análise das relações econômicas internacionalizadas do tempo da mundialização do capital e da expansão das multinacionais (Behrman, 1984) deve focalizar nas interdependências e no significados dos diversos atores, especialmente dos grandes atores das relações internacionais. Por exemplo, só se pode entender o significado atual do preço do petróleo considerando suas variações ao longo do tempo e as condições em que se produz petróleo nas diversas partes do mundo e em que se constitui uma bolsa de energéticos na esfera internacional . As relações internacionais compreendem relacionamentos entre nações, representadas por governos nacionais e relações entre instituições privadas, que acontecem na forma de relações bilaterais e na de relações multilaterais. Desde o fim da segunda guerra mundial, formaram-se blocos de países aproximados por interesses comuns, que passaram a demarcar as relações bilaterais. Os blocos compreendem relações que se mantêm em seu formato original e outras que evoluem para uma integração progressiva entre os parceiros. O caso mais notório é o da União Européia, que representa uma etapa avançada de integração, desde as primeiras iniciativas do plano de Reconstrução e Fomento no apõs guerra e da Corporação do Ferro e do Aço. A emergência dos Estados Unidos como potência mundial desde o fim da segunda guerra mundial representa uma quebra dessa lógica, porque a ascensão dos Estados Unidos representa a passagem de uma situação de dependência do capital mundial até 1860, a uma posição de potência capaz de atrair capitais e recursos humanos qualificados. A elaboração de uma doutrina de poder norte-americana começa antes da Guerra de Secessão e marca a emergência de interesses em transferir as relações internacionais do então Sul para o então Norte. A linguagem de poder norte-americano que se inaugura desde o fim da segunda guerra mundial, com George Marshall e Foster Dulles, marca uma visão mundial de poder em que a multilateralidade torna-se um mero instrumento de um poder unilateral. O uso

82


“pragmático” da multilateralidade ganhou sua expressão mais completa nas guerras do Afganistão e do Iraque. Justamente, o universo das relações internacionais mostra a complexidade das ligações entre as esferas pública e privada na sociedade de hoje. A concentração econômica e a transnacionalização das empresas aumentaram as relações intra empresas que acontecem no plano internacional, ao tempo em que criaram novos mecanismos de articulação entre governos e empresas. 39 Grande parte das transações internacionais é, de fato, um conjunto de operações entre empresas que são parte de um mesmo grupo econômico, o que quer dizer, que são atividades que se realizam no interior de certas empresas descentralizadas. As relações econômicas internacionais podem ser vistas através de seus resultados em termos de transações de mercadorias, de movimentos de capital e de movimentos de empresas e de pessoas, que são os chamados recursos humanos. Além do que podem ser os aspectos externos dos relacionamentos internacionais, que são aqueles representados pelos movimentos de mercadorias e de capitais, encontram-se os movimentos de empresas, que se estendem a outros países, ou que se transferem de um país a outro, e encontram-se os movimentos de pessoas, que representam determinados tipos de qualificações. O principal instrumento de análise do campo das relações internacionais de cada país tem sido o balanço de pagamentos, que compreende uma parte de transações correntes, isto é, das transações de cada ano, e uma parte de balanço de capitais, que resume as transações de entrada e saída de capitais de um país a outro. No entanto, o balanço de pagamentos é apenas uma síntese ex post de operações realizadas, que só se torna revelador quando é considerado como parte de seqüências de transações que só se revelam por completo numa série de balanços de pagamentos. Em qualquer momento as relações internacionais representam um conjunto atual de relacionamentos e um potencial dos países e dos grupos envolvidos, o que costuma ser um aspecto que não é percebido pela análise convencional de fluxos de mercadorias e de capitais. A exploração desse potencial se faz mediante políticas específicas de governos e de empresas, que geralmente se desenvolvem em períodos mais ou menos longos. Por exemplo, a exploração do potencial de relações baseado em negócios com agroquímica, ou simplesmente com exportação de frutas requer uma política e um trabalho organizado durante vários anos. Por isso, é preciso incluir os fenômenos de curta duração num contexto de uma duração mais longa, ou, de outro modo, inserir a esfera do curto prazo num quadro plurianual de tendências e analisar as relações entre movimentos de capital e movimentos de produtos. O fato de que os fenômenos de curta duração geralmente resultam de uma preparação em período mais longo demonstra a necessidade de considerar antecedentes e conseqüências daquilo que aparece como a esfera de curta duração. 39

Os conflitos do Oriente Médio têm mostrado que a combinação de interesses entre governos e empresas tornou-se mais ampla e profunda e que passa a fazer parte da própria estrutura militar, quando se põe em tela de juízo o financiamento da guerra.

83


Numa perspectiva positivista, as relações econômicas internacionais são vistas unicamente como fatos atuais. Numa perspectiva histórica elas são entendidas como parte de trajetórias de relacionamento, que se alteram ao longo do tempo e que envolvem elencos variados de participantes. As relações com alguns países tornam-se constantes, enquanto algumas outras relações são variáveis e podem ser interrompidas. Isso significa que a análise convencional, que toma como principal referência o balanço de pagamentos, não registra o dinamismo atual e o potencial das relações internacionais, limitando-se a constatar seus resultados visíveis imediatos. As relações internacionais se estabelecem em torno de transações com mercadorias, que são conjuntos de bens e de serviços, que se definem em torno de situações de mercado, que se confirmam ou que se diluem, segundo as condições de tecnologia e de comercialização. Mas a própria regulamentação dos produtos como mercadorias padronizadas já é um resultado que depende de uma sustentação institucional e de qualificação de pessoas e de empresas. Aqui também se pode dizer que os relacionamentos de hoje foram coordenados por relações de ontem e que a organização de hoje condiciona o futuro. Assim, vê-se que as relações econômicas internacionais envolvem práticas e instituições, compreendendo as instituições dos países envolvidos e as instituições criadas pelo próprio relacionamento. De um lado são ministérios e departamentos dedicados ao comércio exterior e de outro lado são órgãos internacionais especializados. As práticas se desenvolvem em contextos institucionalmente demarcados, tal como aconteceu com as velhas casas exportadoras e como acontece com departamentos de bancos especializados em investimentos internacionais. As relações econômicas internacionais podem ser vistas como situações de relacionamento entre países e nações, entidades privadas e pessoas, ou podem ser vistas como processos de relacionamento entre nações, países e entidades privadas e pessoas e como condições para que os relacionamentos aconteçam. As situações de relacionamento são parte de processos diplomáticos e políticos e de condições negociais, em que se observam detalhes culturais e inclusive fatores de confiança pessoal. Hoje os brasileiros se preocupam em respeitar certos hábitos dos relacionamentos com os países islâmicos, especialmente com os árabes, assim como aspectos da cortesia do tratamento com os chineses, que jamais interessariam ao modo habitualmente desatento e desrespeitoso com que geralmente se manejam. Mas, ao observar essas regras, descobrem que elas mais proximidade com os hábitos que herdamos de nossa formação colonial, que as práticas de coisificação dos povos-do-Mar-do-Norte e dos norte-americanos. As relações internacionais se realizam entre governos, empresas e pessoas, entretanto, são registradas através das relações entre países, já que essas relações acontecem mediante usos de moedas que são garantidas pelos países. Hoje, há uma contradição entre a capacidade das empresas de se articularem na esfera internacional de modo independente dos governos e o fato de que essa articulação de capitais afeta a capacidade dos governos de decidirem sobre sua política monetária e financeira, altera o modo operacional dos governos na gestão interna de sua economia. 84


As relações entre empresas sempre foram o núcleo duro das relações internacionais, distinguindo-se transações de mercadorias entre empresas e operações de participação e de compra de algumas empresas por parte de outras. Este último mecanismo tem sido o principal veículo da concentração dos capitais na esfera de atuação no mercado mundializado, mediante estratégias de penetração e de participação nos segmentos diferenciados do mercado mundial. Uma breve revisão da expansão da presença de empresas internacionais no mercado brasileiro mostra que essa expansão tem sido feita mediante a compra, e subseqüente reforma, de empresas brasileiras já instaladas. Assim, há um problema que afeta a todos os participantes das relações econômicas internacionais, que é o da representação da responsabilidade das relações econômicas internacionais por parte dos Estados nacionais. Para compreender como se realizam as relações econômicas internacionais, é preciso distinguir o que acontece na esfera de atividades controladas pelos governos e o que se desenvolve na esfera privada, tanto na esfera legal como na ilegal. As compras e vendas entre países aparecem como importações e exportações de cada país, que são a balança comercial. A balança comercial com os movimentos de serviços, constitui o conjunto das transações correntes, que, entretanto, está integralmente relacionada com os movimentos de capital. 40 As transações correntes e as de capital em seu conjunto constituem o balanço de pagamentos, que, na realidade é uma síntese de atividades de diferentes durações e que se realizam mediante diferentes combinações de moeda. junto com os movimentos de capital constituem o balanço de pagamentos. Assim, a rigor, o balanço de pagamentos deve ser lido como uma combinação de duas esferas de fatos econômicos diferentes, que são as transações de mercadorias e as de capital. O balanço de pagamentos é o registro das transações que acontecem a cada ano, mas uma grande parte delas, na verdade, são parte de transações que se completam em períodos de vários anos, pelo que a balança de pagamentos contém uma sincronia de transações que se completam em períodos de variada duração. De fato, a balança de pagamentos é o registro de um momento de conjugação de transações que são parte de seqüências de transações. É o registro de um momento de um processo e não é um quadro instantâneo que pode ser lido e entendido como tal. O conjunto das relações internacionais de cada país reúne seus relacionamentos com todos os demais países, pelo que, tratar de relações entre dois países é uma simplificação que distorce a realidade. De fato, as relações entre cada dois países estão situadas no conjunto dos relacionamentos de cada um dos dois países com todos os outros com que eles se relacionam. Na prática, há áreas de comércio que interessam a certos grupos de países e 40

Há uma inconsistência lógica em propor aumentar exportações sem aumentar importações, pela simples razão que todos e cada país tenta objetivos semelhantes dos relacionamentos internacionais. Na realidade, observa-se que há países que atraem capitais e recursos humanos de outros países, algumas vezes em forma subordinada a sua própria capacidade de produção e outras vezes como parte de um mecanismo colonial. A capacidade de atrair capitais e trabalho qualificado é um dos principais aspectos que diferenciam o estilo da hegemonia norte-americana da anterior hegemonia britânica. O discurso da ampliação das exportações representa hoje o principal aspecto da visão superficial das relações internacionais.

85


há conjuntos de transações que se organizam em torno de produtos preferenciais, tais como combustíveis, minerais industriais etc. Aquelas áreas de comércio onde se adensam as transações ganham em capacidade de absorver capital e tornam-se mais atrativas para os gestores de capital, convertendo-se em focos onde afluem os capitais. Hoje se vê que esse movimento reacende o interesse nas transações com produtos agrícolas, aparentemente, o avanço de produtos de alta tecnologia não substitui os problemas básicos de suprimento de produtos de baixa tecnologia. O cenário das relações econômicas internacionais, por definição, é o ambiente de relações desiguais entre participantes progressivamente mais desiguais, que resulta na formação da hegemonia econômica. A desigualdade é incorporada de diferentes modos pelos que a comandam e pelos que são objeto dela. A grande questão que se coloca hoje é a do dinamismo da desigualdade e da mobilidade das nações em suas posições em suas relações internacionais, no que elas se movem em horizontes diferenciados de possibilidades de moverem-se dentro do padrão vigente de desigualdades. Lastros e resíduos: financiamento e endividamento Nas relações econômicas internacionais, desde o fim da segunda guerra mundial surgiram dois novos elementos fundamentais e interligados, que são o financiamento público integrado à política macroeconômica e o endividamento dos países. O financiamento das economias nacionais é o modo de apoiar um modo de desenvolvimento dos sistemas produtivos nacionais que cria essa comparabilidade e equivalência que dão os contornos de uma economia mundial articulada pelas nações líderes do capitalismo. O financiamento segue padrões de objetivos e de desempenho que dão um certo direcionamento à gestão econômica pública, resultando numa malha de compromissos dos governos nacionais, portanto, na aceitação de regras do sistema de financiamento. Desenvolveu-se um arcabouço institucional do financiamento internacional, que passou a responder a uma política internacional administrada por um acordo dos países mais ricos, que já assumiu diferentes denominações, mas, que em última análise, responde ao que significa o grupo dos sete países mais ricos. Há uma composição de um financiamento geral, que se estabelece como meio de apoiar o desempenho econômico e financeiro dos países que se apresentam como prestatários, ou simplesmente que procuram o apoio do sistema financeiro internacional encabeçado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Internacional de Reconstrução e Fomento. Esse sistema tem operado considerando os elementos básicos que são a capacidade de absorção de recursos externos compatível com certos padrões de equilíbrio macroeconômico, resultando numa relação entre a captação de recursos aos preços oferecidos pelos órgãos integrantes do financiamento público internacional e a captação de recursos em mercado aberto, que significa aos preços e prazos do financiamento privado. (Galbraith, 1973). O sistema desempenharia um determinado papel num ambiente de juros baixos e estáveis e em que a demanda de crédito dos prestatários fosse compatível com a oferta de dinheiro do sistema oficial (Heilbroner e Bernstein, 1989). O aumento da demanda de crédito e a elevação da taxa de juros tornaram esse sistema essencialmente 86


instável e tendendo a aumentar o endividamento geral do sistema internacional, começando pelos países prestatários mais frágeis e terminando com os próprios países prestamistas. Os choques do petróleo na década de 1970 mostraram uma sensibilidade do sistema financeiro internacional aos preços dos energéticos, que se manteve e tornou-se mais complexa até hoje. Tal sensibilidade tende a se agravar enquanto a economia mundial não escapa do círculo vicioso de consumir mais petróleo e depender de menor número de grandes jazidas. Progressivamente, as relações econômicas internacionais constituem um sistema que se expande e que se torna mais instável à medida que se expande. Torna-se necessário pensar em termos de uma crise do sistema e de uma crise da expansão do sistema, quando ele, para sustentar seu crescimento, tem que incorporar manifestações de poder que são contraditórias com o formato estabelecido depois da Segunda Guerra Mundial.

9. Estado, sociedade civil “nacional” e políticas públicas Elementos da origem do Estado nas sociedades periféricas avançadas O Estado é a principal instituição de direito público gerada pela sociedade civil, que representa a composição de forças políticas da sociedade nacional, através da variedade de suas formas de representação. Por isso, o Estado é um campo de força onde ocorrem os conflitos e ajustes de interesses organizados, onde se projetam as representações de interesses locais e regionais e com suas ramificações internacionais. Desde quando apareceu no final da Idade Média em Portugal, o Estado representa as sociedades onde ascendeu o poder da burguesia, com suas composições com a aristocracia feudal e com diversos grupos populares organizados. O projeto nacional de Estado surgiu em ambientes sujeitos às pressões externas da formação de impérios e contrariando a exacerbação dos poderes locais representada pelas cidades Estado da Renascença. O Estado surge na América Latina da decomposição do sistema colonial e da formação de núcleos de poder de base regional, que ultrapassaram suas referências locais e passaram a articular estruturas sociais mais complexas, ganhando a capacidade de substituir vínculos locais de lealdade e de solidariedade por referências mais complexas, onde a coesão de interesses econômicos e políticos tornou-se mais poderosa que as referências territoriais. Assim, o Estado consolidou-se sobre uma composição de interesses de um bloco formado dos interesses agrários e do segmento exportador, com suas alianças internacionais e convalidando um sistema de classes sociais capaz de se reproduzir. Esse é o Estado que preside sobre a industrialização e que contempla as contradições de uma modernização que se torna excludente de grande parte da sociedade civil. O Estado burguês por excelência afirma-se depois da Revolução Francesa e torna-se representante de seu poder na esfera interna, assim como sustenta a expansão de seus interesses nas novas formas de colonização que vieram a constituir o que se passou a denominar de Imperialismo. Na América Latina o Estado surge entre o segundo e o terceiro 87


quarto do século XIX, na esteira da difusão das influências dos conflitos pós Revolução Francesa e da reestruturação conservadora da Europa, quase sempre como uma afirmação política conservadora, representativa dos interesses dos grandes proprietários de terras. Ao observar as transformações do Estado desde então, encontram-se processos de expansão e consolidação do poder político e econômico e processos de crise do Estado moderno, tanto nos países centrais como nos não centrais, assim como se encontram importantes diferenças entre os diversos Estados nacionais, no relativo aos papéis que eles assumiram na liderança ou no apoio aos investimentos que conduziram a modernização dos sistemas econômicos nacionais. Nos países latino-americanos em geral, no Brasil em especial, o Estado tornou-se o gestor do fundo público com que se realizaram os grandes investimentos de lenta maturação e baixa rentabilidade, que foram necessários para viabilizar a expansão dos capitais privados, assim como se tornou o fiel da realização de programas de educação que têm tido A questão atual do Estado A vida social é, em essência, prática, Marx, (Teses sobre Feuerbach)

Que é hoje o Estado para a maioria das pessoas, ou qual Estado se apresenta para os diferentes grupos, mais e menos organizados, da sociedade, no que eles são organizações em estado larval, identificam-se no nível estamental ou se consolidam como classes, como diz Marx. ou ainda, que é o Estado para os componentes permanentes e para os transitórios sociedade? 41 Como se reproduz o Estado numa sociedade cujas fraturas internas e cujas desigualdades se modificam, atualizam, removem ou aumentam? Intuitivamente, aceita-se que o Estado hoje não é mais o mesmo do começo do século, nem o de 1950, mas há um conflito relativo à diferença entre a identidade e as funções atuais e desejadas do Estado e outro conflito relativo às estruturas de poder incorporadas no Estado. São diversos os caminhos da formação do Estado entre as nações latino-americanas, segundo elas experimentam alterações significativas na participação política de sua população, ou desenvolvem mecanismos de atualização da exclusão e da segmentação herdadas do período colonial. O discurso superficial do problema aponta apenas ao perfil das mudanças identificadas com o neo-liberalismo, mas não se vê que tais mudanças sejam examinadas frente à constituição dos diversos Estados nacionais, nem que se pergunte como se 41

Quando Norberto Bobbio examina a legitimidade do Estado através da relação entre o governo e a sociedade, expõe um problema da positividade do Estado de hoje, ao mostrar que a pertinência da ação do Estado resulta dos processos formativos da esfera pública, onde se combinam seus elementos culturais e operacionais, onde, portanto, não há como separar a eficácia da ação pública de sua fundamentação histórica. Quando Habermas (1997) invoca a validade dos conceitos fundamentais da razão prática nos fundamentos da validade do Direito, destapa processos da mediação legal que não podem ser restringidos à facticidade de uma relação entre Estado e governo que escape aos movimentos de convalidação de ambos. Ambos aparentemente passam por cima da necessidade de uma teoria do conflito, que registre “a luta prática entre interesses particulares, que, constantemente e de um modo real se opõem aos interesses comuns...impõe como algo necessário a interposição prática e o refreamento pelo interesse geral ilusório sob a forma do Estado” (Marx, Feuerbach, Oposição entre as concepções materialista e idealista)

88


encaixam essas mudanças nas transformações que já vinham ocorrendo, de qualquer modo, como razão dos processos internos da sociedade. O debate em acerca do Estado não é um debate genérico, senão que se refere às condições históricas em que subsiste o Estado nesses países que nos interessam, que são sociedades periféricas avançadas, tal como é o Brasil. A originalidade do embate atual em torno do Estado nesses países resulta de que se questionam legitimidade e autoridade, quando o poder estatal encontra espaços sociais em que sua presença é questionada e não apenas ignorada, tal como aconteceu até a República Velha. As causas das transformações terão, em todo caso, que ser examinadas à luz das condições objetivas da formação do Estado em sua relação com as transformações da esfera privada e em função das necessidades práticas de sua operacionalidade do próprio Estado. A mundialização do capital e o fortalecimento dos interesses de empresas multinacionais resultam na criação de estruturas internacionais de poder, que se desenvolvem em forma alternativa e contraditória com os Estados nacionais, contrapondo-se ao poder dos Estados, mas apoiando-se nas desigualdades de poder entre os Estados. Pode-se dizer que as multinacionais são uma expressão do poder das sociedades industriais, portanto, que estão sustentadas pelo poder dos Estados que as suportam. O Estado compreende os dois aspectos, de estruturação política e de organização administrativa. Paralelamente, compreende os aspectos ideológicos e doutrinários da atividade política e os aspectos operacionais do Estado como tal e não apenas do governo. A legitimidade do Estado vem da suposição de que ele representa a sociedade, o que levanta dois questionamentos mais profundos, respectivamente, sobre a consistência da relação entre Estado e sociedade e sobre a abrangência da própria sociedade. No Brasil, a sociedade brasileira abrange efetivamente todos os brasileiros, ou alguns grupos ficam em condições periféricas, sem serem plenamente reconhecidos, reproduzindo-se mediante regras diferentes daquelas reconhecidas pela sociedade organizada? Qual a concretude da sociedade, diante da pluralidade de combinações que são parte da formação sóciocultural?42 Os interesses incorporados no Estado e sua operacionalidade A operacionalidade do Estado compreende a operacionalidade política e a administrativa. A primeira significa a capacidade do Estado de gerir os problemas políticos do país, enquanto a segunda significa a capacidade operacional da administração pública. Mas é a operacionalidade política que provê as condições para a operacionalidade administrativa. Há uma flagrante distorção da realidade por parte das teorias da administração que vêm apenas o aspecto técnico-racional da administração, sem sua correspondência histórica e ideológica.43 42

Aqui são de grande valia as idéias de Darcy Ribeiro sobre formação sócio-cultural ( Teoria do BrasilI- Os brasileiros) e suas teses sobre as grandes variedades de mestiçagem de que se forma o Brasil ( O povo brasileiro). 43 Por trás desse falseamento, está o fato de que o isolamento dos aspectos técnicos e racionais da administração foi característica dos impérios, cujo discurso foi sempre o discurso único do poder, que descarta o componente ideológico, simplesmente porque não tolera discordância, portanto, exclui a

89


Esta compreensão ampla da operacionalidade do Estado é de inestimável valia, para situar os problemas relativos à capacidade de gestão política, que finalmente é um prérequisito da capacidade de gestão administrativa. Casos notórios, como os da Colômbia e do Equador, em que há um prolongado impasse político, mostram a impossibilidade prática de tratar a questão administrativa como algo completamente separado da questão política. Noutra situação, como no Brasil, em que a esfera política evolui mediante uma sucessão de coalizões de interesses imediatos que superam ou neutralizam os partidos, a esfera administrativa torna-se um botín das negociações políticas. Esta compreensão do problema de operacionalidade significa, ainda, que o Estado é um produto da sociedade, e que a sociedade continuamente produz Estado, tal como produz suas demais instituições. De fato, as instituições de interesse público, inclusive o Estado, que é a principal delas, formam-se sobre atividades sociais que compreendem uma esfera de práticas e outra de institucionalidade. A continuidade das práticas é o mecanismo que produz instituições e responde por sua permanência. Assim, a administração pública permanente é um fator de continuidade, que tem que ser avaliado em função das tarefas concretas do governo. Nesse contexto, coloca-se o relativo às formas de governo. As formas de governo podem ser república ou monarquia e podem ser democráticas ou autoritárias. O Estado pode ser mais ou menos modernizado numa sociedade industrial e pode ser operacionalizado mediante diferentes formas de governo. Há uma questão relativa às formas gerais de governo e outra, relativa ao modo como se exerce o governo. Isso vale para distinguir entre democracia e autoritarismos e entre as diversas condições em que se exerce uma e outro, A questão da democracia formal compara-se com a do exercício efetivo de democracia. A democracia real se realiza em espaços sociais em que há equivalência de reconhecimento de direitos, portanto, onde a cidadania tem condições concretas de exercício. Assim, uma coisa é a cidadania em cidades de porte médio em regiões que têm uma classe média numerosa; e outra coisa, a cidadania em pequenas cidades encravadas em regiões onde o poder está concentrado nas grandes cidades. Desde o advento da industrialização, configuraram-se novas referências operacionais do Estado, que passou a ter que gerir sistemas integrados de serviços públicos, tanto em sua infra-estrutura física como em sua capacidade de prestação de serviços. Isso envolveu uma profissionalização, respectivamente, dos serviços de água e saneamento, de energia elétrica, tanto como dos serviços de educação e saúde, que tornaram crucial a revisão do problema educativo e da capacidade dos municípios para realizarem o necessário esforço de qualificação. Por exemplo, nas condições de participação no mercado internacional de municípios onde há produção irrigada, ou onde se encontram certos ramos de indústria, é preciso pensar em termos de organizar mecanismos locais competentes para apoiar essa participação.

pluralidade. Falta uma teoria do conflito historicamente fundada, que permita situar as tensões e os ajustes de poder que acontecem dentro da estrutura administrativa.

90


Isso envolve nova concepção de cooperação entre o Estado e os grupos organizados que participam da economia. O Estado representa uma concentração do poder, que, entretanto, alterna com outras instituições, tais como são as igrejas e forças armadas, bem como com instituições representativas dos interesses privados, como são órgãos representativos de patrões, de trabalhadores, de consumidores. É uma combinação móvel, em que variam as condições de participação de cada um dos integrantes desse conjunto e mudam as condições em que eles são representados. A distribuição do poder na sociedade resulta das composições entre esses órgãos, que atingem diferentemente as diversas áreas de poder. Por exemplo, há uma predominância clara e indiscutida do governo federal nas políticas de transporte e de energia, enquanto em educação há uma complexa composição de intervenções públicas e privadas. E isso gera uma tecnoburocracia profissionalizada, que passa a ter um papel insubstituível na estrutura operacional do governo. No Estado contemporâneo, a tecnoburocracia passou a representar uma fração de poder, estrategicamente situada no governo. As reformas administrativas e a condução do sistema público de financiamento são manifestações dessa tergiversação ideológica, pela qual a subalternidade da burocracia atinge as práticas políticas do país. Há, portanto, uma questão relativa ao perfil ideológico dos grupos que vêm integrar a tecnoburocracia. Noutras palavras, no contexto do Estado há um aparelho político, constituído da estruturação política do governo;, há um aparelho tecnoburocrático, que se desenvolve no interior do Estado; e há aparelhos ideológicos, que se formam sobre essas duas estruturas, constituindo uma mobilização dos segmentos da sociedade que compõem o bloco de poder. Nesse sentido percebe-se agora o papel da informação e da mídia na visibilidade do governo para o público comum, que finalmente se define como uma questão de cidadania. Diante dos dados objetivos das sociedades de hoje, encontram-se variadas situações de cidadania, dependendo de conhecimento socialmente significativo e da capacidade de participação de grupos estáveis e transitórios e de pessoas em torno de problemas concretos da sociedade Parte importante do novo discurso prático do governo local no Brasil é que os municípios deixaram de ficar restritos a relações com os governos estaduais; e que a comunidade como tal passou a constar das relações de poder. Diante de uma retração do Estado em sua relação cotidiana com a sociedade, a interação efetiva entre poder público e comunidade torna-se fundamental, especialmente como fonte de legitimidade. Além disso, em parte pela proliferação de políticas federais que se realizam diretamente com os municípios, em parte pela fluidez das comunicações eletrônicas, ou pela liberdade de movimentos das empresas, a gestão local passou a estar fortemente influenciada pelas transformações do mercado internacionalizado e mesmo, pela ação de organizações internacionais. O que poderia ser uma cadeia de comando típica da República é constantemente alterada pelas iniciativas das esfera federal, para ocupar espaços de poder. A expansão da esfera das atividades de relações internacionais, especialmente, a criação de um conjunto de instituições internacionais rompeu, desde o fim da segunda guerra mundial, a verticalidade das relações entre o governo federal e os estaduais e locais, 91


abrindo outras possibilidades de intercâmbio, com elas, outras margens de autonomia para as administrações locais. A informática acelerou esse processo, permitindo que a modernização das administrações locais tenha acesso a recursos da comunidade internacional de informações. O correio eletrônico abre inúmeras possibilidades instantâneas de informações úteis para as administrações locais, que reduzem o controle sobre elas da administração federal e das estaduais. Um treinamento seletivo de quadros municipais para operar com sistema informatizado pode ser a referência de nova configuração da qualificação profissional da administração pública, a menor custo e tempo, para operar com objetivos localmente identificados. Tal situação é o resultado de uma trajetória de transformações nas relações entre os integrantes da esfera pública, que começou, praticamente, depois da segunda guerra mundial, que tem atingido praticamente todos os países latino-americanos. Acordos internacionais, órgãos internacionais e políticas nacionais. Rapidamente, criou-se uma estrutura de órgãos especializados, na esfera das Nações Unidas, bem como o Fundo Monetário Internacional, e o Banco Mundial. Criou-se o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT), que veio a converter-se em Organização Mundial de Comércio. Criaramse órgãos especializados das Nações Unidas para os diversos continentes, em que se tornou conhecida a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). Nas Américas, essa movimentação sobrepôs-se a uma história muito mais longa de internacionalismo, iniciada por Simón Bolivar, com seu Congresso Anfictiónico, retomada no começo deste século por pressão norte-americana com a doutrina Monroe. Com a vitória da revolução cubana em 1959 surgiu o Congresso de Solidariedade dos Povos, contestado pela criação da Aliança para o Progresso, por sua vez, criada pelos Estados Unidos sobre a experiência do Ponto IV, que vinha operando desde o fim da segunda guerra mundial. No âmbito dessa estrutura institucional, foi criado o Banco Inter-Americano de Desenvolvimento, que passou a dar financiamento específico para desenvolvimento aos países latino-americanos, abrindo linhas de crédito específicas para projetos regionais.44 Nesse contexto, além disso, surgiram as organizações não governamentais, de base nacional e de base internacional, em que as internacionais desenvolvem uma atividade direta e outra indireta, através das nacionais, influindo ideologicamente nas políticas públicas, mobilizando pessoas e recursos, demarcando espaços de influência. 45 Tudo isso tem contribuído para uma internacionalização de relações locais, compreendendo a comunicação internacional entre cidades e entre comunidades, ao tempo em que introduz outros canais de manifestação de interesses e de posições socioculturais que pluralizam a estruturação do Estado desde sua base. Tanto as multinacionais, como as organizações não governamentais e como as novas pressões de interesses e pontos de vista regionais resultam numa fluidez das relações 44

O Brasil teve uma posição significativa na criação do Banco Inter-americano, participando com 12,5% de seu capital. Os Estados Unidos ficaram com 25%, a Argentina com 12,5% e os demais páises com porcentagens menores. 45

Sobre esse ponto específico, pode-se ver de Berta Becker e Mariana Miranda, A geografia política do desenvolvimento sustentável, UFRJ, Rio de Janeiro, 1997

92


internacionais, que levanta questões delicadas relativas à situação atual de soberania dos Estados nacionais. Esses novos elementos em ascensão têm bom trânsito com os meios de comunicação, pelo que difundem uma ideologia de defesa de uma sociedade civil internacional, que, concretamente, representa uma restrição da legitimidade do Estado nacional e de seu poder. Quanto essa leitura internacional é igualmente valida para todos os Estados nacionais e quanto ela decorre genuinamente de um ética humanista, ou quanto serve aos interesses do capital, são questões que terão que ser melhor esclarecidas, numa crítica histórica comparativa do Estado nacional e desses outros órgãos civis. Desde a década de 1980 aumentou a capilaridade do financiamento internacional a municípios e cidades, assim como se ampliaram as relações entre o governo federal e os municípios brasileiros, com a criação de programas especiais de financiamento de programas a serem realizados por municípios. Desde então, surgiu também e expandiu-se, a presença de organizações civis não governamentais, com diversas definições, motivadas por temas tais como apoio à infância, à mulher e ao meio ambiente, que agem a nível local, desbordando a hierarquia de responsabilidades do Estado. Hoje há ligações complexas e profundas, entre o funcionamento do sistema de órgãos internacionais, as organizações não governamentais e relações entre agentes nacionais de cooperação técnica e de financiamento, que passaram a estar disponíveis para agentes públicos locais, assim como há acordos entre atividades de órgãos não governamentais e governos estaduais e entidades nacionais privadas. Tais elementos tornaram-se essenciais no quadro de referências dos municípios. O fundamento da formação do Estado brasileiro tem sua origem no poder institucionalizado europeu e na incorporação da formação sócio-cultural americana. Ao conquistar a população existente e trazer população dominada, o componente dominante da sociedade criou regras próprias de legitimidade, baseadas na aliança entre o controle da terra e o comércio, estabelecendo um ambiente político diferente do de Portugal. Assim, uma análise sócio-histórica da formação do Estado deve compreender os aspectos superficiais da organização política formal, junto com os aspectos mais profundos da articulação da cultura dominante derivada da européia com o substrato tribal, índio e africano, na constituição do Estado brasileiro. Com esses elementos, o substrato dominial europeu deu lugar a nova configuração patrimonial genuinamente brasileira, que veio a sustentar a organização do poder local, tanto em sua organização municipal como na organização do poder a nível das províncias e logo dos estados. A identidade do Estado nacional formou-se no contexto do Império, basicamente em três etapas, que foram a inicial do processo de independência e unificação política e militar; a da primeira metade do segundo império, praticamente até a guerra com o Paraguai, que foi de consolidação política e reordenamento da produção escravista; e a terceira, que foi de modernização econômica e social e reordenamento político, que se estendeu até o advento da República. Esta, hoje tem que ser vista como um fenômeno contraditório, que interrompeu o processo de liberalização em curso e criou um sistema baseado no controle por parte da oligarquia rural modernizada. Criou-se então um problema social e político, representado pelo imobilismo social da chamada República Velha, que 93


desembocou no período de conflito aberto, entre 1922 e 1930, retomado em 1932, com chamada revolução constitucionalista, cuja derrota selou as bases para a instalação do Estado Novo. Esse é um problema generalizado de representação política, que esteve no centro das disputas pelo poder no plano federal, que teve momentos de maior abertura entre 1955 e 1963, mas que desde então passou por um período de autoritarismo que só concluiu vinte anos depois. Desde 1985, com o fim do regime militar, explicitaram-se os problemas de representatividade e de participação no governo, revelando-se os contornos das verdadeiras relações de poder fundadas em interesses econômicos organizados. Em sua evolução, o Estado brasileiro operacionalizou uma série de composições de força, representando, sempre, a organização do poder baseado no controle da terra e a do poder organizado na composição da produção industrial com o sistema de financiamento. A concentração de capital no sistema bancário foi sempre a referência fundamental das possibilidades de industrialização, regulando as condições em que a formação do capital industrial foi compatibilizada com a preservação do patrimônio. Assim colocou-se o fundamento econômico e político da República, combinando a organização do poder central com variadas bases de organização local. A grande diversidade na formação social e no perfil geográfico do país fez com que a formação de classes e das elites do poder se fizesse com uma grande pluralidade de situações, em cujo contexto são fundamentais as diferenças entre municípios, ou a variedade de possibilidades de gestão que cabem na esfera de unidades municipais formalmente equivalentes. Desde inícios da década de 1960, o Estado brasileiro passou por profundas mudanças, que devem ser avaliadas sobre a trajetória completa do período de 1960 a 1990. No começo desse período já estavam claras necessidades práticas de outro tipo de operacionalidade do governo. É significativo, que em 1963 já estava pronta a reforma tributária que foi implantada pelo regime limitar em 1965. Na mesma década de 1960, o governo federal poz em marcha uma política habitacional de grande escala, entretanto limitada às capitais, quando foram estabelecidas as regiões metropolitanas. Concomitantemente, foi realizado um amplo programa de construção de barragens para hidrelétricas e para estocagem de água, com variados níveis de sucesso.46 Em seu conjunto, essas políticas deram lugar a um grande estímulo da economia nacional através da construção civil, traduzindo-se na mobilização de novos agentes técnicos e financeiros, públicos e privados, desde órgãos públicos especializados a empreiteiras. A gestão do setor de construção civil em seu sentido mais amplo atingiu fortemente as condições de políticas dos municípios, em parte por estimular uma atividade que resulta em elevado multiplicador de emprego, em parte porque pôde aumentar o nível de atividade sem envolver mudanças significativas de tecnologia, portanto, que pôde ser desenvolvido com as tecnologias disponíveis. 46

A construção de barragens é um dos principais pontos de interrogação sobre as políticas federais de infraestrutura, por seus custos, pelos resultados alcançados e por serem obras irreversíveis, cujos benefícios se distribuem desigualmente e em padrões que não têm se alterado ao longo do tempo.

94


A expansão da construção civil resultou, portanto, no fortalecimento de grupos de capital, que prosperaram estimulados por verbas federais e que, por sua vez, passaram a condicionar os usos de recursos dos municípios. Com a construção civil estimulando a despesa pública, houve as duas conseqüências, de que o sistema de financiamento tendeu a apoiar projetos desse tipo; e que foram fortalecidos os grupos de capital baseados na prestação de serviços ao governo. Essas observações levam a rever o relativo à estruturação social do poder público, a nível federal e local. 47 Tornou-se fundamental, que a constituição das classes sociais tem se feito com a constituição de elites urbanas como um desdobramento das antigas oligarquias e gerando novas alianças de poder rural, mediante a transferência de capitais urbanos para o meio rural. Isso tornou a economia rural mais vulnerável às preferências de capitais urbanos, atrelando a gestão local para resolver os problemas desses grupos de capital, antes mesmo que para atender necessidades locais já reconhecidas. O desempenho do Estado brasileiro desde a década de 1960 ficou caracterizado por quatro principais momentos, que foi o chamado milagre econômico do período de 1967 a 1972; o de 1973 a 1978, que foi o segundo período da ditadura, que conviveu com a crise internacional do petróleo e com a elevação do preço das moedas internacionais; o de 1979 a 1984, em que os governos militares enfrentaram condições externas mais desfavoráveis; e finalmente, desde 1985, quando o restabelecimento da democracia formal aconteceu num ambiente internacional de contenção do crescimento, levando a sucessivas políticas econômicas nacionais recessivas. Junto com as políticas de controle do crescimento econômico, entraram mecanismos de centralização do financiamento, que reduziram as margens de autonomia de gestão financeira dos estados,e, mediante as estratégias de corte de subsídios - iniciadas em 1986 e de centralização tributária, transferiram mais responsabilidades aos estados, sem correspondente ampliação de receita. É uma centralização de poder econômico que se soma aos mecanismos legais de restrições de despesa. O estreitamento das margens de financiamento dos governos estaduais estendeu-se em conseqüente limitação dos recursos dos municípios, que cada vez são menos assistidos pelos governos estaduais. Os problemas de autonomia municipal estão nos jornais, se bem que, principalmente, mediante reivindicações das capitais. 48 De então, formou-se um mecanismo de esvaziamento financeiro dos municípios, que agora apenas começa a ser visualizado. Hoje, as possibilidades de financiamento da economia brasileira estão subordinadas a uma situação de pesado endividamento externo, junto com graves dificuldades 47

Sobre esse ponto, consultar Jorge Graciarena, Poder e classes sociais na América Latina, Mestre Jou, jSão Paulo, 1965. 48 O jornal “A Tarde” de 20.7.98 noticia uma reunião de prefeitos de capitais estaduais, numa declaração de reunião de forças para pleitear condições materiais para a autonomia municipal.

95


recorrentes na balança de comércio. Nesse contexto, a economia brasileira trabalha com elevadas margens de risco em relação com os capitais especulativos, inclusive, sem ter conseguido reinvestir o produto das privatizações nos correspondentes setores produtivo Para analisar os rebatimentos locais das políticas estatais, é fundamental perceber que elas vêm de duas fontes, que são a compreensão da realidade do Estado como um todo, tal como vista pelo governo federal; e a necessidade dos governos estaduais de reproduzirem-se, enquanto esfera de poder organizado. Há, portanto, uma diferença fundamental entre políticas monetárias e financeiras, de produção de energia, de transportes, que se definem na escala nacional; e políticas de educação, saúde e cultura, que se organizam sobre elementos regionais e locais de informação. Nestes últimos e em diversos outros campos, a perspectiva dos estados - ou de regiões - é indispensável para que se estabeleçam políticas nacionais capazes de refletir as necessidades da sociedade. Também é preciso levar em conta, que a compreensão estadual dos problemas locais se forma mediante informações e estudos em geral, que são concebidos e realizados com a perspectiva do estado, não necessariamente com a das localidades. Assim, a possibilidade de produzir e realizar políticas públicas representativas da variedade de condições do espaço estadual depende, em grande parte, da capacidade dos municípios para manifestarem sua própria visão do problema. Num país como o Brasil, que continuamente tem incorporado novos territórios a suas práticas de governo, há enormes diferenças entre regiões de colonização antiga, com população estabilizada e cultura reconhecida, regiões em ascensão ou novas regiões onde chegam pessoas de diversas partes; e finalmente, regiões que se organizam a partir de intervenções do governo, especialmente do governo federal. Claramente, a identidade dos municípios varia entre essas diversas situações, porque em alguns casos trata-se de entidades formadas sobre experiências concretas processadas durante muito tempo, com comunidades ativas, com tradição de mobilização em torno de seus próprios problemas; enquanto em outros casos, são entidades criadas por delegação de poder, como extensões do poder político central, representado por programas de governo. Há inúmeros exemplos a citar nesses casos, destacando-se agora, por sua atualidade, os casos de certos municípios que ganharam notoriedade por desenvolverem programas próprios de incubadoras de empresas ( São José do Sapucaí, MG), por criarem cooperativas de produtores ( São Leopoldo, RGS), ou mesmo por terem criado centros de ensino superior orientados para atender suas necessidades de tecnologia e de pessoal ( Rio Verde, GO). Nesse contexto, as políticas públicas podem ser vistas como manifestação de responsabilidade ou como concessões de um poder autoritário; e como reconhecimento de necessidades objetivas da reprodução do sistema de produção ou como iniciativas espontâneas. Avaliações de experiências de planejamento regional, como a da SUDENE em seu primeiro qüinqüênio, ou como a dos projetos de desenvolvimento rural integrado das décadas de 70 e 80, mostram a importância dos aspectos culturais das políticas públicas e a impossibilidade de realizar políticas de expressão local para uma grande região, tais como as de colonização e de irrigação, sem incorporar os pontos de vista e a experiência 96


locais. Certamente, os fracassos dessas políticas têm estado sempre associados à passividade das comunidades, que são vistas apenas como objeto de políticas em cujo desenho e em cuja forma de execução elas não têm a menor oportunidade de opinar. Tecnicamente, as políticas públicas estão reguladas por requisitos de serviços de infra-estrutura econômica e social, bem como por serviços de assistência social, que sustentam a construção da economia industrial e a urbanização. A construção e a manutenção desses sistemas é a principal ferramenta do Estado na administração do fundo público no movimento geral da acumulação de capital. Nesse contexto, distinguem-se as políticas de educação e de produção de energia, como as que são indiretamente mais importantes, tal como a e experiência especial da política de produção de energia. Em ambos os casos, trabalha-se necessariamente com uma visão a longo prazo, junto com uma mobilização de recursos progressivamente crescente. Em ambos os casos há uma combinação de competência técnica e de conteúdos ideológicos,que devem ser administrados em função de uma compreensão de quais sejam os recursos utilizados. 12. A realidade histórica das empresas

A empresa é o instrumento por definição dos interesses do capital e que opera para obter resultados econômicos para gerar lucros, ou pelo menos suficientes para reproduzir o capital com que opera. São entidades privadas com uma determinada capacidade operativa, que funcionam mediante modos de organização que devem ser compatíveis com o sistema produtivo em seu conjunto e devem permitir que elas funcionem com a eficiência necessária para alcançar seus fins. Eficiência neste caso é a capacidade de usar tecnicamente e politicamente os recursos disponíveis. O movimento social pelo qual as empresas caminham para alcançar essa eficiência envolve alterações na relação entre ética e responsabilidade, em que a individualidade do capitalista é substituída pela personalidade do capital, mas onde permanece uma responsabilidade que corresponde pelo menos ao capital que maneja. A empresa constitui uma substituição da pessoa do capitalista por uma representação de interesses, que, no início, isto é, na forma de empresa individual é um simples artifício legal, mas que na forma de empresa de responsabilidade limitada, e, adiante, na empresa de capital por ações, dilui a pessoa do capitalista, criando uma nova condição de individualidade,entre responsabilidade política e poder econômico. Para compreender as condições em que operam individualmente as empresas, tornase necessária uma visão em perspectiva histórica da formação das empresas que sustente a estruturação de uma análise econômica das empresas específicas, representativa das condições reais de organização e de funcionamento das empresas hoje presentes no mercado, tanto nos países economicamente mais avançados como nos países que não são centrais ao movimento geral de acumulação de capital e de renovação tecnológica. A análise marginalista, em suas versões neoclássica e keynesiana, projetou uma grande 97


confusão sobre o tema, ao simplificar as empresas a uma noção genérica de firma e ao confundir as análises dos estabelecimentos produtivos com as análises de empresas. A expansão das megaempresas tornou irrelevante essa abordagem que se pauta apenas pelo conceito tradicional de lucro; e que não absorve os condicionantes de estruturação de mercado, nem os fundamentos políticos do poder econômico. Juridicamente, empresas são entidades de direito civil privado voltadas para gerir e garantir a reprodução do capital que têm sob seu controle, seja de sua propriedade ou de outros. Historicamente, as empresas surgiram como instrumentos de interesses econômicos, que pretendem operar em determinados ambientes políticos. Operacionalmente, empresas são centros de decisões financeiras, técnicas e administrativas, que utilizam processos de produção, técnicas de comercialização e de financiamento. Ideologicamente, as empresas representam os interesses do capital. Mas, por isso mesmo, por representarem diferentes condições objetivas de defesa dos interesses privados, as empresas devem ser vistas como uma variedade e não como um ente genérico. A noção atual de empresa não parte de uma idéia genérica que se particulariza, nem é aceitável falar de uma firma genérica, cujo comportamento seja representativo do de todas as empresas. Pelo contrário, é uma síntese de diversas situações concretas de empresa, pelo que a noção de empresa no final do século XX reflete uma realidade do final do século XIX. 49 Por isso, é preciso rever a teoria microeconomica, no que ela parte de pressupostos sobre as empresas que não se aplicam às empresas do grande capital de hoje. Há um problema de representatividade de algum tipo de empresa num dado conjunto de empresas, que só permite pensar em empresas provisoriamente representativas. A representatividade está ligada a uma combinação de aspectos externos de participação, de participação no sistema produtivo e aspectos internos, que correspondem à composição do capital. Por isso, a compreensão de Porter (1986) das empresas é um empobrecimento conceitual comparado com Marshall (1926), tanto como a visão marshalliana é um encurtamento conceitual comparado com Marx (1956). A empresa é um resultado da formação do capital. A empresa tal como se entende hoje, surge como operacionalização dos interesses de capitais que associaram as atividades manufatureiras à atividade mercantil, empreendendo a produção sistemática de mercadorias, para atender a uma demanda que procuravam estimular. A produção de açúcar antecipou-se ao consumo de açúcar, tanto como a produção de relógios antecipou-se ao uso dos relógios na produção e como a organização de cadeias de lojas integradas no século XIX antecipou-se ao desenvolvimento dos transportes urbanos que ajudou esse tipo de empreendimento. Essa fusão de interesses esteve na base da formação do Império Português, que combinou a visão de financistas formados na parte tardia da Idade Média, principalmente representados pela Ordem dos Templários, com a visão de capital mercantil e de artesanato e manufatura especializada, formada na Espanha islâmica. A conquista e colonização do 49

Tal como a noção de forma substancial em Aristóteles (Metafísica). A noção de maçãs e de ameixas depende de qual variedade dessas frutas se conhece.

98


Brasil foram produto dessa visão precursora da empresa perfilhada e associada ao Estado (MAURO, 1989). Os holandeses copiaram e aperfeiçoaram o modelo de organização operacional do capital privado, chegando à Companhia das Índias Ocidentais, que, por sua vez, foi copiada pelos ingleses. As idéias do Padre Antonio Vieira para o desenvolvimento do Brasil Colonial basearam-se na criação de empresas separadas dos monopólios da Coroa Portuguesa. A empresa surge nos espaços de regulamentação institucional, dados por uma associação de interesses da esfera pública com a privada. Observa-se que nos Estados autoritários latino-americanos nas décadas de 1955 a 1985 esse fenômeno se repetiu, surgindo novas grandes empresas em cada um dos países de porte médio e grande, que se organizaram com poder de monopólio, apoiadas em contratos com os governos. No século XIX, as empresas ganharam novo alento, com a formação de capital privado internacionalizado no mundo organizado pela Santa Aliança. Ao longo do tempo, a esfera privada distanciou-se das restrições colocadas pelo fortalecimento dos Estados nacionais, apoiando-se, entretanto, em contratos com os governos, tal como no exemplo de Mauá. A literatura de ficção do século XIX – Émile Zola, Dostoiewsky, Maupassant, Hugo, Eça de Queiroz, Machado de Assis – informam sobre as transformações das empresas, antecipando-se à Sociologia. As observações dos economistas sobre esse tema ficaram nitidamente divididas, entre as que buscaram fundamentos econômicos, sociais, políticos e culturais da formação de empresas; e aqueles outros que focalizam na operacionalidade das empresas, sem questionar sua formação, apogeu e declínio, entendendo que as empresas são entidades sempre racionais. No entanto, o crescimento e a possível queda das empresas é um aspecto essencial da formação da sociedade econômica periférica avançada. Historicamente, a capacidade de ultrapassar o formato familiar tem sido questionada, bem como a exposição das empresas a aspectos de irracionalidade, tanto por motivos pessoais, tais como de vaidade, ciúme e mesmo e simplesmente por ignorância. Longe de serem entidades racionais, as empresas aparecem como espaços onde a gestão privada de poder econômico permite dar vazão a essas motivações pessoais. Hoje, frente à combinação dos movimentos de mundialização do capital e de reprodução de estruturas familiares de poder, torna-se necessário rever o conceito de empresa com que se trabalha no campo social. Contra a simplificação de supor que as empresas sejam equivalentes, ou que tendam todas a operar de um mesmo modo, cabe registrar sua formação histórica e seu relacionamento com os sistemas de poder local e com os sistemas nacionalmente constituídos. O capital internacionalizado expandiu-se desde 1870, com mais rapidez que os mecanismos de controle institucional dos Estados nacionais. A expansão do componente financeiro do capital deixou de estar preso às condições de liquidez de cada empresa, e passou a progredir sobre as condições de liquidez de sistemas de empresas A aceleração do componente financeiro do capital alterou as condições de adensamento do capital nos diversos segmentos do sistema, induzindo o grande capital a desenvolver estratégias de ajuste em programas de investimento quese estendem sobre longo prazo. Isso faz, por exemplo, que o mercado de tecnologia se concentrasse mais que o de equipamentos. Essa tendência ficou visível desde o fim do século XIX, quando a monopolização tornou-se uma tendência dominante. Com o 99


desenvolvimento de um mercado de títulos, aprofundou-se, rapidamente, a diferença entre empresa e estabelecimento produtivo, tornando completamente inadequada a análise econômica que trabalha com “firmas” genéricas, sem reconhecer, por exemplo, que uma grande empresa pode operar mediante um grande número de pequenos estabelecimentos. Ressalta-se que até hoje a análise econômica por setores, que vê a produção de cada setor, está organizada pela produção somada de estabelecimentos e não pela produção que se atribui a cada empresa. Análises efetivamente organizadas com dados de produção das empresas são escassas e geralmente são manipuladas. As empresas são entidades gestoras de capital, são centros de decisão financeira, técnica e administrativa, que se formam como instrumentos de gestão de interesses privados. Além disso, são, simbolicamente, as representantes do capital, apesar de que o capital como tal, não precisar necessariamente de manifestar-se mediante a forma de empresas. As possibilidades abertas ao capital pelo mercado acionário são, justamente, de separar a função rentabilidade da função gerência, tornando equivalentes as taxas de rentabilidade dos diversos empreendimentos de capital aberto. Nessa qualidade, as empresas defendem interesses, a partir de posições culturalmente determinadas e de condições objetivas de relacionamento com o trabalho, com outras empresas e com o Estado. É o que se representa, simbolicamente, como relação com o mercado, demandando maior esclarecimento sobre quais as condições do próprio mercado (STEINDL, 1986) e sobre qual a condição de cada empresa em cada mercado (FELLNER, 1965). Nesse contexto, a formação de oligopólios não é um recuo do capital monopolista, senão uma alternativa mais adequada, para operar em mercados defensivos. Surge, como observação essencial do ambiente moderno a relação entre o perfil da empresa e o do mercado. As empresas se desenvolvem segundo o mercado em que operam. Se as empresas operam em ambientes de mercado oligopolizado, têm que se desenvolver adaptando-se a essa realidade, em vez de trabalhar com o pressuposto tácito de um mercado em que podem expandir-se simplesmente mediante incrementos de produtividade. A formação de empresas multinacionais depende de mobilidade em mercados internacionais de bens e serviços e de flexibilidade para transferir dinheiro entre economias nacionais. As empresas se reestruturam para poderem participar dos mercados internacionalizados (BEHRMAN, 1984) Por isso, necessita-se, hoje, de uma conceituação de empresa adequada para dar conta, pelo menos, de dois aspectos essenciais da economia contemporânea: a coexistência de empresas que operam com um ou vários estabelecimentos e com uma ou diversas tecnologias; e a compra e venda de empresas como de quaisquer outras mercadorias. Além disso, é imperativo contar com uma explicação da financeirização do capital das empresas, nestas circunstâncias, em que as empresas internacionalizadas têm que usar diferentes moedas e em que muitas moedas perdem consistência. A volatilidade das moedas evidencia a necessidade de uma gestão de capital compatível com a mobilidade do grande capital e do trabalho qualificado. Longe da simplicidade da visão convencional de firma como equivalente a produtor, torna-se necessária maior sensibilidade frente a diversidade de empresas, bem como são 100


necessárias referências para tratar das peculiaridades subjacentes nessa diversidade. Dessa qualificação, ressalta que a empresa é um princípio de poder econômico, que se organiza com uma ética aceita, mas contraditória com os interesses dos demais, cuja expansão é uma contradição latente com o princípio de liberdade inerente à competitividade que defende. Assim como as relações de classe refletem a experiência histórica das classes, as empresas refletem diferentes experiências históricas de gestão do capital. A revisão do conceito de empresa é essencial a qualquer interpretação do processo econômico que reconheça a diferença entre a designação genérica de indivíduos e a identificação específica dos participantes de cada sociedade. À noção genérica de firma, como apelativa de qualquer produtor organizado, contrapõe-se a compreensão de que há diversos tipos de empresa, que participam de diversos modos em âmbitos diferenciados de mercado. Tal compreensão de empresa é parte indispensável do discurso que vê o Estado na forma concreta de governo e o trabalho na forma material de uma população que trabalha. Diferentes empresas representam diferentes interesses de capital e representam diversas culturas e linguagens. 50 Reconhecer a empresa como algo historicamente determinado, leva a marcar a diferença entre as empresas e os estabelecimentos produtivos de sua propriedade. A habitual análise agregada opera com somas de dados equivalentes de produção e de capacidade instalada dos estabelecimentos, que apenas descrevem resultados de decisões operativas de empresas; ou que reúnem dados de produção, independentemente das condições técnicas em que ela foi realizada. Devem ser distinguidos dos dados operacionais de empresas, que ligam os dados de produção aos de uso de capacidade e aos de gestão financeira do capital. Enquanto a empresa trata com um problema econômico de formação de capital, os estabelecimentos produtivos enfrentam problemas técnicos de operar um determinado capital em formas já definidas. Sobre esses antecedentes, cabe introduzir uma definição neste ensaio. Cabe começar esta revisão da empresa com uma definição. A empresa é uma entidade que representa interesses privados organizados na reprodução de um determinado capital, com a racionalidade que corresponde ao seu ponto-momento histórico. Concretamente, as empresas têm modos de comportamento historicamente formados, que mudam ao longo do tempo, com maior ou menor velocidade, segundo incorporam experiência e ganham capacidade para reagir com objetividade frente aos aspectos da realidade que as afetam. As doutrinas sobre o funcionamento das empresas que têm a eficiência como referência principal têm, em todo caso, que chegar a uma maior precisão do conceito de eficiência, de modo a distinguir os qualificativos da eficiência do capital e os do trabalho, 50

As empresas resumem uma variedade de relações de poder da esfera familiar e da esfera das comunidades, com manifestações de autoridade e personalismo ou capacidade de trabalho em coletivização, com reconhecimento de diferentes grupos ou renovando códigos de discriminação, que as tornam representativas de outras esferas da sociedade, desde comunidades religiosas a identidade estamental. Incorre-se em graves prejuízos, quando se aceitam como dados as expressões de dirigentes de empresa que não têm claros seus papéis, se de proprietários, de gerentes ou, simplesmente, de uma representação temporária. Comportamentos tais como de desconfiança, que levam a reforçar o perfil familiar de grandes empresas, tornam-se obstáculos a que elas concorram com outras empresas que culturalmente superaram essas travas.

101


assim como, distinguir as condições culturais em que se busca eficiência, seja, os aspectos de tradição e do personalismo que estão impregnados no modo de operar de cada empresa . Inúmeras informações, coletadas de jornais e revistas, tanto como de pesquisas e entrevistas - jamais de livros - indica essa recorrência do poder personalizado e dinástico que envolve as grandes empresas contemporâneas, que impede, em todo caso, pensar, como se pressupõe na teoria ortodoxa, que a racionalidade das empresas seja impessoal, quimicamente pura. São informações que, tacitamente, desqualificam as abordagens funcionalistas como inadequadas para captar os processos de transformação das empresas no contexto das transformações mais amplas do sistema produtivo. Não há como desincumbir-se dessa análise, sem reconhecer a historicidade dos agentes sociais da economia, sem, portanto, qualificar seu perfil de organização e de operacionalidade, à luz das circunstâncias específicas em que eles estão situados. Os objetivos práticos e a ética com que são regidos são, eles próprios, produto de interações de seu contexto histórico. Nesse sentido, tanto suas práticas sucessórias como suas preferências técnicas e como sua ideologia, tanto sua linguagem como as tradições que geram, situam-se em grandes ambientes e em épocas definidas. O acerto das colocações de Hegel sobre grandes experiências culturais revela-se, mais uma vez, atual. Isso torna necessário rever os critérios com que se julga o desempenho das empresas. Produzir lucro, desenvolver capacidade de gerar lucro, ou desenvolver capacidade de aumentar o valor controlado em patrimônio.A eficiência exprime, sempre, uma relação de uso de meios com certos objetivos. É preciso que as empresas tenham clareza sobre seus objetivos. 51 Nesse sentido, pode-se pensar em eficiência em relação com situações específicas, em que se comparam desempenhos em condições socialmente equivalentes. Eficiência em termos genéricos só pode ser concebida num ambiente não social - físico - em que se consideram razões de potência e força e em que o movimento é uma resultante. O uso do conceito de eficiência no campo social exige que se esclareçam essas condicionantes, bem como os motivos que animam a produção e os resultados que os capitalistas pretendem alcançar. A eficiência tem que ser situada em relação com o sentido de finalidade dos empreendimentos. Difere, portanto, se se trata de reproduzir capital realmente, ou se a reprodução do capital está condicionada pela necessidade de empregar alguns parentes, ou de satisfazer alguns preconceitos étnicos e religiosos. No ambiente social o movimento é inerente à essência dos protagonistas sociais. Não há sociedades nem pessoas que não se movam ou não tenham que resolver seus problemas de sobrevivência. A partir da colocação de G.E. Moore (1926) sobre a sobrevivência como o principal móvel das ações humanas, torna-se necessário um equivalente representativo dos problemas diferenciados de sobrevivência para os diversos grupos integrantes de sociedades concretas. Noutras palavras, como se resolvem os problemas de sobrevivência dos diferentes grupos integrantes de sociedades específicas, especialmente, daquelas mais desiguais, ou onde há mais pobres. 51

Aspectos tais como de vaidade e de necessidade de status frente às formas sociais pré-capitalistas, aqui imbuídas de vestígios do escravismo, surgem como limitações quase insuperáveis para que as empresas alcancem um desempenho realmente objetivo em termos econômicos.

102


A empresa situa-se além da sobrevivência, com um móvel principal - o lucro contraditório com uma dependência desses problemas essenciais. A sobrevivência pode estabelecer ditames não compatíveis com a busca de lucro, como por exemplo, a preferência por produzir alimentos de baixo preço mas essenciais à alimentação, tal como foi verificado em comunidades camponeses em pobreza crônica em diversas regiões latinoamericanas. A continuidade entre a luta pela sobrevivência e a busca de lucro, entretanto, é a capacidade de agir com objetividade, isto é, em função dos dados objetivos dos fatos que se apresentam, antes que pelas preferências pessoais de cada um. Em princípio, a capacidade de reagir com objetividade é um traço essencial da empresa. que supostamente deve refletir sua capacidade de reagir oportunamente e de modo adequado aos desafios do mercado. Mas ela pode não ser parte de um comportamento determinado por dados de mercado, senão por fatores políticos que afetem o controle do mercado, tal como tem sido observado no comportamento de grandes proprietários de terras, para os quais a terra é um ativo de valor político e um apoio para obtenção de créditos, além de sua função produtiva, tal como observado, também, em diversas regiões latino-americanas. O tema da irracionalidade no comportamento das empresas torna-se imperativo, quando se reconhece o recrudescimento de mecanismos sucessórios familiares, com o aparecimento de verdadeiras dinastias, cuja preservação torna-se mais importante que a própria reprodução do capital. Institucionalmente, a empresa se diferencia de outras formas de organização do interesse privado, porque obtém a legitimidade dada pelo Estado para transferir interesses individuais para uma escala de relações coletivas. Tal legitimidade, portanto, é dada pelo pagamento de tributos e por uma aceitação de classe. O registro legal expõe, em princípio, as práticas das empresas a um controle público em princípio do Estado, que hoje pode estender-se a outras instâncias institucionais, através dos meios de comunicação. O realismo leva, portanto, a considerar que os controles sobre as empresas variam, segundo sua margem de poder, inferindo-se que a legitimidade das empresas varia, segundo sua identificação de classe e com os aparelhos de poder; e que as multinacionais não têm, de fato, o respaldo da legitimidade dada pelo Estado. Culturalmente, em cada ponto-momento de sua história, as empresas representam dois tipos de experiência: a que é detida por seus proprietários e funcionários; e a que se transfere ao âmbito institucionalizado de cada empresa. A duração das empresas é o primeiro requisito para que essa internalização de experiência se verifique. À parte desse movimento, a experiência das empresas fica no plano dos seus participantes, nas duas esferas representadas pelo capital e pelo trabalho; e se projeta, em parte, ao conhecimento que circula nos grupos sociais que detêm as empresas. Por isso, a ampliação do número de detentores de empresas traduz-se, adiante, em alterações na socialização desse conhecimento; e em continuidade de certas modalidades de experiência com a gestão de capital, que alimentam a formação de um poder familiar dinástico. A institucionalidade e a experiência constituem um primeiro referencial da operacionalidade das empresas, que se dá em relação a mercados específicos, que têm seus próprios modos de transformação. Uma empresa pode ser plenamente operacional num 103


ambiente econômico organizado em torno de transporte ferroviário, de capital fechado e de operações com um elenco fixo de produtos; e tornar-se menos operacional num ambiente de transações mais fluidas de capital e com um elenco variável de produtos, sujeito a freqüentes substituições. A operacionalidade das empresas depende, portanto, de sua capacidade de acumular experiências; e adiante, para usa-las para se adaptarem aos deslocamentos e reorganizações do meio em que operam. No limite, as ações das empresas modificam esse ambiente, modificando estilos de operação, políticas tecnológicas, ou mesmo de gestão de seu capital. O aspecto de qualificação dos dirigentes, sejam capitalistas ou contratados, tem um peso decisivo nesse aspecto, segundo se observa, entre as tendências para preservar estruturas familiares, ou para admitir o trabalho contratado de dirigentes. Algumas empresas têm modificado seu modo de participar no mercado, enquanto outras acompanham essas mudanças, adaptando-se mais ou menos. Essa diferenciação tornou-se flagrante na passagem da tecnologia dos comandos elétricos da produção à dos comandos eletrônicos, e ao aparecimento do tempo quase zero de decisões. Essas reduções dos tempos entre emissão e cumprimento de ordens, tornou necessário executores qualificados, capazes de evitar erros quando expostos a demoras na cadeia de decisões (VIRILIO, l993). Com essa capacidade, o principal objetivo da empresa é ampliar o capital prolongadamente ao longo do tempo. Mas é um objetivo a ser alcançado num ambiente eivado de contradições, porque como primeiro mostrou Adam Smith, o capitalista jamais pode deixar de decidir. Reproduzir o capital é um imperativo que o obriga a encontrar, sempre, aplicações bastante rentáveis para impedir a queda da rentabilidade média de suas aplicações. Numa empresa, não decidir é um modo negativo de gestão, por isto plenamente exposto a erros não previstos ou não escolhido. Para isso, deve reproduzir integralmente o valor acumulado. Os ganhos que sustentam as diversas operações chegam nas formas de receitas operacionais, patrimoniais e financeiras, correspondendo as primeiras aos resultados de suas atividades como produtora; os patrimoniais aos resultados de diferenciais de valorização em imóveis; e os financeiros, a resultados de transações com dinheiro, não dependentes da atividade produtiva. Tais conjuntos de necessidades de aplicação estabelecem aquele requisito da empresa - julgado fundamental por Wicksell (1896) - que é quantificar e datar corretamente sua demanda de capital. Como mostrou Furtado (1972), esse aspecto objetivo do problema supera em importância a questão subjetiva da criatividade dos empreendedores - alegada por Schumpeter em diferentes momentos - já que a gestão do capital já existente precede qualquer iniciativa sobre capitais adicionais a serem eventualmente incorporados. O essencial da operação das empresas é que elas criam aparelhos de reprodução do capital, que desenvolvem seu próprio dinamismo e passam a pressionar a demanda de capital. O meio operacional das empresas são os empreendimentos, que podem ser vistos como permanentes (explorar um hotel ou exportar soja etc) ou que podem ser vistos como projetos, quando se trata de programas específicos de investimentos. O miolo da gestão consiste em administrar os dados de capital da empresa e os de cada empreendimento, contrastando o custo do dinheiro necessário para reproduzir o capital do conjunto, e os custos e as receitas dos empreendimentos. Em ambientes econômicos em que se alargam os 104


espaços dos oligopólios e em que as opções de empreendimentos rentáveis são controladas mediante mecanismos financeiros e políticos, o pequeno capital precisa adotar estratégias de seleção de empreendimentos e de fluidez de decisões que antes eram uma característica do grande capital. Tais receitas comparam-se com conjuntos de custos, compostos dos da reprodução do patrimônio e dos causados pelas operações produtivas e pelas financeiras. Segundo o modo de organização de cada empresa, esses custos distribuem-se num componente fixo e outro variável, que aparentemente evoluem segundo cada empresa consegue harmonizar a gestão do patrimônio com a formação de renda. Mas a experiência mostra que a capacidade de perceber custos se aperfeiçoa à medida que os capitalistas são levados a operar com empreendimentos com diferentes horizontes de tempo. Essa aptidão corresponde a um sentido muito mais amplo de operacionalidade, em que se incluem, a capacidade de formar patrimônio e a de preservar valor. As empresas funcionam como instrumentos de acumulação, que tratam de ultrapassar as circunstâncias do comportamento cíclico da economia, assim como, procuram superar os aspectos de política econômica que são contrários aos seus interesses. Mas, como bem colocou Marx, as empresas são parte de sua circunstância, ou melhor, da situação de desenvolvimento das forças produtivas. O desempenho das diversas empresas depende, portanto, de sua capacidade de perceber custos, riscos e possibilidades de controle de mercado em tempo e espaço úteis. A sensibilidade a esses dados pode estar nos centros de decisão ou nas antenas operacionais do conjunto, mas obviamente o melhor desempenho só será alcançado quando todo o conjunto for igualmente sensível. A relação entre o centro de decisões e as antenas operativas é, por isso, essencial. A escolha de uma determinada linha de atividade depende de uma interpretação desse tipo, em que custos e riscos são considerados aceitáveis frente a certas perspectivas de resultados. A atitude das empresas perante custos tem sido guiada por sua visão de sua capacidade de modificar os custos vigentes no ambiente em que operam, ou de aceita-los como um dado de um sistema institucionalizado. As razões do imperialismo do século XIX, bem como das atuais transferências de localização para evitar pressões sindicais correspondem a uma mesma atitude, de contornar a rigidez institucional de sociedades que vêm os trabalhadores como detentores de direitos individuais equivalentes aos dos capitalistas. A escolha de atividades tem uma série de conseqüências em cadeia, que compreendem a composição dos custos, a distribuição das margens de risco e as expectativas de lucro. Alcançar diversificação, ou controlar a diversificação têm sido duas referências fundamentais de todas as empresas, mesmo quando seus dirigentes não são conscientes dessa realidade. Mas, ao mesmo tempo, é o primeiro passo na formação de uma experiência específica: a especialização, que é uma vantagem progressiva numa dada direção e uma restrição para outras linhas alternativas de atividade. Quanto e como cada empresa pode se especializar é algo que não pode ser avaliado in géneris, senão deve ser tomado como uma capacidade que se desenvolve ou que se retrai, segundo cada empresa 105


consegue adequar-se ao ambiente em que opera. Velhas empresas de exportação deram lugar a empresas mais novas, nem sempre mais competentes, entretanto, melhor adaptadas à linguagem dos tempos em que vivem. No quadro de suas experiências e especializações, a partir da qualificação de seus integrantes, as empresas formam-se uma imagem de seu universo de atuação, seja, do ambiente em que se situam seus riscos e perspectivas de lucros. Tal quadro é o referencial de sua política de participação no mercado. Daí, a importância de entender como se dão os mecanismos de transformação de observações do cotidiano em hábitos de trabalho e finalmente, em modos de organização. A objetividade com que se percebe o campo de atuação compreende a percepção das limitações impostas pelas características cíclicas e monopolisticas do mercado e das margens de previsibilidade com que se opera em cada linha de atividade. A competência das empresas jamais pode ser avaliada como uma conseqüência de seus atributos individuais, senão como um resultado de sua adaptação a essas condições ambiente, seja, envolve um movimento constante de adaptação e desadaptação a um ambiente tecnológico e financeiro cambiante, em que a previsibilidade deve ser reavaliada, tanto em termos dos dados do ambiente como dos de cada empresa em particular. Nesses termos, a principal questão operacional que se impõe às empresas, refere-se ao tratamento que cada uma delas dá a sua equação de risco; e ao modo como essa solução corresponde a um perfil de participação no mercado. Historicamente, elas têm desenvolvido estratégias próprias - financeiras, tecnológicas e administrativas - para reduzir suas margens de risco, seja eliminando-as ou transferindo-as a outros. Sua principal dificuldade consiste em estender essa evasão de riscos ao longo de suas transformações previstas, isto é, nos períodos contemplados em suas previsões de gestão de seu capital. Evadir ou reduzir riscos é um modo de agir que se complementa com a busca de receitas confiáveis. Ambos elementos levam a buscar um perfil de participação monopolística, que são as condições compatíveis com seus objetivos principais. Nesse sentido, não há fundamento racional algum para que as empresas desejem realmente competir, exceto um estímulo para forçar concorrentes menores a se endividarem para atualizar sua capacidade de produção. A relação entre grandes e pequenas empresas ressurge como um problema central do capitalismo periférico, onde se torna necessário reconhecer dados objetivos, tais como da alta mortalidade e baixa expectativa de vida das pequenas empresas, além de que a maioria esmagadora delas opera em faixas marginais de mercado. Mas evitar riscos é um tipo de comportamento, não um resultado específico, pelo que leva a certos perfis de comportamento, antes que a atos isolados. Destacam-se aqui os relacionamentos das empresas com os governos, com outras empresas e com os trabalhadores. Um exemplo notório foi a transferência do empreendimento Jari para interesses privados brasileiros, que se fez mediante a assunção de riscos por parte do Estado brasileiro. Outros exemplos encontram-se na composição dos pagamentos pelas privatizações no Brasil e na Argentina.

106


O aparecimento das empresas e suas transformações nos países latino-americanos estão ligados às associações de interesses que conduziram, simultaneamente, a organização da produção manufatureira eda industrial e as sucessivas reorganizações do Estado. Esses movimentos ficaram claramente configurados a partir de 1870, em conexão com as transformações do cenário internacional, onde se destacam a integração do mercado interno centro-europeu - conduzida pela integração da Alemanha - a expansão dos impérios coloniais no Oriente e na África e a integração do mercado norte-americano. No Brasil, no México e na Argentina, houve projetos nacionais de modernização, que envolveram a construção de um novo sistema de produção, com novos protagonistas e novo sistema de controle econômico e político, em que o Estado funcionou ativamente como criador de novos grupos de poder político e econômico, tanto criando novos latifúndios como renovando os existentes, apoiando a instalação de indústrias e dando concessões privilegiadas para a exploração dos sistemas de infra-estrutura. Esse tipo de comportamento do Estado foi essencial para criar a agricultura irrigada no Oeste e Noroeste do México, entre 1926 e 1960, depois de ter criado a produção açucareira no Sudoeste, entre 1870 e 1890. A constituição de empresas foi o modo encontrado pelos interesses privados, de captar os espaços de mercado que se abriam junto com o aumento da produção industrial nos países do “norte”. Distinguiam-se as empresas de capital local associado ou subordinado a empresas européias; e empresas de capital local, estas últimas geralmente operando nos mercados locais. Mas as relações de mercado se dão entre segmentos das sociedades postas em contacto, pelo que, não pode surpreender que em países não centrais, tais como o Brasil, a Índia e o México, haja empresas maiores, mais ágeis e mais agressivas que na maior parte dos países considerados como centrais. Cabe adicionar, nesse ponto, que as empresas estão datadas historicamente, e que sua pauta de comportamento reflete o momento em que foram criadas e o período em que se desenvolvem. Em todas essas situações, as empresas formaram-se ao abrigo de vantagens de diversos tipos, mediante as quais transferiram riscos para o Estado, ou para outros setores da sociedade através dele. Evitar riscos foi aqui um objetivo alcançado mediante o estabelecimento de vantagens que vão desde simples isenções tributárias ao direcionamento da despesa pública. Tal perfil de vantagens varia de um país a outro, mas no essencial tem correspondido a uma preferência por situações em que a lucratividade seja protegida por um controle daquelas condições específicas que atinjam os interesses de cada empresa, definindo um estilo tendente ao monopólio. A questão do controle está ligada à do personalismo em suas diversas modalidades e às margens de despersonalização com que os detentores do capital de cada empresa podem conviver. Há, portanto, um problema relativo à qualificação e à identidade cultural dos capitalistas, que se coloca diante das alterações do ambiente financeiro, político e administrativo em que as diversas empresas se movem. A capacidade de decidir adequada e oportunamente depende dessa adequação de cada empresa ao meio em que opera, portanto, ao modo como ela transforma suas informações em encaminhamentos racionais e intuitivos. Na velocidade dos acontecimentos, em que uma empresa pode ser surpreendida pela necessidade de decidir imediatamente, não há como supor que suas decisões excluam um componente intuitivo. 107


A racionalidade da empresa forma-se em relação a condições objetivas de inserção na sociedade econômica, portanto, que é uma racionalidade formada sobre uma experiência historicamente formada e não é um estado sutil genérico de todas empresas. Se a empresa tem a vantagem de um tratamento preferencial - socialmente diferenciado - tende a aproveitar essas vantagens e defender os resultados que desse modo pode obter. Mas suas decisões estão impregnadas dos preconceitos e das marcas culturais, especialmente das marcas de dominação, que, finalmente, pré condicionam sua política de tecnologia e de relações com o trabalho. As observações sobre as diversas formas de autoritarismo que se reproduzem as empresas, sua recuperação de lealdades familiares e quase tribais, mostram a necessidade de rever as teorias do mercado que despersonalizam os eventos de concorrência. A concomitância entre a multinacionalização das grandes empresas e a formação de um mercado financeiro mundial especulativo, separou as funções de produzir e de negociar no mercado financeiro, abrindo espaço para uma nova perspectiva de tempo nos negócios. De um lado, fica a lógica de aplicações financeiras, que vê os dados de eficiência na produção como indicadores - de variado grau de confiabilidade - a serem tomados como dados de desempenho global das empresas, que as define como produtos. De outro lado, está a lógica da acumulação de cada empresa, que toma seus próprios dados de produção, junto com os de sua avaliação externa, como indicadores de desempenho a serem usados como referencial para a gestão de seu capital. Nesse quadro diferenciam-se as empresas que conquistaram os meios necessários para responder a sua própria demanda de capital, daquelas outras que dependem de financiamento em mercado.Trabalhar para o capital financeiro, ou fazê-lo trabalhar, são as duas grandes situações definidoras da situação atual e das perspectivas das empresas. Conclui-se pelo obvio. Há um processo de seleção de empresas, pelo que a análise das empresas é sempre a análise das empresas que sobrevivem.

13. Capital financeiro A formação do capital financeiro A expressão capital financeiro tem os dois significados de representar os interesses financeiros no processo de formação do capital e de descrever o capital dinheiro no mercado, onde ele é uma manifestação dos interesses incorporados no sistema produtivo e que controlam a produção. Assim, o capital financeiro é a expressão mais avançada do processo de acumulação de capital, em que o capital acumulado pode, tecnicamente, mudar instantaneamente de forma. Isso porque a forma financeira transcende as formas operacionais específicas dos capitais incorporados no processo de produção, levando o capital a uma situação em que é possível optar entre qualquer das oportunidades de aplicação rentável, ou mover-se entre denominações convencionadas de valor, que é o modo operacional do capital dinheiro que rende retorno em sua forma financeira. Os 108


interesses financeiros impregnam a agricultura e a indústria, mas estão colocados além delas, como uma representação dos grandes capitais em seu conjunto. Como os interesses financeiros podem ser visualizados fora de quaisquer aplicações específicas na produção, a análise econômica da esfera financeira organizou-se numa linguagem técnica própria, que reflete a mecânica dos usos de massas de recursos de capital em sua forma dinheiro, que aparecem desprendidos de sua relação com a produção de bens e de serviços. No entanto, essa é uma relação fundamental ao desenvolvimento do sistema em seu conjunto, pelo que deve ser examinada como uma referencia da explicação do funcionamento da esfera financeira. Há uma relação inescapável entre a progressão da produção de mercadorias e a progressão da geração de meios de pagamento para sustentar essa expansão. O estrangulamento na relação com o exterior, que apareceu como uma pressão na taxa de câmbio, tem um fundamento no modo desigual de expansão da capacidade produtiva, que modifica as necessidades de moeda nacional e de moedas internacionais conversíveis. Daí que o capital financeiro progride de modo diferenciado e com horizontes desiguais, entre as nações ricas de maior porte e as nações de menor porte e mais pobres. Isso faz, por exemplo, com que a economia estável da Dinamarca não possa atuar como centro da economia mundial, ou faz com que a economia do Uruguai não seja um centro de alta tecnologia. Há uma diferença fundamental entre as formas financeiras do capital pré-industrial e as da produção industrializada, em que as primeiras estão restritas às condições limitadas de reprodução do capital no comércio, onde os equipamentos constituem um conjunto que não precisa ser renovado junto com cada circuito de produção, comparado com as condições de reprodução do capital na indústria, onde a razão do capital imobilizado é mais elevada. Na prática, a necessidade de renovar equipamentos só aparece quando se pretende prosseguir numa mesma linha de produção. A seguir, há outra diferença essencial entre a perspectiva positivista, que vê o capital financeiro como uma entidade desprendida de todas as formas específicas de produção de bens materiais; e a perspectiva histórica, que contempla a heterogeneidade do capital, que vê o capital financeiro como um componente integrado ao sistema do capital em seu conjunto, que apesar de parecer isolado do sistema produtivo, se reproduz sobre as margens de renovação do capital produtivo. Mesmo quando o capital financeiro circula com velocidade e escala de tempo muito superior ao do capital engajado diretamente na produção, suas referencias objetivas de valor são extraídas das tendências do capital produtivo. A forma financeira do capital é tão antiga quanto o comércio, mas ganhou nova expressão desde que se estabilizaram moedas capazes de exprimir valor durante o tempo das transações previstas. As economias mercantis avançadas chegaram a ter moedas capazes de realizar a função de reserva de valor, mas não alcançaram a capacidade de gerar retornos do capital derivados de diferenciais de velocidade entre aplicações. A moeda tornou-se uma representação das relações econômicas de sociedades autônomas e não só uma representação pessoal de poder. Na análise da economia de hoje torna-se indispensável distinguir a diferença entre o dinheiro em geral, que é a expressão financeira que circula na esfera internacional, e as moedas específicas, com suas diferentes condições de conversibilidade e de sustentação de valor. Todas as moedas estão sujeitas a condições de 109


conversibilidade, de variáveis extensão e visibilidade. Até mesmo as principais moedas, como o dólar e o euro, enfrentam restrições para operarem fora de sua esfera direta de influencia. Com o desenvolvimento da produção manufatureira, o capital financeiro encontrou novos espaços para se expandir, com a referência de produtos em qualidade e quantidade previsíveis, que permitiram transações em maior escala e transações a futuro. Mas o desenvolvimento do capital financeiro se mostrou em sua inteireza no ambiente da produção industrial, onde a regularidade da produção se somou ao aumento conjugado do uso de equipamentos de apoio, que passa a constituir um mercado complementar, que se torna mais importante que o mercado original. Observa-se que a principal base para lançamento de títulos que sustentariam uma captação de investidores privados foram os investimentos em sistemas de serviços de utilidade pública, já seja realizados pelos governos ou mediante concessão a capitais privados. Na economia moderna, em que a industrialização da produção trouxe efeitos generalizados de progresso dos transportes e das comunicações, o capital financeiro surge na composição dos interesses industriais e dos bancos e se desenvolve rapidamente, mediante duas operações principais, de desenvolver aparelhos operacionais e de criar oportunidades de aplicação especulativas. A industrialização da produção resulta no aparecimento de diferentes regimes de uso de dinheiro nos diversos setores da produção, fazendo com que a demanda de capital seja um indicador central na equalização entre os diversos tipos de investimento e nas decisões das empresas frente a renovação tecnológica. Os aparelhos operacionais compreendem instituições especializadas, tais como os bancos centrais, os bancos de fomento, as casas de investimento, assim como compreende os modos de operar entre empresas, entre o governo e as empresas e canalizando os capitais de investidores individuais. A criação de bancos centrais - durante as décadas de 1940 e 1950 - foi uma política do sistema financeiro ocidental liderado pela Grã Bretanha e pelos EEUU desde a fundação do Fundo Monetário Internacional, como medida básica para criar o ambiente de segurança financeira necessário ao desenvolvimento do capital financeiro. Desde então, a operação do capital financeiro se faz mediante uma combinação de dados da experiência e de expectativas educadas, 52 em que prevalece um comportamento defensivo por parte dos grandes capitais que operam, basicamente, em ambiente de oligopólio. Os operadores de crédito criam produtos financeiros, que tomam determinadas moedas como referencia, mas deixam entrever o problema mais amplo de equivalência entre moedas. O capital financeiro se desenvolve desde a segunda metade do século XIX, a partir do lançamento de títulos sobre mercadorias em trânsito, que se tornaram negociáveis,, justamente, dada a previsibilidade dos tempos dos transportes mecanizados. O controle do tempo das transações sustentou a previsão dos períodos de amortização dos capitais aplicados. Os investimentos dos governos nos sistemas de infra-estrutura geraram massas 52

Preferimos esta expressão à de expectativas racionais usada pela análise neoclássica, por entender que uma boa parte das expectativas decorre de referências que não podem ser aceitas como racionais.

110


de papéis negociáveis e o sistema econômico passou a poder operar comparando riscos e lucros do capital imobilizado na produção com os riscos e lucros nas aplicações financeiras, onde não há acesso ao comando direto do capital. Ao cabo dessa evolução, o capital financeiro se entende hoje como a expressão do capital dinheiro no mercado e como a manifestação dos interesses financeiros que se organizam no controle da produção e da acumulação. Há uma diferença fundamental entre o componente financeiro do capital, que está presente em todas as formas de capital, e o capital financeiro como tal, que se vê como uma entidade desprendida de todas as formas específicas de produção de bens materiais, entretanto que depende delas para se reproduzir. Na economia de hoje, o capital financeiro como tal surge de uma convergência de interesses bancários e industriais, na forma de garantia de dinheiro a preços preferenciais para a indústria e de garantia de aplicações rentáveis para os bancos. 53 É produzido mediante processos que tornam a produção em geral cada vez mais indireta, que diluem seus custos locacionais e ampliam as oportunidades de rentabilidade do capital em sua forma financeira. É um processo que descola de um movimento de monetização do sistema produtivo e que está sujeito aos movimentos cíclicos da acumulação de capital, tal como qualquer outra parte do sistema produtivo. A expansão do capital financeiro tem assumido novas formas operacionais, que levam à criação de novas estruturas institucionais e de novos instrumentos, tal como foi a criação de bancos centrais e de acordos internacionais de política monetária e financeira. Essas transformações do ambiente financeiro alteram as condições de acesso das empresas e das pessoas a crédito. Mas essas instituições, tal como os próprios bancos centrais, não são imutáveis, e têm mudado de funções, para adaptarem-se às necessidades da política econômica, quando precisam responder a problemas diferentes daqueles previstos quando de sua criação. De qualquer modo, o capital financeiro representa o poder de compra do capital, separado das obrigações dos investimentos específicos e que se coloca na lógica da reprodução do valor do capital, antes que na lógica da produção. No entanto, como esse poder de compra depende de que haja que comprar, a reprodução do capital financeiro depende do desempenho da economia real. Essa tem sido uma condição da reprodução do sistema capitalista em seu conjunto, que depende de uma gestão mundializada dos energéticos e que tem os conflitos militares como saída para repor em circulação ativos que ficam imobilizados na forma de material bélico estocado. O desenvolvimento do capital financeiro trouxe algumas modificações ao funcionamento do sistema de produção em seu conjunto, que são as do financiamento intra empresas, a securitização dos papéis de crédito e a desintermediação das transações. De um lado, há uma concentração do capital dos bancos e de outro lado há empresas que passam a 53

É lugar comum que a análise da formação do capital financeiro foi estabelecida por Marx, mas que ela foi primeiro formalizada por Rudolf Hilferding em seu O capital financeiro. Desde então, desenvolveram-se diferentes linhas de análise do capital financeiro, com uma linha da genética do capital, que prosseguiu nos delineamentos postos por Marx e outra linha de análise operacional, que se volta para explicar o mercado de capitais e que vê o capital financeiro em sua forma operacional, mas que não o considera como uma expressão de interesses.

111


operar como bancos. Essas alterações da composição do crédito redistribuem a capacidade de investir e de consumir, tornando-se um controle da acumulação de capital, que se sobrepõe à formação de lucros no sistema produtivo. Tudo isso significa que a expansão do capital financeiro tem um determinado perfil de efeitos nas diversas economias nacionais e no modo como elas se articulam internacionalmente, que aparece na forma de sua capacidade de fixar sua própria formação de capital e de atrair capitais. Essa nova expansão do capital financeiro internacionalmente articulada opera com duas referências principais, que são o potencial dos mercados nacionais para absorverem o capital financeiro em suas formas mais fluidas e a capacidade dos gestores do capital financeiro de encontrarem uma relação entre as aplicações produtivas e as financeiras, que resolva de modo satisfatório entre lucro e risco.Coloca-se, portanto, que as duas principais referências da expansão do capital financeiro são o potencial dos mercados nacionais e a capacidade das empresas de operarem com capitais obtidos no mercado. O mercado financeiro se expande na medida em que há países e empresas capazes de sustentar emissões de papéis e em que há negócios que podem ser rentáveis com as taxas de juros do mercado. Está claro que não necessariamente há negócios satisfatórios suficientes para todos os capitais e que o controle das oportunidades de aplicação é o que garante as posições vantajosas do grande capital. Uma diferença fundamental entre a lógica do capital financeiro e a dos capitais envolvidos diretamente no processo produtivo, é que os interesses vinculados à forma financeira do capital não têm vínculo algum com os períodos de imobilização forçada dos empreendimentos, exceto pelo que essa imobilização afeta as referências de cálculo entre projetos. Na perspectiva do capital financeiro todas as formas específicas de produção são substituíveis, segundo um cálculo que compara custos, riscos e lucros previsíveis, independentemente da vida útil dos equipamentos. As decisões do capital tornam-se, cada vez mais, decisões comerciais, isto é, decisões que se toma na perspectiva de negócios, antes que decisões baseadas em referências de produtividade. Há, portanto, uma lógica de decisões nas aplicações de capital financeiro, que quebra as noções de prazo da análise de custos/benefícios e que enfrenta um problema fundamental dos capitalistas, que é o de decidir entre investimentos que não são tecnicamente comparáveis uns com os outros. A comparabilidade das aplicações de capital só se revela quando é possível comparar retornos e riscos, e não se percebe quando se comparam apenas retornos, como quer a teoria neoclássica da taxa interna de retorno. Daí, surge um problema fundamental da gestão do capital em geral, que é o de comparar retornos do capital dinheiro com rendimentos de aplicações produtivas. 54 Na prática, para cada capitalista, as opções de aplicação financeira são todas comparáveis umas com as outras, mas, quando se comparam aplicações financeiras com aplicações na produção, encontram-se problemas de risco e de incerteza, que não podem ser reduzidos

54

Esta observação limita as possibilidades de uma explicação meramente financeira do capital financeiro. É um aspecto da heterogeneidade do capital, que limita algumas teorias, tal como a da taxa interna de retorno (Solow, 1972) à posição de teoria de uma situação particular, não generalizável..

112


aos termos das aplicações financeiras, porque envolvem fatores de risco que só se visualizam em períodos e não em momentos específicos. A forma financeira do capital revela o essencial do capitalismo avançado, que é a flexibilidade da mercadoria dinheiro e seu papel na criação de novas mercadorias. O sistema não pode funcionar sem criar novas mercadorias e não pode criar novas mercadorias sem separar dinheiro do circuito da reprodução do capital. Na análise do capital financeiro torna-se necessário ater-se à perspectiva sistêmica de Marx, que vê o capital financeiro por seu papel no funcionamento do sistema produtivo em seu conjunto e não só como uma mercadoria financeira. A lógica do capital financeiro Esse é um aspecto essencial do funcionamento do capital financeiro na economia internacionalizada de hoje, que tem que ser apreciado como um aspecto macroeconômico que precede a identificação de problemas microeconômicos específicos. A transformação do ambiente financeiro modifica as condições em que o movimento de acumulação se faz compatível com a reprodução do sistema, ou em que ela desemboca numa tendência à crise do sistema produtivo. As ligações internacionais que resultam em endividamento são conduzidas pelo Estado ou terminam como uma responsabilidade que se localiza no Estado mas, que na verdade resulta do movimento de expansão dos segmentos mais avançados do capital. O capital financeiro se expande junto com a maturidade do sistema, que só se alcança com a internacionalização do capital. A expansão do capital financeiro é a principal marca do capitalismo avançado e resulta da formação de valor em forma monetária ou simbólica que descola dos circuitos da reprodução do capital comprometido com a produção de bens. As análises desse fenômeno que se basearam nos movimentos da esfera industrial, viram o capital financeiro como algo diferente do funcionamento regular do sistema de produção. As transformações do sistema desde a década de 1960, que pode ser tomada como a década da informatização, levam a tratar esse problema de modo contrário, isto é, que o sistema capitalista passa a se reger pela lógica do capital financeiro. Aparentemente, o grande diferencial do capital financeiro desde a década de 1960, é que o desenvolvimento das comunicações permitiu uma integração quase instantânea do mercado, resultando em correspondente flexibilidade de decisões no relativo ao manejo dos prazos de imobilização dos capitais e no relativo a sua capacidade de alterar o padrão de diversificação de seus investimentos. No entanto, esses movimentos são mais conseqüências da mudança no padrão de acumulação que surge, desde a década de 1950, com a abertura de novas possibilidades de expansão dos grandes capitais no ambiente do após guerra, que permitiu que se canalizassem recursos para dar novos usos aos equipamentos montados para produzir armas e munições. Eventos tais como a revolução verde foram complementares de esforços para aumentar as vendas de equipamento agrícolas.

113


O aumento de circulação induzido por essa esfera de financiamento público resultou numa maior massa de operações financeiras na esfera privada, que, por sua vez, acelerou o aparecimento de empresas multinacionais. As multinacionais forçosamente teriam que operar com cestas de diversas moedas, tornando-se o veículo por excelência da expansão do capital financeiro associado à expansão do fundo público. O financiamento preferencial para modernização em geral, e, em particular, para a industrialização, tornou-se o elo de ligação entre a esfera pública e a privada, dando ao Estado uma função de apoio ao movimento de acumulação, que foi, equivocadamente, confundido com uma função de Estado de bem estar ou de Estado assistencial. A maior novidade do capital financeiro é sua desterritorialidade, que lhe permite operar nas formas mais avançadas de investimento com capitais que se formam em economias nacionais atrasadas. Isso permite às empresas gestoras de capital – bancos e empresas financeiras em geral – operarem com capitais que não dependem imediatamente do sistema produtivo, tal como acontece com os capitais que migram para os países mais ricos e com os capitais sonegados de tributação regular em geral. Não há como negar que o sistema capitalista avançado opera com elevadas margens estruturais de evasão e de contravenção, que geram grandes massas de recursos, que se somam aos capitais que se formam em setores que não têm capacidade própria de reproduzirem seu capital. Mas, se a desterritorialização constitui uma vantagem para os que controlam o capital financeiro, ela determina uma outra necessidade, de contar com instituições capazes de acompanhar as mudanças nas técnicas operacionais do mercado financeiro. O que se vem denominando de desintermediação significa, realmente, que outros tipos de empresa passam a operar com funções de financiamento, portanto, a gerar recursos separados de seus negócios originais, com a vantagem de atrelar sua clientela de suas operações normais de comércio aos seus negócios financeiros. A chave da questão consiste em reconhecer que as instituições são tão históricas como qualquer outro componente do sistema. O capital financeiro opera basicamente com três tipos de papéis, que são os títulos emitidos por governos, baseados em indicadores macroeconômicos de desempenho, os títulos de empresas, baseados em indicadores de patrimônio e rentabilidade e os títulos de especulação, que são lançados sobre expectativas de mercado e que são operados como mercadorias indiretas, isto é, que dependem dos títulos dotados de ancoragem própria. A aceleração do tempo do mercado financeiro surge da capacidade de antecipar padrões de comportamento e logo, de ter a capacidade de equalizar esses padrões. Há, portanto, algumas questões substantivas, relativas aos modos operacionais do capital financeiro e ao potencial dos mercados em que ele opera. O capital financeiro flui para os mercados compradores, mas a concentração de capital precisa de opções de aplicação onde se realize a reprodução do capital, isto é, o capital financeiro precisa encontrar saídas em aplicações reais. Por isso, o endividamento termina por funcionar como um estímulo para os prestamistas, que precisam ter de quem cobrar. O sistema internacionalizado fluiu para um modo de funcionar em que o endividamento se torna organicamente integrado na articulação das instituições privadas com as públicas, onde a esfera pública funciona como eixo articulador da esfera internacional. Não se pode ver de

114


outro modo a função do sistema federal norte-americano, que opera de fato como a principal referencia internacional. A expansão do mercado financeiro resulta de um conjunto de fatores, dentre os quais a compatibilidade da hegemonia norte-americana com a integração do mercado de títulos e a atração que a economia norte-americana exerce sobre os capitais dos países com pequeno mercado financeiro, ou com mercados financeiros com pequeno potencial de crescimento. Os efeitos em cadeia da concentração bancária e da fluidez dos pequenos capitais permitem que os grandes bancos funcionem como meios de transferência de recursos para os grandes centros de aplicação de capital, que é o mesmo que dizer, que os bancos funcionem como instrumentos das megaempresas transnacionais. Longe da velha tese de que os países e regiões subdesenvolvidos encontram-se nessa situação por falta de capital, verifica-se que eles são objetos de processos de subdesenvolvimento porque sua formação de capital é drenada para o exterior através do sistema financeiro. A própria engrenagem do sistema financeiro torna-se um espaço que reflete as conseqüências do movimento de concentração do capital, onde se desenvolvem relações de dependência entre os grandes bancos e as empresas, resultando em diferenciais de condições de financiamento que, finalmente, se tornam decisivas nas condições de competitividade nos diversos setores da produção industrial e do comércio. O desenvolvimento do capital financeiro foi alavancado por uma sucessão de inovações institucionais, que começaram com a criação dos bancos centrais, logo de um movimento de modernização de bancos públicos, de regulamentação das práticas financeiras e finalmente, de modificação das funções dos bancos centrais, que passaram a operar em sintonia com uma política internacionalmente definida pelo Fundo Monetário Internacional e pelas autoridades financeiras norte-americanas. A configuração e a expansão das empresas multinacionais desde a década de 1960 e em conjunto com as transformações dos sistemas de transportes e de informações, deu novos instrumentos para a decolagem dos interesses financeiros em relação com investimentos específicos na esfera da produção. Trata-se, portanto, de observar as tendências financeiras do sistema antes que de considerar que a história do sistema está concluída. As tendências financeiras são parte de um quadro historicamente construído, onde o fator determinante de hoje é a supremacia norte-americana, com seus condicionantes asiáticos e com a delimitação de espaços mundiais de poder. O aparecimento de moedas internacionais, especialmente do euro, representa uma modificação radical do sistema financeiro, justamente, quando o problema de sustentação das moedas nacionais se revela como uma limitação estrutural da capacidade das economias nacionais para conduzir o crescimento de seu produto interno bruto. O desenvolvimento do capital financeiro trouxe algumas modificações operacionais para o sistema de produção em seu conjunto, que são de financiamento intra empresas, de securitização dos papéis e de desintermediação das transações. Alguns bancos perdem algumas funções e algumas empresas passam a operar como se fossem bancos. As modificações do regime de financiamento correspondem a diferenças de velocidade nos retornos dos investimentos, que reajustam as posições das empresas em sua participação no mercado. Torna-se mais claro que antes que o mercado internacionalizado de capital é um

115


ambiente que funciona como um conjunto de circuitos de diversas velocidades, em que as maiores velocidades se concentram nas transações internacionais e nas do grande capital. Tudo isso significa que a expansão do capital financeiro tem um determinado perfil de efeitos nas diversas economias nacionais, que aparece na forma de uma capacidade de fixar sua própria formação de capital e de atrair capitais de outros países, ou de falta de capacidade de fixar sua própria formação de capital e de ficarem subordinadas às flutuações dos interesses de capitais voláteis. O mecanismo de dependência instala-se nessas alterações da capacidade dos países para reterem e atraírem capital, ou em sua incapacidade de evitar a saída de capitais. Considerar que não se pode controlar a saída de capitais não significa que não se perceba que torna o endividamento um fator negativo.A principal potência econômica pode ter a maior dívida porque atrai capitais, cuja entrada compensa o endividamento. A desnacionalização do sistema bancário desempenha um papel fundamental no aumento da vulnerabilidade das economias nacionais aos movimentos internacionais do capital especulativo. Os países são induzidos a praticar políticas que não obstruem os movimentos do capital especulativo, mas, a seguir, tornam-se reféns da erraticidade desses capitais, que derivam em função de lucratividade que pode ser transitória. Desde a década de 1980, os países não centrais têm sido constrangidos a praticarem políticas econômicas de curto prazo em forma contínua, perdendo capacidade de controlarem suas políticas a curto prazo com uma visão a médio e longo prazo. Por último, a capacidade dos interesses de grande capital de operarem por separado do sistema bancário organizado, desempenhando funções bancárias através de suas casas comerciais e operando mediante compras de participação em investimentos, dá um outro sentido ao capital financeiro, onde a gestão da rentabilidade financeira depende de uma participação indireta, entretanto central, na gestão dos empreendimentos produtivos. Volatilidade e concentração do capital financeiro O aspecto mais divulgado do capital financeiro tem sido sua volatilidade, ou a dificuldade de controlá-lo com os mecanismos do capital industrial. As condições operacionais da sociedade industrial avançada levaram a novos modos de desempenho financeiro, que ensejaram o desenvolvimento de instrumentos financeiros que deram novas margens de poder aos bancos e aos demais agentes financeiros. As condições Em sua forma financeira, o capital toma a maior volatilidade do mercado de capitais, que dá lugar à imagem superficial de que ele realmente se desloca entre a pluralidade de oportunidades que o mercado oferece. No entanto, essa volatilidade é apenas indicativa de certos padrões de comportamento, que seguem as tendências de concentração do capital das grandes empresas, com seus padrões de uso de diversas moedas e com seu ritmo de realização de novos investimentos. Em última instância, a volatilidade do capital financeiro depende dos programas de investimento, que dão a medida da capacidade de absorção de capital do mercado. Uma questão latente no funcionamento do sistema da economia mundializada é essa capacidade de absorção, que não é mais que a descrição da capitalização do sistema produtivo. A lógica do capital financeiro é a lógica da reprodução do grande capital e os

116


pequenos capitais individuais que se incorporam à massa de manobra de capital financeiro, passam a funcionar como parte dele. Essa capacidade de absorção define as condições para lançamento de títulos, que é a mola central do mercado financeiro. As empresas só podem contar com financiamento em mercado aberto segundo sua capacidade de pagar os juros prevalecentes, que, por sua vez, são o preço que pode ser obtido pelo dinheiro disponível. Nisso, evidentemente, há um jogo duplo, em que o dinheiro vai a mercado porque lá encontra um preço igual ou superior ao que seu possuidor é capaz de obter. No processo do capital não há razão alguma para reter dinheiro em aplicações menos rentáveis, ou de retorno mais lento que a média. Mas isso, paradoxalmente, canaliza o dinheiro para aplicações que são controladas pelos principais centros. No essencial, a reprodução do sistema depende de que haja setores cuja expansão seja capaz de pagar os preços do dinheiro que correspondem às aplicações anteriores. Os estudos do capital financeiro que se organizam para tratar da esfera financeira como de um setor, ou que separam o funcionamento financeiro do funcionamento da produção, passam por alto este aspecto do problema, que situa o funcionamento da esfera financeira como parte integrante da produção capitalista. A função regulatória desempenhada pelo capital financeiro na auto regulação da produção capitalista (Aglietta, 1983) é uma manifestação do modo como a produção capitalista cria uma esfera financeira, que corresponde ao seu próprio grau de desenvolvimento. O desenvolvimento de uma teoria da regulação torna-se uma contradição de termos, porque pressupõe que o mercado deve ser regulado por mecanismos que não são de regulação. A volatilidade do capital e a facilidade com que os interesses financeiros se adaptam para operar em condições institucionais incertas ou em todo caso, em condições que estão dadas pelos acordos internacionais, tem dado lugar a uma visão quase mítica do capital financeiro, 55 que parece dotado da capacidade de se reproduzir mediante antecipações dos investimentos e graças às modificações técnicas do conjunto do sistema financeiro e do sistema bancário. Assim, a análise financeira torna-se um produto técnico, cuja identidade se separa das condições operacionais do sistema produtivo como tal. Logicamente, há uma contradição entre a valorização dos ativos financeiros e as referencias de valor do processo produtivo, onde a queda do custo médio de produção nos setores de maior renovação tecnológica é compensada pelo custo crescente da amortização dos capitais comprometidos com os novos investimentos. A maior volatilidade favorece a concentração de capital, porque os bancos têm a capacidade de canalizar recursos para aquelas praças onde têm maiores expectativas de negócios e onde podem fazer suas próprias estimativas de capacidade de absorção de dinheiro por seus diferentes tipos de clientes. Os bancos não precisam intervir diretamente na seleção de projetos, mas de fato interferem na formação da taxa de investimento, ao vincular os custos do dinheiro aos riscos dos empreendimentos, e ao ligarem a lucratividade dos investimentos ao potencial de expansão do mercado. A concentração de capital torna-se 55

A imprensa dita especializada, do The Economist á Rede Globo, referem-se ao mercado como se ele fosse uma entidade guardiã dos interesses do grande capital, portadores de uma racionalidade acima de qualquer suspeita e de qualquer circunstância

117


a principal tendência do capital tecnologicamente avançado e do grande capital em geral. 14. Indústria A indústria como parte da produção capitalista Mais que nunca, a expressão indústria encobre uma variedade de situações e diferentes realidades, desde a mutação organizacional das antigas manufaturas ao segmento fabril de diferentes interesses de capital. A suposta clareza conceitual com que a teoria econômica se referia a esse campo de atividades na década de 1950, e quando se valia das idéias de Fourastié, Ford e Taylor, deu lugar à revelação de uma complexidade de interesses, técnicas e formas de organização, em que o núcleo duro desse setor deixa de ser a forma de organização, para se revelar como a gestão técnica de interesses financeiros. Com isso, logicamente, se descarta a pertinência da abordagem marshalliana de analisar indústria através de organização industrial, assim como se descarta a chamada visão sistêmica, que focaliza nos elementos de coerência do sistema, por oposição desconsiderando os elementos de contradição e de incerteza. Construir uma visão atualizada da produção industrial voltou a ser um tema polêmico, porque se tornou cada vez mais difícil traçar uma linha divisória entre a indústria e os demais campos da produção. A expressão setor industrial perdeu força, na medida em que a produção industrial abrange outras formas de produção e em que se reconhece que os processos industrializados são parte de atividades de produção de serviços. A indústria revela-se mais como um componente da produção em geral que um setor diferenciado dos demais setores. Ao longo da história do desenvolvimento do sistema produtivo e da formação da teoria econômica houve grandes mudanças na análise da indústria, muitas vezes confundindo seus fundamentos econômicos com os de engenharia da produção e perdendo de vista seu fundamento social e político. Confunde-se indústria com engenharia industrial. Surgiram simplificações da análise econômica da indústria 56 e acumularam-se diversos equívocos de abordagem e distorções de análise, que tornaram necessários alguns esclarecimentos conceituais iniciais sobre a complexidade inerente à produção industrial. A análise industrial é a análise da produção industrial. A indústria é o modo de produzir por excelência do capitalismo, que procurou reproduzir esse modelo na agricultura e em setores em que não há produção em série. As transformações da produção industrial jamais podem ser explicadas por separado das transformações do sistema do capital em seu conjunto. Mas a indústria tampouco funciona por separado do comércio, e ambos operam

56

Não é demais insistir na diferença entre as perspectivas da análise econômica, da administrativa e da análise da engenharia da indústria, especialmente porque na perspectiva econômica a produção industrial envolve uma relação capital/trabalho e um uso de recursos desigualmente renováveis, que não necessariamente se considera quando se examinam apenas os processos de produção ou a gestão de fábricas.

118


no contexto do capital financeiro. A produção industrial tem que ser comercializada e procura-se fazer com que nela aumente a velocidade de circulação do capital. Nesse esforço de esclarecimento, primeiro, é preciso esclarecer que são empresas, indústrias e fábricas. As empresas são as entidades de direito civil, detentoras de capital que conduzem a produção. A indústria é uma atividade que é realizada por empresas através de estabelecimentos produtivos de diversos tipos e escalas de tamanho. A indústria envolve as atividades de conceber, produzir e vender a produção. Os estabelecimentos produtivos são fábricas, que representam capitais historicamente datados, já que constituem formas técnicas de capital que, ou se renovam em sua base física atual, ou são substituídos por outros estabelecimentos tecnicamente atualizados. As empresas podem desenvolver diversas atividades, dentre as quais pode estar a produção industrial, ao lado de outras atividades, tanto de modo complementar, como apenas em paralelo. O essencial da empresa é a reprodução de capital, cuja forma essencial é dinheiro. As cifras relativas à atividade industrial geralmente são números da produção realizada por estabelecimentos, isto é, por fábricas. Daí, que tende a haver uma distância e mesmo uma contradição entre as observações que se formula a partir da observação dos dados dos estabelecimentos e as observações que se faz sobre as empresas.57 Os resultados técnicos das fábricas são apenas um ingrediente da movimentação de capital das empresas, que deve comparar custos e riscos e não apenas diferenças de rentabilidade. Obviamente, a questão dos riscos se apresenta de diferentes modos para as diversas empresas, segundo sua escala de capital e o tipo de mercado em que operam. Em mercados oligopolizados as empresas tendem a operar de modo defensivo (Fellner, 1965) condicionando a formação dos lucros à preservação do capital. A renovação técnica tende a ser administrada de modo a reduzir a desvalorização. 58 O risco surge em cada empreendimento em particular, mas é um ingrediente do funcionamento da economia internacionalizada, que deve ser absorvido de alguma forma, sob pena de que se paralise a produção.

57

Estas observações nos levam de volta ao tratamento dado à indústria por Alfred Marshall e por Joseph Schumpeter. Esses autores, especialmente Marshall, trabalharam com as referências históricas da segunda revolução industrial, quando o descolamento das funções do capital financeiro ainda não tinha ganho a velocidade que veio a ter depois da segunda guerra mundial. Sua análise da estruturação da indústria, portanto, não incluía erros de regressão histórica, isto é, de analisar o presente com referências ultrapassadas. O mesmo não acontece com os autores de hoje que representam uma espécie de pós marshallismo enriquecido com observações shumpeterianas e sistêmicas. Nos anos desde a segunda metade da década de 1980 tornou-se necessário romper claramente com o formalismo representado por autores como Michael Porter e certos grupos dos chamados neo schumpeterianos, que se limitam a trabalhar com uma parte da obra de Joseph Schumpeter, ou que reduzem a dinâmica da produção industrial ao dinamismo das empresas específicas que realizam essa produção. Reafirma-se a necessidade de esclarecer a diferença entre uma análise interna e uma análise externa da produção industrial, bem como a necessidade de ter claro que a produção industrial é um componente necessário da reprodução ampliada do capital. 58 Essa tem sido uma regra da aviação civil, que tem operado com aparelhos tecnicamente superados, inclusive incorrendo em custos operacionais desnecessários, mesmo quando se encontra pressionada pelo estreitamento dos lucros operacionais.

119


Indústria em geral é a agregação sistemática de valor a determinados elencos de produtos selecionados, mediante uma transformação técnica e uma organização mecanizada da produção.59 Em vários sentidos, a indústria é a culminação de um processo de divisão do trabalho e integração tecnológica, que evolui desde as formas mais simples de artesanato, passando pelas formas de manufatura. A indústria desenvolveu-se a partir de formas de organização coletiva da produção, que permitiram a introdução de maquinaria, e onde se passou a desenhar a maquinaria para realizar funções específicas, estabelecendo as condições em que os trabalhadores participam da produção, distinguindo os papéis dos mais qualificados e dos menos qualificados. Por isso, na análise da atividade industrial é preciso, desde logo, reconhecer como essencial a diferença entre uma análise interna e uma análise externa da produção industrial, sendo que a análise interna vem a ser a análise da formação do capital e dos recursos humanos especializados que operam a indústria e a análise externa vem a ser aquela análise dos fatos da produção efetivamente realizada. Isso significa reconhecer como análise interna a análise das empresas que operam a indústria e como análise externa, aquela análise que se desenvolve sobre os dados da produção. É uma diferenciação decisiva, que põe de um lado a análise da formação de capital industrial e das formas de mercado com que esse capital opera; e que põe de outro lado a análise dos estabelecimentos industriais, com seus respectivos dados de estruturação técnica da produção, de organização sistêmica da produção, e, finalmente, de indicadores de desempenho dos estabelecimentos produtivos. A análise de empresas compara opções de aplicação para determinadas magnitudes de capital, considerando custos e riscos, enquanto a análise de estabelecimentos trata de custos, lucros e riscos específicos. A partir dessa divisão básica, verifica-se que a indústria aparece em dois planos no sistema produtivo, respectivamente, como uma parte organicamente integrada dos modos como o capital se materializa no processo produtivo e como um fato técnico especifico, que tem funções pré determinadas e invariantes. Assim, a questão relativa a imperfeições de mercado deve dar lugar a uma análise dos arranjos institucionais do capital, que compreende a formação de oligopólios e de monopólios, que, inclusive, podem ser processos transitórios, que mudam de feição ao longo do tempo. 60 Os aspectos institucionais da movimentação da produção industrial tornam-se mais importantes, porque determinam perfis de comportamento que pouco têm a ver com os critérios de racionalidade da produção fabril.

59

Referindo-se a Saint Simon, diz Giddens (1983, pp.25) “Na sociedade industrial a dominação coercitiva de uma minoria sobre a maioria, que tinha caracterizado as formas sociais precedentes, seria substituída por uma ordem livremente aceita por todos seus membros. O advento da sociedade industrial transfere o impulso humano ao poder da dominação da natureza”. Glosaremos aqui, dizendo que se trata da substituição de uma forma de coerção direta por outra de coerção indireta. 60 Descartam-se aqui como materialmente irrelevantes quaisquer observações sobre concorrência perfeita, que, obviamente, jamais houve em momento algum e em lugar algum. Em lugar de concorrência perfeita falaremos de operações em mercado aberto, que é onde todos os produtores têm a oportunidade de participar em condições equivalentes.

120


O que se vê, portanto, como um setor industrial é a materialização das atividades das empresas na indústria, que está sujeita a decisões que são tomadas por uma lógica do capital que antecede e transcende a perspectiva dos estabelecimentos produtivos. As características funcionais do setor industrial são os aspectos aparentes da operacionalidade do capital, cujo miolo é a combinação de financiamento e tecnologia. As empresas podem criar e transformar fábricas e podem mudar de linhas de produção. A análise da produção têxtil pode passar por cima do fato de que o elenco das empresas que realizam a produção têxtil pode mudar no período que se analisa, assim como pode mudar o próprio conceito de produção têxtil. A rigor, as empresas só permanecem em um ramo de produção industrial enquanto ele corresponder a suas condições de reproduzir seu capital de modo vantajoso; enquanto sua capacidade de mudar de ramo de produção depende de sua capacidade de se apropriar de tecnologia e de qualificação. Assim, as análises que não consideram essa capacidade de mudar de especialidade perde de vista, justamente, o segmento mais criativo do sistema produtivo. Distinguiremos a produção industrial propriamente dita e a industrialização da produção em geral, que é a difusão do modo industrial de produzir em outros campos de atividade. A industrialização da produção é o movimento geral que passa através da modernização da produção rural. Há uma tendência geral de industrialização na produção capitalista moderna, que entretanto não é irrestrita e que encontra espaços de produção em que a industrialização tem limites claros e outros em que há um retorno a práticas artesanais e de manufatura. A própria produção industrial passou por profundas transformações, desde a produção em linha, dita fordista, até a produção informatizada, com equipes baseadas em concepção de produção tecnologicamente flexível. O princípio clássico de divisão do trabalho compara-se com o imperativo de ter que manter o capital aplicado em condições suficientes para reproduzir a totalidade do capital disponível e não só o capital aplicado 61. Esse requisito torna-se um freio da industrialização, já que não necessariamente se cumpre em todos momentos e circunstancias. Hoje está claro que o tratamento desses problemas passa por uma socioantropologia das empresas enquanto entidades historicamente situadas, que nos permite avaliar as decisões das empresas como fatos culturais. A partir daí, cabe rever a presunção geral, que as decisões sobre tecnologia e administração das empresas são sempre racionais, portanto, que as escolhas de estilo de produção são guiadas apenas pela racionalidade do capital. 62 A seguir, distinguiremos algumas das formas básicas de organização da produção industrial, segundo alguns critérios que são escolhidos simplesmente porque não podem ser ignorados. Segundo um critério de participação das indústrias no sistema produtivo em seu conjunto, distinguem-se indústrias que produzem bens de consumo e indústrias que produzem bens de capital. As chamadas indústrias produtoras de bens intermediários são,

61

Esse requisito foi colocado por primeira vez por Adam Smith em sua “teoria do emprego dos capitais”, no Livro II da Riqueza das Nações. 62 A constatação de que a maioria esmagadora dos dirigentes das multinacionais vem de seus países de origem, bem como de que a maioria das grandes empresas latino-americanas é de propriedade familiar, corrobora esse argumento.

121


na realidade, parte da produção de bens de capital, onde aparecem como materiais semi terminados, que parecem ser parte dos bens de consumo. Segundo as condições de uso de tecnologia, as indústrias podem ser classificadas em indústrias que produzem tecnologia, indústrias que se mantêm no mercado das tecnologias novas, isto é, que têm as condições para se adaptarem à renovação tecnológica e têm os recursos para isso; e indústrias que operam nas faixas de mercado dependentes das anteriores, e que geralmente operam nos espaços de mercado que não são atrativos para as anteriores. Na prática as indústrias que não têm condições de se atualizarem tecnologicamente sobrevivem em função de imperfeições de mercado que são convenientes às indústrias tecnologicamente atualizadas. Assim, esta classificação resulta numa teoria da formação do lucro no setor industrial, onde tendem a conviver indústrias que reproduzem seu capital com diferentes taxas de lucro, mas onde não necessariamente os diferentes grupos de indústrias participam da mesma formação de lucros. Estes são os argumentos que nos levam a considerar que as políticas industriais baseadas em pequenas empresas são apenas parte de um argumento defensivo, que só se sustenta em condições em que as empresas capazes de se expandirem preferem não fazê-lo em virtude de uma opção estratégica, A rigor, as únicas pequenas empresas capazes de se manterem no mercado são aqueles que operam com um diferencial de qualificação que equivale a uma atualização tecnológica. 63 Outra classificação das indústrias refere-se ao mercado para o qual elas trabalham. Aí, distinguem-se indústrias que produzem para o mercado dos bens salário, isto é, que produzem para grupos de rendas moderadas e pequenas; e indústrias que trabalham para os grupos superiores e médios superiores de renda, tanto produzindo os bens e serviços que eles usam, como criando as condições indiretas para viabilizar o consumo dos grupos de rendas superiores. A articulação entre os grupos superiores e os inferiores, que está subjacente na teoria de Ricardo, reaparece como um elemento crítico do processo, que coloca as teorias de Marshall e de Schumpeter como casos particulares de uma explicação da indústria, antes que como teorias realmente. Historicamente, a indústria tem se desenvolvido mediante os impulsos distribuídos por setores estratégicos e mediante mecanismos comerciais que lhe permitiram induzir a demanda para seus novos produtos. A publicidade cumpre as funções de garantir alguns espaços de demanda e de desviar a atenção do público dos grandes contratos, que geralmente são realizados com os governos e pouco têm a ver com publicidade. As articulações entre as grandes empresas e os governos são o fundamento dos contratos que

63

A qualificação dos capitalistas e dos seus gerentes é um dado essencial do problema, especialmente em sociedades, como as latino-americanas, em que a maior parte dos empresários são pessoas de qualificação insuficiente e inadequada.

122


se realizam em torno de defesa nacional, que concentra a maior parte dos recursos movimentados pela indústria. 64 Os setores estratégicos são aqueles cujo crescimento tem maior impacto em outros setores que neles mesmos e que induzem mais mudanças nos demais setores. Alguns setores industriais são temporariamente estratégicos, enquanto outros têm mantido uma posição especial nas diversas etapas do desenvolvimento da produção industrial. Os principais setores que continuam sendo estratégicos para a indústria são os de energia e de transportes, que sustentam as diversas formas de produção.. Daí, que o desenvolvimento da produção industrial acontece em determinados ambientes do capital, que constituem pré condições para decisões sobre seleção de técnicas de produção, escala de tamanho dos estabelecimentos e escolha de logística de transportes. O capital estará propenso a avançar na agroquímica, quando os produtos agroquímicos representarem um espaço de mercado suficiente para garantir a substituição de usos tradicionais dos materiais da agroindústria, ou os usos diretos dos materiais da produção primária. Se não, como explicar o papel que ainda ocupa a queima de carvão nos Estados Unidos? O cerne da questão industrial, portanto, é a articulação de financiamento e tecnologia nos setores estratégicos, onde a progressão dos investimentos atinge o timing dos investimentos nos demais setores. É o que acontece com a indústria aeroespacial, tal como aconteceu antes com a construção de submarinos nucleares. O modo industrial da produção se diferencia de outras modalidades de produção pelo menos em dois aspectos, que são os de produzir produtos de qualidade técnica controlada e de planejar os equipamentos que serão utilizados para produzir os produtos que se quer ter. Assim, como a produção industrial não se faz sem a produção de novos equipamentos, é preciso considerar que a concepção, o planejamento e o projetamento de novos equipamentos são partes da continuidade do sistema produtivo na indústria. Como os investimentos nas principais linhas de produção requerem mais capital, aprofunda-se a relação, já percebida por Marx em seu tempo, entre a reprodução e atualização da maquinaria e a grande indústria. A questão da divisibilidade dos investimentos revela-se em sua real complexidade, que é muito maior que a da divisibilidade dos equipamentos. Podem fazer-se fábricas menores, mas os investimentos totais são maiores que antes. O desenvolvimento da produção industrial não se faz mediante variações graduais senão mediante saltos, rupturas e variações discretas na composição do capital, que resultam de eventos financeiros e tecnológicos, mas que, em caso algum, estiveram limitados à esfera tecnológica. Não há continuidade do cálculo econômico entre diferentes momentos dos investimentos, simplesmente porque cada nova geração de investimentos se organiza com referências de risco que já não afeta aos investimentos anteriores. 64

O complexo militar-industrial identificado por Wright Mills na década de 1950, ganhou novos ingredientes, no desenvolvimento das indústrias ligadas ao complexo das comunicações, que se organizou na esfera militar e devolveu produtos para a indústria de consumo civil, como é o caso dos equipamentos de localização.

123


Assim, as decisões de alterar a composição da maquinaria dependem da evolução das condições de participação no mercado e não de decisões restritas ao desempenho dos capitais já aplicados. Esta visão de que as indústrias operam num processo que tem como referência um horizonte móvel significa que as decisões das empresas operam com uma seqüência de avaliações de projetos e jamais com uma avaliação integrada de uma carteira de projetos. A renovação do cálculo econômico é uma referência para garantir a capacidade de permanecer no mercado mais que uma referência de projetos individuais. Como colocou Kalecki (1970), “os capitalistas só deixam de ganhar dinheiro quando deixam de investir e de consumir”. Não há como reduzir os movimentos de ajuste e expansão da indústria aos movimentos de amortização dos capitais investidos, porque a lógica da reprodução do capital obriga a pensar em termos de investimentos futuros. Os verdadeiros cálculos industriais são feitos sobre previsões de poder de compra, como colocou Schumpeter (1957), e não sobre taxas de retorno de investimentos já realizados como se infere da análise teórica de Solow (1967). Há boas razões para entender que o desenvolvimento da produção industrial mudou radicalmente desde inícios da década de 1970, no meio de profundas alterações no modo de operação e de concentração do capital financeiro e nas indústrias de transporte e na produção e distribuição de energia. Mudaram as condições de heterogeneidade do capital, que se desloca na direção daquelas áreas de atividade que se revelam mais aptas para combinar a renovação técnica com a qualificação do trabalho. Por isso, os novos setores industriais, tais como a aviação e a indústria aeroespacial crescem com vantagens incomparáveis com os setores tradicionais, em que a qualificação é mais um aperfeiçoamento que uma mudança. Assim, aprofundam-se as diferenças entre a produção industrial dos países mais capitalizados e os menos capitalizados, que não conseguem alcançar a transformação combinada de expansão e renovação que significaria o acesso a participar dos conjuntos industriais de tecnologia elevada. Em seus aspectos técnicos, a produção industrial tem passado por profundas transformações operacionais, dentre as quais destaca-se a passagem de comandos elétricos da produção para comandos eletrônicos – na virada da década de 1960 para a década de 1970 – e para comandos digitais da produção, já na década seguinte. Paralelamente, a produção industrial foi profundamente atingida por mudanças nos modos de transportes, que alteraram decisivamente as composições de custos de produção. Finalmente, as opções econômicas da indústria foram modificadas pela entrada de novos materiais, tais como cerâmicas e plásticos de alto desempenho, que tiveram efeitos indiretos notáveis nos usos de energia na produção. Os custos progressivos que se encontram para expandir a produção industrial, entre realizar algumas etapas selecionadas de uma cadeia de processos produtivos, ou de integrar a cadeia de um conjunto de processos produtivos, mostraram o contraste entre a concepção de complexos industriais que se formou na década de 1960, e os problemas de integração de cadeias produtivas, que se passou a ver vinte anos depois, de integrar os elos de cadeias produtivas que, na prática, se expandem em diversas direções. Certamente, há um problema 124


de demanda de capital por parte da indústria – visualizado por Knut Wicksell – que obriga as empresas a se comportarem segundo critérios de estratégia, para manter posição num sistema que muda de escala e de composição. O cálculo econômico da indústria A indústria é a grande marca da transformação da produção, e, provavelmente por isso, a expansão da produção industrial foi confundida com a expansão da produção capitalista, As transformações da organização social da produção têm sido conduzidas pela busca de opções de aplicação de capital, que em momento algum ficaram restritas à produção fabril. É preciso ter presente que as decisões de aplicação de capital na industrial foram tomadas em determinados contextos de opções, que mudam ao longo do tempo, e que significam ampliações ou restrições do leque de opções que estão ao alcance de cada capitalista. As opções de investimento aumentam ou diminuem, segundo seu aproveitamento se torna compatível com os objetivos econômicos dos capitais efetivamente engajados na produção em sua forma atual. Como as aplicações futuras dependem da recuperação de capital dos investimentos em curso, há uma continuidade econômica do processo do capital, mesmo quando haja descontinuidade tecnológica entre esses mesmos investimentos. Longe de comandar a produção capitalista, a indústria vem a ser um instrumento do capital, que usa a produção industrial tanto como a produção agrícola ou a de serviços, ou o controle da produção artesanal, para realizar seus objetivos de acumulação. Essa multiplicidade de formas operacionais é que permite que muitas grandes empresas nas nações desigualmente desenvolvidas como o Brasil, operem com uma estratégia de acumulação que compreende empresas em diferentes setores e níveis de desenvolvimento tecnológico, utilizando desde empresas de construção civil a indústrias petroquímicas e a empreendimentos agrícolas, integrados por uma estratégia financeira. A lógica da produção industrial surge da combinação de quatro elementos, que são a produção de bens de consumo, a produção de bens de capital, a produção de bens para consumo de grupos de baixa renda, ditos bens salário, e a produção de bens para os grupos de rendas médias e superiores, que estão fora do consumo para sobrevivência. A desigualdade de renda tem feito com que o consumo de bens de consumo cresça mais devagar que o crescimento da renda nacional em seu conjunto, ou que o crescimento da produção que depende desse consumo básico. O sistema de produção no mundo em geral tem crescido sobre os dados de demanda que resultam da combinação desse consumo dos ricos e dos pobres, que em seu conjunto corresponde a um determinado padrão de bens de uso intermediário. A produção industrial se realiza com um conjunto de pressupostos relativos ao que pode ser absorvido pelo mercado e ao que pode ser antecipado, pelo que há uma relação essencial entre custos atuais e custos possíveis e entre riscos atuais e riscos possíveis. Isso significa que o capital trabalha com expectativas de demanda que sustentam um mercado suficiente para sua expansão. Essa noção de mercado suficiente é essencial ao cálculo de cada indústria em particular. Objetivamente, o capital tem que separar essa visão clara de 125


seu cenário de probabilidades de tudo que vêm a ser projeções de intenções, mais ou menos mascaradas pela publicidade. A indústria como parte da produção internacionalizada Todos esses elementos facilitaram a internacionalização da indústria, o que quer dizer, tornaram a industrialização, cada vez mais, um tema do grande capital internacional, reajustando os espaços que podem proliferar em escala local e regional, com indústrias de escopo limitado. Reafirma-se a necessidade de uma análise do movimento do capital em seu conjunto, como sustentação da explicação do processo industrial. O controle financeiro da renovação tecnológica torna-se o foco da questão industrial, na qual, entretanto, ampliam-se os espaços de transformações seletivas baseadas em qualificação. A produção industrial se planeja, essencialmente, como uma produção para um mercado que pertence à esfera internacional, ou que pode projetar-se a ela. O pressuposto de mercado suficiente, que é parte das previsões de expansão de cada fábrica, carrega esse pressuposto de internacionalidade. Tradicionalmente, a análise econômica tratou o comércio exterior como um modo de completar a demanda para resolver expectativas dos industriais, que não seriam mais que suas projeções de intenções, que podem estar mais ou menos justificadas por suas experiências passadas. No entanto, o comércio internacional está longe de ser um mercado aberto a todos que dele queiram participar, e se constitui em sistemas de comércio organizados pelos grandes grupos de interesse que controlam massas de capital e conhecimento especializado, com mecanismos de apoio dos respectivos governos nacionais. Certamente, há uma importante participação de empresas autônomas de médio e de grande porte, que, entretanto, não abala os fatos básicos do comércio internacional, em que não há mais que seis grandes indústrias automotoras – que controlam as demais – e em que há umas quatro grandes fábricas de aviões, umas quatro gigantes da química etc.. Há uma intensa atividade de compra de participação em capitais de empresas relativamente grandes, mas que praticamente se processa na periferia dos grandes movimentos de capital. Os movimentos que acontecem na esfera da concentração do capital tornaram-se determinantes das estratégias de produção industrial, acentuando-se as diferenças entre aquela produção industrial que se programa e realiza pela inércia do setor, com mercadorias estabelecidas e com padrões técnicos dominados; e a produção que trabalha com o dinamismo da demanda, reagindo a ela e antecipando-se a ela; Como a demanda de produtos dominados já está configurada como parte dos cálculos anteriores do capital, a questão central do cálculo da produção industrial consiste em avaliar possíveis participações na esfera internacional, e em transformá-las em dados quantificáveis. Ora, como as previsões de novos produtos acontecem a partir dos planos de produção dos principais atores da produção internacionalizada, há um condicionamento do elenco de produtos, dado pelo elenco de participantes de cada faixa de mercado. Noutras palavras, o comando do mercado não se dá apenas pela escala de participação, senão pelo modo de participação.

126


A tendência à internacionalidade da indústria depende dessa capacidade de alterar o modo de participar de cada faixa de mercado, como adiante se transforma na capacidade de mudar de faixa de mercado. Tipicamente, é a passagem de faixas de mercado típicas da segunda revolução industrial, tais como o beneficiamento de alimentos e a produção têxtil, para faixas de mercado típicas do ambiente tecnológico de hoje, tais como a agroquímica e a produção de defensivos para a agricultura.. A indústria como parte de uma produção residual local No entanto, esse movimento de grandes interesses não cobre a totalidade do sistema produtivo, nem mesmo nos países mais ricos e tecnologicamente avançados. Em toda parte, há uma pequena produção industrial que escapa dessa tendência geral. De fato, grande parte da produção industrial fica à margem desse processo, atendendo segmentos de demanda que são deixados de lado pelo movimento central da reprodução do sistema de produção em seu conjunto. Nos países periféricos essa parte da produção industrial tem sido objeto de investidas de expansão de capitais originários dos países mais ricos, entretanto, que não esgotam esse segmento do sistema produtivo, que geralmente opera em setores em que a renovação tecnológica não é intensa e em que as relações pessoais diretas 65 têm uma influencia significativa na participação no mercado. Logicamente, esse segmento da produção pode ser considerado como residual frente à expansão do capital na indústria, no entanto, sua capacidade de renovação e sua vitalidade como supridor de grande parte dos bens e serviços a que tem acesso a maioria das pessoas, obriga a reconhecer que ele é residual frente aos interesses do grande capital, mas que representa uma parte essencial da sociedade desigual, que justamente fica fora dos objetivos de rentabilidade do grande capital. A resposta está no reconhecimento de que a sociedade capitalista de hoje, especialmente a sociedade periférica, funciona como um sistema duplo, em que a demanda dos grupos médios e superiores de renda se desenvolve com uma composição diferente da demanda dos grupos de rendas médias e inferiores, não só em termos de quantidades demandadas, como em termos de associação das compras com sobrevivência e de identificação das compras com variações da renda familiar. É um dado básico que as rendas familiares dos grupos de baixa renda praticamente não crescem, portanto, que seu efeito na operação da indústria é fixo.

15. Comércio e capital mercantil Uma compreensão do comércio

65

Não se pode ignorar que as vendas da grande indústria, inclusive nos países mais ricos, dependem de acordos com os governos e que os contratos com governo têm sido um dos principais modos de exercício de poder por parte das grandes potencias.

127


A análise econômica encontra-se hoje na necessidade de recompor suas referências da realidade, de modo a considerar a complexidade do quadro atual, compreendendo os componentes mais modernos da produção e aqueles outros, tradicionais, que se modernizam e constituem parte essencial do sistema produtivo. A simplificação da análise do desenvolvimento econômico que supôs uma industrialização que substituía as estruturas produtivas já estruturadas, não registrou que a principal crítica da subordinação econômica partia, justamente, de mostrar os mecanismos perversos do controle do comércio por parte de segmentos das economias mais avançadas (Prebisch, 1964). Esses mecanismos perversos seriam incidentais, ou seriam parte da engrenagem central da produção capitalista? O controle do comércio de produtos tradicionais é parte do movimento do capitalismo avançado, ou tornou-se um componente secundário da economia mundial? Para entender esse quadro, é preciso distinguir entre o componente de comercialização da produção de mercadorias em geral e o comércio como atividade separada da produção e que mobiliza trabalho regular e trabalho eventual. A comercialização da produção é um aspecto geral do sistema produtivo, compreendendo capitais mais e menos avançados e refletindo a complexidade do sistema em seu conjunto, enquanto o comércio constitui uma atividade que se organiza como um meio de mobilizar trabalho e interferir nas formas e nos hábitos de consumo. Nesse contexto coloca-se o papel de uma leitura histórica do comércio onde surge uma teoria do comércio com a teoria da divisão do trabalho e com a teoria das vantagens absolutas e relativas do comércio, que está no coração da análise clássica do desenvolvimento das economias nacionais. À luz dessas teorias, o comércio se desenvolverá na extensão e na profundidade que permitirem a divisão do trabalho e as vantagens relativas. Isso significa que o desenvolvimento do comércio levará a um aumento de transações que, por sua vez, induzirá o aumento da produção e esta, finalmente, levará a uma ampliação do comércio. Esse mecanismo funcionará segundo a distribuição da renda resulte numa disponibilidade de renda aos integrantes da sociedade, tanto capitalistas como trabalhadores. No entanto, esta leitura clássica do problema deixa em aberto duas questões fundamentais, Primeiro, aquela questão relativa à incorporação dos efeitos da concentração de capital na composição da demanda, em última análise, as tendências da demanda. Segundo, uma questão relativa ao mecanismo do comércio, segundo ele sofre os efeitos das mudanças de tecnologia e de composição do capital que ele mesmo induz. O tratamento da primeira dessas duas questões está embutida na teoria de Marx, na análise da contradição entre distribuição da renda e concentração de capital. A segunda deverá ser objeto de uma revisão atualizada, para que se chegue a uma explicação aceitável dos mecanismos de desenvolvimento das economias periféricas. Há uma teoria do comércio internacional desde o início da Economia Política e há uma teoria do comércio inserida na obra de Marx, mas não há uma teoria do comércio como tal, comparável a uma teoria da indústria, talvez porque prevaleça a concepção do comércio como atividade anterior e inferior à indústria, sem admitir que o desenvolvimento da indústria é, também, um desenvolvimento do comércio. O comércio internacional é uma parte do comércio total que se tornou o objeto quase exclusivo da análise dessa atividade, porque numa leitura superficial do papel do comércio na formação da renda parece estar além ou separado do restante da economia nacional, retendo uma capacidade mágica de 128


oferecer uma alternativa à limitação de mercado. Essa imagem, que foi instalada pelos primeiros economistas clássicos, continuou como uma referência especial da análise das condições do desenvolvimento das economias nacionais. Nesta seção, pelo contrário, procura-se alinhar algumas observações básicas sobre o comércio em geral, colocando as relações econômicas internacionais em outro capítulo. Para os brasileiros, como para todas as nações que surgiram de processos coloniais do século XVI, o comércio surge como uma atividade dividida entre um componente internacional e um componente de trocas locais, em que o primeiro se realiza mediante cadeias de produtos e circuitos de negócios definidos desde os grandes centros da economia mundial e o segundo surge de circuitos locais de trocas, alimentados por mercadorias produzidas com tecnologias locais. A rigor, o comércio internacional foi o móvel da investida européia na América e Portugal destacou-se por ser o primeiro a criar uma agricultura para o comércio. Mas o capital mercantil na América logo ganha os contornos de uma atividade matriz, que se irradia articulando diversos níveis de densidade de capital e de especialização, integrando segmentos de extrativismo e de mineração. O comércio surge como a atividade internacional por excelência, que penetra, progressivamente, nos ambientes locais, para captar trabalho, que transfere de atividades comunais tradicionais, ou que introduz, como parte do outro segmento do comércio internacional, que é a escravização. Esse processo prossegue sempre e onde há mercadorias que podem obter preços internacionais. O caso mais flagrante é o da exportação de couro, que aparece como a mercadoria de exportação, enquanto a carne tornava-se matéria prima para o comércio das carnes dessecadas e defumadas que foram oferecidas ao mercado interno desde o período colonial. Adiante, a comercialização regula o desenvolvimento das manufaturas. O primeiro impulso de industrialização morre na década de 1920, à falta de canais de comércio com a Europa. Paralelamente, são casas exportadoras européias que controlam a comercialização do cacau, do fumo e da borracha e que instalam sucursais no país, para se reservarem os lucros do comércio. O comércio nas Américas teve esse papel de indutor da produção capitalista e que operou, simultaneamente, em diferentes níveis de integração no mercado, desde as formas mais simples, em que apenas intermediou a venda de produtos já disponíveis, até as formas em trouxe novos produtos e organizou novas frentes de produção. O extrativismo e a mineração, com as modalidades de mineração artesanal, utilizaram formas de organização local da produção para alimentar as trocas internacionais e, desse modo, fazer a ponte do capital internacional com a produção local. Surgiu uma diferença entre o comércio que se concentrou nas principais praças exportadoras e o comércio que se organizou em cidades do interior, mesmo nas mais prósperas, que continuaram restritas ao ambiente econômico local. Nesse sentido, vê-se que a formação de um segmento capitalista moderno nos países latino-americanos, de 1880 a 1930 correspondeu a uma expansão do comércio internacional, exportando matérias primas para a indústria européia e alimentos para sua população urbana. O Brasil foi um caso à parte nesse conjunto, afirmando-se como exportador de artigos de sobremesa, como café, fumo e cacau. Num segundo plano, menos visível mas economicamente decisivo, continuaram as exportações de madeira, de diversas 129


partes do país, repetindo a combinação de atividades locais extrativistas com produtos integrados em circuitos internacionais de grande capital. A lista limitada de produtos de exportação e a falta de industrialização desses produtos transformou-se numa fragilidade das economias latino-americanas no momento em que as economias centrais pressionaram por uma modernização que resultava em ampliar o mercado para suas exportações de maquinaria e quando a passagem da hegemonia mundial da Grã Bretanha para os Estados Unidos significava uma diminuição brusca do desempenho do centro como comprador dos produtos dos latino-americanos. Esse foi o contexto histórico da doutrina crítica do desenvolvimento econômico e social formulada por Raul Prebisch na CEPAL em 1949 e que recebeu diversos ajustes do próprio Prebisch em obras posteriores, além da contribuição de diversas pesquisas institucionais. O comércio é o veículo de uma capacidade de impor produtos e modos de venda e de controlar o consumo. A multinacionalização do comércio completa um processo iniciado no século XVI, de conduzir a progressão do consumo segundo ela viabiliza a formação do capital mercantil. Aspectos técnicos do comércio O comércio é a parte da economia que mais resiste a uma definição técnica, porque compreende uma grande variedade de atividades, nas mais variadas formas de organização e níveis de tecnologia, e porque está ligado a todos os aspectos da produção. Comércio significa a comercialização da produção e significa uma atividade específica que transforma as trocas em meio de extrair valor dos produtores. Na composição do sistema produtivo hoje encontram-se todas as modalidades de comércio que foram praticadas desde o início da civilização, e, no modo de operar do comércio encontra-se a mais intensa renovação tecnológica. O comércio se apresenta em dois níveis, que são os da comercialização da produção e da realização de uma atividade especializada de repetição de trocas, pela qual se procura induzir produtores a que produzam determinados produtos e induzir consumidores a que consumam esses produtos. O comércio sempre procurou alterar padrões de produção e de consumo, na direção de produtos para cuja operação se canalizam recursos. Há uma circularidade entre a formação do sistema produtivo e o desenvolvimento do comércio, pelo que ele consegue despertar dos produtores de bens e de serviços. O desenvolvimento do capitalismo cumpre essa função, de aumentar a capacidade de resposta do sistema aos estímulos de demanda e de ganhar essa capacidade de intervir na formação da demanda. Assim, a rigor o comercia sempre esteve na base da industrialização e os países que se industrializaram garantiram vantagens específicas de comercialização. Numa leitura atual do significado econômico e social do comércio, é preciso distinguir pelo menos quatro aspectos prioritários a serem analisados, que são os de estruturação institucional do comércio, do mecanismo operacional do comércio, da seleção de mercadorias para comerciar e da articulação do comércio com os setores produtivos de bens. Esses aspectos se desenvolvem de diferentes modos, segundo as condições de desenvolvimento dos segmentos integrantes do sistema produtivo. 130


A estruturação institucional do comércio compreende seus componentes nacionais e internacionais, que refletem a composição do poder público com os interesses do capital privado internacionalizado. Hoje, os órgãos internacionais de comércio cumprem os dois papéis, de estabelecerem regras mínimas de acordo consensuais e de canalizar os conflitos de interesse até onde eles podem ser resolvidos pacificamente e ao menor custo. Obviamente, esses órgãos não superam os conflitos mais profundos, que se resolvem mediante mecanismos de pressão econômica, política e militar. Os temas de controle nuclear e do poder de dar subsídios à produção rural são exemplos cabais dessa situação. Por sua vez, a estruturação institucional nacional do comércio compreende componentes da esfera pública e da esfera privada, que se combinam, segundo o Estado se projeta em formas de governo que criam mecanismos de apoio ao capital organizado e segundo os interesses privados criam formas de empresa apropriadas para realizar as atividades que se propõem. Na esfera pública foram criados órgãos regulares, nos níveis federal, estadual e em alguns municípios, no modelo clássico de Secretaria de Indústria e Comércio e de Secretarias de Fomento ao Desenvolvimento, sem, entretanto, desenvolverem propostas específicas de política comercial. Na esfera privada há diversos órgãos representativos de interesses de classe desde as velhas Associações Comerciais – que congregam todos tipos de interesses privados – até órgãos específicos de representação de certos grupos de comerciantes, identificados por área de atuação ou por território. Mas, obviamente, a matriz institucional do comércio é muito maior que isso e permeia toda a função de negociação do governo. Os governos nacionais hoje operam mediante uma mobilização institucional voltada para atender seus interesses comerciais, em que a diplomacia tornou-se parte do aparato comercial do Estado e em que se ressalta o papel estratégico do comércio na viabilização da produção. Quanto ao modo operacional do comércio, ele não mudou muito desde os tempos dos fenícios até hoje e consiste numa repetição de trocas controladas de um conjunto de mercadorias, envolvendo a seleção dessas mercadorias e o controle do fluxo de dinheiro necessário para sustentar o fluxo de transações. O essencial do comércio é liberar dinheiro para novas trocas, isto é, retirar poder de compra das moedas com que trabalha, de modo a poder manter ou alterar o elenco de mercadorias com que opera. É preferível pensar em termos de um elenco de mercadorias selecionadas, que constitui um conjunto, por isso pode ser objeto de uma estratégia, que em termos de uma lista de mercadorias, em que as operações com umas mercadorias não afetam as operações com outras. O essencial do comércio é encontrar seus clientes, indo até eles ou atraindo-os. Isso sempre se fez mediante o uso de uma comunicação com os clientes atuais e potenciais, que sempre é uma linguagem especializada, que deve ser capaz de transmitir confiança. O comerciante procura projetar essa confiança ao por seu nome nos produtos. Por exemplo, o tipo de chá Earl Grey com a marca de Twinning´s. Por isso, a propaganda maciça é sempre uma arma a curto prazo, que só se justifica porque aponta a grandes retornos imediatos. Justamente, por não poder garantir resultados duradouros, torna-se a propaganda da propaganda, que procura vender vendendo o prestígio do próprio propagandista ou publicitário. Daí que, no mais profundo de seus desígnios, o comércio tende a ver todas as intermediações como males necessários, que, por isso, devem ser oportunamente 131


descartados. Isso acontece quando o comércio ganha o controle de relações diretas com clientes, que é o modo tradicional de reduzir seus custos. A seguir, há dois passos fundamentais no comércio, que são os de identificar e ampliar o elenco de parceiros de trocas e de ampliar e modificar a composição das trocas. O comércio move-se sempre na direção de aumentar o potencial de trocas, assim, procurando parceiros que podem aumentar suas compras e procurando mercadorias que podem afetar o conjunto das trocas. Por exemplo, o comércio de materiais de construção está ligado ao comércio de imóveis e a manutenção de imóveis propicia um volume de compras de materiais de construção que mantém o setor da construção civil. Descobre-se que há circuitos de negócios, que se expandem desigualmente, segundo a renda disponível aos grupos sociais consumidores desse tipo de produtos. Os negócios que se realizam com cereais representam em principio produtos que são de real utilidade social, enquanto os negócios que se realizam com uma infinidade de produtos supérfluos, para consumo individual e familiar, exploram, justamente, uma canalização de renda disponível que poderia ter usos alternativos. O comércio ganha com a proliferação das trocas e com o aumento da velocidade da rotação do capital, com reposição e substituição de mercadorias. A atividade depende de uma relação entre volume de trocas e quantidade de mercadorias armazenadas, onde o comerciante precisa ter o mínimo de mercadorias suficiente para sustentar o fluxo de trocas e a imobilização de capital não pode exceder o limite da liquidez necessária para conduzir os negócios. O segredo do comércio está, portanto, em harmonizar a quantidade e a composição dos estoques de mercadorias com os fluxos de vendas. Para isso, é preciso operar com uma seleção de mercadorias compatível com a sustentação da liquidez, isto é, o comércio tem que trabalhar com mercadorias que podem ser vendidas nos lapsos de tempo em que se realizam as compras de reposição de estoques. A seleção de mercadorias se faz mediante uma análise qualitativa – e não necessariamente subjetiva – da capacidade de absorção do mercado, em variedade e quantidade de produtos, onde o fator experiência tem um peso decisivo. Não se ganha muito com dizer que a seleção de mercadorias se resolve mediante estatísticas de venda, porque isso significaria negar a capacidade do comércio de substituir mercadorias. O viés industrial da teoria econômica fez supor que a expansão do comércio seria derivada da expansão da indústria, e que as transformações do comércio seriam um requisito da mecânica industrial da economia. Tudo que se disse sobre as alterações das participações dos setores na composição do produto social, desde Colin Clark (1949), toma como causas os efeitos do processo, que aparecem como um aumento da participação da indústria, concomitante com uma diminuição da participação da agricultura. É uma simplificação que não leva em conta o aumento de complexidade da economia rural, nem vê que o aumento de participação da indústria é parte de um movimento que abrange diversos componentes da produção de outros setores, tais como os transportes e a produção e energia.

132


Tendências recentes Depois da segunda guerra mundial deram-se condições de concentração de poder político na esfera econômica do Ocidente, que propiciaram a retomada da tendência geral de internacionalização do capital, que foi interrompida entre 1914 e 1945. No novo ambiente da hegemonia norte-americana configurou-se uma expansão dos negócios, diferente daquela propiciada pela hegemonia britânica, tanto pela maior escala do poder hegemônico, como pela fragilização dos países europeus. O fim do colonialismo tradicional reduziu, adicionalmente, os poderes dos europeus, enquanto alargava o mercado alargava o mercado representado pelas ex colônias. O desenvolvimento tecnológico liderado pelos Estados Unidos foi fundamental nesse processo. Assim, há um certo redescobrimento do comércio se delineia na década de 1960, 66 quando se vê que há tendências do comércio mundial, que refletem a reprodução da concentração de riqueza, resultando numa brecha estrutural entre os circuitos de comércio das nações mais ricas e os circuitos de comércio das nações que são periféricas à acumulação mundial do capital. A reprodução do comércio entre os mais ricos torna-se mais sensível ao aumento do componente de comércio entre economias emergentes, ou entre os paises mais ricos e os emergentes, mas estas últimas ficam restritas aos circuitos menos rentáveis de comércio. O subseqüente desenvolvimento das empresas multinacionais amplia as transações comerciais entre empresas de uma mesma empresa e cria espaços fechados de transações que constam da balança de pagamentos dos países, mas que não são efetivamente parte de suas transações. A suposição básica com que se trabalha é que as políticas comerciais dos países industrializados resultam numa espiral concêntrica que aprofunda a brecha comercial entre eles e os países não centrais, sejam eles industrializados ou não. Desde então, o comércio se desenvolve em diferentes direções, entretanto, com um traço comum, que é a vinculação do comércio à expansão dos meios de comunicação, com a criação de formas de crédito extra bancárias. Na combinação das esferas interna e externa das relações comerciais, há diferentes projetos de comercialização de certos tipos de mercadorias, que são concebidas para certas esferas de comercialização. São os horizontes previstos de comercialização das mercadorias que definem como elas serão produzidas e não ao contrário. Entrementes, o aumento da desigualdade de renda amplia os espaços econômicos dos grupos sociais excluídos, que geram uma economia alternativa, funcionando de modo alternativo e complementar da economia reconhecida de mercado. A sobrevivência dos grupos de baixa renda representa um imenso comércio de pequenas quantidades e de mercadorias de baixo valor agregado, que em seu conjunto representa uma parte cada vez maior da circulação total de mercadorias. Essa cara oposta do sistema terá que ser examinada e medida.

66

A questão da presença de uma brecha irreversível no comércio internacional já se configurava na década de 1960, quando a CEPAL liderada por Raul Prebisch desenvolveu uma ampla pesquisa sobre “A brecha comercial dos países subdesenvolvidos”, em que se estudava a gênese e o desenvolvimento dessa brecha no relativo aos países latino-americanos. No entanto, os problemas resultantes de uma ampliação das diferenças entre a composição do capital dos países mais capitalizados e dos menos capitalizados foram pouco explorados.

133


A teoria econômica do comércio O fundamento econômico do comércio é a capacidade de usar diferenciais de velocidade no uso de dinheiro para a extração de uma renda e para a formação de um capital. O meio de realizar essa operação são as trocas, que significam relacionamentos entre parceiros não necessariamente iguais e mesmo não equivalentes. As trocas se realizam em ambientes que são progressivamente transformados pela divisão local e internacional do trabalho, segundo modificações que são comandadas desde os segmentos que participam mais intensamente dos setores que incorporam mais tecnologia e qualificação do trabalho. Em cada momento e lugar, isto é, em cada situação histórica, a variedade possível de mercadorias depende das condições de desenvolvimento do aparato produtivo. A variedade de mercadorias, como disse Marx, é apenas o meio pelo qual se usa a verdadeira mercadoria, que é o dinheiro. Por isso, o essencial da circulação é combinação das velocidades de rotação do capital nas diversas atividades específicas com os processos de produção, determinando a velocidade de circulação do capital como tal. A seleção dessas mercadorias é a parte mais sutil da atividade do comércio, porque elas funcionam como os contrários do dinheiro, já que representam uma imobilização de capital, e a realização desse processo depende de que as mercadorias sejam vendáveis e sejam concretamente vendidas. Os diferenciais de velocidade só aparecem com a repetição das trocas, pelo que o fundamento do comércio é a repetição controlada de um número também conhecido de trocas. Justamente, por serem parte de repetições, as trocas não são incidentes, senão são parte de cadeias de produção e circulação de bens e serviços, onde seu significado econômico e social provém do modo como integram esses circuitos de produção e circulação. Há uma diferença fundamental entre ver as trocas como tal como eventos incidentais, separados de efeitos indiretos, ou vê-las como parte de cadeias de eventos, que leva a entender os conjuntos de trocas como parte de um universo econômico caótico, ou que as situam como parte de movimentos que se prolongam no tempo. A visão caótica das trocas limita-se ao significado imediato de cada transação econômica, enquanto a visão das trocas como parte de cadeias de eventos, necessariamente, leva em conta seus efeitos indiretos, tal como na teoria keynesiana do multiplicador. A teoria do comércio é a teorização de práticas sociais, onde se percebem alguns princípios da defesa dos interesses envolvidos nas operações de comércio. A falta de uma explicação teórica atualizada do comércio em economia reflete uma impropriedade da teoria econômica, para lidar com um dado básico da realidade da economia, que é aquele de que uma teoria do comércio de fato terá que dar conta de dois planos de problemas, que são os da comercialização da produção em seu conjunto e da atividade específica do comércio, nos diversos níveis de densidade de capital com que essas esferas de atividade se realizam. Para a sociedade em seu conjunto, o que importa são os resultados do comércio na disponibilidade de bens e serviços, que decorre da magnitude total do que se comercializa e da velocidade com que se realizam as transações. O que se pode denominar de teoria econômica do comércio é uma explicação do papel do comércio na formação da produção, 134


e, desse modo, na sobrevivência e na acumulação de capital. Ressalta que a influência do comércio é sempre indireta, tanto na determinação da sobrevivência como na determinação das atividades que se realizam no mercado. O comércio aponta à formação de um fluxo de renda cujos efeitos afetam a sobrevivência e a acumulação de capital, segundo se desenvolvem processos de distribuição da renda. A relação desse fluxo de renda com a formação de capital depende do impacto das transações na produção de mercadorias. Esse impacto tem um perfil técnico que é dado pela composição das mercadorias, que são negociadas segundo as transações representam ordens de compra para reposição de estoque. Nesse sentido, o comércio tem um efeito acelerador através da demanda de mercadorias e de material para produzir as mercadorias. A questão é que essa aceleração começa como um movimento quantitativo e ganha conotações qualitativas, quando estimula a produção e a modificação das mercadorias que são produzidas. Esse duplo movimento se prolonga até onde o sistema produtivo pode responder oferecendo novas mercadorias que ampliem a lista do que se vende e consiga oferecer mais exemplares de cada mercadoria em particular. Afinal, a economia do açúcar pôde ser ampliada porque as operações comerciais sustentaram propostas de ampliar a capacidade de produção. O poder do comércio consiste em conduzir o consumo através de alterações do elenco de mercadorias e do modo de vender essas mercadorias, que é uma forma de intervenção sobre o consumo que atinge grupos sociais de consumidores. Por isso, o comércio combina a satisfação de necessidades reais com um apelo ao imaginário dos consumidores atuais e potenciais, fazendo com que eles aceitem as mercadorias que quer vender. Longe de uma soberania do consumidor, o comércio se nutre do controle dos consumidores e do controle de trabalho.

17. Por uma Economia Política da Energia A análise social e técnica da energia Na economia globalizada do fim do século XX a disponibilidade de energia e o controle de fontes de energéticos tornou-se a principal linha divisória entre desenvolvimento e sub-desenvolvimento. O modo de encarar a questão energética mudou, porque hoje ele se estende à relação entre os usos de recursos e os produtos que são obtidos com esses recursos. A eficiência no uso de energia combina usos atuais e usos futuros, onde os custos sociais dos usos de recursos se colocam em termos da capacidade futura de dispor de energia. A energia é um campo emergente de interesse da economia, que não se limita à análise de aspectos operacionais, mas trata do modo energético da produção, isto é, o significado da produção enquanto uso de energia. Um estudo sistemático do modo energético de produzir e consumir, leva a explicar como a sociedade usa energia e como 135


faz para viabilizar esse uso. Nesse sentido, coloca-se a abordagem da Economia Política, que liga os problemas de preços aos de formação social de valor; e ancora a formação de valor em agentes concretos da atividade econômica. Separa-se, portanto, da visão de engenharia econômica, que se limita aos aspectos operacionais do problema. Por extensão, considera os aspectos de distribuição da renda envolvidos no modo de produzir e de distribuir energia. Ao reconhecer que toda produção é um uso de energia, torna-se necessário estudar a formação do capital, tal como ela se realiza em sistemas específicos de recursos e condiciona a formação e a distribuição da renda. Em síntese, há uma variedade de modos de usar energia para produzir, pelo que cabe trabalhar com o conceito de modo energético da produção. Assim, é preciso levar em conta que na sociedade econômica há uma pluralidade de pontos de vista, que convergem ou divergem sobre as decisões adotadas no cotidiano, que representam os interesses envolvidos no acesso e no controle da energia. Antes da habitual divisão entre produtores e consumidores, estão os pontos de vista dos grupos efetivamente representados pelo Estado, pelas empresas. e pelos usuários - que compreendem segmentos da sociedade que não dispõem dos recursos necessários para serem consumidores - além dos próprios consumidores. 67 Reconhecer usuários além de consumidores, significa levar em conta as manifestações não econômicas de interesse, que entretanto têm efeitos finais econômicos, ou ainda, reiterar o princípio de direito público, do qual deriva a responsabilidade pública. Frente a essa pluralidade de interesses, colocam-se três observações principais: a. A oferta de energia é obtida da exploração de recursos energéticos que em sua maior parte não são renováveis e cujas reservas diminuem. Envolve uma distribuição socialmente desigual dos custos da obtenção dessa energia e alterações no balanço social de poder, consequentes do controle da produção de energia. Nas condições hoje prevalecentes de financiamento, na produção de energia em grande escala, encontra-se uma clara tendência à formação de monopólios internacionalizados, substituindo monopólios públicos nacionais. b. Há um progressivo condicionamento técnico da produção à composição das fontes que são usadas, com perfís de externalidades proporcionais a essa composição. O controle da tecnologia do setor enseja o controle das externalidades, portanto, da lucratividade sobre os novos investimentos. Os novos investimentos contemplam perspectivas de custo de energia embutidos nos custos de produção, tendendo a procurar perfis de custos que reduzam riscos e procurando uma lucratividade confiável. A lucratividade dos novos investimentos compara-se com a dos investimentos anteriores, resultando num quadro móvel de lucratividade média no sistema. c. Na sociedade em seu conjunto, há um uso total de energia progressivamente crescente, mesmo quando se reduz o componente energético dos produtos finais. Tal 67

Na compreensão dos modos de manifestação de interesses, é oportuno referir à classificação de Habermas (1987), de combinação de bens ideais e bens materiais na constituição dos interesses de grupos estruturados, segundo sua manifestação cultural na economia.

136


comportamento se atribui ao crescimento demográfico, à urbanização e à industrialização, e, de modo mais direto, a hábitos de uso de energia em que há um elevado e crescente desperdício de energia..O desperdício é dissimulado em parte peka elevação dos padrões de consumo, mas se caracteriza em princípio por formas de consumo que se situam acima dos níveis médios de consumo e que não contribuem para a produção. d. Diferentes energéticos podem ser usados para certos elencos de uso e a substitutibilidade entre energéticos e usos é restrita, dando lugar a certos perfis de rigidez de cada sistema frente a certos modos de expansão dos usos e a certas possibilidades técnicas de expansão da produção.Inversamente, há restrições rígidas aos usos dos diversos energéticos, que dão perfis de rigidez aos diversos sistemas nacionais de produção de energia. Adicionalmente, nesta análise aceitam-se alguns pressupostos. Primeiro, de que o consumo de energia de determinadas fontes entra em custos crescentes e em crescente escassez, chegando ao esgotamento. Segundo, que a sociedade industrializada gera resíduos de difícil absorção, inclusive com um crescente componente de resíduos, cujo tratamento implica em custos incontrolados. Entram aí a emissão de gases, o lixo atômico, a acumulação de plásticos não degradáveis. Terceiro, que os custos sociais do aproveitamento industrial das fontes convencionais levam a uma pesquisa contínua, visando melhor aproveitamento técnico e menores custos ambientais. Há, portanto, custos crescentes para sustentar a oferta de energia, em quantidades e preços, para a sociedade em seu conjunto. Tais custos distribuem-se ao longo do tempo, representados pelo esforço realizado pela sociedade para realizar os investimentos necessários. Por exemplo, quando o Brasil já realizou a maior parte das barragens hidrelétricas de baixo custo ambiental, uma ulterior expansão desse sistema significa maior custo social em termos de inundação de terras, portanto, perda de terras agrícolas e de biodiversidade. Por extensão, expandir a oferta de energia além dos recursos nacionalmente disponíveis, implica em custos adicionais de importação, que envolvem crescente incerteza da oferta dos energéticos.68 Além disso, os novos investimentos aproximam-se ou se distanciam das unidades de produção existentes, gerando padrões de concentração e de dispersão, que significam novos elementos de custos. As tendências de concentração ou dispersão traduzem-se em pontos de tensão da operacionalidade do sistema de produção em seu conjunto, bem como constituem restrições específicas dos retornos dos novos empreendimentos. Daí, ser necessário considerar a evolução de cada sistema de produção levando em conta suas peculiaridades e a tecnologia incorporada pela sociedade, com seus efeitos acumulativos sobre a gestão de recursos. 68

É preciso rever o modo de estimar a intensidade de uso de energia na produção. Muitos documentos de órgãos internacionais referem-se à densidade de energia nos produtos finais. Nesse sentido, por exemplo, a cerâmica e o alumínio são, praticamente, energia concentrada. No entanto, esse critério é impreciso e distorce a realidade, já que não aprecia os resultados para a sociedade, em termos de devolução de recursos à natureza. A cerâmica devolve recursos não destruidos, enquanto o alumínio liquida a matéria prima, a bauxita. Outros casos, como do desvio do curso de rios e de desmatamento, têm efeitos negativos que excedem por completo o horizonte dos investimentos que os justificam.

137


A partir desses elementos iniciais, a visão da totalidade de produção e consumo deve desenvolver um tratamento do problema de custos, distinguindo as condições em que operam as sociedades plenamente industrializadas das condições de sociedades subindustrializadas como a brasileira. Pela mesma razão, é preciso levar em conta que países emergentes como o Brasil, passam por intensas transformações, apresentando um quadro geral de dinamismo, que não se compara com a continuidade dos países plenamemente industrializados de menor porte. Por isso, é preciso levar em conta os seguintes pontos. a. Os custos sociais da troca de energia potencial em energia cinética, comparados com os custos de reposição do sistema de recursos. Admite-se que o sistema de recursos físicos tem custos diferenciados de reposição, compreendendo custos desigualmenrte crescentes para seus diferentes componentes e ainda, incluindo componentes absolutamenrte escassos. Isso quer dizer que o sistema de recursos físicos resulta em efeitos diferenciados de acelerador dos investimentos. b. Os custos sociais das trocas entre energia potencial e cinética realizados no âmbito dos sistemas de produção de energia socialmente organizados, sub-entendendo-se que esses sistemas têm comportamentos diferenciados, segundo sua magnitude, sua composição e a relação entre as funções de produzir, distribuir e transportar a energia. c. As trocas entre produção de energia cinética e reposição do sistema de recursos. Essa visão do desgaste do sistema de recursos leva a examinar os modos de produção e uso de energia, segundo eles são mais ou menos sensíveis à entropia ao longo do tempo, em cada sistema econômico. Com esse critério, identificam-se as seguintes características da produção de energia nas sociedades industrializadas de hoje: i. A presença de modos de produzir e usar energia, mais ou menos integrados em sistemas e mais ou menos sensíveis à entropia, portanto, assimiláveis a diferentes noções de duração, ao lado de uma pluralidade de modos de produzir e usar, segundo a heterogeneidade de cada sistema de produção. A coexistência entre as formas integradas e as pulverizadas decorre dos interesses do capital, diretamente ou através dos mecanismos de Estado. ii. A presença de modos de organização e gestão dos sistemas de produção e uso de energia, segundo os modos específicos como eles alteram o desempenho dos sistemas de produção em sua forma atual e em sua possível trajetória de desenvolvimento, incidindo sobre seu desempenho futuro. Os modos de organização e gestão refletem experiências de cada sociedade e a racionalidade de seus agentes. Assim, o sistema de produção de energia em seu conjunto tem parâmetros próprios de custos, que se distribuem nos empreendimentos específicos, segundo sua escala, localização e duração, pré-definindo como cada um deles chega ao mercado. Desse modo, leva-se em conta como se desenvolvem os modos de uso de energia para fins produtivos e para consumo.

138


A consistência material da análise Para ser relevante, a análise econômica da energia deve ser consistente com a realidade, além de ser logicamente consistente. Para isso, tem que abranger os aspectos de produção, transporte e consumo, com os consequentes problemas de distribuição e conservação. Com essa finalidade, deve tratar de aspectos relativos à integração dos diversos aspectos de custos nos planos macro e micro, cobrindo usos regulares e esporáticos. Destacam-se os seguintes aspectos: a. A comparação entre custos atuais e futuros, considerando a reversibilidade ou irreversibilidade do desgaste dos recursos e o horizonte móvel 69 de conhecimento dos recursos. A noção de horizonte móvel é instrumentalmente necessária nesta abordagem, que leva em conta o melhoramento progressivo do conhecimento, inclusive das tecnologias, bem como um fator de reprodução dos recursos do sistema físico. Por horizonte móvel entende-se a modificação do campo de visão dos problemas que se analisa, que acontece com o deslocamento em tempo e espaço da experiência num determinado campo temático. b. Os custos sociais da gestão da produção e da distribuição de energia, no que ela gera decisões que afetam os custos futuros e representa custos atuais. A definição dos custos de transporte é relativa à escolha das fontes geradoras, entre as plantas hidrelétricas e as termonucleares, de localização totalmente rígida e aquelas plantas térmicas a gás ou a diesel, de localização flexível em seu momento de instalação. c. Os custos atuais e futuros da energia para os usuários, considerando seus custos diretos e os custos induzidos pelas distorções de uso, introduzidas na organização social do consumo e na da produção. Presume-se que a composição dos usos dos consumidores varia de modo mais que proporcional ao seu nível de renda; e que também varia, desigualmente, ao longo do tempo, segundo as inovações tecnológicas são incorporadas pelos diversos grupos de renda. Com essas referências de custos, coloca-se o relativo à duração das instalações e dos equipamentos e às condições em que eles são usados. Há uma ampla variedade de situações, inclusive de equipamentos de duração indefinida, como as hidrelétricas, bem como de disposição de resíduos, como os nucleares, que comprometem qualquer tentativa de simplificação do problema de custos. Os problemas de duração colocam-se, primeiro, no relativo a comparações entre unidades de produção de diferente duração, inclusive admitindo que muitas delas não têm duração conhecida, que não podem ser reduzidas aos termos de equipamentos cuja duração é efetivamente conhecida. Em segundo lugar, colocam-se em termos de custos ambientais, como perda de capacidade de reposição dos sistemas de recursos, determinadas por desgaste de um dado recurso, que afeta o aproveitamento dos demais. Ambos casos podem ser exemplificados com problemas próprios dos usos sociais da água, tanto nas barragens, 69

Por horizonte móvel entende-se o campo de visibilidade dos fenômenos, que se tem a partir de determinados pontos-momento da experiência relativa à economia. Nesse sentido, pode-se falar de horizontes móveis de mercado, de disponibilidade de recursos, de situação demográfica.

139


de duração indefinida, como no manejo dos sistemas hídricos, em que a desorganização equivale a perda da disponibilidade efetiva de água. A complexidade do conceito de tempo, é um problema técnico ainda por resolver pela teoria econômica, que sempre pautou suas noções de duração ou de prazo, pela duração dos bens de capital, ou dos conjuntos de maquinaria industrial. O tratamento da duração dos bosques, dos sistemas de irrigação e agora, das usinas hidrelétricas, apresenta dificuldades consequentes de terem duração indefinida. Entretanto, é uma noção fundamental para dar coerência à função reguladora do Estado, que em princípio não pode ficar restrita aos dados de cada investimento tomado por separado. Essas diferenças de duração resultam em certa complexidade da análise, por obrigarem a estabelecer horizontes de visibilidade da depreciação do capital, que permitam estabelecer a comparabilidade dos investimentos. Essa é uma referência obrigatória da análise econômica de sistemas de produção, onde as estimativas correspondem a datações históricas da formação dos componentes do sistema. Paralelamente, a impossibilidade de delimitar com precisão os períodos de referência do sistema produtor de energia, obriga a reconhecer a entropia restrita dos sistemas de produção de energia 70 , pela qual os recursos físicos estão sujeitas a perdas progressivas durante períodos significativos, apesar de não poderem, em princípio, ser consideradas como perdas permanentes. Subsidiariamente, observa-se que os problemas de duração de fenômenos devem ser colocados em lapsos suficientes para captar as possibilidades de alteração das tendências predominantes. Dados iniciais da análise Na perspectiva da Economia Política a escassez não é um dado inicial, senão que é socialmente produzida. A sociedade produz energia para seus usos, mediante um sistema de produção e de consumo, que também gera uma escassez controlada. Esta, permite estabelecer preços e reproduzir o capital aplicado. As escalas de produção são planejadas para atender dados de demanda conhecida, o que significa, disponibilizar energia para atender o perfil histórico da demanda. Em princípio, portanto, há diferenças objetivas entre o planejamento microeconômico e o macro-econômico da energia. Ao nivel de empreendimentos específicos, opera-se com uma lógica diferente da que conduz os reordenamento técnicos do sistema de produção de energia, que implicam em riscos de mudança de composição da demanda. 71 70

Trata-se de entropia restrita em relação com a duração dos sistemas específicos de produção, com sua complexidade específica no ponto-momento em que são considerados. 71

As mudanças na composição da demanda decorrerão de mudanças tecnológicas e de mudanças na distribuição da renda, havendo sempre uma ligação entre as duas. Mas as mudanças tecnológicas são administradas em função de previsões de mercado e de administração de investimentos operacionais que devem ser amortizados. A linha de defesa da amortização dos investimentos leva as empresas a raciocinar em

140


Há uma diferença de objetivos entre o planejamento micro e o macroscópico, em que este último deve começar por admitir que a produção de energia deve, necessariamente, mudar, refletindo alterações na composição das fontes energéticas e correspondentes alterações no padrão social dos usos de energia. Por exemplo, um crescimento do sistema à base de produção hidrelétrica implica em maior sensibilidade a variações interestacionais de disponibilidade de água, a serem compensadas com das unidades isentas dessa restrição, seja, com usinas térmicas. Tal ajuste reduz os riscos de peak do sistema, mas por isso mesmo, pode induzir distorções de consumo. A análise econômica da produção e do uso de energia deve pois responder questões relativas à relação entre os custos de produzir energia e os de preservar o sistema de recursos, levando em conta variações de população, de renda e de complexidade do sistema de produção. Nesse contexto, a entropia do sistema deve ser considerada em dois planos: como uma tendência geral, inerente à produção de energia; e como uma tendência restrita, dada pelas características operacionais do sistema, tecnológicas e de qualificação do sistema de produção. Em princípio, não há porque pressupor que os movimentos de entropia geral e restrita sejam sempre semelhantes, nem que seus resultados sejam simétricos. Isso significa que essa análise econômica defronta-se com um quadro de fenômenos, governado por uma tendência geral à transformação do sistema, neste caso representada pela progressiva substituição do esforço humano e mecânico direto - de ferramentas - por esforço mecânico indireto, de máquinas; e pelo aumento da capacidade instalada para produzir energia - que não necessariamente é igual a um aumento da produção - junto com uma expansão dos sistemas integrados de consumo. Surge daí mais uma restrição à análise econômica convencional, já que na análise da energia não se pode supor um sistema invariante, 72 senão se trata de sistemas que mudam de tamanho e composição e variam de comportamento. Daí, ser preciso estabelecer hipóteses sobre o modo de transformação da produção de energia. Por exemplo, um coeficiente representativo da alteração conjunta de crescimento da oferta real nos lugares de consumo, de energia de sistema e de energia localmente gerada, comparada com a oferta nominal, inferida da capacidade instalada ou do serviço efetivamente ofertado. Sobre essa base, colocam-se os problemas relativos a uma análise interna de cada um dos sistemas, tomados em seu conjunto e em suas partes; e uma análise externa, voltada para as inter-relações de cada um deles com o sistema de recursos e com outros sistemas de produção. A análise interna dos sistemas deve identificar as regras pelas quais eles se expandem. É preciso explicar os modos como os sistemas se articulam uns com os outros.

função de sua carteira de aplicações, manejando opções de investimento como modo de proteger a rentabilidade da carteira e não de procurar os acréscimos de rentabilidade das novas tecnologias. 72

Toda análise econômica que não considera a realimentação dos efeitos dos aumentos de heterogeneidade do capital e de complexidade dos sistemas, de fato, trabalha com sistemas invariantes em tempo-espaço, que é uma premissa obviamente sem fundamento na realidade.

141


A primeira ocupa-se do modo de expansão de sistemas térmicos ou de sistemas hidrelétricos. A segunda estuda os modos como eles podem ser combinados. Os aspectos de análise interna e externa terão que ser, adiante, combinados, para definirem-se as condições objetivas em que se situam os diversos usos individuais, de empresas e de familias. Segundo sua escala e distribuição no tempo, os usos individuais têm efeitos acumulativos, que atingem a produção de energia, deteriminando alterações, algumas transitórias, outras irreversíveis. A relação entre usos individuais e efeitos em cadeia logicamente depende do prolongamento dos efeitos das ações individuais e do modo como a produção de energia responde a esses estímulos, como, finalmente, eles atingem a estruturação de custos da produção de energia, em grandes e em pequenos sistemas. O pressuposto de que todos os custos são mensuráveis a nível de projetos específicos é um a priori da análise econômica marginalista que está sujeito a diversas objeções, como por exemplo, a possibilidade de que investimentos realizados em períodos seculares afetem a produção atual, ou que determinadas obras públicas tenham utilidade quase permanente. A estimativa de vida útil das usinas hidrelétricas é uma questão em aberto à espera de resposta convincente. Em todo caso, a possibilidade de colocar com precisão os problemas econômicos da energia varia, de fato, ao longo do processo, para os diferentes agentes econômicios, segundo sua visibilidade da produção e do consumo. Os dados básicos da questão podem ser ordenados nos seguintes parágrafos. Primeiro, a produção é realizada mediante um conjunto heterogêneo de unidades de produção genericamente denominadas de plantas, com variados graus de mobildade e desigualmente amortizadas, suscetíveis de serem representadas mediante uma curva integrada de custos. Tal visão globalizada da produção, entretanto, encobre peculiaridades do aproveitamento da capacidade instalada, que não permitem correspondente simplificação no relativo ao coeficiente de aproveitamento, obrigando a considerar coeficientes de aproveitamento específicos de cada tipo de planta. Isso significa que a capacidade instalada tem condições restritas e diferenciadas de flexibilidade, para atender alterações da demanda. A rigidez subjacente descreve os umbrais dos sistemas de infraestrutura frente ao perfil do sistema de produção. Observa-se que, a maior parte das plantas, hidrelétricas e termo-elétricas nucleares não pode ser deslocada no espaço, portanto, que há um problema de não comparabilidade entre a estrutura de custos de plantas que podem ser deslocadas e de plantas que não podem ser deslocadas. Segundo, os usos de energia, para produção e para consumo, respondem a condições operacionais das empresas e de consumo das famílias e das pessoas, que por sua vez refletem condições de renda. Uns e outros funcionam sobre perspectivas baseadas em experiência, que não podem ser alteradas bruscamente. Há, portanto, um fator de estabilidade no perfil temporal da demanda, que deve ser tomado como referência para

142


qualquer proposta de política orientada a equilibrar oferta e demanda através de controle da demanda. Terceiro, as previsões de oferta são discretas, organizadas segundo os tamanhos de planta com que podem ser atendidas; e suas respectivas duração e rentabilidade. Isso quer dizer que os custos de cada novo investimento têm que ser comparados com os dos investimentos anteriores, Comparam-se, também, com os custos sociais de não se realizarem os novos investimentos, ou de diferi-los e realiza-los fora do momento oportuno. Isso significa que os investimentos individuais só podem ser adequadamente avaliados quando reconhecidos como parte de cadeias de investimento em que são incorporados efeitos para diante e para trás das cadeias de investimento. Assim, segundo são controlados os investimentos, formam-se combinações de decisões centralizadas e descentralizadas, que resultam em forças tendentes à transformação; e em forças tendentes a estender no tempo os modos atuais de produzir e consumir energia. Isso, aparentemente, pode ser lido como uma regra geral, condicionada por duas variáveis não exógenas, mas que têm pautas próprias de desempenho, que são a renovação tecnológica e a educação, em que esta última significa qualificação para compreender e operar o sistema energético. Como essas variáveis são mutuamente interdependentes, constituem uma parte do problema a ser tratada como um capítulo especial, em que se comparam as características tecnológicas da produção de energia com a qualificação dos agentes da produção e do consumo, para absorver adequadadmente a tecnologia disponível. Tecnologia e qualificação são interdependentes. Mas a educação tem um significado mais amplo, atingindo as condições sociais de absorção de tecnologia. Heterogeneidade, monopolização, regulação Os sistemas de produção de energia tendem à heterogeneidade em sua composição técnica, porque incorporam diferentes tecnologias e maior variedade de energéticos. Mas ganham, técnica e economicamente, ao operar de modo cada vez mais integrado, para atender melhor seus demandantes e aproveitar melhor a capacidade disponível. As vantagens técnicas da operação recaem na economicidade do sistema, gerando resultados que podem ser equiparados a diferenciais de capacidade instalada. 73 Os ganhos econômicos da integração dos sistemas de produção estimulam a supor que uma correspondente concentração do capital, mas não há nisso argumento algum que demonstre que esses ganhos não podem ser igualmente incorporados com uma estrutura de capital descentralizado. A racionalidade da integração técnica e econômica não se confunde, entretanto, com a lógica da concentração do capital, que finalmente é a que responde pela monopolização 73

No caso da Eletrobrás, a operação integrada chegou à equivalência de uns 20% da capacidade instalada, que significam uma proporção semelhante de diferimento da investimentos novos, portanto, de incremento da rentabilidade dos ativos imobilizados.

143


do setor. A produção de energia - petróleo e energia elétrica - tem sido um objetivo preferencial do grande capital, cuja expansão nessa área é naturalmente facilitada pela grande escala dos investimentos. A tendência à monopolização, que tem sido característica da produção de energia, resultou numa peculiaridade da produção de energia, qual seja, de operar com preços de monopólio em suas principais transações, que dão resultados em cascata sobre as pequenas quantidades e os pequenos operadores. A grande diferença encontra-se entre o mercado de petróleo, alcool e carvão de um lado e de hidrelétrica e termonuclear do outro, pelo aspecto de transporte e de armazenagem, que condiciona a formação de estoques, portanto, os custos de espera e a formação de preços especulativos. A heterogeneidade da produção e do uso de energia significam, respectivamente, que os diversos componentes da produção de energia e os usos de energia têm distintos significados econômicos, para a reprodução do sistema econômico. A produção torna-se, progressivamente, mais complexa, compreendendo maior heterogeneidade do capital e maior variedade e qualificação do trabalho. Tal complexidade é desigualmente visível para seus participantes, segundo eles têm acesso aos seus componentes tecnologicamente mais complexos ou ficam restritos aos menos complexos. Por exemplo, os que participam do pequeno comércio, mesmo sendo bem sucedidos, não têm como perceber a complexidade das grandes empresas que combinam comércio, indústria e agricultura. Independentemente de preços atuais e de variações de preços, não há dúvida que a produção de energia que garante torres de controle de vôo, transportes urbanos de massa, salas de cirurgia, não pode ser comparada com a que supre salões de beleza ou salas de jogos eletrônicos, mesmo que os capitais envolvidos nessas atividades considerem-nas prioritárias. Por isso, há diferentes pressões para a renovação e ampliação da produção de energia; e uma luta pelo poder, representada pelo controle da energia. O desempenho atual do sistema depende de como se combinam decisões anteriores e investimentos já em construção, como um quadro de antecedentes para novas decisões. Por isso, ele será, objetivamente, mais sensível a decisões voltadas para resolver problemas imediatos de consumo, apesar de ser igualmente perturbado por decisões que se referem a usos futuros. O desempenho da produção de energia depende de uma cadeia de decisões, em que cada uma depende das anteriores; e em que as alterações de tendência são alcançadas mediante progressões de moivmentos. Por isso, permanece uma questão relativa aos rumos do sistema. Para onde se conduz a produção, é uma questão que atinge os interesses organizados do setor, que finalmente orientam pesquisas e afetam a viabilidade de novos empreendimentos. Por exemplo, o objetivo de aumentar a produção de petróleo é, inevitavelmente, contraditório com o de sustentação da taxa de crescimento do produto por muito tempo, antes que tudo, porque implica em reduzir a disponibilidade desse energético a longo prazo. Os custos atuais do desenvolvimento de sistemas ditos alternativos só pode ser corretamente julgado, quando for colocado num quadro de restrições futuras.

144


Distinguem-se, portanto, o significado estratégico das decisões para a reprodução do sistema e seu significado social, no que são concentradoras ou redistribuidoras de renda; e as decisões que voltadas para a reprodução dos capitais constitutivos da esfera de interesse privado. Tal significado estratégico está nas conseqüências dessas decisões para a reprodução e aperfeiçoamento da produção de energia, combinando seus aspectos imediatos e mediatos, seus componentes mais escassos e menos escassos e seus custos. Com essas referências, torna-se necessário examinar quanto pode sustentar-se a tendência reconhecida de entropia: e como ela pode ser alterada. Como sempre há entropia, a economia da energia é sempre de de custos diferidos. A renovação tecnológica leva a admitir que a sensibilidade do sistema à entropia seja alterada, tanto de modo progressivo como abrupto; e segundo ele evolua em conjunto com movimentos concentradores ou redistribuidores de renda. Finalmente, cabe questionar que significam o controle público e o privado do mercado de energia, seja, em que consiste a regulação num mercado monopolizado, cada vez mais concentrado. Sub-entende-se que a regulação é exercida pelo Estado, que para isso age como facilitador de relações de mercado, travadas entre produtores e consumidores. Haveria regras gerais de mercado, válidas para todos. Mas os cidadãos só são percebidos enquanto consomem. Se não consomem não são registrados, não têm direito a energia. É uma posição ética e tecnicamente contraditória, porque a organização política da sociedade é irredutível aos termos circunstanciais do consumo; e porque a função reguladora reporta-se a situações concretas e não a situações genéricas de mercado. Na prática, o poder regulador do Estado depende de equações de forças políticas historicamente formadas, representadas nos monopólios e na atomização dos consumidores. Assim, trata-se de que cada sociedade tem uma capacidade de regular, que a rigor é o poder incorporado no Estado, que se exerce em condições específicas de monopolização e de representação política e poder de compra dos usuários. A regulação envolve um princípio de controle das operações que se realizam em cada mercado específico, com correspondente definição das margens monopólio que são aceitas, por razões técnicas e éticas. 74 Inferências macro-econômicas Há peculiaridades da produção e do consumo de energia, que só podem ser definidas para cada país em seu conjunto, que compreendem peculiaridades setoriais e regionais, dadas pela composição de recursos e de concentração de capital. Para entendelas, parte-se da relação entre potencial e possibilidades de aproveitamento, 75 seguindo com 74

A ex;plicitação da ética objetivamente incorporada nos relacionamentos é essencial ao fundamento da sociedade contemporânea, no que ela envolve uma comunicabilidade e aceitação mútua. O eixo ética-ação comunicativa é parte da proposta de Habermas(1989) para uma compreensão do modo de viver. 75

Neste ponto considera-se a capacidade da sociedade para concretizar o aproveitamento dos recursos e não só a relação técnica de aproveitamento dos equipamentos. Está claro que há diferenças fundamentais no

145


a relação entre o crescimento da renda e variações dos custos sociais da sustentação do crescimento da renda. A continuidade da produção de energia depende das respostas que se encontram a esses dois pontos, que estão sempre sujeitas a condições locais. O ponto de partida do tratamento macro é o conceito de potencial, que representa processos em vez de descrever situações. O potencial varia junto com a capacidade de aproveitar recursos. O potencial hidrelétrico se reconhece, quando se adquire capacidade de aproveitar recursos, seja, para controlar água. O potencial de petróleo no Brasil aumentou junto com a tecnologia de exploração de águas profundas. Mas não se pode substituir o fato de ter ou não ter rios que ofereçam a possibilidade de aproveitamento hidrelétrico. Além disso, o potencial tem aspectos rígidos de localização, que não podem ser transpostos para uma escala de custos marginais. Justamente, usinas térmicas convencionais podem ser transferidas, mas as térmicas nucleares têm localização tão rígida como as hidrelétricas. Cada sistema de produção convive com um sistema de custos de distribuição, que é rígido em relação com a localização da demanda. A atualização da noção de potencial leva a revisar a noção de capacidade instalada, que é a chave desta análise. A capacidade instalada é um indicador técnico, cuja validez depende de uma combinação de elementos que podem variar de modo imprevisível. A capacidade instalada hidrelétrica depende de disponibilidade de água em reservatório, que pode variar estacionalmente, de modo exógeno ao sistema. A capacidade instalada também oculta condições técnicas de uso de equipamento, que regulam o coeficiente de aproveitamento das unidades de produção nas unidades geradoras. Uma peculiaridade da análise econômica da energia é que a capacidade instalada não pode ser reduzida a um único plano de desconto, do qual se possa inferir um único retorno econômico. As inferências são sempre simplificações que descartam peculiaridades, como as de componentes que não têm duração definida, ou de que a capacidade física dos equipamentos depende da capacitação do trabalho. A noção de que o crescimento da renda é necessário, decorre da suposição de que o progresso é necessário, que é própria da ideologia ocidental de civilização e da comprovação do aumento da população. Mas o crescimento da renda requer mais produção e por extensão, requer mais energia. Nesse sentido, é fundamental que o aumento requerido de produção exige mais energia, mesmo tendo baixado o componente energético da produção. A pressão para produzir mais energia tem sido determinante do perfil de investimentos de cada país, refletindo a formação de grupos de poder que se formam mediante o controle do setor, ou que se reproduzem mediante o controle de sua expansão. A formação de interesses internacionais e locais, bem como de combinações desses interesses na esfera de operações de cada país, define uma lógica de comparação de investimentos imediatos com investimentos diferidos, que finalmente se traduz em demanda de energia adicional. As pressões para obter energia imediatamente, forçam seus aproveitamento dos recursos, que devem ser atribuidas a competência e atualização de treinamento, que também têm que ser colocadas em termos de objetivos progressivos.

146


custos de produção, alterando a lógica do uso dos recursos, já que de fato os países consumidores de energia desqualificam o significado econômico da escassez futura. Como o cálculo econômico se faz sobre os investimentos operacionalizados, não se consideram os efeitos a longo prazo do esgotamento de reservas sobre a sustentabilidade da capacidade instalada. Assim, o exaurimento dos recursos constitui uma perda a futuro, que requer novo encaminhamento. No essencial, trata-se de que o valor incorporado na capacidade instalada só se mantém na medida em que essa capacidade é atualizada tecnologicamente, isto é, que a manutenção do equipamento, tanto como o treinamento do pessoal, garante a atualização de sua qualificação. Concretamente, isto significa que as unidades de produção podem ser objeto de ajustes técnicos e que o treinamento do pessoal permite adequa-lo ao ajuste do equipamento. Há, portanto, um problema de avaliação genuinamente econômica do equipamento, não apenas financeira. Mais que em outros exemplos conhecidos, relativos à composição do capital, aqui se trata de peculiaridades do capital, que pré-determinam os modos como ele pode ser usado. Tal raciocínio implica no reconhecimento de situações de escassez absoluta, portanto, de custos irreversíveis, que tendem a alterar as possibilidades de funcionamento do sistema de produção de energia. Por exemplo, está claro que os países que não dispõem de capacidade de produzir energia hidrelétrica têm uma desvantagem que se agrava em seu planejamento energético na medida em que aumentem os preços dos combustíveis fósseis. Isso determina um critério seletivo, no relativo às fontes de energia escolhidas, segundo seu poder calorífico e seus resíduos. A capacidade instalada em usinas térmicas a carvão foi tecnicamente desvalorizada pelo progresso de formas mais limpas de geração, mas continua sendo usada pelos principais países industriais. No outro extremo, esse critério impugna as centrais termonucleares, cuja expansão passou por profundas revisões. No meio termo, a produção hidrelétrica de pequeno porte foi questionada por suas limitações econômicas. Esses movimentos correspondem a certo momento da industrialização e da urbanização, que fixou uma concentração espacial da demanda, que não mais foi revertido, que tem determinado sucessivos alinhamentos da produção de energia, em que o essencial é a mudança de usos dos mesmos energéticos. 76 Esse movimento geral de concentração envolve as decisões específicas de escala e de localizaçào de projetos, situando parâmetros sistêmicos, que representam o movimento do sistema de produção em sua evolução, com suas peculiaridades de composição de fontes, de escala de unidades produtivas e de tecnologia em geral. Nessa qualidade, distinguem-se fatores de sinergia e de perda, que afetam a economicidade do sistema. Dentre os primeiros, as vantagens de um dado sistema atribuíveis às diversas combinações de uso que ele permite. Por exemplo, as combinações 76

Economicamente, o carvão passa a ser uma reserva de segunda linha, mas tecnologicamente o problema deslocou-se para outro patamar de industrialização, que está representado pela carboquímica como pela petroquímica.

147


que se fazem, sobre determinados conjuntos de usinas hidrelétricas, ou as de um sistema térmico com determinados pontos de aproveitamento de energia das marés. Como fatores de perda, estão perdas típicas do modo de integração de cada sistema, tais como são as distâncias entre os pontos de geraçãio e os centros de consumo de energia, a composição da demanda. Ao longo da industrialização, as transformações dos sistemas de produção de energia mostram certas características associadas com a configuração de tendências. Esses sistemas evoluem na direção de soluções de melhor aproveitamento dos energéticos, de redução de resíduos e dos custos do manejo de resíduos, finalmnte, de substituição de energéticos por outros mais caloríficos: de carvão ao combustível nuclear. Esse movimento geral não descarta os conbustíveis antes predominantes, mas substitui suas funções e o modo de usar alguns deles, tal como fez com a troca da energia hidráulica pela hidrelétrica, ou com a troca da queima de petróleo pela petroquímica. Mas não completou mudança alguma, continuando a queimar petróleo e carvão como combustível e mantendo o caráter predatório da queima de energéticos em formas tecnologicamente superadas. Inferências sobre projetos específicos Investimentos específicos no campo da energia partem sempre da relação produção/capacidade instalada, que se apoia em pressupostos de fator carga da capacidade, de eficiência operacional no uso da potência disponível e de expectativa de vida útil das unidades de produção. Geralmente tomam, também, como invariantes ou irrelevantes, os interesses e as qualificações subjacentes na produção de energia. No essencial, entretanto, o fator carga é um coeficiente de aproveitamento possível de capacidade, que pressupõe um conhecimento técnico incorporado, suficiente para usar os equipamentos sem reduzir sua vida útil. A relação produção/capacidade está adicionalmente qualificada pela estruturação dos sistema de produção, que pré-estabelece os efeitos indiretos de cada novo investimento, definindo conjuntos de custos que são incorporados de cada nível operacional ao seguinte, entendendo-se que se tem que realizar seqüências de investimentos interdependentes. Isto significa trabalhar com coortes de custos e com blocos de resultados , cuja incorporação ao patamar seguinte deve ser examinado em cada caso, considerando que a composição de custos muda ao longo do tempo, diferentemente, de um empreendimento a outro, mesmo quando se trate de dois empreendimentos tecnicamente semelhantes. Assim, no relativo a cada projeto específico há, praticamente, três níveis de custos: o dos custos transferidos desde empreendimentos anteriores que são sequencialmente necessários aos atuais; o nível dos custos do próprio empreendimento, com seus componentes de custos diretos e indiretos; e o nível de custos decorrentes da realização do empreendimento, que por definição são, principalmente, indiretos. Não há como supor que cada empreendimento pode ser delimitado aos custos que gera.

148


O fio condutor dessas três situações é o uso da capacidade instalada. O uso efetivo da capacidade é, por definição, plurianual. Logicamente, ao ligar cada novo investimento à progressão dos investimentos em cada linha de produção, admite-se que cada novo investimento representa, também, novo momento de reconfiguração da composição da capacidade instalada, portanto, com efeitos totais, diretos e indiretos, que alteram o sistema. Esses efeitos podem ser significativos ou insignificantes, mas terão, em todo caso, que ser computados, para que se defina, adequadamente, a coorte de custos correspondentes ao empreendimento específico em causa. Como simplificação do problema, admitindo que a seqüência de investimentos incorpore efeitos em cadeia, mesmo quando seja constituida de eventos não contínuos - que seria a alternativa mais conservadora - é preciso supor que os investimrentos específicos devem ser julgados à luz da seqüência em que se inserem. Assim, qualquer investimento específico em enegia tem, inicialmente, que ser situado nas restrições de capacidade e nas progressões de custos em que se insere. No setor elétrico, essa pré-condição tem conseqüências decisivas, como de que cada nova planta geradora é decidida em função de dados de demanda que são continuamente alterados pelo desempenho do conjunto do sistema; e que cada novo investimento tem uma configuração de custos, com custos fixos e variáveis, em que seus componentes de rigidez, tais como preços de matérias primas, têm efeitos que se estendem sobre a vida útil do projeto. É preciso levar em conta que os resultados finais do projeto resultam das condições prevalecentes ao longo de sua vida útil e não de suas condições iniciais. Assim, na avaliação de novos projetos, há uma relação entre o fluxo de resultados previstos e a previsão de duração da capacidade instalada, que limita objetivamente o horizonte de retorno do investimento. Em síntese, a análise dos custos e beneficios de cada empreendimento tem uma validade restrita no espaço-tempo dos empreendimentos e segundo qual seja o momento de sua realização. Aumenta, progressivamente, o risco de que os resultados das análises custos/benefícios sejam falaciosos, à medida que eles dependem menos de variáveis mais confiáveis, ou que dependem de menor número de projeções, sujeitas a maiores margens de incerteza. Trata-se da eficiência dos empreendimentos durante sua realização e não em seu momento inicial, onde, portanto, torna-se necessário considerar os aspectos de erraticidade do sistema e os pontos de incerteza relativos a cada situação da produção.. Observações finais O tratamento sistemático da energia na perspectiva de uma economia social e cientificamente responsável revela aspectos, negligenciados ou minimizados pela análise econômica convencional, que entretanto são fundamentais para um pensamento econômico atualizado. Obriga, também, a um exercício de paciência com as limitações do conhecimento disponível, em terrenos em que sempre se supoz haver clareza e confiança, tais como o controle da natureza e a revisão de progresso contínuo. Finalmente, impõe reconhecer as diferenças de situação dos diversos países em suas respectivas trajetórias de 149


uso de energia, com suas conseqüências na definição de políticas energéticas, com sua racionalidade e seu jogo de poder. A rigidez do componente energético da produção, sua virtual irredutibilidade, já que não se pode produzir sem energia, torna-se um argumento insuperável. Aceita-lo obriga a reconhecer que na análise econômica da energia há situações de insuficiência insuperável de energéticos, que se definem economicamente como de escassez absoluta e que levam, necessariamente, a explorar outra vertente das teorias da tendência do sistema produtivo ao declínio. Tal antecedente, por sua vez, leva a registrar algumas observações da ciência hoje. Num quadro geral de tendência entrópica, a escassez relativa torna-se um caso especial, de duração limitada. 77 Uma abundância circunstancial de petróleo não pode ser tomada como uma referência estrutural do funcionamento do sistema de produção. Assim, também, a disponibilidade de biomassa está subordinada à insolação, que ainda não tem equivalente algum de tecnologia. Como desdobramento das restrições de composição do sistema de recursos, é necessário levar em conta que há pré-condições de composição da capacidade instalada, que se projetam na composição da produção, com efeitos nas alterações da composição da produção. Trata-se, portanto, de um conjunto de condicionamentos em cadeia, que atingem a capacidade de cada economia para crescer. Paralelamente, há peculiaridades da capacidade instalada, decorrentes do modo como ela foi formada ao longo do tempo, que a tornam sensível a fatores externos, tal como pode ser diretamente a chuva, ou indiretamente, os efeitos da chuva na disponibilidade de biomassa. Os sistemas são sensíveis a fatores internos e a fatores externos e se tornam progressivamente mais instáveis ou menos instáveis, segundo as influências desses fatores se conjugam em tempo e espaço. Em todo caso, é preciso trabalhar com a noção de que os sistemas estáveis são apenas uma situação anômala de sistemas naturalmente instáveis. O conjunto de produção e consumo de energia permite visualizar o sistema econômico em sua totalidade, com seu modo próprio de recuperação, bem como mostra seus limites de escala e suas regras próprias de expansão. As restrições do uso de energia mostram que o sistema de produção não pode expandir-se interminavelmente, senão que se transforma dentro de restrições materiais que não podem ser superadas apenas por tecnologia. O modo energético de produzir permite classificar as mais diversas atividades pelo modo como elas são concretamente realizadas. 77

Cabe introduzir aqui o argumento de Prigogine (1992), sobre os problemas de irreversibilidade e de causalidade, suscitados pela obra de Bolzmann. A irreversibilidade - que nos energéticos aparece sobre um quadro dado de recursos, identificado num ponto-momento - explica-se pela causa suficiente. A suposta causa plena envolveria uma visão inatingível dos recursos, em que o quadro atual e o futuro dos recursos seriam idênticos. Apesar das restrições lógicas, que podem ser aduzidas ao uso na ciência dessa qualificação escolástica, é preciso admitir que o condicionamento estabelecido por Prigogine da irreversibilidade, revelase essencial na análise econômica no campo da energia. A irreversibilidade atinge o sistema no modo como ele perde recursos não renováveis e em sua capacidade de encontrar novas reservas dos mesmos recursos.

150


Na explicação econômica dos problemas sociais e técnicos da energia, destacam-se alguns aspectos que podem ser considerados inevitáveis e inadiáveis. Dentre eles, sobressaem as restrições de sustentação da capacidade instalada e de acumulação de custos sobre os sistemas de produção, que pré-condicionam os novos investimentos. A consideração de grandes sistemas integrados, que se expandem a custos crescentes, leva a hierarquizar a eficiência dos investimentos por esses custos e resultados acumulados, tal como se propoz na década de 1950, quando se puseram em circulação as idéias sobre efeitos em cadeia e sobre causação circular acumulativa. 78 Estas observações levam, naturalmente, a uma crítica à opção por um estilo de análise de custos/benefícios - supostamente social - que toma os investimentos por separado uns dos outros, mesmo quando considera as externalidades de cada projeto. A principal contribuição do estudo teórico desse campo da economia aplicada está, justamente, em ajudar a substituir falsas certezas por indicações confiáveis; e em expor os vínculos de interesse que sustentam o corpo de análise de investimentos no campo da energia.

18. A economia dos transportes Uma aproximação ao tema Os transportes têm sido tratados como uma atividade auxiliar da produção, mas não há dúvida de que desempenham um papel estratégico para viabilizar ou obstruir a produção e o consumo, e, principalmente, que têm um papel decisivo para criar ou obstruir opções para o desenvolvimento do sistema socioprodutivo. Por ser uma atividade cujos aspectos técnicos são evidentes, tem sido abordada mais por seus aspectos técnicos – aqui identificados com a engenharia dos sistemas – que por seus aspectos econômicos. Mas a economia dos transportes é fundamental para definir como – e não só quanto – se desenvolverá o sistema produtivo. Na perspectiva da economia, os transportes representam dois tipos de problemas, diferentes e combinados, que são os de sistemas de apoio da produção e do consumo e de sistemas que criam condições para produção futura. Além disso, dados os principais desenvolvimentos recentes dos transportes, tanto nas soluções em cada modo de transporte como e principalmente, nas articulações entre os diferentes modos de transportes, tornam necessário que a análise dos transportes compreenda os aspectos do funcionamento e da formação de capital, cabendo por isso, entender que se trata com três medidas de eficiência, que são as seguintes:

78

Em ordem cronológica, essas idéias foram apresentadas por Jorge Ahumada (1956), Albert Hirschman (1961), Gunnar Myrdal (1968). A idéia básica de efeitos em cadeia entretanto só foi explorada em seu sentido mais amplo de afetar a composição do capital no tratamento dado por Myrdal, que compreende os aspectos materiais e os ideológicos do sistema produtivo.

151


a.

b. c. d.

A eficiência do sistema produtivo em seu conjunto, frente ao capital imobilizado total. Coloca-se aí, de fato, uma questão social relativa ao sentido de finalidade da formação de capital, que pode ser convergente com as necessidades da sociedade em seu conjunto, ou que pode ignorar por completo essas pretensões. A eficiência dos subsistemas de transportes para fins específicos. A limitação local dos transportes depende, em última análise, do modo como eles são operados. A capacidade dos subsistemas de se adequarem à renovação tecnológica, em seus movimentos gerais, identificados com tecnologias básicas, e em seus aspectos específicos. A eficiência técnica e econômica dos projetos específicos de transportes, considerando seus dados iniciais e os dados de seu desenvolvimento.

Como esses diferentes níveis de decisão são interdependentes, há um campo de análise a ser coberto, relativo às condições de articulação entre soluções de sistema e soluções de projetos. Como, ainda, esses diferentes níveis de eficiência técnica correspondem a diferentes situações institucionais, representando interesses públicos e privados, torna-se indispensável situar os projetos técnicos em sua situação social institucional. Por exemplo, como apreciar projetos de aeroportos para turismo ou carga comercial, ou como apreciar combinações de soluções rodoviárias. Além disso, como o desenvolvimento dos serviços de transporte tem uma articulação internacional essencial, é preciso trabalhar sempre com diferentes alternativas de uso de um mesmo sistema, segundo ele se desenvolve com uma mesma composição de usos, ou tende a incluir novos usos e a descartar outros. Essas observações fazem ver que há certas necessidades da análise econômica dos transportes que ficam fora do programa de trabalho da economia ortodoxa. A análise econômica marginalista trata de custos e lucros mas não considera as funções das diversas atividades frente ao movimento da formação de capital. Daí, que geralmente se trata da mecânica do funcionamento dos transportes, ou se passa a examinar o papel dos transportes na logística de mercadorias, mas não se trata da funcionalidade do sistema de transportes frente às tendências de transformação do sistema de produção. A análise econômica convencional absorve pouco da experiência do cotidiano do funcionamento da economia e escolhe para análise apenas casos selecionados que são individualmente válidos, mas que não necessariamente refletem as tendências do conjunto. No entanto, uma análise econômica que se orienta para refletir a realidade não pode ignorar o que há de específico nos transportes, já que eles representam a forma material da articulação dos componentes do sistema de produção e porque, por isso, encerram grande parte das opções ao alcance do capital para mudar a composição dos investimentos. Não há praticamente projeto econômico algum que não requeira uma solução de transportes e não há como conceber uma política de desenvolvimento que não considere os efeitos dinâmicos dos transportes no sistema de produção.

152


No entanto, em economia a discussão dos transportes cai na esfera do que geralmente se denomina de setorial, portanto, do que supostamente representa um desdobramento conceitual inferior ao de temas tais como a circulação monetária, a carga tributária e a taxa de câmbio. Ao tratar os transportes como setor, deixa-se de perceber o significado dos sistemas de transportes na economia em seu conjunto, que depende do modo como eles são parte de todos os setores da produção. Tratar os transportes como setor envolve alguns problemas técnicos, por exemplo, de identificar as interdependências entre subsetores de transportes, ou de tratar de problemas específicos de custos de transbordo de mercadorias entre modos de transporte. Surge, daí, uma diferença entre o rumo das análises econômicas de transportes que focalizam nas relações intersetoriais e o rumo daquelas outras, que procuram esclarecer a economicidade de modos específicos de transportes ou de situações específicas de combinação de modos de transporte. Entendemos que qualquer uma dessas linhas de análise depende de que se chegue a uma visão da totalidade do problema dos transportes, que se coloca, de modo resumido, como o confronto entre a dinâmica das necessidades específicas de transportes e a da oferta de uma composição de serviços de transporte. Em suma, a análise econômica dos transportes reporta-se, necessariamente, à composição do capital e aos deslocamentos da composição do capital no sistema econômico em seu conjunto. O sistema representado por cada modo de transporte – ferroviário, rodoviário, marítimo ou aéreo – só pode ser avaliado quando visto em suas inter-relações com os outros. O significado social dos transportes decorre do efeito geral que eles exercem como viabilizadores do povoamento e como indutores de atividades produtivas, que estão além de seus efeitos mensuráveis, tal como efeito multiplicador direto de atividades produtivas. Obviamente, não se trata somente do emprego, direto e indireto, gerado pelos transportes, senão do efeito geral dos transportes na capacidade do sistema produtivo de se sustentar. Por exemplo, uma análise geral do sistema portuário de um país poderá levar a observações sobre as condições gerais de viabilidade logística do sistema produtivo e não apenas a uma hierarquização das condições e do potencial operativo dos portos. Isso nos remete a um problema técnico da análise dos transportes, que é o de confrontar os custos e os resultados sociais do sistema com os custos e resultados privados da exploração de algum serviço específico de transportes. As referências da análise social aparecerão na forma de ganhos da sociedade em seu conjunto resultantes de redução de custos de usuários de uma estrada ou de um aeroporto, enquanto as referências privadas aparecerão na forma da lucratividade da exploração de um serviço. Os ganhos privados entretanto correspondem a resultados materiais que alteram as condições de funcionamento do sistema em seu conjunto. Em princípio, a análise econômica dos transportes parte de um conjunto de informações técnicas e mede a eficiência técnica, econômica e social. Essas informações técnicas, podem aparecer na forma de um modelo mecanicista, tal como um mapa de tráfego. Podem aparecer como uma análise de tráfego que identifica quem realiza o tráfego e pode aparecer como uma análise da formação histórica do tráfego. As informações projetadas pela análise podem ser usadas para averiguar a eficiência técnica dos sistemas de 153


transporte – para transportar carga ou para transportar passageiros – para verificar sua eficiência para os detentores do capital investido em transporte e para verificar o serviço social que prestam. De todos modos, é preciso ter clara a diferença entre a eficiência para os capitais individuais investidos nos sistemas de transportes e a eficiência para a sociedade em seu conjunto. Esse problema de eficiência coloca-se em termos da duração dos investimentos e do momento em que eles são realizados. Não surge simplesmente do fato de serem sistemas, senão do modo como esses sistemas se inserem no desenvolvimento do sistema de produção. Por isso, os custos e os benefícios dos sistemas de transportes devem ser vistos através dos custos e dos benefícios dos investimentos num sistema. Mas esses custos e benefícios só acontecem porque os investimentos são feitos num sistema e o sistema tinha certa operacionalidade anterior aos investimentos e terá outra depois dos investimentos. Nos casos em que os investimentos criam um sistema, eles simplesmente dão início a esses efeitos em cadeia, que serão apreciados em investimentos posteriores. O problema técnico, portanto, é que a análise econômica dos transportes tem que trabalhar com referências de custos e de resultados sociais, que se estendem além da vida útil dos equipamentos e que se prolongam na capacidade dos sistemas produtivos de se atualizarem tecnologicamente, bem como de se reorganizarem para fazerem frente para às alterações do mercado internacional. Em suma, trata-se de uma análise dos transportes enquanto campo historicamente formado do sistema produtivo. Perfil atual do problema Os sistemas de transportes mudam, assim como mudam as condições em que eles operam. O uso de tecnologia informacional no comando dos transportes transforma a operação técnica dos sistemas de transportes em um problema de gestão econômica que ultrapassa qualquer sistema em particular. A situação atual de transportes é fruto de dois grandes antecedentes, que são a trajetória de desenvolvimento dos sistemas de transportes, com sua capacidade instalada, seu desenho territorial, sua capacidade operacional e em tempo e espaço, suas potencialidades e suas restrições; e a evolução da demanda de serviços de transportes, com sua concentração social e territorial, e com as diferenças entre necessidades de transportes e capacidade de pagamento por esses serviços. A disponibilidade de transportes é sempre específica em relação com cada ponto do território, mas corresponde a linhas de atendimento e áreas de influência. O sistema de transportes desenvolve-se para responder a necessidades atuais e a previsões de necessidades, mas antecipa-se à demanda e modifica o quadro de necessidades futuras, porque a disponibilidade dos serviços de transportes direciona a demanda para os lugares onde os serviços de transporte estão disponíveis e onde podem ser ampliados. E está claro que esses sistemas não podem ser ampliados indefinidamente em qualquer lugar. Há sempre restrições meteorológicas e físicas, bem como restrições das condições operacionais dos sistemas, que põem limites em sua expansão. Há problemas de transportes quando há demanda insatisfeita, ou quando os custos de manutenção dos sistemas não são plenamente absorvidos pela sociedade, isto é, quando 154


os sistemas tendem a se deteriorar, portanto, a perder o valor social incorporado em cada sistema. No plano microeconômico os cálculos de tarifas pretendem cobrir esses custos mediante remuneração direta dos serviços, mas, na maior parte dos casos há subsídios, tanto como um benefício considerado residual nas sociedades mais ricas, como um subsidio – geralmente insuficiente – para grupos numerosos de baixa renda das sociedades submetidas a grande desigualdade de renda e onde há grupos que não têm renda suficiente para pagar pelos serviços que viabilizam sua sobrevivência. Por exemplo, é notório que na maioria das cidades brasileiras os trabalhadores não têm renda suficiente para pagar pelo transporte entre sua moradia e seu local de trabalho e que o controle desse custo de transporte torna-se um forte argumento na posição dos empregadores que garantem essas passagens. Isso corresponde a algumas presunções sobre a demanda de transportes, começando por estabelecer que a demanda de transporte de passageiros, especialmente dos transportes coletivos urbanos, é estimada sobre usos efetivos do sistema de transportes, e não sobre as necessidades mínimas de transportes da população. Nesse caso, uma parte significativa das necessidades dos que estão empregados, mas não dispõem de renda suficiente para pagar transportes. volta a entrar no sistema, através de subsídios ao pagamento das passagens. A demanda inatendida torna-se um elemento de referência nas negociações entre o Estado e as empresas, em que se procura garantir às empresas a renda relativa ao transporte de usuários sem renda. Desde que há uma produção industrializada e que se convive com o pressuposto de que a produção tende a aumentar, presume-se que a capacidade de atendimento dos sistemas de transportes deve aumentar e adequar-se melhor à demanda, mas não há, realmente, uma resposta economicamente satisfatória, para explicar como os custos acumulados dos sistemas de transportes serão absorvidos pela sociedade, tanto no relativo ao aumento dos custos de manutenção dos sistemas, quanto no relativo às perdas de adequação dos sistemas frente a alterações na territorialidade da demanda. A questão central aqui deriva do fato de que os custos dos sistemas de transportes são reconhecidos pela sociedade em termos diretos, isto é, são reconhecidos os custos de um sistema de transportes urbanos rápidos. Mas não são reconhecidos os custos resultantes dos ajustes entre esse modo de transportes urbanos e os demais modos de transportes que operam numa mesma cidade. O mesmo se aplica numa escala maior, em que se vê a rentabilidade positiva ou negativa de uma companhia de aviação, mas não se questiona de qual modo essa rentabilidade é um resultado indireto de ajustes nos sistemas terrestres de transportes, ou, simplesmente, de que variam as necessidades dos usuários desse meio de transportes, que passam a poder operar com menores deslocamentos, com mais tempo para cada deslocamento, ou ainda, que rejeitam a qualidade dos serviços. Ora, como há notórios efeitos de deslocamento entre usos dos sistemas de transportes segundo variam as tarifas e o tempo disponível para espera de mercadorias, torna-se evidente que qualquer análise de um modo específico de transporte depende de dados de outros modos de transporte. Os transportes em geral são reconhecidos como serviços de utilidade pública, em que os interesses privados operam mediante concessões, devendo corresponder a determinados padrões de serviços definidos em função de interesses sociais. O elenco de 155


serviços e os padrões de qualidade são definidos segundo critérios estabelecidos pelo governo, que fica com a responsabilidade de vigiar o cumprimento das concessões. Entretanto, as próprias concessões passam a ser matéria de interesse público. Daí, que a participação dos interesses privados é muito maior e mais complexa que a simples exploração de serviços específicos de transportes. 79 O modo como os custos acumulados dos sistemas de transportes são reconhecidos indica como varia a relação entre a esfera pública e a privada, ou como a sociedade absorve custos que são gerados por interesses privados, pelo modo como eles intervêm em transportes, seja como participantes da oferta de serviços de transporte, seja pelo modo como afetam a composição da demanda, ao realizar loteamentos, urbanizações etc. O financiamento dos serviços de transportes envolve algumas contradições fundamentais, entre a capacidade de financiar a prestação dos serviços e sua lucratividade, a opção de mantê-los como concessões exploradas por interesses privados e os reiterados subsídios, diretos e indiretos, dados pelos governos, para manter padrões de serviços que são considerados como socialmente necessários. Os critérios são claramente políticos. Os subsídios têm alguma justificativa indireta, por exemplo, por seus efeitos na receita de turismo, mas estão ligados a um fator de prestígio e a interesses vinculados a promoção de interesses de empresas. Assim, conquanto as tarifas reflitam estruturas de custos reais e margens de lucro arbitradas, acabam sendo indicadores de condições operacionais desejáveis, por exemplo, com certas margens de reposição de frotas, que servem de parâmetros para concessões e subsídios. O tratamento da questão das tarifas depende, essencialmente, do que se reconhece como custos de transportes. Há diferenças substanciais entre a perspectiva pública e a perspectiva privada. Na perspectiva das empresas são custos dos empreendimentos, que compreendem equipamentos, instalações, salários, que podem ser medidos através dos custos diretos e indiretos dos veículos. Na perspectiva social há dois tipos de argumentos. Primeiro, que os custos e rendas das empresas são custos e rendas em escala sobre suas operações, que, portanto, não podem aparecer através de veículos tomados por separado. Segundo, que é preciso incluir os custos de construção e de manutenção das vias por onde trafegam os veículos e todos os demais custos ligados a essa parte da capacidade instalada. Também, seria preciso contemplar os custos sociais das deficiências e distorções dos serviços, tais como engarrafamentos e atrasos de passageiros em terminais. Isso mostra que num regime de exploração privada dos transportes há uma transferência de custos dos agentes privados para a esfera pública, já que uma parte dos serviços de transportes não são diretamente remunerados pelos seus usuários, em parte porque esses usuários dispõem de poder político para isso e em parte porque os usuários que não podem pagar pelos serviços exercem influência para que o Estado absorva uma 79

Há uma questão filosófica relativa à desejabilidade de que o Estado realize esse tipo de funções, já seja diretamente ou através de empresas públicas, ou que deva entregar esses serviços exclusivamente a interesses privados; e há uma questão objetiva de que os sistemas de transportes precisam de investimentos em quantidade, qualidade e tempos necessários, e que as concessionárias privadas desses serviços freqüentemente atrasam os investimentos e oferecem qualidade inferior à contratada. A experiência da privatização desses serviços, e de sua concomitante internacionalização, mostra que eles só podem ser regulados por estruturas públicas dotadas de poder suficiente para exercer duramente os contratos e revogá-los quando necessário.

156


parte de seus custos. O problema se resume numa disputa pela capacidade de transferir custos privados para a esfera pública. Alguns antecedentes Pode-se dizer que, no essencial, a chamada segunda revolução industrial – 1870 a 1939 - foi puxada por uma determinada composição de sistemas de capital social básico, onde os mais importantes foram os de energia e de transportes. A ligação desses dois campos é evidente, mas cada um deles requer um tratamento especial, tanto por seus aspectos técnicos como pelos seus efeitos sociais. A integração dos transportes é anterior à dos sistemas de distribuição de energia elétrica e resulta da difusão do uso dos motores a combustão interna. A industrialização dos transportes significou um aumento maciço do uso de energia, a seguir, de um uso programado de energia, e, finalmente de usos não controlados de energia, com a difusão dos usos de veículos particulares. No final, resultou numa rearticulação dos territórios da produção e do consumo, viabilizando a concentração da produção em alguns pontos privilegiados da economia internacionalizada. A expansão das redes integradas de transportes resultou numa hierarquização dos espaços econômicos, com alguns espaços privilegiados que são bem dotados de serviços e os demais, que ficam em diferentes graus de carência dos serviços. Naquela oportunidade da segunda revolução industrial houve, de fato, uma revolução dos transportes, que passaram a funcionar como um conjunto de sistemas integrados, movidos por um mesmo combustível, formando redes contínuas e oferecendo serviços segundo um padrão geral de planejamento. A cobertura dos sistemas, em extensão, intensidade e qualidade dos serviços que ofereciam, tornou-se conhecida e previsível. Assim, tornou-se possível fazer previsões precisas de tempos de deslocamento de mercadorias, e daí, emitir títulos por entrega antecipada de mercadorias. A rede de transportes criou um novo padrão de inclusão e de exclusão de território, com as áreas de influência das estradas e dos portos e em conseqüência disso, um padrão de valorização de terras. Com isso, os transportes passaram a influir na formação da renda da terra e na formação da renda imobiliária urbana. A economia mundial funcionou basicamente segundo esses padrões até a segunda guerra mundial, que foi, em muitos aspectos, uma guerra do petróleo, e que deu lugar a um novo conjunto de sistemas, com algumas mudanças decisivas em relação com o anterior, dentre as quais se destacam, a emergência do transporte rodoviário, a expansão do transporte aéreo e novas condições operacionais dos portos. A segunda guerra mundial foi um divisor de águas. Criaram-se veículos resistentes em série. Criou-se uma malha rodoviária. Melhoraram os motores a diesel. Já despontava o transporte individual como um elemento significativo do serviço de transportes, mas ainda restrito às cidades. Difundia-se o fordismo como forma de organização social da produção.80 80

O fordismo é uma proposta da década de 1920, que se internacionalizou depois da segunda guerra mundial, junto com a transnacionalização das grandes empresas norte-americanas. Há inúmeras questões relativas ao

157


Depois da segunda guerra mundial houve um período de reposição de frotas e de reaparelhamento em geral dos sistemas de transportes, seguindo os mesmos padrões de articulação entre sistemas. Os custos de transbordo entre sistemas continuaram elevados, assim como os custos de operação portuária, tanto naval como aérea. Entre 1945 e 1970 os sistemas se expandiram sobre a base de um uso generalizado de petróleo e derivados, com pesados investimentos em estradas e vias complementares e com melhores sistemas de controle das operações dos navios, dos aviões e dos caminhões. Rapidamente, revelaram-se os efeitos do controle do suprimento de petróleo no desenvolvimento dos países. Essa expansão dos transportes na esfera internacional tornou patente o atraso do Brasil, que em 1955 tinha apenas 17.000 km de estradas confiáveis. A primeira grande crise do petróleo em 1973 na verdade expôs um problema que já se conhecia então há quinze anos, e que consistia na fragilidade das economias industrializadas que dependem de energia importada, conforme ficou perfeitamente claro na Conferência das Nações Unidas sobre Novas Fontes de Energia, de agosto de 1961. A crise do petróleo expunha os problemas conseqüentes da impossibilidade de substituir algumas fontes para alguns usos específicos, tal como no caso dos transportes rodoviários, que, obviamente, não podem substituir petróleo por energia elétrica. As restrições de substituição mostravam os aspectos rígidos e a flexibilidade de cada sistema nacional para adaptar-se aos energéticos de que dispõe. As possibilidades e as restrições de uso em larga escala de fontes ditas alternativas de energia, criavam uma segunda linha de defesa para os países mais necessitados, para consumo doméstico e para industrialização. Países que se encontram com poucos energéticos convencionais e pouca capacidade para importar, podem procurar soluções alternativas para seu balanço energético.81 Na realidade, diante de um aumento maciço do consumo de energia pela indústria e pelas grandes cidades, os países passaram a precisar de dispor de políticas de energia e a trabalhar com previsões de crescimento de oferta e de demanda e por composição das fontes de energéticos disponíveis. A concentração dos transportes tornou-se a concentração de usos de energia. Algumas alternativas que surgem, tais como de uso de gás natural, são variantes que reduzem a rigidez da demanda de combustíveis, mas que não alteram o padrão básico de dependência dos combustíveis fósseis.

significado social e técnico do fordismo, que se propõe oferecer bens de consumo durável para os grupos médios de renda, ao tempo em que controla o consumo e cria novas condições para extrair mais valia em setores da produção onde as margens de lucro tendem a declinar rapidamente. O fordismo tornou-se um símbolo da produção em massa e da separação dos trabalhadores do conhecimento dos processos de produção. Na realidade, o fordismo acena com uma eficiência imediata ao nível de cada estabelecimento produtivo e baseia-se numa perfeita mobilidade do trabalho. 81 O conceito de fontes alternativas ou de fontes não convencionais é relativo ao das fontes consideradas como principais, que seriam aquelas que alimentam os grandes sistemas em rede, que são petróleo e energia hidrelétrica. Torna-se absurdo pensar que a energia hidráulica e a eólica, que são aproveitadas há milhares de anos, sejam agora consideradas como alternativas. Na prática, trata-se da diferença entre os sistemas principais, organizados pelo uso de petróleo e pelo de energia elétrica e os sistemas de pequeno porte, organizados pela produção e pelo consumo de outras fontes de energia.

158


A crise do petróleo em 1973 tornou públicas, através do preço do petróleo, as restrições energéticas do funcionamento dos sistemas econômicos nacionais, determinando quatro categorias de países, que seriam os países superavitários em energia e grandes usuários, os países deficitários em energia e grandes usuários, os países superavitários e grandes exportadores de energia e os países deficitários em energia e com pouca capacidade de importar energia. Os principais países industriais tornaram-se grandes compradores de energia e passaram a tratar suas próprias reservas como reservas estratégicas. Os Estados Unidos tiveram uma grande vantagem inicial, do começo do século, que lhes permitiu avançar com um modelo rodoviário dispendioso, mas passaram a uma posição vulnerável, devido à diferença entre o crescimento de seu consumo e o de suas reservas. Na oportunidade da crise, o Brasil saiu com um programa de energia alternativa – Proalcool – que deve ser lido como um programa de viabilização de transportes sem dependência de petróleo. Em sua forma inicial esse programa entrou em diversas contradições, mas o aparecimento de motores flexíveis para dois combustíveis pode reativar a produção de álcool combustível. Os anos cruciais da crise energética foram, também, anos de mudanças profundas no sistema de transportes, onde decuplicou o tamanho dos petroleiros, foram introduzidos novos dispositivos de manejo de carga, como os contenedores e a carga por aspiração, e difundiu-se o uso da navegação guiada por satélite. O controle informatizado dos transportes aéreos e dos ferroviários tornou-se o mecanismo central de integração dos grandes sistemas, que passou a permitir-lhes operar localmente com os mesmos padrões de eficiência cronometrada dos movimentos intercontinentais. Paralelamente, tornou-se necessário pensar nos sistemas de pequeno porte, afastando-se do pensamento típico da segunda revolução industrial, de pretender articular os sistemas de produção mediante um grande sistema de transportes e um grande sistema de energia. A necessidade de combinar a eficiência em grandes trajetos com a eficiência local, tornou necessário explorar as possibilidades oferecidas pelas combinações de modos de transporte, isto é, da multimodalidade. A questão da multimodalidade dos sistemas de transportes revelou-se, então, como um aspecto essencial da operacionalidade dos transportes, que permitiria desbloquear as articulações entre grandes sistemas e ser localmente eficiente. Observe-se que a segunda revolução industrial apoiou-se, principalmente, na combinação dos transportes ferroviário e marítimo com o uso sistemático de carvão, e que o desenvolvimento de novos motores a diesel permitiu alterar as curvas de custos dos transportes ferroviário e rodoviário, alterando as curvas de custos dos transbordos de mercadorias. O desenvolvimento dos sistemas de transportes levou a considerar dois tipos de despesa pública, respectivamente, na ampliação dos sistemas provedores do serviço e na manutenção dos sistemas. A seguir, levou a examinar as despesas com transportes em seu conjunto como parte do fundo público, com que o Estado indiretamente beneficia mais a alguns setores que a outros e a alguns grupos que a outros. Esse é o significado regional do desenvolvimento do sistema de transporte. O direcionamento das despesas públicas diretas com transportes e dos contratos de governo com empresas prestadoras de serviços de transporte resultam num padrão social e territorial de concentração de capital que fortalece algumas regiões e debilita outras, que inclui algumas e exclui outras.

159


Na perspectiva estritamente econômica, as despesas com manutenção têm um efeito final semelhante ao da expansão do sistema, termos de um efeito multiplicador no sistema produtivo, mas têm efeitos diferentes no relativo à distribuição da renda, porque representam obras que podem ser realizadas por empresas de menor porte, que são realizadas com regularidade. Os gastos com a expansão dos sistemas e com sua manutenção são interdependentes e se refletem no acelerador do sistema de transportes, que nada mais é que o efeito dinâmico da reposição de veículos através da indústria produtora dos veículos, já sejam caminhões ou navios. Em cada sistema a reposição tende a ser sempre dos veículos mais velhos, com o que, dá lugar à entrada de veículos mais novos, que funcionam como portadores de renovação tecnológica. As escolhas tecnológicas estão dentre as principais manifestações de poder no tratamento dos transportes e onde se manifestam decisões da esfera internacional e da nacional. A localização, o traçado e a qualidade das rodovias são escolhas que representam transferência de valor para os interesses sociais que são atendidos, ao tempo em que pré condicionam sua capacidade de participar de mercados regionais ou de exportar. Convergência e dispersão na cobertura da malha de transportes Isso quer dizer que a disponibilidade dos serviços é condicionada pelas condições de lucratividade dos componentes do sistema. Os interesses envolvidos na malha territorial dos sistemas de transporte traduzem-se numa progressão de decisões econômicas e técnicas que condicionam a convergência ou a dispersão da malha de serviços de transportes. Revelam-se, portanto, os interesses de classe que sustentam as decisões técnicas.Assim, ao longo do tempo forma-se uma malha de densidade desses serviços, em que cada modo de transporte se desenvolve com uma lógica própria, com efeitos secundários de competitividade entre os diferentes modos de transporte, que se tornam progressivamente mais importantes. É o que tem acontecido, por exemplo, na relação entre a organização dos transportes de carga que toma os caminhões como referência principal, e a que toma o transporte ferroviário como principal. As grandes opções de logística que surgem de combinações de cada um desses modos de transportes terrestres com o transporte marítimo têm, por sua vez, diversos e sucessivos efeitos na organização regional e na organização urbana dos transportes, que se convertem em nódulos, com efeitos retroativos cada vez maiores. A funcionalidade do sistema se altera à medida que os sistemas específicos se desenvolvem, porque se introduzem elementos inerciais de dispersão, resultantes da busca de eficiência em cada sistema, antes de considerar os efeitos interativos dos sistemas. São contradições entre objetivos operacionais que surgem em diferentes níveis de generalidade, que só podem ser compatibilizados quando são deslocados a um maior de generalidade. Tudo isso se reflete no corte regional de integração de subsistemas de transportes. Os subsistemas se desenvolvem cm referências locais, que só são captadas em parte no nível geral de articulação dos sistemas. A geografia dos transportes converte-se num mapa de custos, que são registrados pelos agentes econômicos, e passam a fazer parte de seu programa de investimentos. Por exemplo, para as empresas,o traçado das ferrovias e a 160


capacidade dos portos tornam-se referencias para seu programa de investimentos. Progressivamente, são necessários ajustes que restabeleçam a continuidade do cálculo econômico do conjunto, Essa inércia de dispersão só pode ser superada ou revertida, se as associações entre os sistemas forem consideradas desde seu primeiro momento, isto é, desde quando o desenho técnico e territorial dos sistemas for concebido como um conjunto. Mas está claro que as condições iniciais de qualquer sistema não se mantêm indefinidamente ao longo de seu desenvolvimento. Trata-se, portanto, de um problema de planejamento que só pode ser resolvido quando colocado em sua real escala de complexidade. Atração de capitais e de trabalho qualificado Os sistemas de transportes são sistemas de qualidade, isto é, operam sempre com níveis de especialização do capital e de qualificação do trabalho superiores à media do sistema de produção. Sua eficiência depende da preservação desses padrões de qualidade, tal como se vê claramente na navegação intercontinental e nos aviões, mas que atingem todos tipos de serviços de transporte. Na prática, os serviços de transportes que se mantêm com qualidade marginal só podem sobreviver em ambientes em que não há alternativas técnicas para eles e em que não há uma demanda suficiente para atrair novos investimentos. Daí, que nas regiões atrasadas e pouco dinâmicas tenham se sustentado serviços de transportes nitidamente arcaicos. A cobertura dos sistemas de transportes corresponde ao perfil dos requisitos do capital para se reproduzir, que são requisitos econômicos e políticos. Não há como compreender o funcionamento dos sistemas sem reconhecer que o funcionamento dos transportes resulta, primordialmente, de decisões impregnadas de política. A atualização dos sistemas corresponde a expectativa de padrões de serviços que se espera alcançar, indicando os serviços socialmente necessários, isto é, a quantidade e a qualidade de serviços necessárias para que o sistema produtivo funcione. Assim, há uma diferença entre a necessidade social de serviços de transporte e as preferências de negócios na exploração de serviços de transportes. Por isso, e como a oferta de serviços de transporte está regulada por requisitos de qualidade, as concessionárias tendem a procurar uma relação entre riscos e lucros mais favorável que na média dos setores da produção. Como as tarifas não podem se distanciar muito da renda média dos usuários, a alternativa tem sido de procurar ganhos oligopólicos reconhecidos pelo Estado. 82 Encontra-se ai uma contradição entre as doutrinas que advogam pela liberação dos mercados e esses ganhos de oligopólio, que são o reconhecimento de ganhos pelo favorecimento de empresas selecionadas.

82

As “teorias” da regulação e do monopólio “natural” entendem que no ambiente do capitalismo globalizado é preciso aceitar condições excepcionais de ganhos monopólicos em serviços que de outro modo não seriam atrativos para aquelas empresas que teriam condições objetivas de oferecê-los. Essas teorias não questionam como se refletem esses ganhos de monopólio na distribuição da renda. Ora, nosso problema consiste, justamente, em que os ganhos de monopólio descrevem – pela inversa – a exclusão dos grupos sociais que não têm renda suficiente para pagar por esses serviços.

161


Enfrentam-se custos crescentes de manutenção dos sistemas de transportes, que tornam progressivamente mais difícil recompor níveis anteriores de eficiência sem quantiosos investimentos que não podem ser realizados numa estrutura de financiamento baseada em equilíbrio fiscal a curto prazo. Os temas de atração de recursos para atender a esse setor tornam-se estratégicos, na medida em que o atraso dos serviços de transportes se torna um bloqueio interno do crescimento do sistema produtivo e na medida em que o crescimento do produto social deriva em aumento dos usos de transporte do mesmo modo como deriva em aumento de usos de energia. . 19. A questão social de educar Condições históricas da educação Numa perspectiva social da economia a educação se vê como um processo que envolve a sociedade em seu conjunto e a totalidade das práticas sociais, desenvolvendo-se de modo desigual na variedade dos relacionamentos em sociedade, nas diversas condições de organização da esfera doméstica e da esfera pública de relações, assumindo diferentes formas segundo as condições de relações de classe. O processo de educar é inseparável da atividade de produzir, pelo que ela constitui o principal meio de criar e organizar experiências que passam a ser transmitidas pelo mecanismo educativo. No essencial, o processo de educar é o mesmo de ampliar a capacidade de aprender. Nesse processo de conhecer há aspectos fundamentais, permanentes, tais como dos fundamentos do próprio processo de conhecer; e outros aspectos que correspondem às condições históricas da vida material, que estão sujeitas a constante mudança. Educar é um processo de socializar essa capacidade de conhecer, pelo que envolve sempre a relação de poder entre o controle do conhecimento e a capacidade de interferir na socialização do conhecimento, O processo de educar envolve a organização e as transformações das esferas da vida familiar e da vida pública e se desenvolve sobre movimentos de engajamento de trabalho, que compreendem a totalidade da participação das pessoas no mercado de trabalho e nas atividades da esfera doméstica, isto é, de como cada pessoa contribui em cada uma dessas duas esferas. Educar é transmitir experiência, por isso é o modo de relacionamento de cada geração com a geração seguinte, mesmo quando os sinais que identificam as gerações são alterados pela internacionalização dos relacionamentos. O mecanismo da educação consistirá, em todo caso, em alterar as condições de conhecimento e de ampliar a capacidade de conhecer, pelo que, encontra-se sempre entre os movimentos de preservação de privilégios ou em democratização de conhecimentos socialmente restritos, Esse é um dilema antigo, que contrapôs as religiões iniciáticas e as religiões populares, assim como sustentou a formação de sistemas educativos oficiais, que usam a restrição educativa como controle ideológico. A catequização foi um mecanismo de educação controlada e os impérios coloniais em suas diversas formas, usaram a educação

162


repressiva como modo de controle social. 83 Os sistemas educativos aparentemente livres das universidades modernas continuaram usando a prática de administrar a validade do conhecimento. A superação do colonialismo em suas diversas formas é uma ruptura com esses mecanismos de exclusão . 84 Nessa perspectiva, a educação é o aspecto central de uma proposta social de economia, que deve pensar o sistema produtivo como um meio de valorização humana, em que o meio sem fim da acumulação de capital depende da capacidade de incorporar valor no trabalho. Sem que o trabalho se valorize, o capital se desvaloriza. A educação revela o sentido de finalidade do desenvolvimento do sistema produtivo, com seus conteúdos técnicos e seus aspectos organizacionais. Surge como um contraste entre os dados abstratos de um ideário declarado democrático e as condições concretas da exclusão econômica.Mas, para que se articule uma proposta significativa e pertinente de educação, é preciso estabelecer como se vê o processo social de educar na sociedade de hoje, em que se cruzam os impactos da globalização e da subalternização, com os efeitos da liberação de minorias e com a eclosão de movimentos sociais que se identificam mediante a apropriação de acervos culturais que até agora foram desvalorizados e desqualificados. Nestas circunstâncias, torna-se claro que não se trata de um processo simples e linear de educar, senão que se trata de um conjunto de processos, que intervêm simultaneamente nos diferentes momentos da vida das pessoas, que compreendem movimentos positivos e negativos de aprendizagem e transmitem diferentes visões culturais do processo de educar. 85 Como o conhecimento socialmente disponível muda, educar não será realmente apropriar-se de conhecimento, senão consistirá em ampliar a capacidade de apropriar-se criticamente de conhecimento e ganhar capacidade de alterar o conhecimento já disponível. Na perspectiva social da economia não se trata, portanto, de resolver problemas operacionais do sistema educativo, senão de ver o sistema educativo como um produto desse entrecruzamento de processos de aprendizagem, que prossegue, alterando as condições de autonomia, de subalternidade e de emancipação. A educação descobre problemas e encaminha propostas de tratamento de problemas, mas educar em si é uma experiência, que não pode ser reduzida aos dados imediatos de mercado sob pena de se reduzir a um mecanismo de transferir produtos e não de atuar sobre capacidades. 86 83

A universidade secular de Chuquisaca na Bolívia ensinava no século XIX que a Terra é plana, do mesmo modo como os fundamentalistas norte-americanos hoje continuam a repudiar a noção de evolução das espécies. 84 Ver a visão de educação transmitida em Werner Jager, em sua Paidéia, (Madrid, Alianza Editorial, 1987). A pedagogia é a parte mais sutil do projeto de poder, onde se realiza o controle da relação entre gerações e onde se definem os ideais culturais que se reconhecem como civilização. 85 Cabe aqui uma referência ao trabalho de Dermeval Trigueiro Mendes, Existe uma filosofia da educação brasileira? Filosofia da educação brasileira , Alfredo Bosi, Dermeval Saviani, Dermeval Mendes, José S.Horta, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998. A discussão do projeto educativo é um problema de classe que se situa na história. O contrário desse movimento é a constatação de um tempo sem história da invasão de símbolos de uma cultura de massa invasora. Aí, é preciso referir ao ensaio de Carlos Fuentes intitulado De Quetzalcoátl a Pepsicoátl, em seu Tiempo mexicano (México, Joaquin Mortiz, 1972). 86 As críticas que se acumularam, desde as de Theodor Adorno, à indústria cultural aplicam-se plenamente à visão positivista da educação, que a reduz a padrões normativos e que a padroniza segundo as visões pragmáticas e produtivistas. O viés especulativo do processo de educar surge como o único recurso de

163


O desenvolvimento dos meios de comunicação fez com que a educação se tornasse um processo mais integrado ao cotidiano, e, por isso, mais exposto a influências variadas do controle dos meios de comunicação, que alteram as mensagens educativas e mesmo, que modificam as referências com que elas são lidas. A separação entre forma e conteúdo e a substituição da análise dos conflitos de interesse pela análise das condições de comunicação evade o problema da relação entre as condições de classe e as de comunicação, fixando a linguagem como um construto a ser tratado como estrutura lógica e não como um processo de sociedades específicas.87 O poder de generalizar formas de linguagem e de situá-las fora de seu contexto original, torna-se capaz de produzir interferências que não são somente desestruturantes, senão que transmitem novos códigos culturais e novo modo de se situar frente a realidade. A globalização faz com que cada contexto social seja atingido por mensagens geradas em algum ponto dos centros integrados ao mecanismo capitalista das comunicações. Os antecedentes da colonização e da dependência tornam necessário reconsiderar as condições históricas da educação no Brasil, compreendendo a relação entre a formação das necessidades sociais de educação, a produção social de educação e a formação de um sistema educativo. A própria formação histórica da educação tem que ser historicamente situada, isto é, tem que ser colocada frente às mudanças do contexto dos problemas de educação da sociedade colonial, da pós colonial e da sociedade urbanizada, concentrada em grandes cidades e com uma grande variedade de situações rurais, de mudança e de estagnação. A identificação correta do objeto social da educação já é uma parte essencial do método com que se trabalha. Historicamente, há duas ressalvas fundamentais, a serem feitas na experiência do Brasil, sendo uma delas relativa à criação de um sistema de educação pública e outra relativa ao papel do sistema educativo como sistema de controle social. A criação do sistema de educação pública foi um fator decisivo na formação do trabalho livre e na superação do controle colonial da educação. Como se sabe, até o fim do período colonial, o Brasil foi proibido por Portugal de ter estabelecimentos de ensino superior. Mas o sistema de ensino foi utilizado como mecanismo de controle social pelos regimes autoritários, emancipação frente à maquinaria da educação padronizada. A educação será dialética na medida em que funcionar como meio de expor as contradições do modo normativo e pragmático. A crítica de hoje ao discurso único, na verdade, tem que voltar ao absolutismo lógico, denunciado pelo próprio Adorno, que exclui as contradições e as controvérsias e leva ao autoritarismo das grandes universidades e das universidades dos países hegemônicos, que se tornam a matriz da dominação. 87 O debate acerca do papel da linguagem no pensamento moderno e no ultramoderno ultrapassa o questionamento da linguagem como simbologia e como meio cognitivo, para atingir a separação entre a esfera comunicacional e a do fundamento ideológico do controle da linguagem. O fundamento ontológico focalizado por Lukács (Teoria do romance) e por Adorno (Dialética negativa) esvai-se no ecletismo de Habermas (Teoria da ação comunicativa), ou segue pela corrente pragmatista (Peirce, James) ou pela retomada de uma filosofia sensorial (Merleau Ponty) desentendendo-se dos problemas de estruturação social na apropriação da linguagem. Essa desqualificação dos fundamentos sociais da linguagem tem um alcance indireto decisivo na teoria da educação, que se passa como blocos de conhecimento, que, por isso podem ser tratados como modelos de armar. Os procedimentos de método serão padronizados, as disciplinas serão independentes umas das outras, e a realidade poderá ser captada mediante estudos de caso separados uns dos outros.

164


desde o Estado Novo. Desde então, tornou-se necessário reavaliar o significado do controle da educação pelo Estado brasileiro e por outros mecanismos de controle dos países hegemônicos. No processo da educação, mais que noutras partes, a questão da subalternidade revela-se mais complexa que o controle das referências da educação para alcançar o modo de pensar. Em suma, trata-se do fundo ontológico da alienação, em que a identidade do dominado depende de uma defesa de interesses de classe que se faz mediante os próprios objetos da alienação. No ambiente fraturado da sociedade ex-colonial a identidade das elites se afirma pela relação externa; e a identidade dos grupos que estão ligados a elas se faz mediante mecanismos de adesão, que resultam em alienação frente aos fundamentos de classe e etnia. Internamente, os grupos que lutam para serem reconhecidos como elites, buscam referências externas para sua diferenciação interna. Os fatos locais de poder precisam de uma legitimação do centro do sistema, que é parte da hierarquia do poder. As elites locais buscam legitimizarem-se, absorvendo a mesma linguagem tradicional do centro do Império, tal como ficou, patente e patético, na transformação de proprietários rurais em barões, condes e viscondes no Brasil imperial, mas dependendo de referências externas para sua legitimação local. Nas condições de hoje, o sistema educativo é produto de uma sucessão de intervenções dirigidas por uma modernização conservadora, que, entretanto, foi vulnerada, em mais de um momento, por influências de conflitos de classe. Frente às necessidades de uma população crescente e mais urbanizada, há um problema de expansão, em extensão e em qualidade, do sistema educativo, e de sua capacidade de atender a sociedade. Coeficientes tais como de evasão, assinalam desajustes operacionais, mas não deixam ver os desvios de qualidade, que estão por baixo da incapacidade do sistema educativo para se adequar à realidade. Desde o período entre as guerras mundiais, a partir da experiência autoritária do Estado Novo, o tratamento da questão educativa no Brasil tornou-se inseparável da vida política pública do país, com sucessivas interferências do poder central, em diversos níveis, desde o controle da capacidade de pesquisa das universidades públicas ao controle dos currícula do segundo grau e ao favorecimento da educação privada sem controle efetivo de qualidade. O governo autoritário do Estado Novo, com a reforma Gustavo Capanema, assumia a condução do sistema educativo como eixo central da construção ideológica do Estado moderno autoritário centralista brasileiro. O mesmo processo se repetiu, simetricamente, no período de ditadura, substituindo a referência ao fascismo italiano pela referência à supremacia norte-americana. Os problemas concretos de educar uma nação atingida por uma exclusão crescente continuaram, mas a incapacidade do Estado, de oferecer uma alternativa satisfatória para as necessidades de educação da maioria, levou a um sistema privado financeiramente excludente e a uma queda dos padrões de qualidade do sistema em seu conjunto em seus componentes de educação básica e média. O “projeto educativo” da colonização

165


A colonização teve um papel fundamental na formação das filosofias de educação que constituíram os fundamentos do processo de educação que esteve na base da formação social do Brasil. A colonização iniciada no século XVI representou um processo de apropriação de elementos culturais, que resultou em modificação do próprio sistema colonizador, que encontrou suas limitações nas lutas entre os impérios. O mesmo não aconteceu com a colonização conduzida pelo imperialismo desde o século XIX, quando os países mais industrializados simplesmente avançaram na captura de matérias primas, como uma operação subsidiária de sua produção industrial. Essa distinção entre esses dois grandes períodos da colonização faz-se necessária para que se compreenda o significado maior da colonização como projeto de poder político mundial. A colonização é um projeto de controle social explícito e geralmente irrestrito, que se propôs a dar uma educação para subordinar, que somente através das contradições que desenvolveu, deu lugar a movimentos socialmente inclusivos. O projeto educativo da colonização consistiu em uma transferência de padrões oficiais da metrópole, que tiveram a finalidade de criar grupos sociais dependentes, especialmente os indígenas, já que não se pretendia catequizar os negros, senão simplesmente dominá-los. O projeto educativo da colonização surgiu como um projeto em dois níveis, que foram os de homogeneizar a maioria através do processo de catequese e de criar oportunidades especiais para as elites, que tiveram acesso a educarem-se diretamente na metrópole. Por isso, a educação seria mantida como um componente externo do sistema, planejado para manter as desigualdades sociais. Esses foram os dados básicos do processo, que, entretanto, modificou-se, gradualmente, à medida que a reprodução da sociedade colonial, nas diversas regiões, gerou experiências próprias, que reverteram no modo de educar, e que contribuíram para criar opiniões próprias da colônia. A dialética da colonização é o movimento contraditório do Império Português, que se revela historicamente insustentável, mas que se projeta no Império Brasileiro, com suas próprias contradições de construção de uma identidade num ambiente inercialmente autoritário. 88 A principal originalidade do projeto educativo da colonização foi, justamente, de se aferrar ao modelo inicial, isto é, de não se qualificar para responder às transformações sociais e econômicas do espaço social da colônia, que se tornariam decisivas, desde quando se desencadeou um processo de hegemonia interna e que a colônia passou a controlar a própria escravidão. O perfil inicial da metrópole torna-se contraditório com a reprodução do sistema de poder que ele encabeça. A questão que se coloca desde o século XVII, com a expulsão dos jesuítas, é a necessidade de um sistema educativo alternativo para a colônia, que acompanhe as transformações e o aumento de complexidade da sociedade. A questão surge como uma contradição do sistema, que se torna incapaz de gerar suas próprias 88

Em sua Dialética da colonização (Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2001), Alfredo Bosi oferece uma análise em perspectiva histórica dos movimentos internos da colonização enquanto projeto cultural de poder, mostrando que os elementos de conflito já estavam presentes desde a origem da colônia, e que se transformam mercê dos próprios processos coloniais.A violência da dominação colonial, que teve seus pontos máximos na destruição física e na humilhação sistemática dos dominados, tanto dos escravos como dos periféricos do sistema escravista, e que se internalizou na estrutura familiar, permaneceu na base da sociedade dividida, sob diversos disfarces, solidamente instalada na desigualdade do sistema educativo.

166


soluções. É revelador que as lideranças dos movimentos de libertação tenham sido integradas por pessoas que tiveram acesso direto aos processos educativos externos à colônia. No entanto, a emergência de uma situação predominante de conflito não foi um processo linear nem sem retrocessos. Os interesses dos integrantes coloniais do império foram completamente convergentes em diversos pontos, tais como a manutenção da escravidão e os projetos de poder na Bacia do Prata. A maior parte dos massacres e da destruição da sociedade e da natureza foi perpetrada pelos integrantes da sociedade colonial, nas diversas regiões, com especial destaque para os bandeirantes. A sociedade colonial se aprofunda e transforma nas regiões de colonização mais estáveis e onde houve substituição de formas de produção. O desenvolvimento da sociedade colonial criou suas próprias necessidades de educação e desenvolveu mecanismos de educação, que se tornaram visíveis nos movimentos regionais de independência. Transformações positivas e negativas Os progressos alcançados no Brasil no diagnóstico dos problemas de educação e na concepção e formulação de políticas de educação corresponderam à formação de setores da sociedade dotados das condições econômicas suficientes para desenvolverem uma capacidade própria de representarem seus interesses. Isso significa o aparecimento de grupos sociais urbanos vinculados a relações de trabalho contratado, supostamente independentes. Indiretamente, isso significa o aumento das atividades remuneradas e menos dependentes dos anteriores controles políticos da economia, isto é, o aumento das funções técnicas da esfera governamental e o aparecimento de um mercado de trabalho contratado. No entanto, não é um movimento linear de reivindicações e obtenção de respostas. A questão da educação é um espaço de poder que foi disputado pelas influências da educação de inspiração religiosa, pelas iniciativas do Estado centralista, que usou a educação como parte do controle social de sustentação do projeto de poder modernizador nacionalista e ainda, foi um espaço de poder permeado pela atividade política, portanto, que registrou as influências dos movimentos ideológicos na sociedade brasileira. O quadro, portanto, é de um conflito de influências, que se projetaram no cenário político desde o Estado Novo, que foi um projeto autoritário de educação em massa. O fim da segunda guerra mundial abriu o Brasil às influências dos países vitoriosos, especialmente dos Estados Unidos, cuja influência já se ampliava desde a década anterior. Desde então, a questão educativa passou a ser objeto de outros projetos de modernização, que vieram a incorporar esforços de reconhecer o fundamento cultural da sociedade brasileira, ou que procuraram caminhos alternativos para resgatar as práticas como referência de um projeto de apreensão dos movimentos da modernização. A rigidificação do sistema educativo oficial, deliberadamente prejudicado pelos golpes de Estado nos diversos países latino-americanos, deu lugar a movimentos sociais que pretendem atingir a educação, tanto como um instrumento de reivindicação de classe, como um meio de valorização étnica.

167


O processo social de educar passou a alimentar-se de referências das vivências da sociedade nacional, num movimento em que a literatura tem um papel essencial, tanto na construção de uma linguagem unificadora como na construção de um quadro de referências que definem um perfil do universo cultural nacional. Assim, o projeto educativo é a síntese da formação cultural e tem, subsumida, uma filosofia da cultura. Assim, conscientemente ou não, a experiência do país pós colonial perfilha uma formação cultural, que passa a ser a matriz do debate tácito acerca de educação. 89 A expansão da produção capitalista desde a década de 1920 determinou uma mudança fundamental no panorama da questão educativa, ao polarizar as anteriores relações de trabalho patrimoniais através do segmento de relações de trabalho contratado, tanto do trabalho diretamente assalariado como do trabalho contratado temporário. A emergência da sociedade de classes representou um corte transversal das estruturas regionais, desenvolvendo referências genuinamente nacionais, isto é, referências que ultrapassam a esfera de cada região em particular, e ligando o veículo internacional à reprodução da força de trabalho em seu conjunto. Nesse contexto, as migrações internas assumem um papel especial, secundado pela imigração, que redistribui pelo país migrantes educados e não educados, qualificados e não qualificados. A sociedade de classes desenvolve valores profissionais que correspondem a expectativas de remuneração e de vida útil profissional, que se comparam cm os custos da formação profissional. Esses custos e o controle dos meios de ensino, resultaram em outra fonte de diferenciação social, cm traços de uma sociedade de castas. A educação torna-se um meio de poder associado ao controle dos segmentos técnicos da máquina de governo. Surgem padrões de educação identificados com competência técnica e com capacidade operacional. A crise de valores transforma-se em crise funcional do sistema educativo, que passa a ser desafiado a produzir estruturas de ensino capazes de responder às novas necessidades do funcionamento do sistema de produção. A abrangência, a flexibilidade e a qualidade do sistema educativo são julgadas em função das necessidades que o sistema antepõe para sua reprodução. A capacidade de educar do sistema de poder, seus movimentos positivos e negativos em relação com essa capacidade de educar surgem, portanto, ao longo do tempo, nos períodos em que os projetos de educação são julgados, frente ao quadro de necessidades do sistema socioprodutivo. O sistema de poder desenvolve competências para manifestar seus interesses, mas não necessariamente opera com níveis de competência equivalente, mesmo entre sociedades aparentemente semelhantes ou que se encontram em níveis equivalentes de desenvolvimento. Uma revisão das ditaduras autoritárias populistas latino-americanas mostra diferenças substanciais entre ditaduras de países pequenos e aparentemente organizadas do mesmo modo, assim como mostra que o populismo, que aparece no começo do século XX, em diversas situações, também se realiza com grandes diferenças no relativo a captar o imaginário da população periférica urbana e a identificar os grupos que poderiam vir a constituir o fundamento desses regimes. Há populismos que se apóiam em captar ressentimentos étnicos, tal como no Haiti, há populismos que surgem no contrapé do 89

Sobre esse movimento inerente ao desenvolvimento social do país, cabe rever, de Luis Sergio Coelho de Sampaio, Filosofia da cultura, Brasil: luxo ou originalidade Rio de Janeiro, Editora Agora da Ilha, 2002.

168


desemprego de sociedades plenamente urbanizadas conquanto desigualmente industrializadas, tal como na Argentina, e há populismos que se apóiam na transformação da sociedade, tal como no Brasil. Assim, na perspectiva das transformações do sistema produtivo, a questão educativa aparece, simultaneamente, em dois níveis, que são os de enfrentar a brecha de conhecimentos gerais, que significa tratar com o desenvolvimento geral das ciências, e de criar a capacidade técnica necessária para operar as transformações práticas do sistema. No primeiro caso, a educação desempenha a função de responder ao componente especulativo do conhecimento, que reflete as inquietações e insatisfações com o conhecimento disponível. Na segunda acepção trata-se do conhecimento instrumentalizado, que corresponde ao conceito de Kant de entendimento 90, e que se realiza na esfera da ciência normal, na linguagem de Thomas Kuhn.91 A subseqüente questão que se coloca na perspectiva de uma teoria do agir social 92 encontra-se na relação entre as práticas que se realizam com o conhecimento instrumentalizado e o desdobramento das contradições e das insuficiências, que leva a trabalhar no nível especulativo e a questionar os limites, as inadequações e as contradições do corpo de conhecimento que é transmitido. Entende-se, portanto, que a validade da educação está em que ela preserve seu significado crítico, que está, justamente, em sua capacidade de transmitir uma visão socialmente processada da realidade social. A economia da transformação educativa O processo educativo muda inevitavelmente ao longo do tempo e especialmente quando a sociedade passa por transformações econômicas e políticas significativas. Há, portanto, uma economia da transformação educativa, porque a sociedade gera novas necessidades de educação, junto com suas transformações no sistema produtivo; e a mobilização de recursos humanos para educar é uma opção econômica da sociedade, que, ao canalizar recursos para esse fim, retira de outros usos. O uso de trabalho para educar é uma escolha sobre o futuro que se compara com usos atuais, envolvendo sempre uma escolha de reproduzir o processo do passado ou de criar opções para o futuro. No entanto, as transformações do processo de educar não são gratuitas, surgem da internalização das experiências da colônia em seu conjunto e em suas relações com as demais colônias. As relações entre colônias foram fundamentais na formação do Brasil, como nos mostra Luiz Felipe Alencastro. Ao emergir como sociedade nacional, o Brasil adota a postura – não se pode julgar se foi de modo consciente – de voltar as costas para os demais integrantes do Império, e colocar-se como uma entidade histórica separada das 90

Emmanuel Kant, Crítica de la razón pura, Buenos Aires, Losada, 1956. Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, Tempo Brasileiro, 92 A formulação de uma teoria da ação social ou de uma teoria do agir social é um desafio que se encontra necessariamente, toda vez que se reconhece que as ações dos participantes de uma sociedade têm efeitos sobre os demais. A questão que foi desviada por Talcott Parsons e por Jurgen Habermas em suas respectivas incursões teóricas é a do fundamento da ação social em conflitos de interesse que não se conseguem expor sem tratar do conflito básico da relação de classes. 91

169


experiências delas. Na prática, as relações com as nações africanas não eram convenientes para o projeto de identidade nacional, que queria se separar de suas inter-relações com a população escravizadas e com seus descendentes. A questão relativa a educação refere-se à capacidade de decidir sobre preservar experiência e capacidade de mudar na relação social e com a natureza. Por isso, educação é poder. Poder de manter ou de mudar. Esse poder aparece no controle dos processos educativos, que é o modo de influir na formação social e é o modo de agir na relação entre a esfera doméstica e a esfera da vida pública,afetando aos aspectos materiais e ideológicos da vida em sociedade. Tratando do Brasil, vemos que as transformações do processo de educar surgem da internalização das experiências da colônia em seu conjunto e em suas relações com as demais colônias. As relações entre colônias foram fundamentais na formação do Brasil, como nos mostra Luiz Felipe Alencastro.93 A questão relativa a educação refere-se à preservação de experiência e ao desenvolvimento de uma capacidade de mudar, na relação social e com a natureza. Por isso, educação é poder. Controlar os processos educativos é o modo de influir na formação social e é o modo de agir na relação entre a esfera da vida doméstica e a esfera da vida pública, afetando os aspectos materiais e os aspectos ideológicos da vida em sociedade. Controlar o processo educativo é poder. Significa controlar o poder econômico de controlar uma necessidade que se converte em valor em mercado e de reter o poder ideológico de controlar a qualificação do trabalho em seu sentido mais amplo. Por isso, como bem compreenderam todos os autoritarismos, o projeto educativo é uma manifestação ideológica de classe e não é um simples problema técnico. Aspectos técnicos, tais como de seqüencialidade, de inclusão de disciplinas que desenvolvam uma visão crítica do conhecimento, têm um alcance maior na formação de profissionais capazes de conduzir sua própria formação profissional. Quem, portanto, se apropriará da formação de capital propiciada pela extensão da educação a números maiores de integrantes da sociedade brasileira? A história brasileira oferece respostas inquietantes. Na primeira etapa da república – a chamada República Velha – a perspectiva ideológica do país foi capturada pelos interesses da produção cafeeira, que representaram um retrocesso em relação com os ideais positivistas dos primeiros momentos da república e com a visão de desenvolvimento industrial de então. Os poucos anos de abertura da década de 30 foram substituídos pelo Estado Novo, com sua apropriação da educação como instrumento do poder autoritário. A redemocratização de 46 resultou em nova subordinação à influência norte-americana, que foi matizada na década de 50, mas que voltou, robustecida, no período do autoritarismo de 64 a 84. Desde 1985 o país vive uma sucessão de políticas contraditórias, de aceitar uma elevação dos padrões de exigência no topo do sistema, mas de fragilizar o sistema público de ensino, e, com ele, de desestruturar os padrões de ensino, através da aceitação de ensino de qualidade não controlada. A fragilidade do sistema de pesquisa, cujo desenvolvimento foi prejudicado pelo autoritarismo, e só começou a mostrar resultados significativos na década de 80, continua o ponto mais fraco do sistema educativo, que, por isso tem sido pouco criativo.

93

Ver O trato dos viventes, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1998.

170


Dessas bases surgiu no Brasil o problema educativo da década de 1980, quando se expandiu a privatização do ensino. A decalagem entre a expansão do sistema público de ensino e a demanda social de educação de nível médio e superior, fez com que a educação se tornasse uma mercadoria e com que o sistema educativo se tornasse um empreendimento com custos e resultados financeiros, que interessam aos capitais privados, tal como qualquer outra linha de empreendimentos. Daí, torna-se mais clara que antes, a diferença entre os custos sociais de atender às necessidades sociais de educação e os custos privados das entidades que ofertam serviços de educação. O componente não custeável do atendimento dessas necessidades fica indeterminado, porque se torna maior que o crescimento da capacidade de atendimento do sistema público. No entanto, são diferentes as condições sociais da demanda de educação que se situam nos níveis básico, médio e superior, primeiro pela interdependência de cada nível com os níveis anteriores e segundo, pelas condições específicas de cada nível de educação com que ele pode ser atendido. Esse é um problema que envolve os aspectos materiais e ideológicos da educação, primeiro, pelo modo como os grupos sociais envolvidos nesse processo colocam seus ideais de emancipação na presença do Estado, e, segundo, pelo modo como a realização de educação diretamente pela esfera pública constitui um mecanismo de superação de controles do fundo público que foram tradicionalmente realizados pela empresa privada. Mas há uma falsa disputa entre a educação pública e a privada, que passa por alto a luta de interesses dentro da esfera pública pelo controle do sistema público de educação. São interesses de classe que comandam a participação do setor público, que é o verdadeiro foco dos interesses do capital nessa área. O problema das relações de classe, agravado pelos problemas de discriminação étnica e por diversos componentes de preconceito, continua no centro do problema. É esse perfil de interesses que estabelece a composição da participação da educação pública, que, por oposição, abre os espaços de participação de capitais privados. 94 A composição do capital público, em capital fixo e em investimentos em pesquisa, torna-se o principal subsídio aos capitais privados que se concentram em operações de baixos coeficientes de custos fixos. Nihil novum sub sole.

94

É revelador que um ministro da educação no Brasil tenha saído de suas funções diretamente para criar uma empresa de assessoria a capitais privados estrangeiros para que se instalem no país.

171


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.