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Hegel, o caminho da consciência - um estudo sobre a obra ontológica de Hegel Fernando Pedrão 2014 primeira parte versão preliminar

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Sumário I

Uma introdução à obra ontológica de Hegel

II.

A obra de Hegel em seu movimento

III.

O grande prefácio da obra ontológica

IV.

A Fenomenologia do Espírito

V.

A Ciência da Lógica

VI.

História interna e externa

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I.

Uma introdução à obra ontológica de Hegel

Este é um estudo sobre a ontologia em Hegel, o que significa que se concentra na Fenomenologia do Espírito e na Ciência da Lógica, em suas versões integrais e subsidiariamente nas que aparecem na Enciclopédia das Ciências do Espírito. Recorre às obras sobre história no que elas implicam em fundamentos ontológicos. Consulta outros autores como modo de contrastar Hegel com seus leitores. Não trata dos escritos sobre ética, religião e estética. Dentre os leitores de Hegel cabe um lugar especial para Nicolai Hartmann, quem justamente e em primeiro lugar, pegou o bastão do estudo ontológico. Com um objetivo próximo do de Marcuse segue-se entretanto uma linha de trabalho que se identifica melhor com os questionamentos de Gadamer, que respeita a historicidade do pensar de Hegel. As contribuições de Jean Hyppolite são obviamente necessárias, mas entende-se que elas são mais reveladoras em seu estudo sobre a Lógica que no da Fenomenologia, marcados por estruturalismo. Benedetto Croce e Rodolfo Mondolfo são duas fontes da maior importancia. Mas todo esse material é contraponto da leitura de G.W.F.Hegel. As colocações de Gadamer são as conceitualmente mais profundas e representam uma continuidade do modo de trabalho de Nicolai Hartmann. A dificuldade do estudo de Hegel é inevitável porque ele representa um momento de ruptura e reconstrução do pensamento moderno, refundando a própria noção de modernidade, em parte por remontar suas bases no pensamento antigo e em parte por apresentar exigências de rigor que tecem a relação entre filosofia, ciência e arte. Os objetivos de sua obra levaram a um rigor conceitual que exigiu um novo manejo de linguagem. Mas Hegel pertence a uma época e a uma condição que permitiram trabalhar meticulosamente sem ceder a demandas de pressa, apesar de ter encontrado tempo para compor uma obra extraordinariamente vasta. Todo Hegel se move em um contexto de ontologia, já seja para o desdobramento da fenomenologia, para o da lógica e para o da estética. A força da dialética hegeliana é indiscutível. Cabe referencia a Gadamer: “Com certeza, também se expressa aí a força vital da dialética hegeliana, que sempre se afirma contra o modo de trabalho fenomenológico de Husserl e Heidegger”

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A dialética tem o duplo significado de descoberta de uma lei universal e de um modo de ligar o mundo natural ao humano. A operacionalização da dialética traduz-se em encontrar o modo de substituição de umas contradições por outras em um certo encaminhamento que é o caminho da consciência. 1.

A preocupação de Hegel com ciência é fundamental, mas para ele a ciência precisa ser reconstruída sobre bases ontológicas, que é uma tarefa a ser empreendida a partir de uma refundação da filosofia. Essa é a explicação de sua critica da cientificidade da matemática e da ciência descritiva. Se a ciência é o movimento necessário do ente, isto é do ser afirmado, ela será o modo de se manifestar do sujeito consciente e a filosofia deve aspirar a ser uma ciência do pensar. O formalismo é a negação do movimento interno da ciência, por isso negação de método. A ciência se move sobre a determinidade onde não há lugar para o falseamento. Na visão de Hegel a conceituação de ciência resiste à do conhecimento estabilizado e rigidificado. A compenetração de ser necessário pensar de modo radical, isto é, de ir aos primeiros fundamentos do pensar resulta na construção de uma ponte entre os primeiros pensadores gregos e a critica da modernidade. A revisão dos fundamentos naturais é essencial porque o mesmo movimento que descobre as limitações da consciência sensível vai desmontar o Direito Natural e coloca a religião como processo histórico, embebida de sua própria superação. A grande revolução de Hegel é a centralidade da auto-consciência que se traduz na emergência do sujeito como máxima manifestação da historicidade, que acontece exclusivamente no mundo social. No trio consciência =>autoconsciência => razão é esta última que vai arcar com a atividade inerente à auto-consciência. O aparecimento da autoconsciência determina a ligação entre esses níveis. O desenvolvimento da consciência compreende os movimentos de extravasão e de introversão que derivam movimentos de retorno a momentos e formas anteriores. O retorno é um aspecto essencial da progressão. A filosofia da consciência é a do movimento do ser no caminho da formação da consciência ligando universalidade a singularidade. Por isso se separa da trajetória da filosofia clássica dos Tempos Modernos em 1

Hans Georg Gadamer, Hegel e Heidegger (1971).

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alguns pontos fundamentais dentre os quais a reconstrução da noção de sujeito que surge da relação com o objeto e a da razão que se vê como em um processo de superação da esfera sensível. Como decorrência dessa visão processual a filosofia da consciência rejeita a tendência à construção de uma teoria do conhecimento sobre as bases do idealismo, apoiando-se em um novo desenvolvimento da dialética que é trabalhada como modo de desenvolvimento de conceitos. Hoje cabe ver a Ciência da Lógica como o verdadeiro esteio do sistema de pensamento hegeliano, onde se realiza a relação entre o pensar e o pensado. A obra de Hegel constitui uma ruptura abissal no caminho do pensamento moderno, primeiro por atingir as bases da própria modernidade e logo, representar uma ligação entre o rigor conceitual e a fluidificação dos conceitos que o torna o verdadeiro iniciador das ciencias sociais modernas. Com essa radicalidade conceitual a revolução hegeliana substitui o conceito como representação fechada pelo conceito como movimento do saber que sofre as pressões do anseio de representar a verdade. A conceituação de conceito é fundamental. O conceito representa os diversos e sucessivos momentos que se convertem em intelecção. Veremos que a marcha da consciência se dá por meio de experiência. Hegel traz a consciência como aquela que não pode superar a partição interna entre a duplicidade da superação da consciência natural e o sentimento da auto-consciência. Mas a infelicidade é necessária porque é como se rejeita todo o supérfluo. A consciência-de-si surge como uma singularidade que é uma depuração 2. A leitura sistemática da obra de Hegel é um esforço progressivo que não se reduz aos termos do estruturalismo em Jean Hyppolite nem pode ser tratada pelos artefatos da lógica formal. São essenciais as observações de Rodolfo Mondolfo em sua introdução à Ciência da Lógica, quando diz que a Fenomenologia do Espírito é a gnosiologia de Hegel e a Ciência da Lógica é sua metafísica. A Fenomenologia se debate com o problema fundamental da diferença entre as condições genéricas da singularidade e as condições concretas da individualidade. Se as condições da singularidade mudam segundo determinações progressivas do ente como tal , elas podem ser inferidas no processo da consciência. Mas as condições concretas da Essa noção de depuração em nosso entender é necessária para entender o modo de ver o processo de conhecer e que vem desde Kant. A critica da razão pura não trata de uma razão ingênua mas de uma razão depurada. 2

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individualidade surgem de determinações da vida social e tornam imperativo situar historicamente esse argumento. A resposta evidente é que a pesquisa sobre a singularidade não se contém nos espaços da indagação genérica. A substituição da singularidade genérica pela individualidade histórica leva a substituir a universalidade genérica pela totalidade social histórica.

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II.

A OBRA DE HEGEL EM SEU MOVIMENTO

2.1. Preliminares Dentre as diversas leituras de Hegel convém estabelecer que ele representa uma imensa, deliberada e seletiva ruptura em relação com todos seus antecessores imediatos e próximos, inclusive Descartes por quem manifesta alguma admiração ou com seu principal contendor que foi Shelling. Criticou expressamente a filosofia “da coisa” de Kant por reduzir a filosofia a uma teoria do conhecimento, por separar certeza de verdade e por não avançar no interior do sujeito consciente. A única exceção parece ter sido Spinoza, que entretanto foi soterrado pela mesma avalanche que caiu sobre Sheling. Foi protegido por Schelling mas também rompeu com sua filosofia. A tal ponto que ele parece posterior a Kant com quem na verdade coincidiu em grande parte. Kant (17241804) e Hegel (1770-1831). Hegel tem sido apontado como o filósofo que recuperou e atualizou a dialética que adotou como método. É uma observação verdadeira mas insuficiente, porque ele deu à dialética um alcance e uma profundidade que não foram alcançadas por nenhum outro pensador. Hegel entendeu que o realidade é dialética e por isso o pensamento só pode captar a realidade como pensamento dialético. Em Hegel há uma completa integração entre percepção do mundo e pensar o mundo. A dívida de Marx é muito maior que o que geralmente se admite e não se extinge com a inversão de idealismo em materialismo porque envolve os elementos de reconstrução da ontologia da concepção demiúrgica do trabalho e da ligação objetiva entre consciência ética e responsabilidade social. O papel da história é central em tudo porque a realidade do ser social é histórica. Hegel representa um momento de modernidade que começa com a Revolução Francesa e termina no momento do inicio da Restauração conservadora (GARAUDY, 1986). Representa o descolamento de um pensamento de elite pensante em relação com as elites do poder. Ao mesmo tempo representa uma nova leitura da cultura ocidental sobre o mundo grego – sua expressão – com um sentido de renovação histórica, constitui outro modo de romper com as tradições europeias do Iluminismo.

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Desde então sua influência passou por altos e baixos, desde os primeiros neo –hegelianos alemães divididos entre esquerda e direita, de Bauer e Strauss a Feuerbach, à crítica de Marx, à rejeição pelo positivismo, a suposta recuperação por Kojéve e a uma retomada mais profunda por Benedetto Croce e por Wilhelm Dilthey. A influência de Hegel em Marx é indiscutível e a crítica de Marx é mais aos neohegelianos que ao próprio Hegel. Está fortemente presente nos fundamentos da filosofia de Lukács desde 1926 e na Escola Crítica de Frankfurt. O chamado austro-marxismo é essencialmente hegeliano. A maior contribuição explicativa e analítica é de Jean Hyppolite e o marxismo estruturalista - Louis Althusser - é hegeliano. Na encruzilhada da corrente fenomenológica com a hermeneûtica encontram-se os trabalhos de Hans-Georg Gadamer, os mais profundos. Também é preciso registrar o trabalho de Ernst Bloch que aponta ã raiz aristotélica de Hegel e o de Herbert Marcuse sobre a ontologia em Hegel. No Brasil os melhores trabalhos até agora são de Paulo Eduardo Arantes, A ordem do tempo e de Marcia Gonçalves, O belo e o destino (2001). Na composição da obra de Hegel distinguem-se cinco etapas.O amplo corpo de estudos de uma primeira fase anterior à Fenomenologia do Espirito, que compreende obras cunho teológico e polêmico até a crítica a Shelling. O corpo das ciencias do espírito, que compreende a Fenomenologia do Espirito, a Ciencia da Lógica e a Enciclopedia das Ciencias do Espirito. As obras sobre estetica e direito, do próprio punho de Hegel. Obras colaterais de maturidade. As obras coligidas por alunos. 2.2. A composição da obra de Hegel Em uma visão em perspectiva da obra de Hegel são necessárias duas medidas. Primeiro, distinguir os períodos com os respectivos objetivos. Os períodos de Iena e Frankfurt e Berlin. O trabalho de Lukács valoriza os trabalhos de juventude de Hegel como descobrimento da temática e do método. Segundo distinguir que os papéis das diversas obras na constituição do núcleo central que ele diz estar na Enciclopedia mas que está em sua forma integral nas obras principais. A uma primeira exploração cabe aceitar o ditame de Gadamer que a verdadeira chave da obra em seu conjunto é a Ciencia da Lógica que se passa a ver como uma resposta moderna ao Livro 4 da Metafísica de Aristóteles vazada pela linguagem da dialética. É fundamental que a obra de G.W.F. Hegel seja vista em perspectiva histórica e como filosofia da consciência. [auto-consciência e 8


consciência histórica ]. Apesar que a Fenomenologia do Espírito marca o rumo da obra a partir desse ponto de maturidade é preciso recompor com as obras de juventude como fez Lukács (1967). O valor das obras preliminares. Essas obras marcam o caminho que foi seguido. A consciência crítica da religião (Historia de Jesus). A necessidade de uma re-fundação ontológica do método. Uma visão processual do real (A filosofia do real). A necessidade de uma crítica interna da filosofia (Diferença entre o sistema de filosofia de Ficht e de Scheling) e a consequente necessidade de uma história da filosofia é um passo na direção de superar Kant. Por isso surpreende que Marcuse, justamente apontando à ontologia, insista na relação de Hegel com Kant. A filosofia redescobre o ser pensante. O duplo papel da Fenomenologia do Espirito: introdução à encyclopedia das ciencias do espírito e obra provocativa principal. A Fenomenologia é a obra que determina o desenvolvimento do trabalho de Hegel. Seu sumário é revelador. A Fenomenologia tem que ser lida como um momento de dupla criação. A temática e a resolução da consciência como observante transformado em protagonista. A Ciência da Lógica: a lógica como ontologia. Compreende: A lógica objetiva, com a doutrina do ser e a doutrina da essência; e a Ciência da lógica subjetiva: A subjetividade [o conceito, o juizo, o silogismo];A objetividade idéia. A ciência da lógica é a lógica do ser no mundo que é o ser social. A diferença da lógica de Hegel é que ela nega mas efetivamente representa uma teoria do ser no mundo. A estética (O belo na arte) Compreende uma abordagem ontológica do belo como e enquanto síntese civilizacional e sua resolução em artes específicas. Arquitetura, pintura e música são as balisas desse panorama. O belo para Hegel é uma concretização inevitável da consciência. Identifica-se com a tirada de André Malraux que o belo para nós é o pathos grego. A encyclopedia das ciencias do espírito:vol.1. A natureza; vol.2. A lógica; 3.O espírito. A encyclopedia é a compactação das obras centrais, com vários momentos de reflexão amadurecida mas reduzindo a profundidade do mergulho já realizado. Com a encyclopedia pretendeu articular a obra central mas ela representa uma segunda síntese desse conjunto. Aqui inverte a ordem progressiva de sua obra anterior e a filosofia do espírito fecha o ciclo. 9


A história. A obra de Hegel compreende A filosofia da história e a História da Filosofia. A identificação do método histórico com a reconstrução da dialética é essencial nas duas faces da história. Como entender a história e a história do entendimento. Não se pode deixar de apontar a grande contradição de que as obras sobre história foram posteriores às ontológicas, mas que a ontologia hegeliana é profundamente histórica e que a explicação do movimento do sensível ao supra-sensível envolve uma noção de movimento interno da consciência que é essencialmente histórico. A filosofia do Direito. ( Hegel crítica o direito por seu sentido de finalidade). A crítica do Direito já se define desde a Fenomenologia e atravessa o significado institucional do questionamento filosófico. Textos selecionados “…as diferenças estabelecidas como independentes passam de modo imediato a sua unidade e esta passa a ser de modo a abertura (expansão) o qual volta a redução. Este movimento é o que se chama força. …o único que se estabeleceu é o conceito de força, não sua realidade. para que a força esteja em sua verdade é preciso deixa-la completamente livre do pensamento e estabelece-la como a substância das diferenças.” Nesse capítulo está a reflexão sobre o que está oculto em todas as manifestações da vida, quando o fenômeno (o que é visível) encobre o supra-sensível e onde, portanto, há uma troca entre o que é aparente e o não aparente, realizando uma unidade entre aparência e essência. O real surge da relação entre aparência e ocultação e é a base para que o movimento da vida se dívida em tempo e espaço e também em tempo e velocidade. A realidade é o movimento concretizado em suas manifestações em tempo, espaço e velocidade.

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3.

O grande prefácio da obra ontológica: o prefácio à Fenomenologia do Espírito

2.1. Preliminares Descobre-se que o modo de apresentação da Fenomenologia do Espírito tem um significado a ser exposto. O livro é a revelação do movimento da consciência desde a situação de consciência sensível – do mundo das sensações – ao da consciência-de-si, que é a transfiguração da consciência sensível em auto-consciência em que a singularidade universalizada – o ente, a pessoa – é a da razão que é a expressão dos processos reflexivos do ente consciente. A primeira parte mostra a inevitabilidade do processo da consciência que surge da força imanente. O ápice do trabalho é a verdade da certeza de si mesmo, quando a consciência supera a negação do imediato. A questão de dominação e dependencia desenterra o núcleo irredutível de independencia da consciência, identificado com o ser consciente. É fundamental a relação entre a consolidação da auto-consciencia e a assunção de um modo ético de construção social em que há uma polaridade entre as condições de individualidade e a institucionalidade. 2.2. Os desafios do Prefácio da Fenomenologia do Espírito O prefácio (# 1 a 82) é uma antecipação do conjunto das obras da encyclopedia das ciencias do espírito, mediante a apresentação de um conjunto de teses com estruturação própria. É como jogo de peças de armar que tem duas soluções. Essas teses podem ser mostradas segundo a ordem de exposição no Prefácio mas deverão a seguir ser revistas segundo sua funcionalidade. Em primeiro lugar uma apresentação da dialética como lei da transformação interna irreversível que opera na natureza e na formação da consciência. A dialética conduzirá o movimento central da fenomenologia do espírito, que consiste em consciência => autoconsciência => razão. Lembra Hyppolite que são abstrações do espírito que é a única realidade concreta. É a dialética do essencial. Em segundo lugar, apreender e exprimir o verdadeiro, não como substância mas como sujeito. O essencial é a metamorfose da 11


consciência.”A substancialidade inclui a universalidade e a imediatidade do saber. A substancia viva é o ser é verdade em si.O puro reconhecimento de si mesmo no absoluto é o fundamento e o terreno da ciência ou o saber em sua universalidade. Terceiro, a consciência possui dois momentos: o saber e a objetividade, que é o negativo do saber questionado. A ciência deste caminho é a consciência da experiência. A substância com seu movimento é considerada como objeto da consciência. Em quarto lugar, no estudo científico é preciso tomar o esforço científico da formação do conceito como atividade que reverbera no ser consciente. O conhecimento matemática se realiza fora do contexto existencial. O Prefácio é um texto de grande complexidade, dentre outras razões, porque é um antecedente da Fenomenologia e da Ciencia da Lógica. É a declaração de princípios onde se declara como se pensa trabalhar. O objetivo é captar o processo de formação da consciência desde o nivel das sensações ao do esclarecimento como auto-consciência e consciência histórica. É um esforço dirigido para apreender o verdadeiro, que exige uma reconstrução da filosofia. Por residir a filosofia essencialmente na universalidade, que inclui o particular, leva à aparência que é, nos fins e nos resultados que a coisa se exprime, mesmo quando é uma essência consumada. No entanto, o que é consumado é inessencial, tal como um cadaver que não é um corpo vivo. É preciso ver o Prefácio como uma síntese antecipada. Ela representa uma reiteração da escolha pela ciência. Essa escolha tem conseqüências decisivas para a filosofia porque implica em aspirar a uma universalidade cheia de conteúdo, a superar o formalismo que reduz a ciência a dogmatismo. “A substância viva do ser que na verdade é sujeito. Ciência é o saber consciente capaz de construir”. Encontra-se, portanto, no Prefácio uma teoria da ciência focalizada em seu poder criativo e em sua superação de erros. A ciência exige ao ser sujeito uma dedicação total. A atualização da ciência é um movimento cultural que determina necessidades de mudança de configuração (#29). Todo o processo criativo da ciência também do sujeito cognoscente, que é levado a superar o mundo da imediatez. Diz Hegel que a negação da imediatez realizada pela ciência “é o movimento da essencialidade que é a própria essência da cientificidade” (#34). A ciência se afirma como contraditória com a imediatez porque é não temporal, constituindo uma negação do tempo. 12


A consciência atual tem o momento e o da objetividade, que é a negação desse saber. Quando o espírito se desenvolve essa oposição se converte em experiência. Esta [experiência] será o diferencial da recomposição do ser em seu movimento de transformação. Desde então está definido o movimento em que consiste a fenomenologia do espírito. Tal movimento se descreve do modo seguinte. Quando a substância que é o ser se revela a si mesmo é quando ele se torna capaz de superar o círculo fechado do mundo imediato. O sistema da experiência gera aparições em torno das quais levanta-se uma oposição entre ser e saber em que se coloca o problema de uma distinção entre o que é falso e o que é verdadeiro. Falso e verdadeiro pertencem a pensamentos determinados.” O falso é o outro, o negativo, como determinação de um conteúdo. Saber falsamente de alguma coisa significa que o saber está em desigualdade com sua substância” O falso tem sua própria realidade. O reconhecimento do falso indica a negatividade necessária à marcha do sujeito como consciente. Dessa desigualdade surge a verdade. Na estrutura do Prefácio encontram-se quatro tópicos que devem ser examinados. São os seguintes. O modo de pensar a consciência é dialético, liga o reconhecimento do modo dialético da natureza com o do ser 3. Por isso, o exemplo da substituição da flor pelo fruto e do botão pela flor mostra um caminho de superação irretornável que sinaliza a identificação da vida com o movimento de superação-inclusão. O essencial é o movimento de superação, que ao mesmo tempo é de transformação interna. Diremos que a realidade da coisa é seu tornar-se. Mas é um movimento unidirectional e irreversível, sujeito a descontinuidades. O fruto não pode voltar a ser flor nem a flor pode regredir a botão. Além disso nem todo botão chega a ser flor nem toda flor chega a ser fruto. Hegel diz que fixar objetivos em ciência envolve riscos que devem ser expostos. A cientificidade não dá conta do verdadeiro que está na intuição. Diremos que a ciência pode usar toda intuição mas que nem toda intuição alcança a consistência conceitual da ciência. Por isso, toda A dialética em Hegel vem da base antiga mas se distingue dela. Acerca da relação de Hegel com a dialética antiga é preciso ver o ensaio de Gadamer sobre esse tema em Hegel, Hussserl e Heidegger. A dialética antiga tem três grandes momentos. Com Heráclito é o modo da natureza e da vida. Com os sofistas é a arte da argumentação. Em Platão é o modo polêmico do esclarecimento. Hegel devolve à dialética seu sentido de método da universalidade que igualmente é lei da formação da consciência e do conhecimento. 3

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ciência tem que ser reflexiva. O despojamento necessário nesta viagem não pode ficar restrito. “O absoluto não deve ser conceitualizado, mas sentido e intuído”(p.28). Aqui Hegel fala como se fosse o final da obra para dizer que “o espírito consciente-de-si “. Surpreende que diga a seguir que “é o entusiasmo que impulsiona a elevação da substância a consciência-e-si.” Esse entusiasmo é inerente à consciência em seu afã de auto-superação mas não é uma garantia de que se consegue passar de um momento a outro. No Prefácio são apresentadas as grandes opções que dão o rumo do livro. A primeira é a filosófia crítica da ciência. Não será ciência a decomposição das partes do conhecimento (Descartes) se ela não tem garantido o modo de recomposição das partes. A questão realmente consiste em verificar se a experiência de decompor um problema informa sobre o modo de recompor. Aqui se afirma que o verdadeiro conhecimento é o do processo de superação que significa a superação das formas necessárias ao desenvolvimento. É a superação do botão e da flor para o fruto (p.26) que é um movimento constituido de momentos irretornáveis. Por isso diz Hegel “a coisa não se esgota no seu fim mas em sua atualização nem o resultado é o todo efetivo mas sim o resultado com seu vir-aser.(p.28). O modo de ganhar conhecimento é sempre de avançar em princípios. O real da coisa é seu tornar-se que começa com certezas sensíveis. Sensivel é o nível mas o singular é o estigma da individualidade. Entretanto ficamos presos a nós mesmos com a individualidade ativa. Tudo gira em torno de um conceito de totalidade e de significancia. Diz Hegel que quando queremos ver um carvalho não nos contentamos com uma belota (p.31). O esforço de pensar a superação abre seus próprios caminhos que passam pela rejeição ao formalismo em suas diversas manifestações. Surpreende que diga a seguir que é o entusiasmo que impulsiona a elevação da substância a consciência de si. A sensação de mudança é dominante. Esse entusiasmo não é acidental porque o espírito nunca está em repouso. Falta, porém, efetividade ao novo. Para chegar lá é preciso novo conceito de todo. É como um novo edifício cujo alicerce ainda não permite ver o todo. É preciso chegar a esse todo. O discurso do Prefácio segue uma linha de auto identificação da filosofia, mas a partir de certo ponto passa a estabelecer o que rejeita da filosofia e o que pretende com ela “entender e exprimir o verdadeiro não como substância mas como sujeito”(p.34). Toda a filosofia é uma aspiração do todo. Não há como não perceber a equivalência entre esse prefácio e os Upanishads, ou com Empédocles, quando Hegel diz que “o verdadeiro é o todo, mas o todo é somente a essência que se realiza em seu desenvolvimento”(p.36). 14


Empedocles disse que ao todo não se pode agregar nada, senão ele não é o todo. Com essa frase iniciava a discussão entre todo e totalidade. Nos parágrafos 20 e 21, em que denúncia o universal inicial como situação que causa horror, em que há um desconhecer da razão e diz que “a razão é agir conforme a um fim“ na realidade é uma rejeição do primitivismo. O fim aludido é interno, isto é, é uma escolha. É uma escolha imperativa, porque o consciente cognoscente não tem outro caminho que não seja seu desenvolvimento. É um texto críptico “Importa notar que o fim é o imediato… o imóvel que é ele mesmo motor e assim sujeito. Sua força motriz é a negatividade pura. Portanto, o resultado é o mesmo que o começo, porque o começo é o fim “(p.38). Em suma o # 22 descreve a inquietação do ser para sair do universal inicial para aceder a sua própria razão. A seguir Hegel se depara com o problema número um levantado por Descartes relativo à unidade do sujeito moderno que se identifica por sua atividade pensante e está na necessidade de construir saber a partir de sua individualidade. “Torna-se sujeito como um ponto no qual se penduram os predicados mediante um movimento que contém um saber que não lhe pertence “(#23). “Do exposto resulta que o saber só é efetivo como ciência ou como sistema. Daí que as proposições fundamentais serão falsas enquanto isoladas e podem ser refutadas se a refutação é tomada do próprio principio e não estabelecida de fora. A refutação seria seu próprio desenvolvimento….O espírito que se sabe desenvolvido como espírito é a ciência “ (#25). A subsequente ruptura com a filosofia clássica é imperativa porque Hegel vai trabalhar com os processos da consciência que se desenvolvem no interior desse sujeito. Entende-se, portanto que o sujeito não é somente o elemento ativo de uma relação genérica com seu objeto, mas é o protagonista de uma relação historicizada, em que ele avança mediante a superação de contradições que ligam condições de universalidade com condições de singularidade. A singularidade é histórica. Uma vez objetivizada como tal, a ciência se torna um foco de crítica do processo que a constrói. Hegel apresenta uma abordagem ontológica da ciência mediante uma relação interativa com a individualidade. O vir-a-ser da ciência é seu compromisso com uma crítica interna que é outro modo de reiterar a rejeição ao formalismo. A tarefa da ciência parte de condições inhóspitas de não saber, que são as da consciência sensível. Para superá-las, há um longo caminho ao qual se dá o nome de formação cultural (#28). O movimento da ciência é o da atualização cultural que exprime uma necessidade (#29). Essa noção 15


de necessidade orgânica é fundamental para o desenvolvimento ulterior de uma ciência ontologicamente fundada: não há ciência sem um pensar da ciência. A relação entre sujeito e objeto se desloca segundo um e outro se reconhecem em um movimento circular, ultrapassando a imediatez que é não temporal “Os pensamentos se tornam fluidos quando o puro pensar essa imediatez interior se reconhece como momento “ (#33). E volta a ligar a esfera do imediato ao não imediato quando diz que “Esse movimento das essencialidades puras constitui a natureza da cientificidade em geral” (#34). O caminho dessa reflexão torna-se um imperativo do processo, que afinal é seu reconhecimento na vida comum. O processo tem limites internos inevitáveis que aparecem quando ele é reapropriado pelo espírito. O processo da consciência carrega uma determinidade inicial e outra que se desenvolve. Tudo isso, entretanto, é apenas a primeira parte da ciência porque a reflexão científica ainda está presa no imediato com sua necessidade que não capta a determinidade que vem da universalidade. No espírito o saber se completa com a objetividade tornando possível uma ciência da experiência. No espírito o saber se completa com a objetividade possibilitando uma ciência da experiência. A realização é a concretização de um saber científico em sua maior expressão. Do #38 em diante o prefácio torna-se uma introdução à Lógica. A justificativa essencial da Lógica é a necessidade de ultrapassar o aparecimento do sistema da experiência na direção de uma ciência do verdadeiro. Será preciso superar um negativo que é o falso em geral. Observa-se que o falso é o verdadeiro apenas como falso. Diz Hegel “o falso seria o outro, o negativo da substância a qual é o verdadeiro conteúdo do saber.(#39). Neste ponto entra a crítica do dogmatismo “que não é outra coisa senão a opinião que o verdadeiro é uma proposição com um resultado fixo conhecido”(#40). As verdades dogmáticas são estranhas às questões históricas, as quais se referem a singularidades. A luta contra o dogmatismo continua a de Kant entretanto sobre definições diferentes, porque Hegel construirá uma argumentação histórica. Quanto às verdades matemáticas, elas dependem de demonstrações “O movimento não pertence àquilo que é objeto mas é um agir exterior à coisa”. (#42)”No conhecer matemático a intelecção é um agir exterior à coisa”. Segue-se uma crítica da matemática, cujo principal fundamento é um uso falso do tempo que mantém de demonstrações formalmente consistentes fora das condições de formação de conhecimento.

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A seguir dessa pendência com a matemática vem o método propriamente dito. “O método não é outra coisa que a estrutura do todo representada em sua essencialidade”(#48). A questão de método é central neste contexto porque determinará a explicação da montagem da lógica ontológica. No entanto, Hegel vai desenvolver uma avaliação do significado de que será uma crítica da matemática./ O desafio que se propõe Hegel reaparece no # 53 quando ele diz que “a ciência só se permite organizar mediante a própria vida do conceito, nela a determinidade é aplicada externamente ao ser-aí. (#53). A ciência será o conhecimento organizado e absorvido de algo e não só da representação, não só da forma da representação. A formação do conceito será a representação do conhecimento e não da forma desse conhecimento. Essa será a justificativa da defesa da filosofia. “Essa natureza do método científico, ser inseparável do conteúdo e determinar seu ritmo próprio, tem uma apresentação na filosofia especulativa” (57). O essencial é a luta pelo conceito. Para Hegel, o sujeito não é apenas que pensa mas é o lugar vivo do processo, através de quem se realiza o processo da consciência. O apelo à inclusão da subjetividade deve ser exposto em sua forma original em Hegel “É no auto movimento do conceito que se situa a razão de existir da ciência.” A ciência transcende o sujeito pensante e desenvolve sua própria efetividade, dessa condição de exterioridade. Daí que a ciência social deva superar os condicionantes culturais, apesar de não poder se separar de seu fundamento histórico. Ao ver a ciência como processo vivenciado pelos sujeitos cognoscentes pensantes chegar-se-á a uma nova teoria do conhecer conquanto extraídas das condições históricas do pensamento. O problema da determinidade (#309 a 320) requer uma atenção especial porque as condições de determinação mudam ao longo do trajeto e porque as possibilidades de determinação estão dadas pela relação entre trajeto percorrido e a percorrer em que o que há pela frente enseja uma reavaliação do passado. a determinidade regula o valor que se atribui ao que está por ser feito. O prefácio da Fenomenologia do Espírito é um capítulo com sua própria organicidade que funciona como introdução ao raciocínio investigativo do livro 4. Nele, destaca-se o famoso exemplo demonstrativo da dialética. [a] a verdade como sistema científico [o botão desaparece ao abrir-se a flor e poder-se-ia que ele é refutado por ela do mesmo modo 4 É reveladora a observação de Jean Hyppolite que esse prefácio foi escrito depois da Fenomenologia e com o propósito de fazer a ligação entre ela e a Ciência da Lógica.

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como o fruto mostra a falsidade da flor como ser da planta. Mas, em seu fluir, constituem momentos de uma unidade orgânica em que, longe de se contradizerem, são todos necessários e essa necessidade é a realidade da planta](pp.8) 5. Cabe aqui citar Gadamer quando ele diz que “o que determina o avanço dialético não são as relações conceituais como tais mas o fato de que se pensa em cada uma dessas determinações de pensamento o mesmo da auto-consciência que requisita para si anunciar cada uma dessas determinações e só chega à plena apresentação lógica no fim, na ideia absoluta”.(1961). A consciência desse todo orgânico é difícil ou não está ao alcance de quem é parte dele. [De fato, a coisa não se reduz ao seu fim mas encontra-se em seu desenvolvimento, nem o resultado é o todo real mas só é em sua relação com seu tornar-se. O fim como tal é o universal carente de vida do mesmo modo como a tendência é apenas o impulso em direção a sua realidade. [b] A formação do presente. O verdadeiro só existe naquilo que se chama intuição. O espírito reclama da filosofia não só o saber como a substancialidade do ser. Juntar as diferenciações do pensamento para implantar a unidade do ser. [c] O verdadeiro como principio e sua apresentação. Quando a certeza é a verdade da certeza o verdadeiro se consagra como única base aceitável para toda ciência.

Esse exemplo carrega um argumento contrario a ser exposto. Nem todo botão chega a ser flor, nem toda flor chega a ser fruto. Inversamente, fruto algum pode voltar a ser flor nem flor alguma pode voltar a ser botão. A força criativa se apresenta em uma única direção e envolve possibilidades de fracasso. 5

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III.

A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO - Ciência da experiência da consciência –

versão preliminar Preâmbulo A opção pela abordagem fenomenológica é o momento decisivo da carreira de Hegel, que por esse meio traça o caminho da consciência, toma a dialética como lei geral da universalidade e da singularidade e liga a formação da ideologia à da razão ativa. O movimento imanente da dialética vem substituir a crítica transcendental de Kant e estabelece as bases para uma reconstrução da ciência com uma relação orgânica entre qualidade e quantidade. A fenomenologia em Hegel é o movimento de formação da consciência, que se estende desde a condição de uma consciência natural, formada das sensações, até o espírito, que é a razão sublimada 6. O sujeito não está dado como em Descartes e se revelará em seu desenvolvimento, que se dá por meio de transformação de sua consciência. A razão surge de um processo de interiorização da consciência, ganho mediante experiências, que fazem da auto-consciência uma consciência histórica. Assim, a fenomenologia hegeliana é o processo da formação da consciência que penetra no essencial desse processo trabalhando com a relação dinâmica entre aparência e essência. Não se confunde com o significado atribuidos a fenomenologia desde Edmond Husserl que explora a realidade da aparência e expõe o mecanismo de superação da aparência. A Fenomenologia do Espírito funciona alternativamente como portal de entrada da obra de Hegel sobre ontologia e como síntese, tal como aparece na Enciclopedia das Ciencias do Espírito. Abre um imenso leque temático do qual se pretende aqui focalizar na ontologia. Este estudo não cobre a obra de Hegel em estética. Hegel começa com um texto de método e objetivos em que na verdade apresenta o conceito de totalidade como guia da análise a seguir. Diz que “A totalidade das formas da consciência será alcançada mediante a necessidade do processo e sua coesão “. O conceito de 6 Sublimar em Química é passar diretamente do estado físico ao vapor. Sublimar aqui é passar da consciência natural à auto-consciencia.

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necessidade aqui é o da organicidade da totalidade. Nada mais a ver com a necessidade - relação com Deus - de Spinoza 7. Surge a noção de organicamente necessário ou de inerentemente necessário ou ainda de potencialmente inevitável. A fenomenologia é metafísica e é ontologia. É a assunção de um enfrentamento radical com os temas fundamentais do pensamento filosófico. Na tentativa de construir um quadro explicativo do significado da Fenomenologia no quadro geral da ontologia no pensamento moderno, é preciso distinguir entre os estudos exegéticos dessa obra e os que a situam por sua importancia na formação de uma leitura moderna de ontologia. Há comentaristas como Dilthey e Garaudy que não pretendem penetrar nas implicações conceituais da obra, há exegetas como Jean Hyppolite e há leitores como Lukács que vêm Hegel como um antecessor de Marx. O trabalho fundamental de ontologia foi empreendido sistematicamente por Nicolai Hartmann. O primeiro grupo é de grande importancia para a explicação do texto como tal, mas no segundo, que nos interessa, destacase definitivamente a figura de Nicolai Hartmann. Destaca-se a ênfase dada por Hartmann ao esforço conceitual em Hegel e ao seu significado na construção de seu sistema filosófico. Diz Hartmann “Ao conteúdo do conceito corresponde sua relação com o todo. A compreensão vai do todo aos membros e não à inversa, porque eles são partes do todo. O conteúdo é o que é somente como predicado de um juizo determinado. Mas, como o juizo afirma que o sujeito é o predicado, o conceito não é mais que o sujeito do juizo”. Hegel oferece uma justificativa para esse raciocínio quando afirma que “desse modo o conteúdo não é o predicado do sujeito senão a substância, a essência e o conceito do que se fala”

De especial relevância neste ponto referir a Gadamer (O mundo às avessas,1966) quando diz que “Se visualizarmos a divisão principal da fenomenologia da consciência então é mais que palpável o fato de Hegel ter se colocado a tarefa de mostrar o seguinte: como é que os diversos modos de conhecimento cuja atuação conjunta é investigada pela critica de Kant se acham em conexão interna, a saber, intuição, entendimento e unidade da percepção ou auto-consciência ?”. E a seguir, “como é que a consciência se transforma em autoconsciência ou como é que a consciência se torna consciente de que ela é consciência de si?”. 7

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3. Primeiros movimentos 3.1. O perfil da Fenomenologia A Fenomenologia do Espírito começa por estabelecer o principio ativo da formação do sujeito consciente que emerge do mundo das puras sensações e ganha sua primeira autonomia no controle dos sentidos. É a dialética entendida como principio regulador da vida ou como principio vital. O modo dialético de pensar é consoante com o modo dialético do mundo real em que a vida é uma propriedade da natureza. Recorreremos mais uma vez a Gadamer na diferença entre a dialética hegeliana e a antiga. A antiga é um movimento sobre oposições sucessivas. Com Hegel é o principio que conduz a passagem entre oposições. Recorreremos a Gadamer na diferenciação entre a dialética hegeliana e a antiga. A antiga é um movimento entre oposições sucessivas. Com Hegel é o principio que conduz a passagem entre oposições. Diz Gadamer que “Sua pretensão é de realizar por meio da dialética a fluidificação das categorias enrijecidas do entendimento, em cuja oposição o pensamento moderno estava preso. A dialética deve suspender a diferença entre sujeito e substância, concebendo a auto-consciência imersa na substância e sua interioridade pura.” Falta dizer quais são essas categorias. Não são predicados necessários como em Aristóteles, nem são categorias do pensar como em Kant. São categorias do processo vital. A argumentação da Fenomenologia do Espírito avança por meio de aproximações sucessivas, em que começa por expor o modo de pensar e em que passa do processo da consciência às conseqüências sócioantropológicas da internalização dos movimentos da consciência no processo civilizacional. A seguir estabelece a necessidade da ciência. Expõe o essencial da relação ciência-método. Apresenta a teoria do conhecimento como conseqüência da relação entre necessidade de conhecer e conhecimento científico. Hegel representa a reivindicação de um reencontro com os questionamentos iniciais e maiores do pensamento filosófico. Em sua noção de totalidade subjaz a noção de todo de Empédocles. A partir daí dedica-se ao modo de conhecer e às condições do processo de conhecer como modo de definição progressiva do ente cognoscente. O movimento desse sujeito que ganha determinações é a versão moderna do mito de Ulisses que se descobre como Prometeu.

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Este começa seu caminho por meio das certezas oferecidas por sua sensibilidade. Esta é a qualidade do mundo das sensações. As sensações são a manifestação da sensibilidade e nessa qualidade permanecem sob o assoalho da racionalidade. Se a principal sabedoria do herói consiste em recusar, aqui as recusas se descobrem como a fonte de sua superação. O segundo momento desse percurso – exposto na Introdução – é o aparecimento da consciência, a qual é a manifestação da presença ativa do ser social que passa de uma passividade quase mineral a uma criatividade consciente. Nesse momento a teoria do conhecimento tornase teoria do próprio cognoscente “conhecer é o próprio raio através do qual a verdade nos toca”. Na perspectiva hegeliana distingue-se o conhecimento como tal do modo de conhecer . Este tende a ser a ciência. Se a ciência é o movimento necessário do ente ela será o modo de afirmação do sujeito consciente. A conceituação de ciência resiste à de conhecimentos delimitados. A ciência aspira ultrapassar as experiências atuais rumo a uma totalidade universalizada. Por isso, o conhecimento como tal é afetado continuamente pelo processo de conhecer. 3.2. A percepção, ou a coisa e a ilusão. A certeza sensível não reflete uma posse de uma verdade porque a verdade dela é apenas universal mas ela quer captar um isto. Um perfume é genérico ou este perfume é diferente de qualquer outro? A essência da percepção é essa universalidade e seu limite é a singularidade. Os scherzo são um Gênero musical . O Scherzo n.2 de Chopin é inconfundível. Não poderia pretender que este perfume é uma singularidade. Por isso a certeza sensível fica no nivel do fenômeno: este acontecimento que é este perfume. Com a percepção Hegel introduz uma ruptura em relação com o mundo sensível, em que aparecem diferenciações entre o ente percebente e o objeto percebido. Diferente da certeza sensível, que só vigora para o isto imediato, a percepção vê o percebido como universal , já que o perceber não é limitado. A percepção introduz a universalidade que é uma categoria do pensamento de Hegel. Ela apreende o essencial que se encontra além da aparência. A percepção percebe o objeto e ao próprio perceber.

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A certeza não contem (nada) como o que é. Ela capta universalidade mas seus meios são apenas os do cotidiano. Por isso ela se reproduz na imediatez.Mas é um apreender que emergiu da sua condição. Por isso”o objeto conforme a essência é o mesmo que o movimento”. O objeto é essencial, a percepção (do objeto) é inessencial. Na percepção está a negação. O isto é um singular que pertence a um certo universal. Por isso, suprassumir um determinado isto é absorver o que há de negativo na certeza sensível. Esse movimento de negação denota a mediação 8. O objeto (encontrado pela percepção) é um objeto mediatizado pelo sentir, que por isso possui propriedades. Ele não é mais a simplicidade inicial das sensações. Assim, o isto (o objeto)torna-se oposto ao não isto (as sensações), já que é um algo determinado. Nesse movimento surge a suprassunção, ou seja, tudo aquilo que é superado mas não é descartado, é posto debaixo do tapete. É uma negação que estabelece conservações e regras de conservar. Subjacentemente, portanto, tem regras de abandono. Na simplicidade herdada da situação anterior (a moral do caçador instintivo) essas novas determinações constituem uma seleção em que algumas são necessárias e outras são indiferentes (na moral anterior qualquer pessoa assaltada pode matar o ladrão. Na nova moral é retirado esse direito de defesa radical. Na primeira, a morte do ladrão é indiferente9. Na segunda a morte do assaltado é mera possibilidade penal para o ladrão mas é um fato definitivopara a vitima. A nova coisidade, isto é, o mundo das coisas percebidas, permite novas classificações. Assim surge uma unidade que também é excludente. O poder judiciário se sente proprietário das leis mas este poder judiciário concreto não é mais que uma emanação da percepção incorporada na formulação das leis. O poder judiciário não repõe perdas humanas.Veja-se As leis de Platão. Somente a universalidade positiva passa adiante. Algo novo surge sobre as preferências. Se tudo fosse igual não haveria preferências, tudo seria indiferente. Desse modo a percepção reduz a coisa (o objeto percebido) aos seus aspectos positivos. Mas, diz Hegel,de fato ele é parte de uma universalidade passiva, portanto, é uma negação de um real que permanece invisível. A consciência percorre, por força dessa contradição,

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Esse será o fundamento do estudo de Henri Niel sobre a mediação na obra de Hegel. Quando o assaltante mata para roubar e a vida do assaltado lhe é indiferente ele se revela parte da moral anterior de predador com uma lei de violência que por retorno torna sua própria vida indiferente. A indiferença revela-se a forma mais radical de brutalidade tácita como regra social de vida. 9

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pelo que assume uma ilusão ao absorver essa falsa duplicação que é um falseamento. A necessidade de experiência para a constituição da consciência concebente (que é o ser social sujeito do conhecer)é dada por ter que ultrapassar essa ilusão. Entende-se que nessa seção se delineia uma critica à ciência montada a partir de hipóteses conjeturais como as que vieram a ser defendidas por Karl Popper e outros apologistas de teorias do falseamento. De outro modo pode-se dizer que as verdades das aparências não têm raízes porque não podem ser corroboradas por experiência. Quando se alvitra a hipótese que os faraós descendem dos construtores de Stonehenge, ou se defende o creacionismo, não se precisa de experiência nem de provas históricas, basta o fanatismo. Esse discurso traz a critica da condição universal e determinada do ser em sua imediatez. A imediatez é inevitável mas tem que ser superada. A universalidade surge como propriedade do ser. Não é uma universalidade pura, é a que passa de um nível a outro da consciência. Este encaminhamento do essencial de Hegel constitui uma critica à filosofia de Kant, que culmina como filosofia da coisa. Diz Hegel que “a universalidade ou a unidade imediata do ser e do negativo só é propriedade enquanto o Uno e a universalidade pura se desenvolvem a partir dela e se diferenciam entre si e ela os engloba.” Somente essa sua relação com seus momentos constitui a coisa. Noutras palavras, a coisa não sai do processo e a coisidade é processual. A propriedade é determinada mas a determinação é processual (p.99).O mesmo acontecerá adiante no relativo à razão que em Kant é uma faculdade e em Hegel é um processo. Com o fechamento da teoria da percepção chega-se à teoria da Força e Entendimento que é uma transição porque expõe qual é a energia do sujeito para transformar seu potencial de desenvolvimento em desenvolvido e passar de volta como consciência concebente capaz de se projetar sobre sua própria consciência. Poucas dúvidas que esse seja um ponto de junção da filosofia de Hegel com a de Aristóteles, especialmente com a teoria da forma essencial. 3.3. Força e entendimento. O significado do conceito de força no pensamento moderno tem um aspecto ontológico e outro cosmológico, além de ser uma nova 24


resposta à questão levantada por Aristóteles. O aspecto cosmológico implica em que não se podem ignorar as condições ambiente da vida. O psicológico tem a ver com percepção 10. Entenderemos, portanto, que o perceber é uma capacidade de decompor as coisas em seus vários componentes, ou ainda de penetrar na diferença entre as esferas da aparência e da essência. A doutrina da força ocupa um lugar especial no movimento fenomenológico em Hegel porque é o princípio ativo imanente da transformação da consciência 11. A doutrina da força é a conseqüência natural da relação entre potencia e ato em Aristóteles. O entendimento em Kant pode ser visto como força realizada. A força é o principio que passa da potencia ao ato e que ao passar modifica o agente. É o principio do trabalho socialmente atuante que Marx vai incluir por meio da noção da práxis. A doutrina da força trata dos ciclos da vida e da compreensão dos ciclos da vida. A força é a pulsão que rege o jogo dos movimentos de expansão e concentração pelos quais se transmuta a consciência natural em consciência observante. No reconhecimento da força está o principio ativo da vida que vai explicar a relação entre a esfera individual e a social. No ciclo semente=>planta surgem formas essencialmente diferentes que são partes do mesmo processo. As diferenças entre essas formas são essenciais a esse processo mas o essencial é o principio que as liga que é a força.”de fato, a força é o universal incondicionado que é para si mesmo o que é para um outro”.”pois o que aí unicamente existe é a diferença como universal ou como uma diferença tal que as múltiplas oposições ficam a ela reduzidas”. Na dialética da certeza sensível esvaíram-se as sensações. A percepção sensível tinha fornecido um certo universal incondicionado, que ao ser devolvido ao ente prensante é absorvido em sua atividade constante de pensar. No movimento dialético da superação da esfera sensível a consciência supera suas sensações e com elas supera o universal incondicionado que elas sustentam. Desde agora o universal incondicionado, ainda não processado dialeticamente, é objeto antes de Como diz Gadamer “O curso do mundo verdadeiro foi aquele no qual Hegel reconheceu de inicio o conceito de força como a verdade da percepção. A consciência perceptiva,que é observada pela consciência filosófica, experimenta o fato de que a verdade que tinha sido visada com a coisa e suas propriedades, não é constituida pelas coisas e suas propriedades mas pela força e pelo jogo das forças? ”(1966). 11 Cabe anotar um texto de Jean Hyppolite sobre a força que traz outro ângulo de interpretação. “O fato de que a força se manifeste à consciência como realidade e já não como conceito significa que seus momentos cobram certa independencia, mas como essa independencia é contrária à essência da força, quer dizer que se suprimem como independentes e voltam à unidade do conceito ou do universal incondicionado que é o objeto permanente do entendimento ao longo da dialética. 10

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ser conceito. A expressão conceito repressenta a intelecção de algo real. Não há sombra sem tigre nem conceito sem objeto.”Esse objeto passa por um vir-a-ser em que a consciência está de tal modo implicada que a reflexão se unifica”(p.108). “Com isso o entendimento suprassumiu sua própria inverdade e a do objeto. A verdade, portanto, mudou de feição. A consciência supra-sensível torna-se concebente”. O entendimento não é o campo estabelecido, é o lugar da mudança. O resultado desse movimento é que a consciência supra-sensível torna-se consciência capaz de gerar conceitos. Essa é a consciência concebente. “O conceito de força se mantém como a efetividade mesma, a força como efetiva está unicamente na exteriorização “(p.115).A consciência concebente é aquela capaz de perceber os objetos. As diferenças são reconhecidas como partes de um determinado contexto dialético. Não há diferenças inespecíficas ou em geral. Esse ser supra-sumido é o próprio meio. As diferenças postas como independentes passam à unidade e ao desdobramento dele e esse movimento de volta à redução é o que se chama força [redação simplificada]. Vemos que força é o poder de realizar os movimentos de expansão e retração que permitem passar de estágios no mundo sensível e no supra-sensível. “Por isso a força é também o todo, isto é, permanece como é”. Diremos que permanece como principio ativo. A continuidade das mediações torna-se o eixo do processo. Nesta etapa de progresso do entendimento a interiorização da esfera supra-sensível provém do fenômeno que, sendo aparência, torna-se essência. Esse interior veio a ser a realidade do entendimento. “Pois o que ali existe é a diferença como o universal [do supra-sensível]. A diferença é a lei da força”(p.119). Daí em diante Hegel explora as relações entre fenômeno e interior identificando um jogo de diferenças na relação entre aparência e essência. Há uma duplicidade porque a aparência se torna essencial à essência. Qual o papel dessas permutas para o entendimento? É que o conceito de entendimento se torna o mesmo que o interior das coisas. Em lugar da separação entre aparência e essência aqui começa um longo percursos das inter-relações entre esses dois planos. Ao estabelecer que a diferença é a lei da força, Hegel confere à diferença em geral o estatuto de universalidade em que há uma diferença universal como fundamento da singularidade do entendimento. Este aqui, sem dúvida, tem caráter ontológico. Entendimento do ser social que 26


funciona como ancoragem da interpretação do mundo. Ao avançar nessa interiorização do entendimento diz Hegel que “o entendimento deve fazer coincidir as múltiplas leis em uma só. Mas com esse coincidir as leis perdem sua determinidade, a lei se torna superficial”. Não há como não ver aí uma critica a Newton e sua lei da gravidade. Atração e rejeição são princípios fundamentais na construção do conceito interiorizado de diferença12. Em Hegel a diferença é parte do movimento dialético do entendimento “...as diferenças que ocorrem na lei como tal retornam ao interior como unidade simples. “ A descoberta e consequente configuração de uma lei do movimento interno que liga momentos sucessivos e unificação no movimento no mundo supra-sensível leva Hegel a algumas observações conclusivas dessa parte do discurso. “O simples da lei é a infinitude. A lei é um igual a si mesmo mas é a diferença que se repele a si mesma ou se fraciona. Na fração as partes representadas são o espaço e o tempo ou a distancia e a velocidade”. A noção de que espaço e tempo são produzidos por um e mesmo movimento é uma tese que retoma na Enciclopédia mas não de modo conclusivo. Assim, espaço e tempo não são intuições a priori como em Kant mas são determinações da dialética do entendimento, quando o próprio entendimento deixa de ser um campo do conhecimento estabilizado para ser o campo em que o conhecimento se renova. 3.4. A verdade da certeza de si mesmo A.

Independencia e dominação

Se a fenomenologia é o processo da realização do ente [o ser concretizado] como sujeito, passando da esfera das sensações à do intelecto com suas raízes no mundo natural, é a superação do mundo das sensações que pode guiar a consciência em sua relação com outro(s). Tal superação significa a subsunção das sensações. Superar é englobar e não excluir. “Nos modos precedentes de certeza o verdadeiro é, para a consciência, algo outro que ela mesma….O conceito de objeto se suprassume no objeto efetivo…como experiência. Surgiu agora o que não emergia nas relações anteriores: a certeza igual à verdade.” Surgiu uma certeza geral com sua verdade porque a consciência é sua 12 É como se criticasse por antecipação a pretensão de Gilles Deleuze com seu Diferença e repetição em que a diferença aparece apenas como negação.

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própria verdade. O movimento do saber se realiza no conceito. Ele se separa do concebente, por isso o conceito é conhecimento objetivizado. “ Ou é o conteúdo da relação e é a própria relação “(p.135). Aparece, portanto, a objetivização da consciência que dá lugar à polaridade entre subjetividade e objetividade ou que mostra a objetivização da subjetividade. Hegel traz um conceito ontológico de verdade, que se coloca com as raízes do conhecimento e não como demonstração. Algo radicalmente verdadeiro como a finitude da vida não precisa ser demonstrado. Por aí surge a consciência de si. Se consideramos essa nova figura do saber – o saber de si mesmo – em relação com o precedente, sem dúvida que este ultimo desvaneceu, mas seus momentos foram conservados “ (p.136). O que se perdeu foi a singularidade anterior. O ser-em-si é a consciência e o ser-para-si é ela mesma para outros. O eu é o conteúdo da relação com outro e é a própria relação. Com a concretização dessa outredade desaparecem o vazio anterior da consciência. Entende-se que uma relação com um outro é um dado momento da consciência. Assim, a consciência de si vem a ser a unidade de todas as diferenças. O consequente conceito de identidade é ontológico porque diz respeito à identidade em relação com as raízes antes que com outros. Nessa recomposição da identidade através do conhecimento interno Hegel marca que tudo que não é si próprio se torna estranho, torna-se um outro radical. “Para a consciência-de-si portanto o outro é radicalmente separado . Quando o objeto observado retorna sobre si revela-se como vida”… “A consciência de si é a unidade das diferenças , a vida é essa mesma unidade”. Assim, é tão independente seu objeto quanto é independente a consciência “(p.137). Nas páginas seguintes cruciais desse aparecimento da consciência-de-si, Hegel trabalha a conceitualização de uma consciência individual, que ao contrastar com um outro abre a suposição que esse outro seja o todo, ou Deus. A relação interna do si próprio é penosa. “Esse circuito todo constitui a vida a qual não é o que de inicio se enunciou – a continuidade imediata e a solidez de sua essência … sim é o todo que se desenvolve, dissolve seu próprio desenvolvimento e se conserva simples”(p.140). Conservar-se simples é um assunto de ligar tradição com ideologia, ganhar a capacidade de reler experiências e, acima de tudo, desenvolver a capacidade de reagir à alienação. A consciência de si é o ponto de inflexão a partir do qual se registra o conceito de espírito porque é o foco dos movimentos de interiorização da consciência. A consciência se descobre como tema. 28


As condições de afirmação da consciência-se-si transcendem a individualidade, ensejam o relativo a dominação e dependencia que é onde Hegel discute a escravidão mediante a relação entre senhor e escravo. O senhor é a consciência para si …que é mediatizada..por meio de outra. (a) o senhor como conceito de consciência de si é relação imediata; (b)em seus momentos de mediação com o outro. O senhor se relaciona com a coisa por meio do escravos, por isso a verdade da consciência independente é a consciência escrava. Diremos que além do registro da significância da dominação o essencial na argumentação de Hegel é que a consciência escrava aspira naturalmente a mudar enquanto a do senhor pretende permanecer como está, ou seja, que a dinâmica do processo fica do lado do escravo. A dominação é a extravasão do campo das relações concretas entre senhor e servo constituindo um modo de relações de poder que se torna referência tácita da consciência e vai às bases do autoritarismo. Mas denota a limitação própria do autoritarismo para perceber-se como processo contraditório. É o principio geral que rege as relações de desigualdade. B.

Liberdade da consciência de-si

Nesta seção Hegel questiona o pensar como atividade própria da independencia. Pensar implica em ver-se como objeto concreto e em relação com outros concretos. É consciência pensante o que não pode deixar de pensar porque deriva sua própria identidade do pensar. a. Estoicismo O estoicismo é a forma negativa positiva de tratamento do poder porque é a negação do poder. b. A consciência infeliz Vale começar com “a consciência infeliz é a consciência de si como essência duplicada e somente contraditória”(#206) que não consegue se unificar, Vemos isso como uma versão da doutrina do estranhamento. Arriscaremos dizer que é o sentido trágico da vida, que não se resolve na materialidade imediata porque surge do descobrimento de uma rejeição profunda no eixo de ideologia => aspiração ética. Espelha uma insatisfação permanente com os resultados que se alcança. “como consciência da 29


imutabilidade deve ao mesmo tempo libertar-se do inessencial , isto é, libertar-se de si mesmo(#208). A consciência infeliz está em duplicidade com sua simplicidade anterior que parece imutável porque ainda não entrou na angústia da mudança. Assim, não é uma indiferença entre essas duas situações mas a impossibilidade de unificar as duas. A singularidade fica ligada à condição geral de imutável mas imutável não pertence mais a simplicidade. É como a consciência do imigrante de sua identidade dividida. O novo é determinante mas é condicionado pelo anterior. A consciência vai se reencontrar como um imutável modificado. O primeiro imutável pode ser uma consciência como a do colonizador mas o segundo surge da experiência da colonização. Resumindo, o imutável é uma categoria que se renova. Como a consciência surge de impulsos efetivos como desejo e trabalho, a consciência infeliz está além das determinações de estoicismo e ceticismo que derivam de situações concretizadas para ir na direção de uma singularidade pensante, referida a um além que sempre parece inatingível. É um circuito que passa do singular inercial a um singular depurado em que as singularidades iniciais são absorvidos ou simplesmente diluídas 13. É um processo de transfiguração em que “o retorno da alma a si mesma implica em que para si ela é efetivo como singular” (#218). A consciência está enre uma efetividade passiva e outra ativa, de seu processo. Assim, na superação de sua circunstância, a consciência caminha por meio de sua experiência de desejo e trabalho 14. A relação com tudo que é imediato é sempre negativa porque é tudo que tem que ser superado. É o caminho da consciência que traça seu caminho. Mediante o pensar, a consciência super-sensível se descola de sua condição natural original. O pensar converge em reflexão que é por onde ascende à capacidade de ser infeliz, isto é, de ser cético e reproduzir o mundo em figurações imutáveis ou fixas. Para Hegel a percepção do que há de imutável funciona como uma proteção de autodestruição. Hegel introduz aí uma alusão ao contexto reflexivo dos estoicos que parece um pouco forçada. Mas vai concluir que essa capacidade reflexiva é uma afirmação de singularidade que representa sobrevivência.

Na leitura de nossas sociedades desiguais provenientes de composições do capital mercantil com modos tribais de organização essas singularidades iniciais, de escravos e de índios dominados, é sistematicamente submergida em contextos aparentemente modernos. 14 O significado ontológico do trabalho, tanto existencial como social, aparece pela primeira vez. 13

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3.5. Certeza e verdade da razão A consciência convertida em razão passa a encontrar efetividade em sua relação com outro, ou seja que é o fato de poder agir racionalmente que possibilita a relação para fora. Desde aí, a consciência não precisa mais se retirar sobre si mesma. Hegel inicia este capítulo com um título que liga certeza com razão. A certeza aqui é a da esfera supra-sensível que tem sub-sumida a certeza sensível com sua negação. Ao retornar a si mesma de sua incursão pelo incondicionado, ela ganhou uma singularidade que é a consciência do efetivo e que já contém seu próprio negativo. Surge uma nova unidade com esse universal. A questão é que essa nova unidade acontece dentro da consciência e por conta dela, isto é, aqui Hegel atribui à consciência o poder de produzir sua própria unidade. Isto porque a certeza é igual a sua verdade, já que a certeza é a consciência do verdadeiro. Para Hegel o conceito é movimento porque é o movimento do saber Nesse ponto introduz-se um salto lógico que consiste em reconhecer a consciência como razão (p.172). A razão seria imanente à consciência e parte de sua realidade transformativa. Mas se operaria concretamente essa passagem e não só na argumentação. Tal qualidade de razão confere à consciência a capacidade de superar sua dependencia de sua necessidade de sobreviver. Seu comportamento pode seguir seu pensar. É quando surgem condições para o idealismo. Diz Hegel “só agora – depois que perdeu o sepulcro de sua verdade e aboliu a abolição de sua efetividade e a singularidade de sua consciência a essência absoluta descobre o mundo como seu novo efetivo.”(p.173). Com mais clareza, diferente de Kant, coloca-se que a razão é um resultado de um processo formativo da consciência. Por isso ela já carrega a verdade inerente a esse processo. Mas desde seu primeiro momento não é só isso. A consciência não é só porque se sabe mas porque se demonstra. E a demonstração não é ato de matemática mas um modo de apropriação da realidade que se torna uma interação com outros. Demonstra-se através do caminho…no movimento dialético do visar, do perceber e do entendimento …depois no movimento de independencia da consciência na dominação da escravidão”(p.173). Descobre-se que neste ponto trata-se das condições efetivas de liberdade. A liberdade é inerente ao processo de separação da consciência da amarração do círculo diário de sobrevivência, que é distintivo do mundo animal. Há 31


uma questão relativa ao surgimento da razão que se reconhece como processo ou que aparece pronta. ”A consciência que surgiu como razão é apenas certeza daquela verdade”(p.174). No raciocínio de Hegel nada aparece pronto, tudo se faz. Hegel dirá que esse é o caminho do idealismo, mas que ele não capaz de superar, porque ele é uma pura asserção que não mostra o caminho da consciência, fica como pura asserção, não responde às necessidades do desenvolvimento da consciência “Somente quando a razão surge como reflexão a partir dessa certeza oposta é que surge sua afirmação de si, não mais aparece como certeza e asserção mas como verdade e não ao lado de outras verdades mas como a única verdade” (p.175). Diferenciando-se do idealismo de seus antecessores Hegel se coloca tacitamente como o filósofo da consciência histórica. A limitação do idealismo é que a razão assim percebida é apenas uma realidade vazia, é a positividade do essencial, portanto, o que há de simples. O problema do idealismo é que ele percebe essa verdade simples como toda a verdade auto-restringindo-se à essencialidade do abstrato. Mas essa é uma limitação mortal do idealismo – Subentende-se que aqui não é um ataque a Kant – que não percebe o potencial da razão. Diz Hegel “a razão efetiva não é tão inconsequente assim, a contrário sendo [tendo] a certeza de ser toda a realidade está consciente de não ser ainda enquanto certeza…na verdade é impelida a elevar sua certeza à verdade”. A busca da verdade revela-se uma necessidade inevitável. Desse modo Hegel desqualifica o idealismo como abordagem inadequada para seguir o caminho da consciência. Contudo, a diferença é inerente ao próprio entendimento. Este não surge do nada. ”Tudo gira em torno da auto-alienação e de sua superação. A esse problema Hegel atribui um papel central e Karl Marx aplicou mais tarde à praxis” (GADAMER, 1971). Nesse ponto está a crítica ao Iluminismo. A luta por um esclarecimento capaz de desempenhar o desenvolvimento da consciência em sua progressiva interiorização é o que vai e vem desse movimento de interiorização que desenha as propriedades da razão. A razão que parecera ser algo interno se descobre externa e depende de um processo de interiorização. Esse movimento que supera a simplicidade do idealismo desenha a angústia da razão que não se contém naquele nirvana de um autoreconhecimento que não registra essa luta constante por se reconhecer. O esclarecimento torna inevitável a luta contra a superstição. A depuração 32


da inteligência reconhece a fé como oposta à razão. A angústia da razão é inerente ao processo de separação que já tinha determinado a consciência infeliz. A.

A razão observadora.

Desse modo, nesse ponto, Hegel chega à razão observadora. A razão não pode deixar de observar porque, diz Hegel, “a consciência observa, quer dizer, a razão quer encontrar-se, possuir-se como objeto essente, como modo efetivo sensivelmente presente” (p.180). Diremos que a razão no sentido processual do formar-se da consciência é a representação da força em seu ímpeto expansivo. A razão observadora visa e percebe, passando a ver o outro e fábrica experiência. Desenvolve um interesse geral pelo mundo com a nova certeza de que sua presença é racional – no sentido de realizável – e passa de sua simples efetividade à capacidade de apropriar-se do mundo. Ganha profundidade por meio de sua experiência. A função da observação é a partida para uma relação consciente com a natureza. Tacitamente ela envolve ação, desde coleta e caça até drenagem e irrigação. A razão observadora sai em busca do mundo e se encontra com a natureza. É guiada por instinto. Ao abandonar a determinidade inerte, que é a das plantas, a razão assume seu papel ativo. Mas ainda não tem verdades, apenas o dever-ser da verdade. Por isso ainda não tem verdade alguma (#249) Ficar no observar torna-se contraditório com seu caráter, é impraticável. De novo precisa sair de uma universalidade vazia e chegar à concretude de novas singularidades. Tem que sair da esfera das probabilidades. A probabilidade não é nada comparada com a verdade que é dada pela experiência. Na verdade a probabilidade é uma simulação. A experiência é o terreno da organicidade no qual impera a necessidade. O necessário é essencial e se move sobre a organicidade. Aí se reconhece a profundidade do conceito de imanência : ele descreve a organicidade do mundo. Na organicidade está o poder de reposição. O fim está contido no processo, do mesmo modo como se dá a imanência do processo da consciência racional ativa. A totalidade orgânica não é qualquer uma, ela não somente é como está. E fica, permanece, porque está em sua temporalidade própria. Organicidade não é passividade, é o modo de se transformar da razão ativa, pelo qual seu vir-a-ser se concretiza. O que é orgânico é inseparável do devir do processo. Já aí se antecipa que o espírito é decorrência inevitável da razão ativa, que jamais para sobre si mesmo, somente se detém para se desprender de suas próprias raízes.

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B.

Observação da natureza.

Nesse ponto Hegel envereda pela observação da natureza para registrar que essa inquietação da razão consciência, que leva a procurar um objeto, uma parede, investe na natureza na qual encontra diferenças reais em gênero e especie. Há um instinto da razão que dá lugar a um observador instintivo. A natureza representa um desafio por sua exterioridade e seu conhecimento é um passo necessário por conter as dimensões de gênero e especie que são particularizações e de organicidade como qualidade essencial. O conceito de singularidade que a natureza enseja está além da particularidade. Representa a opção por um dado plural e não por qualquer plural. Por exemplo, o desaparecimento de certas espécies de animais significa o fim de certos plurais. As singularidades na natureza – espécies animais e vegetais – estão for a do escopo do agir do sexo. Ao tratar com a natureza a razão abandona seu papel passivo. Não há passividade porque a natureza não é passiva.Tudo muda para a razão, que se descobre ativa ao abandonar a determinidade inerte e assumir seu papel ativo de redescobrimento de singularidades ainda não reveladas 15. Como o descobrimento de espécies animais ignoradas da Amazonia, que já estavam lá, ou como os grandes felinos que instintivamente marcam um território e o modo de circular por ele. Diz Hegel que “a razão descobre uma determinidade externa a ela. O que é universalmente válido também vigora universalmente. O que deve ser também é de fato”(p.185). Cogita-se acerca da realidade do dever-ser. Há uma probabilidade que seja. Mas o estatuto da verdade se rebaixa ao do provável. O provável perde vigência no imediato. Não se pode formular uma teoria sobre probabilidades que podem não se confirmar. É o que ocorre com a propensão a consumir em economia. Estamos entre probabilidade e necessidade, em que a necessidade é orgânica e a probabilidade é indicativa. Para Hegel a observação da natureza é necessária porque dela derivam essas noções de organicidade e singularidade que se se revelam necessárias para decifrar o movimento da consciência. A própria noção de necessidade ganha um significado de organicidade e de necessidade. A cadeia biológica é a de relações necessárias entre espécies. Os sexos são organicamente necessários um ao outro. Por isso o complexo é simples “um objeto tal que tem em si o processo da simplicidade do conceito”(#257). Quando Voltaire escreveu sobre o índio hurão do hemisferio norte mostrou à Europa uma razão complexa alternativa à europeia, elevando a racionalidade do primitivismo a condições de comparabilidade com as da civilização. 15

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A organicidade pressupõe a probabilidade de se restaurar – reproduzir – com suas forças. Esse poder pressupõe o conceito de fim, isto é, a recomposição, tal como acontece com as classes sociais, contempla sempre uma mudança. Não cabe mais consciência sem atribui-la ao ser social. Nada volta a ser exatamente o que era. Por isso, a organicidade a do ser social em sua sociedade. Em suma, a totalidade orgânica não só é como está. O problema latente nesse capítulo é que ele desenha uma teoria da ação na perspectiva da observação. Hegel está falando de organicidade na perspectiva biológica, em que ela está separada de uma teoria da ação quando se trata da emergência da consciência suprasensível comprometida com sua função como razão. Isto depois de ter admitindo que na organicidade é que está o poder de reposição 16. Esta doutrina da organicidade é um ponto fundamental da teoria do capital em Marx em que todos os movimentos apontam à reprodução do capital sobre o conceito de composição orgânica. Diz Hegel “a propriedade orgânica universal em um sistema orgânico se transforma em coisa”(p,197) e adiante “O essencial consiste em ter momentos de efetividade do modo igualmente universal como processo”( p.202). Concluiremos que o essencial do orgânico é a efetividade. O discurso segue com a observação da consciência-em-si com sua efetividade, apontando a leis lógicas e psicológicas. Entenderemos que a efetividade é transiente, que muda acompanhando o aprofundamento da consciência. O fundamento ontológico se impõe. A efetivização do ser confirma confirma sua originalidade. Hegel adverte essa condicionante ao dizer que “um objeto tal que tem em-si o processo na simplicidade do conceito é orgânico”(p.188). Diremos que o que é orgânico é substancialmente necessário. Essa é uma outra simplicidade do ser que se pode interpretar como o possível modo simples de algo que se tornou complexo. Em pauta fica por definir que se torna necessário quando a consciência muda de lugar e de definições. O ponto fulcral desse discurso é a imanência da organicidade. Não há como pensar que a razão consciente não seja orgânica e não busque uma determinidade. A imanência da tragédia está estabelecida como baixo continuo desse concerto grosso. Uma vez colocadas as leis do pensar o tópico seguinte para Hegel é a efetividade exterior que aparece na forma de leis lógicas e psicológicas. 16

Comentaremos que se trata de possibilidade ou de capacidade de reprodução.

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Tais leis são “momentos singulares evanescentes cuja verdade é tão somente o todo do movimento pensante, o puro saber”(p.218). As leis descobertas e formuladas são, portanto, uma negatividade já que ficaram tacitamente ultrapassadas pela atividade da consciência. A negatividade das leis é inevitável para a consciência observante 17 porque ela deriva sua efetividade de uma percepção do outro e não de sua projeção formal. Descobre-se o problema da independencia, que é genérico e é a marca da afirmação da individualidade. “O individuo como efetividade especial e como conteúdo peculiar se opõe aquela efetividade universal”. Aqui se estabelece que a filosofia de Hegel é a da liberdade necessária do individuo consciente. Ora, uma vez feita, essa constatação impõe-se questionar o significado da lei. A lei não surgiu do vazio, é histórica. Diz Hegel “Os momentos constitutivos do conteúdo da lei são de um lado a própria individualidade e de outro essa natureza inorgânica universal, ou seja, circunstâncias, situações, hábitos, costumes, religião, que são encontrados e em função dos quais a individualidade determinante tem que ser concebida.” (p.220). Está clara a incompatibilidade da dialética com o direito natural. Historicamente, as leis corporificam o pathos social de um povo. De outro modo não se explicariam assassinio e mutilação e tortura institucional. B.

A relação da consciência com sua efetividade.

Esta seção começa na anterior em que Hegel diz que “a superficie da esfera – o mundo do individuo – tem o duplo significado de ser mundo e situaçãoem-si e ser o mundo do individuo” (p.221). Adiante, “a influência da efetividade sobre o individuo recebe dele o sentido oposto. O individuo, ou deixa correr o fluxo da efetividade que é influência, ou o interrompe e reverte”(idem) “A individualidade é a unidade do ser enquanto dado e enquanto construido”(ibidem). A efetividade é sempre propri de um momento. Subjaz que será substituida como uma pessoa descarta teorias equivocadas. Assim, a relação da consciência-de-si com a efetividade passa pela identificação do individuo e da individualidade como qualidade do individual. Está claro que a efetividade é parte de situações específicas de consciência.

17 Está claro que a consciência observante é o ser social, o sujeito da aventura da autoconsciência.

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B. A efetivação da consciência-de-si racional através de si mesma A razão ativa surge quando a consciência se soergue sobre suas fraquezas e sai do templo para a turbulência da vida. Com o sub-título de a razão ativa Hegel marca um próximo passo que é um mergulho interno como dos mergulhadores com respiração. Aqui está o enfrentamento frontal com a consciência racional que empreende seu caminho de modo deliberado. A consciência não é só a capacidade de objetivização. Ao encontrar-se a consciência-de-si reencontra a coisa modificada por seu agir e transforma a efetividade em extensão de seu próprio agir. É o modo como o agir social se registra como incorporado ao mundo social . Por exemplo, o acúmulo de obras de drenagem e irrigação muda o meio rural. A sucessão de experiências leva a uma liberdade pensada. Assim, a consciência social incorporada torna-se seu próprio juiz. Não se contenta mais com a certeza imediata mas penetra no conteúdo da certeza passando pela negatividade da crítica reflexiva. Desapareceram todas as condições de ingenuuidade. descortina-se a profunda solidão da consciência no mundo. Na luta para se desvencilhar de espelhismos a consciência precisa estabelecer conceitos confiáveis. O conceito será uma efetivação da autoconsciência como um oposto externo criado por ela. O principal conceito é a constatação do que é irrecusável. Navegar é preciso, disse Pessoa. O caminho se faz ao andar, disse Machado. O conceito é a contrafação da consciência mas que se torna sua representação. Mas ele ganha significado inarredável “o conceito que já surgiu para nós – isto é a autoconsciência reconhecida – que tem em outra consciência-de-si a certeza de si mesma” (#349). E em sua concretude humana e como expressão social. “É na vida de um povo que o conceito da efetivação da razão consciente-de-si tem de fato sua realidade consumada ao intuir na independencia do outro sua perfeita unidade” (#350). Essas constatações levarão Hegel adiante a um quid pro quo sobre a razão, porque se ela é o elemento ativo por excelência representa uma contradição da consciência por sua coisidade, “imutável coisidade” como ele diz, apesar de ser ela razão, como elemento ativo, que vai descobrir o povo como coletivo necessário do esclarecimento. Descobre-se que a razão ativa é a contradição da razão observante e não é sua

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continuação18. A verdadeira continuidade da razão observante é a ideologia. Sobre essa pista de universalização da individualidade no #351 Hegel traz uma antecipação da teoria do trabalho abstrato quando diz que “o trabalho do individuo para prover suas necessidades tanto satisfação das necessidades alheias quanto das próprias e o individuo só obtém a satisfação de suas necessidades mediante o trabalho dos outros”. Diremos que se descobre a aparência individual e a essência universal do trabalho, que vamos preferir chamar de essência social. A diluição da individualidade do trabalhador é um processo que está na raiz da sociedade moderna, que pode ser conduzido pelo trabalhador mas que é captado pelos capitalistas e se torna o fundamento da produção de mais valia. No entanto, o individuo trabalhador é o ser vivo que materializa essa função de trabalhar sobre decisões já tomadas de que fazer e sobre as possibilidades de escapar dessa determinidade. C. A individualidade A constatação da individualidade do trabalho revela sua eticidade, ou a impossibilidade que o trabalho seja desvestido de significado ético. Esse argumento é retomado na Enciclopedia (#523) quando Hegel trata o trabalho como fundamento da sociedade civil. Temos aqui o fundamento de uma teoria histórica do trabalho. No (#357) Hegel vai tratar da essencialidade ética do trabalho que deve ser o modo da auto-consciência alcançar uma singularidade reflexiva. Uma vez tendo reconhecido o papel essencial da eticidade, a reflexão sobre a cultura assume a crítica da falsidade instalada na institucionalização que vai usar a legitimação do dogmatismo como fonte de poder. Hegel leva esse argumento à identificação do mundo alienado, onde a fé é uma “fuga do mundo efetivo”. No entanto a cultura impregna a imediatez do mundo dos indivíduos, que por meio dela alcançam sua vigência e efetividade. A cultura é o canal para passar da universalidade da alienação geral para uma alienação especificada. Disse Myrdal que a cultura da modernização é o mecanismo de dominação do capitalismo moderno. Por esse caminho da crítica da cultura Hegel chega a sua primeira abordagem do poder do Estado, o qual segundo ele se manifesta como uma substância simples mas dotada de uma universalidade imediata e local. A rigor o Estado surge como uma contradição no processo da 18 Compare-se este argumento com a declaração de Marx que é preciso mudar o mundo e não só explicá-lo.

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consciência porque representa uma rigidificação da eticidade e dos processos da própria consciência. Toda constituição vem a ser um congelamento de princípios legais que se considera imutáveis portanto não históricos 19. Surge que a consciência-de-si só se sustenta com liberdade real.O amadurecimento da consciência-de-si é o disfrute prazeiroso da individualidade. A consciência é conduzida pelo desejo que está na origem das opções vitais, desde o impulso do amor, profundo ou trivial, as escolhas tais como pintar, esculpir ou fazer música. O gozo do prazer é uma afirmação de singularidade que compreende uma realização de outro. Pelo desejo o outro é objeto ativo realizado no sexo, onde ele é imediato e complementar. Mas como esse ser vivo está identificado como outro e como objeto, representa ao mesmo tempo necessidade e desejo. A outredade só subsiste quando permanece além do desejo imediato. A lei do coração, os sentimentos surgem como lei da vida que põe em seu lugar o desejo e a necessidade. Tem a força da verdade da experiência. Pelo reconhecimento do que denomina de lei do coração Hegel está entrando no que mais tarde seriam as pulsões do mundo de Freud. Distingue as pulsões da relação amorosa e as de pretensão ideológica. “O pulsar do coração pelo bem da humanidade desanda a furia de uma presunção desvairada no furor da consciência para preservar-se de sua destruição “(#377). Diremos que no fundo do poço há uma proximidade entre a dedicação ideológica, o amor incontrolado e o fanatismos. Em todos há uma negação da individualidade que se reafirma adiante através da sublimação do outro. Através da certeza do egoísmo descobre-se o vazio da cultura do egoísmo. “Quando age por egoísmo não sabe simplesmente o que faz. Quando assegura que todos os homens agem por egoísmo apenas diz que todos não sabem o que seja agir”(#392). A reprovação do egoísmo é o começo da crítica da burguesia do capital com sua incapacidade orgânica de perceber o coletivo. É a diferença entre individualidade como resistência e como sistema de poder. D. A virtude e o curso do mundo

Nesse sentido a pretensão de ter constituições permanentes é uma aberração ou um bloqueio à percepção da produção social de problemas jurídicos. Bobbio (1989) de certo modo roçou por esse problema sem enfrentá-lo de verdade. 19

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Aqui se fazem as contas desse desenvolvimento da consciência-de-si internamente conduzido e o fato do mundo. É a impossibilidade de ignorar a essencialidade da relação com o mundo e a de realiza-la mediante o impulso da individualidade. “Na primeira figura da razão ativa a consciência é pura individualidade e frente a ela está a universalidade vazia …na segunda figura cada uma das duas partes continha os dois momentos, lei e individualidade. Aqui na relação entre virtude e curso os dois membros são unidade e oposição …para a consciência da virtude a lei é essencial “(# 381). Então não é que a consciência está presa à individualidade, mas que ela tem que superá-la e colocar-se como virtude no sentido clássico do tema, capaz de representar a qualidade cívica. O que Hegel distingue como comunidade ética é o povo enriquecido de sua consciência de liberdade, que está filtrada por sua internalização como comunidade. A liberdade não é somente meta como modo de efetividade. É uma liberdade com uma personalidades que a separa do caos das individualidades vazias. A essência ética será desmoronada pela corrupção que é uma contradição desse movimento da consciência. E. O espírito alienado de si mesmo, a cultura (#484 e seguintes) Ética e cultura aparecem como duas expressões de modos de regulação da vida social, que se manifestam desde a organização dos modos simples de consciência consolidados em costumes. A efetividade dos costumes é exterior enquanto a dos modos de cultura, que se desenvolvem na complexidadee penetram substancialmente na formação da consciência. Essa efetividade do simples está presente de modo incidental na esfera do simples mas é negativa porque por meio de “extrusão e des-essencia-mento da consciência de si” que é objeto da violência do mundo em que está. A substância desse ser nesse contexto é essa mesma extrusão, que é a afirmação de um ser vazio, esvaziado pela alienação. É pela extrusão que ele chega ao mundo efetivo; e sua alienação se torna sua consciência. Por isso, por força, esse espírito constrói um mundo duplo, fundado em separação e oposição: a genuine inicial e a da alienação . Nesse contexto, o presente é apenas imediato, não carrega a força imanente de seu próprio processo. A efetividade pode ser destituido de concretude e ser uma fé. Nesse mundo regido por ética a separação entre a lei humana e a divina faz contraponto com a separação entre saber e 40


ignorância. É em torno da polaridade e a objetividade racional que se encontra o Iluminismo. Segundo Hegel, o Iluminismo leva a cabo a alienação que separa a ordem em suas diversas acepções em nome da pura inteligência que conduz uma alienação do mundo construido. O mundo alienado de si é duplo. Compreende a efetividade ou seu oposto na alienação do espírito e aquele outro que o espírito constrói colocando-se acima do anterior. No mundo alienado de si mesmo o que vale não é a religião mas a fé, que é uma fuga do mundo efetivo. Por sua vez, a pura consciência é o elemento no qual o espírito se eleva, passando a contrastar a fé e o conceito. A partir dessa contrafação Hegel passa a examinar o mundo da cultura. Começa por re-estabelecer que o espírito deste mundo é a essência espiritual impregnada de uma consciência que se sabe presente como interioridade e como relação com outros. Sua efetividade surge de sua capacidade de renunciar a suas condições objetivas atuais que é o seu modo de tratar com a mudança da substância ( da realidade social atual). Se Hegel considera que é mediante a cultura que o individuo tem nova efetividade é porque a vê como substituição da natureza original do individuo. A cultura entra, portanto, como alienação do original, passagem da substância (vida social) pensada para uma efetividade inserida, que tanto tem de cultura como de poder. É uma diferença inessencial. Gera uma individualidade que está ligada a outras condições de universalidade. Diz Hegel que “o que se manifesta ao individuo como cultura é o passar imediato de sua universalidade à efetividade” (#490). Voltamos ao exemplo da passagem do homem rural para o meio urbano. “A força do individuo consiste em ajustar-se à substância, isto é, extrusar-se de seu si e por-se como substância objetiva) (#490). Seu antecedente natural só será efetivo quando for organicamente incorporado ao seu novo meio. Mas não é um processo homogêneo porque se realiza sobre seus sucessivos momentos que dependem da atualização de sua alienação e da subsistência do outro. De todos modos na visão hegeliana cultura implica em dualidade e em coisificação. Só se pensa em culturas negras por oposição a não negras e mediante manobras de simplificação administradas desde fora. De volta à reflexão central é preciso registrar que o centro falsamente imóvel desse processo que é o ser-em-si e o ser-para-si (individuo e membro de comunidade) recupera sua unidade mas já não como antes mas em nova comunidade.

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Esse movimento se realiza frente às instituições mais sólidas e abrangentes, que é onde entra o Estado. O poder do Estado atinge os diversos corpos desse processo e tem a peculiaridades de representar todos os outros possíveis. É a despersonalização de processos cujo fundamento é a individualidade. O espírito alienado de si-mesmo, a cultura [leitura alternativa] Diz Hegel que a substância ética (isto é, a ética concretamente incorporada) mantém a unidade da consciência simples com sua essência. Sua efetividade é apenas a de seu conteúdo. Mas é atingida pelo seu trabalho ( no sentido de relação concreta com o mundo)que gera a efetividade negativa. “adquire seu ser-aí pela própria extrusão e pelo des-essenciamento da consciência de si que na devastação do mundo do direito parece uma violência externa.É a alienação da personalidades com efeitos sobre o ser-aí (ser social) portador da consciência histórica”. O processo de alienação cria algo que pode ser perverso para a consciência mas que se incorpora em sua experiência. Superar alienação é uma experiência que só se adquire porque há alienação. Aqui Hegel supõe que a substância ética está sempre presente e deriva um controle entre a essência ética e a consciência simples que é o que vai aparecer como costumes. Mas são inerentes aos modos de individualidade que é onde está o concreto. O mundo é a compenetração do ser e da individualidade. Mas esse é o discurso de ser-aí do ser-de–fato que não se pode esquecer que é a pessoa. Ele ganha sua consistência mediante a extrusão da consciência de-si simples. A violência dessa separação da consciência-e,-si é a alienação de formas caducas de efetividade, tal como a vendetta é superada por uma legislação criminal universalizada. Mas ela fica latente tal como a vingança resurge quando a legislação se omite ou se revela parcial. F. A fé e a pura inteligência O espírito da alienação tem sua concretude no mundo da cultura, mas quando essa alienação se completa ele fica reduzido a um pensar inefetivo. A consciência abriga pensamentos que não reflete, saindo da efetividade mas caindo em sua determinidade. São falsos silogismos na lógica de Aristóteles e são paralogismos em Kant. Diremos que o alienado vive a realidade da alienação que a expressão de uma ruptura interna.

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“(Essa) consciência dilacerada é apenas uma igualdade consigo mesma da pura consciência…Assim, somente por uma elevação imediata, mas ainda não implementada, chega ao seu princípio oposto, mas sem ter se assenhorado da mediação.Portanto, para ela a essência de seu pensamento não vale como essência, mas só na forma de um efetivo comum.” (#527) É preciso distinguir a essência da consciência concreta imediata da consciência estoica que se fundamenta no essencial. O imigrante percebe o mundo imediato de seu trabalho mas não está em condições de perceber situações de classe nem de ideologia nacional. A efetividade dessa consciência imediata não depende da forma de pensamento. Diferencia-se da consciência virtuosa, para a qual essa consciência da alienação é uma falsa consciência 20. Assim, se no mundo da cultura o puro pensar se realiza como parte do processo da alienação, ele se enriquece com o aumento (ou aprofundamento) da alienação. Nesse contexto entram as cogitações sobre a religião que “emergiu da pura substância (neste caso, a atividade social) que é alienada de sua consciência e de seu ser-aí 21) Surgirá, portanto, que a consciência não virtuosa, consciência dessa essência absoluta é consciência alienada ou consciência dessa alienação. Resta saber alienada de que, de uma situação ou de um processo. Diz Hegel, primeiro apenas foge de si própria, apenas não quer ser o que é. Pretende Hegel que é apenas pura reflexão a partir do mundo da cultura. A pura consciência é reflexão a partir do mundo da cultura. A pura consciência é igualdade simples, não é diferença nenhuma. Mas é um elemento de fé que confere universalidade à alienação22. O desafio é o mecanismo interno de alienação que assume formas que lhe garantem uma universalidade positiva. Hegel focaliza na imediatez da alienação que desenvolve seus mecanismos de exterioridade.

4.

Espírito

A. O reconhecimento do espírito

Hegel usa a expressão consciência virtuosa para a consciência que se desenvolve no processo dialético de passagem da consciência sensível inicial para a razão ativa. 21 Entende-se como a distinção entre a teologia e as práticas religiosas, 22 Símbolos religiosos que são erigidos como santidades, encontrados promovidos. 20

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O espírito é uma transfiguração da razão. A razão ascende a espírito quando a certeza de ser toda a realidade torna-se verdade e quando é consciente de si mesma e do mundo do modo como ele é. A compreensão do espírito está fundamentadas em uma compreensão da razão. Há uma razão observadora, que surge da unidade do ser e do eu, isto é, do ser-em-si e do ser-para-si . Nessa conjunção a consciência se encontra como ela é com seu instinto. A verdade de observar é suprassumir esse instinto carente de consciência. Na razão ativa a coisa intuida e a encontrada entram na consciência como ser-para-si do Eu que agora se compenetra de sua objetividade. Por isso, a individualidade passa a estar preenchida dessa essência objetiva. É a verdade universal da essência dessa individualidade, mas que ainda é abstrata e só uma essência espiritual e um saber formal. Ainda não é consciência de si mesma mas é efetivo como consciência e ao representar-se a si mesma é espírito. Sua essência é sua substância ética mas enquanto espírito é apenas uma efetividade ética. O espírito torna-se o centro estável do movimento que constrói a efetividade ética e do qual surge o mundo efetivo objetivo. “Como substância o espírito é igualdade consigo mesmo, mas como ser-para-si é a essência que se dissolveu. Nela (razão ativa) cada umrealiza sua própria obra, despedaça o ser universal, dele tomando sua parte. Tal dissolução e singularização é o momento do agir de todos”. Pode-se ver aí o espírito como uma abstração do mundo configurado pelo individualismo. Não é um ideal, é uma generalização do mundo constituido de uma luta de interesses “O espírito é a essência absoluta real” que se sustenta a si mesma… e as figuras da consciência são suas abstrações”(#440)23 O espírito abrange as diversas formas de consciência e retém aquele momento que representa a combinação dessas formas. Por isso, é preciso agregar que o espírito é o portador da memória pela qual pode reconhecer a atualidade do passado. O espírito será a verdade de um povo na realidade concreta da mistura de memória e ideologia tal como se preserva. Tende-se a ver um argumento de que a manipulação da memória histórica, praticada desde sempre mas característica da sociedade moderna, é parte essencial do modus operandi da sociedade capitalista. A essência espiritual já foi definida como substância ética. A partir desse ponto a eticidade passa ao centro da reflexão convertida em atributo da consciência.

Encontra-se aqui uma paráfrase da sociedade com sua constante reconstrução de seu discurso para adaptar a história aos seus valores e justificar a diferença entre seu discurso e seu agir. 23

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B. O espírito verdadeiro: a eticidade Diz Lukács que Hegel é, acima de tudo, o filósofo do espírito. O próprio Hegel diz que em sua verdade o espírito contrapõe a consciência e a substância e a essência universal do agir, Em bom romance é a praxis na leitura de Marx. As ligações entre os dois passam pela dialética da razão que alimenta o espírito na esfera individal e as classes na esfera do coletivo. A subsequente consciência de si desse processo a nosso ver é a ideologia embutida na praxis. O desmonte do fundamento ideológico e o consequente agir individualista é a ruína do fundamento ético que é a justificativa ontológica do agir social. Mas Lukács não liga a teoria hegeliana do espírito à da alienação, falhando portanto em ver que em Hegel a dialética não fica restrita ao interior do sujeito. Uma observação polêmica de Theodor Adorno propõe que o espírito surge da inter-ação dos trabalhos individuais e que ele mesmo deve ser visto como o trabalho social. Veremos que a construção do conceito de espírito obriga a certas mudanças no modo reflexivo da consciência, o qual entretanto, prossegue ininterruptamente. Aceitando a ponderação de Hyppolite que o capítulo sobre o espírito não é parte do bloco que chega da consciência sensível até a razão ativa, verifica-se que nesta parte há um outro circuito temático até a responsabilidade histórica. Tampouco há como reduzir o mundo do espírito ao do trabalho. O espírito representa o compromisso civilizacional, em que a cultura como experiência vivida é sempre uma negação da experiência em curso. (#438). A marcha da consciência chega à revelação do espírito que é o estagio ulterior da razão. Ä razão chega à revelação do espírito que é a síntese dos momentos dos estágios da consciência. “A razão é espírito quando a certeza de ser toda a realidade se eleva à verdade e é consciente de si mesma e de seu mundo”. Na razão observadora a unidade do ser é determinada como em-si e a razão se encontra. Mas, que observar? A razão permanece como observadora e passa a cognoscente e ativa. A resposta de Hegel pré estabelece o seguimento do processo porque ele diz que observar é suprassumir o instinto. Mas a razão ativa – observar e agir – é diferente. Nela o material da intuição se torna parte incorporada. A coisa intuida pela razão ativa entra como ser-para-si que é o oposto do ser-em-si e se sabe como Si, uma individualidade vazia. Leia-se que a individualidade só não é vazia quando representa o processo de formação do ser social.

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(#439) Ao enfrentar-se com a condição ativa do espírito Hegel passa a falar de uma nova discussão de universalidade que é da ação do ser em sua generalidade. Cabe entender que nesse ponto Hegel passa a falar de uma nova dimensão de universalidade que é a da ação do ser em sua generalidade. Mas como o aparecimento do espírito implica em nova concretude a universalidade ganha novo significado. Essa universalidade é uma totalidade histórica. (#440) “O espírito é a essência absoluta real que se sustenta a si mesma”. Isso acontece porque o espírito tem a capacidade de isolar suas próprias experiências vistas em sua singularidade. Diremos que o espírito é a razão ativa consubstanciada. Platonicamente, o espírito pode recordar. (#442) Mas aqui temos esse salto da formação e agir do espírito indiferenciado pelo que é próprio do povo [povo aqui se confunde com nação] “O mundo ético vivo é o espírito em sua verdade”. Como esse mundo ético não é a sociedade historicamente formada, ele aparece como representativo de situações tribais. B. O espírito verdadeiro eticidade][leitura alterna]

o

domínio

da

Em sua verdade, o espírito contrapõe a consciência e a substância, e é a essência universal do agir ou, em bom romance, é a praxis. A subsequente consciência de si desse processo extravasa a esfera da individualidade. Esta fica subsumida no conteúdo significante do espírito que se torna a superação do labirinto. Por seus caminhos Hegel chega, sem reconhecer, ao imperativo categórico de Kant. “O espírito em sua verdade simples é consciência e põe seus momentos fora um do outro…a ação se divide em substância e consciência, onde a substância como essência se contrapõe a si mesma como efetividade e fim “. A diferença com Kant é ética como agir e não como condição ou estado. Hegel vai contrapor o ético universal geral ao concreto que o levará a introduzir a categoria familia. A ética é uma necessidade, mas suas manifestações estão condicionadas no contexto histórico das instituições. Mas há uma derivação dessa argumentação para contemplar as condições concretas de ética (#453). “Porque a eticidade é o espírito em sua verdade imediata, os lados em que o espírito se dissocia incidem nessa imediatez”. A partir do #453 Hegel desloca o discurso ontológico da Fenomenologia para uma perspectiva antropológica da concretude da 46


comunidade e vai ligar as categorias familia e comunidade sobre bases elementares tribais. Do #453 ao #476 Hegel trata da familia como fundamento da organização social como elemento inicial da constituição ética de uma comunidade solidária que assegura a singularidade individual. C. O mundo ético: a lei humana e a divina, o homem e a mulher. A multiplicidade superficial das propriedades da esfera sensível se condensa na oposição essencial entre singularidade e universalidade. Daí, a multiplicidade dos momentos éticos se polariza em torno dessa dualidade24. A singularidade aqui está constituida da desigualdade e a universalidade reflete essa desigualdade essencial. Para Hegel a familia é referência necessária na formação dessa totalidade, tornando-se entretanto inevitável verificar a consistência do argumento consanguíneo. A ética aparece como produto historicamente formado e não é uma qualidade inerente à vida social em geral. D. O saber humano e o divino: a culpa e o destino Hegel trabalha sobre a oposição latente entre uma lei geral ética que se identifica como divina e as condições concretas em que se manifestam responsabilidades e culpa. Divino no caso deve entender-se como eticamente puro e não como expressão religiosa. Não está claro como se resolve o problema fundamental de uma atribuição de culpa, já que esse raciocínio se desenvolve sobre fundamentos individuais. A noção judaico-cristã de culpa está aqui transformada em contradição ética. A polaridade entre universal e singular não resolve a tensão entre individual e coletivo. E. O Estado de Direito. O discurso sobre o Estado começa na seção anterior (#476)quando Hegel começa a construir a abordagem do Estado de Direito, retomando a brecha colocada por Platão entre a República e As Leis. “O colapso da substância ética e sua passagem para outra [situação] vem de ser ela orientada imediatamente para a lei”. 25 “O povo (substancialmente) ético é uma individualidade determinada pela natureza e encontra sua suprassunção em uma outra… essa Historicamente, é um traço essencial das sociedades desiguais herdeiras do sistema do colonialismo em que a desigualdade é orgânica. 25 Veríamos aqui um sinal de anarquismo ou a defesa de uma cidadania radical como em Cícero ou nos Drusos. 24

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determinidade se torna uma negação”. O conflito imanente entre a lei divina e o Estado de Direito está colocado como incoercível . (#477) Em sua primeira apresentação o Estado surge da agregação de individualidades. Segundo ele “um universal estilhaçado que surge de uma agregação informe”. É inevitável pensar no descolamento que isso representa frente a sua própria leitura da história universal. F.

O espírito alienado de si mesmo, a cultura.

A cultura é um distanciamento de uma situação individual inicial em favor de outra que é externamente indicada. A afirmação cultural é uma separação em relação com outras. Na linguagem críptica dessa seção Hegel se coloca a partir de uma determinidade do ser que imposta pelos costumes. Adverte-se aqui uma contradição entre a determinação individual do ser consciente e a categoria costumes, obviamente coletiva. Lembrando que este discurso parte da substância ética que se manifesta em uma efetividade espiritual, refere-se que a cultura surgirá da relação entre ética e práticas (individuais). Por isso, diz Hegel que a efetividade da cultura é exterior, conduzida por essa individualidade (não denominada mas apresentada) que é um trabalho negativo (contraditório com a substância ética).”Adquire seu ser-aí (identidade) pela própria extrusão e desessencia-mento da consciência, que na devastação imperante no mundo do direito impõea violência dos elementos desencadeados”. Esses elementos são o puro devastar a sua própria dissolução, contudo essa dissolução, essa essência negativa são sua essência negativa e representam um vir-a-ser que é alienação de personalidades. “Desse modo essa substância (desagregada do individualismo) se torna efetiva e é a alienação da personalidade” (#484). A alienação se torna consciência. “Esse espírito constrói um mundo duplo, separado. O presente é apenas uma objetividade cuja essência é algo que não é sua efetividade”. Em suma, o produto da alienação é negativo frente ao ético. Delineia-se a diferença entre o verdadeiro e o apenas útil. O mundo do espírito alienado se desenvolve na forma de uma duplicidade entre a efetividade da alienação e o mundo que o espírito constrói na pura consciência. “O mundo oposto à alienação não está livre dela mas é outra forma de alienação que consiste em ter a consciência (memória) dos dois mundos e abarcar a ambos “ (#487). Essa percepção da alienação como processo que impregna a formação da consciência leva a questionar os meios de fuga dessa presença auto-destrutiva em que Hegel coloca os elementos de fé e de conceito. “os dois entram em cena juntos mas a fé é considerada apenas em oposição ao conceito”.

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Pela frente encontra-se o problema da efetividade da cultura. Se o espírito desse mundo é a essência espiritual, a efetividade da consciência no movimento que separa a consciência de sua personalidades, criando um mundo estranho do qual deve se apoderar. Nessas condições a consciência só tem realidade quando se aliena. A rejeição de Hegel ao mundo da cultura aparece aqui quando ele diz que “a universalidade carente de espírito é a que vigora e é por isso, efetivo”. (#488). É, portanto, mediante a cultura que o individuo tem vigência e efetividade. Sua verdadeira natureza é o espírito da alienação. O individuo passa do pensado ao efetivo , tanto como do determinado ao essencial. Hegel denúncia um processo de individualização que combina cultura e poder. A cultura que é vista como manifestação de particularidade opõe-se a aquela universalidade, mas como esta é parte da essência do individuo, torna-se sua nova realidade. O individuo deve adaptar-se a essa substância (situação). A cultura afirma essa efetivação que carrega uma polaridade de valores: bom,mau etc. Passando por alto a intrincada argumentação que segue a transferência do sujeito do mundo da eticidade para o do poder, encontra-se que a cultura leva às duas grandes fontes de poder que são o Estado e a riqueza (#494), descobrindo um problema social de valores éticos. Essa linha de argumentação dá uma reviravolta e oferece a explicação do papel orgânico do trabalho na formação do sistema de poder politico e econômico. Diz Hegel que “o poder do Estado é a obra e o resultado simples em que se desvanece o fato que se origina do agir dos indivíduos mas que permanece como base de todo agir”(#494). No gozo (do poder) a individualidade se realiza no singular que entretanto é uma particularização do universal. Sem dúvida essa polarização não se resolve na atonia da individualidade. Torna-se aqui evidente a fala de uma teoria histórica de classes que decifre essa tensão entre igualdade e desigualdade. Ao descobrir uma teoria da alienação e reconhecer mecanismos de resistência, seria o momento de separar os comportamentos determinados por alinhamentos coletivos de interesses. O Iluminismo A questão inequívoca com o Iluminismo é a luta contra as superstições. O Iluminismo se dirige contra a fé, diz Hegel contra a fé cristalizada e dogmatizada pelo mundo efetivo (institucional). Segundo ele 49


será preciso desvestir os fundamentos das formalizações. Na prática a inteligência luta contra o dogmatismo. A Enciclopedia 26 (de Diderot, D’Alembert, Voltaire)apresenta outra inteligência. Para ela diz Hegel “a fé é um tecido de superstições, preconceitos e erros, que se organizam em um reino de erro.

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Aparentemente Hegel chama a Eciclopedia de Coletânea por razoes políticas.

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5.

O saber absoluto *

A densidade opaca do absoluto se configura progressivamente no tecido conceitual da Fenomenologia, tornando-se uma necessidade para resolver a dualidade superficial entre a razão observante e a razão ativa. Se a ontologia hegeliana é a exposição da energia orgânica do ser é no absoluto que se expõe em sua inteireza. A condição reflexiva do saber absoluto impõe uma qualidade crítica do conhecimento da consciência que se torna uma regra da ciência. A ciência será, necessariamente, um saber reflexivo que está acima das epistemologias e das abordagens simplificadoras. A teoria do saber absoluto requer uma ciência histórica e crítica e torna inevitável a passagem para uma teoria social. * * Para fins de uma conceituação sintética, pode-se considerar que o saber absoluto é a metamorfose da consciência histórica quando ela combina o domínio de todos seus momentos anteriores com sua visão histórica da atualidade. Sua vocação para uma unicidade do conceito com sua efetividade é inerente a sua compulsão pela mudança. O saber é pura introspecção no sentido em que ele é um retorno em espiral. O saber supera a infelicidade da consciência quando volta a suas primeiras raízes. Uma leitura interpretativa do saber absoluto por força enfrenta a necessidade de simplificar a linguagem e procurar uma nitidez da argumentação. Aqui da angústia da consciência a um despojamento do lodo formativo de uma consciência desprendida. Ao enfrentar o capítulo sobre o saber absoluto cabe começar pelo seu final, quando Hegel diz que a meta do saber absoluto é revelar a profundidade do conceito. A noção subjacente de abismo, invocada por Jacques Derrida27, está nos alicerces desse texto, que vai ao modo final da consciência sobre si própria. Diz Gadamer em melhor síntese, que “O saber absoluto é o resultado de uma purificação, no sentido de que emergiu como a verdade do conceito do eu transcendental

27 Jacqes Derrida, El pozo y la pirâmide, introducción a la semiologia de Hegel,in Hegel y el pensamiento moderno. 1973.

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não ser meramente sujeito mas razão e espírito.”28 Vemos que essa conceituação se torna contraditória com o trabalho de Hegel no sentido em que ela não reconhece que a atividade reflexiva do saber consciente não para. Como vimos, o movimento da consciência engloba a totalidade de seus momentos e se relaciona com o objeto segundo a totalidade de suas determinações. Isso torna o objeto uma coisa que corresponde ao plano imediato e um outro, e um outro que corresponde à determinidade. Assim, a coisa vem a ser eu mesmo, mas o saber da coisa não se completou. O saber absoluto é o que compreende a plena memória dos momentos do processo do saber com sua internalização na consciência pensante. No plano do saber absoluto tudo é movimento que avança com o lastro consolidado dos momentos experimentados. Mas é um movimento de despojamento dos lastros circunstanciais. O saber absoluto se desveste das circunstâncias. É o círculo que retorna sem se fechar. A substância convertida em sujeito carrega a necessidade de apresentar-se como espírito. No absoluto o tempo é o conceito que se faz presente como resultado. No tempo estão o destino e a necessidade de realização do espírito. No entanto, a consumação do saber não nega o tempo porque ele exprime esse movimento espiral da consciência individual rumo ao seu universal. ** * Uma reflexão sobre o cerne da argumentação do espírito absoluto mostra que o espírito em geral engloba os momentos experimentados por ele, que ele representa e que condicionam se modo de objetividade. A novidade é que essa superação de formas de consciência não é um processo unilateral em que o objeto se desvanece. Pelo contrário, a exclusão de tudo que é anterior funciona com o uma recomposição da consciência. A consciência torna-se a totalidade crítica de seus momentos. O objeto em parte compreende a consciência imediata, o tornar-se dentro de si mesmo e a essência do entendimento. O auto-conhecimento da consciência contém essas três dimensões. É um silogismo do movimento do universal, que vai a uma singularidade suprassumida. “Do ponto de vista do objeto, que enquanto imediato é um ser indiferente, vemos a razão observadora se buscar e se encontrar” (#791). A revelação surge como a

Hans-Georg Gadamer, A idéia da lógica hegeliana, in Hegel, Husserl, Heidegger, Petrópolis,Vozes, 2012. Gostaríamos de estender essa visão de purificação à leitura da razão pura em Kant. 28

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personalidades de um deus soterrado: eu sou a coisa. É a “reconciliação do espírito com sua consciência“. A efetividade vem a ser o saber depurado das contradições de sua formação. A recuperação da consciência sensível pela consciência suprasensível tem os aspectos de valorização de seu passado e desprendimento da intuição. É uma revalorização do negativo que se dá com total clareza do significado das desigualdades que constituem o piso dessa universalidade abstrato. O espírito se realiza como ente e como conceito. Esse espírito autoconsciente é um saber reconciliado com a essência do ser-que-está 29 e está em seu próprio tempo. Diz Hegel “o tempo se manifesta como destino e necessidade do espírito que não está consumado…o espírito é o movimento do conhecer que é ser e conceito”. Não é um movimento tranquilo, porque o processo de conhecer também é o de excluir. O saber absoluto se abastece da sucessão dos espíritos singulares e paira sobre o inatingível. Referencias bibliográficas Obras de Hegel Propedêutica filosófica. Rio de Janeiro, Edições 70, 1989. História de Jesus. Madrid, Taurus,1981 Sobre las maneras de tratar cientificamente el derecho natural. Madrid, Aguilar, 1955. El concepto de religión, Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1986. Filosofia real. Mexico, Fondo de Cultura Economica, 1984. Fenomenologia do espírito, Vozes , Petropolis, 2002. Fenomenologia del espírito. Mexico, Fondo de Culura Económica, 1985. The phenomenology of mind. London, George Allen & Unwin Ltd., 1961. Ciencia de la lógica, Buenos Aires, Hachette, 1956 Estética (2 vols.). Buenos Aires, El Ateneo, 1955. Enciclopedia das ciencias filosoficas (3 vols.) Lecciones sobre la filosofia de la história universal. Madrid, Alianza Editorial, 1986 Principios da filosofia do Direito Lecciones sobre filosofia de la religion (2 vols.). Madrid, Alianza Editorial, 1984. Lecciones sobre la história de la filosofia.(3 vols.)1955.Mexico, Fondo de Cultura Económica,

Podemos tomar o ser-aí como ser-que-está. As traduções não usam o recurso da língua portuguesa dado pelo verbo estar. Estar é um modo de tempo que contém um passado submerso e um presente explicito, mas no qual se encontra o potencial do futuro. Entender o ser como um vir a ser em vez de sujeito cartesiano estático não impede de reconhecer que em cada momento o ser está de algum modo. Noutras palavras, não há como ser sem estar. 29

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Obras sobre Hegel ADORNO, Theodor, Tres estudios sobre Hegel, Madrid, Taurus, 1974. ARANTES, Paulo, Hegel, a ordem do tempo. BLOCH, Ernst, Sujeto-objeto el pensamiento de Hegel. Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1983. BOBBIO, Norberto, Estudos sobre Hegel, São Paulo, UNESP, 1989. DILTHEY, Wilhelm, Hegel y el idealismo. Mexico, Fondo de Cultura Económica.1956. GADAMER, Hans-Georg. Hegel, Husserl, Heidegger. Petropolis, Vozes, 2004. Grijalbo, 1963. GRAy, J.Glenn, Hegel and Greek Thought. New York, Harper & Row, 1968 HARTMANN, Nicolai, La filosofia del idealismo aleman, 2 vols. HYPPOLITE, Jean, Introdução à filosofia da história de Hegel, Lisboa, Edições 70, 1988. HYPPOLITE, Jean, Logique et existence HYPPOLITE, Jean, Génesis y estructura de la fenomenologia del espíritu de Hegel HYPPOLITE, Jean, Études sur Marx et Hegel. Paris, Librairie Marcel Riiére, 1955. HYPOLLITE,J.;D’HONDT,J.;ALTHUSSER,L.;DUBARLE,D.;.JANICAUD,D. Hegel y el pensamiento moderno. Mexico, Siglo XXI,1975. LUKÁCS, Giorgy, El joven Hegel y los problemas de la sociedad capitalista .Mexico, LUKÁCS, Giorgy, Ontologia do ser social. vol. I. São Paulo, Boitempo, 2012. MARCUSE, Herbert, La ontologia de Hegel. Barcelona, Martinez Roca, 1970. NIEL, Henri, De la mediation dans la philosophie de Hegel. Pais, Aubier, 1946.

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