Avaliação: Um grande obstáculo para as Artes

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Filipe Chagas

Avaliação: Um grande obstáculo para as Artes

Avaliar é parte constituinte da sociedade humana. Tendo isso como fato, precisamos entender como nos encaixamos nas dinâmicas avaliatórias que nos permitem melhor compreender nossa posição na sociedade. Na educação, não poderia ser diferente. Avaliações são realizadas para que possamos entender melhor a prática do ensino / aprendizagem. Mas será que é realmente isso que acontece? Eu creio que não. Vejo que as avaliações são utilizadas pelas instituições de ensino como formas de mensuração e controle, mas não as culpo por essa razão. Tenho a clareza que nossa sociedade está passando por um período turbulento de questionamentos éticos e morais e vemos o reflexo imediato na educação. Aquino (2005) vai além e diz que a escola brasileira não reproduz a realidade brasileira, ela é a realidade brasileira, com todas as suas injustiças. E nossas vidas estão cada vez mais classificatórias, selecionando os melhores numa revisão da clássica “Lei da Selva”, com necessidades imediatas que privilegiam o presente e abandonam as experiências do passado e as expectativas de futuro. Isso corrobora com Silva (2006, p. 231) que vê, no projeto neoliberal global, [...] A construção da política como manipulação do afeto e do sentimento, a transformação do espaço de discussão política em estratégias de convencimento publicitário, a celebração da suposta eficiência e produtividade da iniciativa privada em oposição à ineficiência e do desperdício dos serviços públicos, a redefinição da cidadania, pela qual o agente político se transforma em agente econômico e o cidadão em consumidor [...] Luckesi2 nota que as ações pedagógicas anteriores investiam no processo de aprendizagem e hoje estão comprometidas com o produto final, fazendo com que o centro das expressões e dos valores se alterem do “aprender” para “o tirar nota”. Ele conta que ouvia as crianças dizendo: "Hoje, tivemos uma atividade legal na escola"... agora, ouço-as dizendo: "Tirei 3.2, valendo 5"; "Tirei 2, valendo 3"; "Tirei 7. Graças a Deus, já passei nessa unidade; com isso é mais fácil chegar ao final do ano com 28 pontos, necessários para a aprovação"; "Amanhã é dia de prova. Todos, na escola, vão fazer prova e vai ser com fiscal". Por isso, concordo com Luckesi quando ele diz que hoje são realizados exames e não avaliações. Para ele, exames são pontuais e seletivos. Como um médico que precisa diagnosticar uma doença, professores parecem querer determinar o que o aluno sabe naquele momento único no dia da aplicação da prova, sem se preocupar com a aquisição do conhecimento necessário para realizá-la. Maria Teresa Esteban (2003) crê que a avaliação tornou-se uma prática tradicionalmente imersa na previsibilidade, na repetição e no saber. Cria-se, assim, um ranking de alunos baseados pela média quantitativa de seus resultados e um cenário de competição e exclusão. Com isso, as escolas também são ranqueadas de acordo com o montante de alunos que conseguem passar no vestibular para entrar numa universidade, e – virtualmente – ser colocados no mercado de trabalho, mesmo sem nenhuma garantia disso, porém aumentando a massa excluída. E isso vira uma ferramenta de controle que transforma a qualidade em

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Referência dada no quadro de aula.

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LUCKESI, 2005 e vídeo exibido em sala de aula.


quantidade espalhada por todo o sistema de ensino do país. É a mercantilização explícita e generalizada da escola. QUESTIONAMENTOS SOBRE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA Tenho tido a experiência de acompanhar turmas de Educação Artística do 6º ano do Ensino Fundamental ao 1º ano do Ensino Médio em uma escola particular católica, onde prioriza-se o desenvolvimento de habilidades técnicas e reflexões sobre os trabalhos, ao invés de seguir uma linha conteudista. Nesse tempo, muito me indago sobre o que se discute na área, pois pouco vejo discussões sobre avaliação na área de Artes. E digo isso não só na educação fundamental, mas também nas graduações universitárias: como avaliar a criatividade e o talento? Como cobrar empenho em uma disciplina que não faz parte das estratégias avaliativas de porte nacional, como o ENEM? Como tornar interessante um conteúdo que pode ser adquirido através das novas tecnologias sedutoras e intrínsecas à contemporaneidade? Uma das professoras que acompanho em um estágio de observação criou um sistema que ela acredita ser “justo”: ela prefere ensinar uma única técnica de pintura com lápis de cor para todos os alunos do 6º ano para que ela possa avaliar a todos da mesma maneira. Ela deixa isso explícito no início das aulas, deixando bem claro que existem outras técnicas e que nenhuma delas é melhor do que a outra, é apenas uma questão de avaliar “justamente”. Porém, surgem daí novos questionamentos: isso não tenta homogeneizar a turma, quando o discurso é o da heterogeneidade? Mesmo com uma técnica única, a criatividade e o talento possuem formas de avaliação? Por que não se ensinam (ou, ao menos, se apresentam) as outras técnicas? Segundo a entrevista de Luckesi, citada anteriormente, avaliar é processual, investigativo e inclusivo, enquanto, o que é normalmente feito nas escolas é examinar, com características pontuais, classificatórias e seletivas. Mas ao criar um sistema como esse de homogeneização da técnica, não voltamos ao processo examinatório? Em certos momentos, a “justiça” pode se tornar um cerceamento da criatividade que impede a experiência e, portanto, o processo de descoberta – que se aproxima de uma avaliação preocupada com o desenvolvimento cognitivo.

E, a partir desse processo de descoberta, temos que considerar o conceito de erro. O que é erro em Artes? Esteban (2003) nos lembra que a lógica da homogeneidade nos traz uma previsibilidade despreparada para os desvios, erros, perdas e acasos, e que o cotidiano é múltiplo e complexo no tempo/espaço em que a vida se realiza. É possível dissertar horas sobre esse assunto e chegar a uma conclusão única: o erro não existe em Artes! Ele faz parte da criação e, portanto, deve ser considerado junto com o resultado final de uma proposta de trabalho. Bom ensino é o ensino de qualidade que investe no processo e, por isso, chega a produtos significativos e satisfatórios. Os resultados, não nos chegam, eles são contruídos. (LUCKESI, 2005) Então, nas Artes fica evidente que a idéia de avaliação descrita por Luckesi se apresenta pertinente em si por ser processual e investigativa – mas será que é realmente inclusiva? É inevitável que ocorram comparações de habilidade nas aulas de Artes e, portanto, uma interferência coletiva transformadora. Assim que um aluno faz um trabalho de nível elevado e este é visto por seus colegas, em muitos casos, outros alunos não dão prosseguimento às suas produções por acharem que jamais chegará ao nível do


colega talentoso. As Artes nas instituições de ensino do país são normalmente impostas aos alunos, desconsiderando o contexto dos próprios. Por exemplo, em certa ocasião, ouvi de uma aluna a seguinte frase: “em casa, eu sou criativa porque eu desenho na hora que eu quero, e aqui eu sou obrigada a desenhar”. Além disso, talento (habilidade) não significa desejo, ou seja, podemos encontrar alunos talentosos que não querem estar fazendo aulas de Artes, e também podemos encontrar alunos sem a menor capacidade técnica, mas que curtem as aulas e se esforçam e se satisfazem com seus resultados. Nesses casos, a instituição onde faço estágio utiliza o PPD (Participação – Produção – Disciplina), sendo Participação e Disciplina duas variáveis importantes da Produção final. Acredita-se que elas são capazes de apresentar uma mensuração mais adequada. Porém, vejo alunos que tiram nota máxima em suas produções e se comportam de maneira inadequada porque sabem que ficarão “na média”. E o inverso também é encontrado, ou seja, alunos com resultados insuficientes com comportamentos exemplares. Apesar disso, creio que essa proposta chegue a uma leitura próxima das capacidades dos alunos e, assim, a um melhor entendimento da dinâmica ensino / aprendizagem. E, se houver maior convergência entre alunos, professores, coordenações, instituições e famílias, o resultado tenderá ao satisfatório, principalmente se todos tenham clareza sobre seus papéis educativos para questionarem continuamente suas práticas e investigar erros e acertos em busca das melhores soluções. CONCLUSÃO No que se refere à avaliação, acredito que já é hora de repensar. Sobre avaliação em Artes, então, creio que é preciso começar a pensar, pois já não bastam mais as adequações. Não é fácil utilizar padrões de classificação previamente estabelecidos, muito menos dar notas ou – até mesmo – distinguir certo e errado. Esse tipo de artifício atribui valores, isola e expõe as complexidades humanas, estabelecendo o desequilíbrio, a desordem. Esteban (2003) realizou pesquisas em escolas públicas onde identificou exatamente isso, acreditando ser preciso construir uma pratica de avaliação que não negue essas complexidades: O sentido parcial, fragmentário, impreciso da avaliação aparecia em muitos momentos e a compreensão desta dinâmica impossibilitava que houvesse atribuição de um único valor – nota ou conceito – a cada uma das crianças. A consciência da ambivalência da avaliação levava ao rompimento com os procedimentos de avaliação freqüentemente usados, gerando um caos por deixar a professora sem referências sobre como proceder. [...] Buscando as pequenas pistas, afinando seus sentidos para melhor perceber como estava ocorrendo o processo ensino / aprendizagem em sua sala de aula, a professora a construindo uma avaliação baseada fundamentalmente no coletivo. Hoje a escola tem um novo desafio: formar cidadãos com uma ação produtiva cuja função social esteja relacionada à melhoria da condição de vida de uma sociedade. É dito que ela precisa construir um repertório de conhecimentos historicamente produzidos, desenvolver potencialidades intelectuais, realizar operações mentais complexas, promover soluções adequadas às demandas apresentadas e projetar cenários futuros, sempre articulando a princípios éticos sólidos de maior tolerância à diversidade. Acredito que a cultura artística é necessária para dar um pouco de noção ética e moral. Como diz Aquino (2005), “é preciso oferecer um pouco da serenidade do velho mundo”, como uma troca


justa entre jovialidade e sabedoria, ensino e aprendizagem. Conceição (2009) crê que a herança cultural favorecerá a construção e aplicabilidade dos conhecimentos.

É preciso, então, assumir o árduo caminho de instaurar práticas investigativas e flexíveis às particularidades de um cotidiano marcado por rupturas, instabilidades e desigualdades. Deve-se especificar o que será avaliado, utilizando os melhores instrumentos para tal – inclusive a autoavaliação –, para estimular a progressão do aluno e a busca do melhor desempenho. Todos os envolvidos devem incorporar esse processo de avaliação em que dialogam conhecimentos e desconhecimentos para entender que os questionamentos sobre a aprendizagem refletem sobre o ensino. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AQUINO, Júlio Groppa. A escola às escuras. Carta Capital, 6/11/2005. CONCEIÇÃO, Lilian Feingold. Como a escola pode construir um contexto de avaliação compatível com os desafios apresentados no ENEM. Pátio Ensino Médio, ano 1, nº 2, ago/nov 2009. ESTEBAN, Maria Teresa. A avaliação no processo ensino / aprendizagem: Os desafios postos pelas múltiplas faces do cotidiano. RBE, nº 19, 2003. LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem... mais uma vez. Revista ABC EDUCATIO, nº 46, jun 2005, pp 28-9. Disponível em <http://www.luckesi.com.br/textos/abc_educatio/abceducatio_46_avaliacao_da_aprendizagem_ma is_uma_vez.pdf>. SILVA, Maria Abadia da. Do projeto político do Banco Mundial ao projeto político-pedagógico da escola pública brasileira.


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