A21 / CIDADES CRIATIVAS
ENTREVISTA / A21
Guta Moura Guedes Guta Moura Guedes, presidente da Experimenta Design Lisboa/Amesterdão que este ano volta à capital portuguesa reforça a ideia que as cidades criativas devem ser definidas quer por políticas nacionais e autárquicas quer pelos cidadãos de forma independente. A responsável pela Bienal acredita que Portugal tem alguns factores positivos parao desenvolvimento de cidades criativas.
Texto: Filipe Gil Fotografias: Catarina Botelho
“As indústrias criativas trazem mais-valias sociais, económicas e culturais para o contexto onde se inserem” Filipe Gil (FG): No seu entender, o que é uma cidade criativa? Guta Moura Guedes (GMG): É uma cidade que consegue reunir em si as condições necessárias para o estímulo e a existência de múltiplas actividades criativas, sinergicamente relacionadas e de uma forma continuada e sustentável. Essas condições podem ser de diversas ordens e ser definidas quer por políticas nacionais e autárquicas, quer pelos próprios cidadãos, de forma independente, ou ser, inclusivamente, fortuitas ou meramente contextuais. É uma plataforma aberta, livre e flexível para a criatividade que se desenvolve, por definição, em paisagens urbanas elaboradas e complexas, preferencialmente cosmopolitas e mistas, como o são as cidades.
FG: O actual conceito de cidades criativas pretende apostar nas indústrias criativas como mais-valia social, económica e cultural para as cidades, tornando-as locais apetecíveis e favoráveis à criação. Concorda com este conceito de cidade criativa, ou acredita noutro modelo? GMG: As indústrias criativas trazem, não tenhamos nenhumas dúvidas sobre isto, mais-valias sociais, económicas e culturais para o contexto onde se inserem e com um profundo e democratizador impacto. Não são é uma solução milagrosa para cidades disfuncionais, é preciso não esquecer isto. Podem e devem fazer parte do design estratégico de uma cidade, em complementaridade com outras acções e programas. Concordo totalmente que a aposta nas indústrias criativas torna uma cidade mais favorável à criação.
FG: Quais são as medidas necessárias para tornar uma cidade criativa? São medidas concretas a nível de recursos humanos ou serão “coisas” construídas ou ainda medidas políticas? GMG: Ao contrário de muitas outras condições que não se conseguem gerar rapidamente ou sequer forçar, como por exemplo a existência de património histórico ou uma localização geográfica especificamente positiva, características que determinam o perfil e o poder de muitas cidades, o conceito de cidade criativa é algo que pode ser pensado, planeado, criado e implementado. E com relativa rapidez. Note-se que a rapidez, quando se fala na escala de uma cidade e na área da cultura é sempre a médio prazo, claro. As medidas são várias e dependem enormemente da cidade a que se vão aplicar. Acredito na coordenação entre medidas políticas e decisões autárquicas, claras, funcionais e pragmáticas e a iniciativa e dinâmica independente e privada dos próprios criadores e catalisadores culturais. Este é um tema apaixonante, mas levaria agora horas de conversa a descrever como se deve agir e quais são essas medidas...
47 Ilustração feita a partir da foto de Catarina Botelho
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“Criatividade pressupõe inovação, arrojo, risco, capacidade de voo, ausência de mimetismo, rasgo.” FG: E quais são as oportunidades que vê em Portugal, em particular em Lisboa, para o desenvolvimento do território envolvendo as “indústrias criativas”? GMG: Temos em Portugal alguns factores potencialmente positivos para o desenvolvimento de cidades criativas. Somos um país com um nível de vida ainda acessível, com recursos humanos criativos e inventivos, com uma grande capacidade de receber pessoas, de criar espaço para as diferenças entre povos e raças, com uma óptima localização. Mas o Estado e os privados deveriam, sem dúvida e de modo articulado, apostar do ponto de vista estratégico nesta área – e não o fazemos. As indústrias criativas são flexíveis por natureza e grande parte delas pouco tangíveis ou requerendo infraestruturas pouco complexas e isso é importantíssimo neste século. Falando de Lisboa e no seu posicionamento nacional e internacional, penso que o património que temos disponível, a estrutura da cidade, a sua localização, o seu lado cosmopolita e a sua qualidade de vida são imensamente apetecíveis para este tipo de indústria, que necessita de confrontos e estímulos e desafios, mas também de investimento sustentado, para acontecer. É só necessário, neste momento, a cidade libertar espaços e criar sistemas que se abram a estas actividades, que atraiam portugueses e estrangeiros e os mantenham por cá. E depois comunicar, passar palavra, partilhar, contaminar.
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FG: Fora de Portugal, quais os exemplos de cidades criativas que gostasse de destacar? GMG: Tenho o hábito de não gostar de citar exemplos a seguir... Se é de Portugal que falamos, a coisa deve ser desenhada para aqui, sem necessitar de exemplos vindos de outro lado. Sabemos já o suficiente sobre cidades criativas pelo mundo fora. Será que precisamos sempre tanto de saber o que os outros fazem para fazermos o que devemos fazer? Acho que não. Se falamos de cidades criativas, falamos de criatividade. Criatividade pressupõe inovação, arrojo, risco, capacidade de voo, ausência de mimetismo, rasgo. FG: Qual o papel dos criadores, designers e arquitectos, na construção e desenvolvimento das cidades criativas? GMG: É um papel fundamental, claro, e misto. Por um lado são eles que beneficiam em grande parte da plataforma que é criada e são eles próprios os grandes dinamizadores e construtores deste conceito – ou seja, são sujeitos activos e não passivos. Por outro lado são eles os grandes responsáveis para que o processo não se centre só no grupo que representam mas contamine toda a cidade e comunique com todos os cidadãos. Este é um dos grandes desafios.
FG: Que comentário lhe suscita o desenho, ou falta dele, do espaço público nas nossas cidades? GMG: É uma área em que é necessário actuar urgentemente. A maior parte das cidades, das grandes e pequenas metrópoles, evoluiu de uma forma orgânica, caótica e não sustentada, dominada por desígnios totalmente dependentes de uma coisa muito simples e básica: era necessário construir casas, apartamentos, prédios, edifícios, para as pessoas viverem e trabalharem. As maior parte das cidades construiu-se assim, de dentro para fora, de espaço interior necessário e de consequente ocupação de espaço exterior. Houve, em muitos casos, uma enorme e imprevisível beleza resultante deste processo. Mas o facto é que na maioria das grandes cidades actuais o espaço público é cada vez mais disfuncional e necessita de ser redesenhado e repensado e devolvido aos cidadão, comunicando e interagindo com eles.
FG: Como contribui a Experimenta Design para Lisboa ser mais criativa? GMG: A bienal é uma plataforma criativa, internacional, centrada no design, arquitectura e cultura contemporânea em geral. Colocou Lisboa, desde 1999, no circuito internacional dos grandes eventos na área da cultura. Atraiu desde então milhares de criativos e milhares de espectadores à capital portuguesa e influiu, ao longo destes anos, na comunidade criativa nacional e internacional. A partir de Lisboa, sempre. A Experimenta, a entidade que produz a bienal, entre outros projectos, é um ponto de encontro e um catalisador criativo incontornável desde 1998 e encontra-se neste momento a preparar mais e novos projectos na área da criatividade, contemplando sempre as áreas de produção, formação e divulgação. FG: O que podemos esperar da próxima edição da Experimenta Design na relação com Lisboa? GMG: Em 2009 a bienal faz 10 anos. Quer por ter passado também a acontecer em Amsterdam desde 2008, quer por ser o ano de recomeço em Lisboa, quer por já terem passado 10 anos sobre a primeira edição e a necessidade de nos estarmos sempre a ultrapassar a nós próprios ser ainda mais
presente, este é um momento de acerto de desenho do projecto, em algumas vertentes. Uma delas é o aprofundar da nossa relação com a cidade trabalhando mais com o espaço urbano lisboeta e com questões de carácter mais social. Outra é a de enfatizar a ideia de legado para a capital portuguesa. FG: Para finalizar, uma última questão: terá o design chegado ao povo, ou permanece um privilégio de uma elite com capacidade económica e/ou cultural? GMG: O design nunca saiu do povo, há aqui um enorme erro de leitura e de interpretação desta disciplina. Do ponto de vista antropológico basta pensar que os primeiros artefactos desenhados e produzidos pelo homem na pré-história, foram os primeiros exemplos de design. O que aconteceu a partir do meio do século XX, mas com especial incidência a partir dos anos 90 e até agora, foi que, paralelamente à existência de um design que realmente povoa o quotidiano de todos e quaisquer tipos de classes sociais, melhor ou pior, começámos a saber identificar o nome de alguns designers e os trabalhos de certos designers foram objecto de uma mediatização e valorização de mercado que os aproximou de outras actividades criativas, como a arte contemporânea, a música, o teatro, a dança, o cinema.
O design , no século XI, não é isto. É muito mais. É um sistema, uma matriz projectual, que permite analisar um contexto nas suas diversas dimensões, identificar problemas e criar respostas e soluções que conjugam vectores éticos, sociais, ambientais, económicos, estéticos e funcionais. Respostas que podem ser tangíveis ou intangíveis. Que podem ser hardware ou software, serviços e estratégias. Que podem ser economicamente acessíveis a todos, como um clip ou um selo de correio, ou para um grupo mais pequeno, como uma nave espacial ou uma campanha presidencial.
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