Algumas reflexões sobre património

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Algumas reflexões sobre «Património»

«Às vezes, como náufragos, precisamos de nos agarrar a uma reminiscência banal, para evitarmos que tudo se dissolva na falsa enunciação da memória, na sua trágica encenação de efeitos sem correspondência com a realidade». António Mega Ferreira, Amor, Lisboa, 2002.

dos mecanismos da memória... Se para os Humanos enquanto vivos a Ciência foi felizmente criando mil e uma soluções que contribuem para um melhor-estar físico ou psicológico, já para a comunidade médica se torna tão melindrosa a questão da eutanásia, ou seja o momento exacto em que se decide pela vida ou pela morte de alguém, mesmo que da vida apenas já exista um sopro. A delicadeza sobre a decisão da morte de alguém, sobre essa intervenção irreversível/definitiva, é tão grande que, metaforicamente podemos dizer, estamos a colocar nas mãos dos Humanos uma capacidade que só aos Deuses e ao «destino» deveria caber: porque com a morte física sucumbe o gesto e a palavra que se proferiu, ou não, no momento exacto, e ainda porque com a morte física tememos o esquecimento e a não acessibilidade ao Eterno. Esse também Eterno Medo que ainda hoje não aprendemos a vencer. Ora se bem que acarretando com a mágoa da morte de alguém, do seu desaparecimento e dos momentos que se partilharam juntos, o indivíduo, a família ou a comunidade que lhe era próxima podem criar mecanismos ou rituais de recordação, já ao tratarmos memórias mais alargadas o processo é bem mais multifacetado. Ou seja, se para a preservação das memórias individuais temos ainda uma certa tranquilidade, pois remetem a um processo em que a cada um cabe escolher, ou ter a capacidade de o fazer, sendo a triagem do se quer e se pode guardar, sacralizar ou esquecer, um caminho pessoal, no qual o indivíduo se socorre dos «auxiliares de memória» materiais ou imateriais próprios, quando equacionamos a preservação dos bens colectivos a decisão é mais complexa, até porque é exactamente de âmbito «comunitário». Para além dos factores que se prendem com as memórias de um local, ou da relação íntima que se estabelece com algo ou alguém a que nos habituámos - será que não é também isso que enforma a História? - os aspectos simbólicos ou emblemáticos que a eles estão associados deverão, portanto, ser avaliados.


da memória colectiva... A própria eleição do que é um bem cultural e a afinidade que com eles sente uma determinada comunidade, ao ponto de não o querer perder, é já por si difícil de caracterizar. O uso que se faz com esse bem, como se manipula, se utiliza ou se preserva coloca, portanto, questões de uma complexidade acrescida. Exactamente porque muitas das decisões sobre a morte física de alguns bens culturais implicam alterações no espaço, nas simbologias e nas sociabilidades, cujos contornos nem sempre são previamente avaliados; e ainda porque, em contrapartida, muitas das conclusões sobre a preservação das memórias colectivas acabam por ser casuísticas e aleatórias, até porque perdidas estão muitas das necessidades ancestrais de marcação física e simbólica do território ou da sua georeferenciação, exige-se cada vez mais uma reflexão sobre o que, como e porquê, conservamos. Isto porque não podemos querer conservar ou reabilitar apenas cenários ou simulacros de antigas vivências, se perdidas forem todas as outras necessidades socio-culturais e afectivas a que davam resposta. Porque afinal, em última instância, o «Património» não existe como entidade objectiva, ausente da memória e, mais do que tudo, do ritual. Se tivermos em atenção que ao fenómeno de democratização das sociedades correspondeu uma certa perda de ideologia e da respectiva representação historicizante ou monumentalizante das comunidades e do poder que as representa ou subjuga, perda essa que já não permite responder com modelos tão deterministas à necessidade de projecções simbólicas, mais questões se nos levantam sobre a função da História e da preservação dos seus vestígios físicos ou imateriais. Até porque a esse mesmo processo de democratização e de complexificação social que ela implica corresponde também uma proliferação de símbolos e de formas de representação do poder e do querer e um esbatimento do valor intrínseco de alguns emblemas historicizantes. (F.B. in Revista de Estudos, IPPAR)


Mas quem define afinal o que são os bens culturais de uma determinada comunidade? Ou seja, por outras palavras, a quem pertence o «Património»? Se bem que os mecanismos actuais facilitem o alargamento do espectro dos «eleitores» passíveis de contribuir para a inventariação e classificação dos «bens culturais», é um facto que ainda há uma enorme fissura entre essa eleição e as respectivas comunidades. Explicitando melhor, grande parte dos móveis e imóveis listados, «arrolados» ou sujeitos a servidões administrativas surge de proposta efectuada pelos auto-denominados «interessados», ou de especialistas, organizados em torno de Instituições (da administração central, autarquias, gabinetes técnicos locais, associações culturais, etc.). Essas propostas, que são logo à partida electivas, nem sempre têm como base um inventário, mesmo que selectivo, dos bens considerados de interesse local ou regional ou dos recursos dessa comunidade. Logo, sobrepondo-se a uma lacuna, a ausência de um levantamento exaustivo que suporte a «eleição» desses bens, podemos incorrer numa segunda falha ao darmos ainda mais notoriedade aos que já por si são considerados «nobres». Ou seja, acrescermos em servidões e «defesas» aqueles bens que por natureza seriam já os mais notáveis, omitindo todos os outros que, por não o serem, poderão cair no esquecimento. Em limite, no caso do Património Construído poderemos gerar uma situação em que os imóveis «museu» são circundados de diminutas áreas cuidadas, como que a jeito de climatização dos mesmos e, nas zonas limítrofes, poder-se-á instalar o caos. E, não obstante, a criação dessas zonas artificialmente «climatizadas» que constituem os novos «emblemas» comunitários nem sempre espelhará os cidadãos, até porque o seu relacionamento com esses espaços poderá estar já absolutamente corrompido.


Haveria, portanto que contemplar novos mecanismos de participação dos cidadãos quando se decide afinal sobre o que é seu.

Capitel em estuque. Museu Monográfico de Conímbriga

Para além destas questões, há ainda que referir que, até pelo passivo inerente à evolução do próprio conceito de «Património Cultural», evoluindo dos bens pessoais ou familiares para os bens colectivos, e à história da maioria das instituições que com ele se relacionam, é atribuído ao construído e ao material um peso bastante maior do que aos «bens imateriais» que são tantas vezes o maior suporte cultural da identidade das comunidades, pese a atenção que cada vez mais se atribui ao denominado «Património Imaterial». Afinal quem decide da sua representatividade, unicidade, valor estético, simbólico, emblemático ou social? Como e quem interfere nesse processo? Se a «quantidade de História» pode ser, apesar de tudo, um peso relativamente inquestionável quando se decide pela preservação de um bem, quando entramos na esfera do estético, simbólico, emblemático e imaterial complexifica-se a teia de análise, até porque as projecções se particularizam ainda mais, pois estamos perante o «qualificável». Não é difícil deixar que narrativa histórica articule um discurso coerente sobre os espaços, até porque a História como Passado que é, assume genericamente, e pese as polémicas ou interpretações dos factos ou acontecimentos, um papel pacificador, pois sobre ela é possível obter algumas «certezas». E é também por isso que o Passado, a História e, portanto, o Património se tornaram como que uma espécie de valor vital, com uma importância imprescindível para o equilíbrio de uma sociedade em mutação permanente. Quando penetramos nos particularismos estéticos ou simbólicos é como se entrassemos num emaranhado complexo e multifacetado onde as «certezas» se esbatem, onde múltiplos e paralelos discursos se poderão compatibilizar ou antagonizar. As decisões quanto a este universo são, portanto, tão complexas que poderão justificar a omissão destas componentes em grande parte das decisões ditas patrimonialistas. E, no entanto, se algo, do meu ponto de vista, continua a embasar a identidade das comunidades são as suas projecções simbólicas, as suas referências surdas, onde se pode mesclar o espiritual e o material.


Como se decide da sua viabilidade como objecto de fruição pública, ou da sua capacidade como produtor de rentabilidade financeira? Se bem que de uma forma incipiente, verifica-se uma tendência para, gradualmente, se porem em marcha alguns estudos de rentabilidade económica prévios à decisão de «valorizar» um determinado bem. Ora se, por um lado, esses estudos podem, de algum modo, contribuir para melhor aferir a decisão, há, no entanto, o risco que o peso financeiro dado ao conceito de «rentabilização» fazer esbater o próprio conceito de «Património Cultural». Isto porque embora sabendo que a sobrevivência das comunidades está dependente da sua saúde económico-financeira, da qual não podemos isolar a sua componente cultural, como se um elemento distanciado se tratasse, não devemos perder de vista que a visão estritamente economicista do Património assenta em pressupostos que, do meu ponto de vista, podem ser antagónicos à valorização do mesmo. O conceito de «rentabilidade» quando centrado nos próprios Sítios e não nas comunidades e ao alicerçar-se fundamentalmente na arrecadação pecuniária pressupõe, por um lado, a existência de um grande número de visitantes aos espaços «valorizados» e, por outro, a capacidade de investimento desses mesmos visitantes em bens adquiríveis nos locais. Ou seja, a massificação do consumo de bens culturais e seus derivados – incluo aqui a enorme parfanália de réplicas e outros objectos consumíveis ou «recuerdos» que hoje proliferam nos nossos monumentos, museus e sítios – para além do esgotamento a que pode conduzir do próprio Património, até pelos efeitos nefastos que provoca, pois por definição, ele é frágil ou único (por isso mesmo tem sido «climatizado» e musealizado), pode ainda preverter o «espírito» dos próprios lugares, banalizando-o. Tranformando os bens culturais em mais um produto do mercado, altera-se ainda a sua abordagem, porque à «itinerância viajante» se substitui uma fruição turística de «consumo» célere que apenas permite uma apreensão muito particular dos espaços. Conseguir ainda compatibilizar a sua apresentação para o denominado «grande público», a interpretação e a fruição simplificadas com uma abordagem silenciosa e reflexiva é, portanto, tarefa difícil ou quase impossível. Permitir discernir a «essência» do bem patrimonial do seu invólucro mais complexo se torna, até porque a tónica dada à sua «embalagem» é cada vez é maior. Para melhor explicitar, veja-se a galopante atenção dada às sinaléticas, às vitrinas e mostruários, às coberturas, às recepções e espaços de acolhimento, ou seja à intervenção arquitectónica e de design feita sobre os sítios que, tantas vezes, quase que os esmagam e mesmo se lhes sobrepõem.


Do nosso ponto de vista, o enfoque da «rentabilidade» ou «sustentabilidade» não pode estar nos «Sítios» mas na própria comunidade, que deveria ter a possibilidade de se rever em uníssono nas suas actividades e no seu «Património Cultural» e encontrar, assim, estímulos para múltiplas iniciativas de índole sócio-económica – agrícolas, gastromómicas, artesanais, industrias, comerciais – que contribuíssem para a continuidade qualitativa da sua fixação num determinado local. É óbvio que a «valorização» dos bens culturais pode funcionar, em alguns casos, como um output positivo, pois permite devolver a algumas comunidades uma auto-estima já esbatida. E, contudo, em momentos de crise ou mesmo falência económico/financeira como o que atravessamos, é fundamental, do meu ponto de vista, que existam elementos congregadores que nos façam continuar a consolidar enquanto indivíduos, Grupo/Comunidade ou Nação.


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