DOIS CARINHOS SE PROCURAM

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Luís Pimentel

Dois carinhos se procur am Ilustrações Carmen Barbi



Luís Pimentel

Dois carinhos se procur am

Ilustrações Carmen Barbi


Texto © Luís Pimentel Ilustrações © Carmen Barbi Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora.

Cip-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

P644d Pimentel, Luís Dois carinhos se procuram / Luís Pimentel ; ilustrado por Carmen Barbi. – Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2014. 56 p. : il, color. (Traço Jovem ; 7) ISBN: 978-85-8054-200-4 1. Literatura infanto juvenil brasileira. 2. Literatura brasileira. 3. Barbi, Carmen. CDD: 028.5 CDU: 087.5

Produção editorial Lilian Lopes Revisão de textos Cláudia Rajão Projeto gráfico e diagramação Carmen Barbi

F ino T raço E ditora L tda . Av. do Contorno, 9317 A | Barro Preto | CEP 30110-063 Belo Horizonte - MG - Brasil | Telefone: (31) 3212-9444 finotracoeditora.com.br


SUMÁRIO Capítulo 1

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Capítulo 2   9 Capítulo 3   15 Capítulo 4   21 Capítulo 5

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Capítulo 6   31 Capítulo 7   37 Capítulo 8   41 Capítulo 9   47 Capítulo 10   51



1 Hoje eu fiz catorze anos, Lilica. Não tenho mais idade para brincar de boneca. Muito menos para conversar com uma boneca. Mas não precisa ficar triste, sua boba. Não vou deixar de lado a minha melhor amiga, por quem tenho tanto carinho, só porque dizem que já sou uma mocinha. Continuaremos irmãs e confidentes. Mas você não pode contar a ninguém, fica sendo um segredo nosso. Combinado? Não vai ter festa, Lilica. A minha mãe não está bem de saúde e se sente muito cansada. Ontem ela chegou tarde do trabalho, por isso hoje fará apenas um bolinho que comeremos em família, acompanhado de refrigerante. Perguntou se eu ficaria triste, respondi que não. Você também não fica triste, não é, Lilica, por não ser convidada para uma festança de aniversário? Daqui a um ano eu faço quinze e, aí sim, segundo ela, terei uma festa inesquecível. Nem você vai se esquecer. Claro que você estará presente, tolinha, e ao meu lado. E vai ganhar o terceiro pedaço do bolo. É que o primeiro vai para a mamãe, claro, e o segundo para o meu irmão. Senão, 5


ele faz um escândalo danado. Não é porque já sou quase adulta que desprezarei uma querida amiga de infância. Se quiser, você pode até ficar orgulhosa: é a amiga mais querida de todas que eu tenho. A cidade é grande, o bairro é mais ou menos e a rua pequena. Também é pequena, muito pequena, a casa onde mora a menina, junto à mãe e ao irmão menor. A menina já é quase uma mocinha, mas também não é grande. E era menor ainda quando o pai morreu, depois de lhe dar de presente a boneca mais bonita do mundo, a amiga mais leal que uma menina pode ter. O irmão, então, era recém-nascido. Um dia a mãe foi trabalhar fora, para sustentar os filhos. A menina ficava em casa, lavando a louça, passando as roupas, arrumando as camas, cuidando de tudo. Cuidava, inclusive, do menino pequeno, que era muito pidão. – Eu quero leite, Cisca. – Tá bom. – Quero café com leite. – Tá bom. – Cisca, eu quero biscoito, eu quero jogar bola, eu quero fazer xixi, quero ver televisão, quero dormir. – Primeiro você vai tomar banho, Zé. – Banho não, Cisca. O nome dela é Francisca. O irmão se chama José, como o pai que ele não conheceu. 6


Nessa época, depois que o menino dormia, ela pegava os livros na biblioteca que o pai deixara. No meio deles havia um enorme, um Dicionário, com o qual Cisca começou a brincar de descobrir o que as palavras queriam lhe dizer. A menina frequentava a escola, mas voltava correndo para casa, porque não tinha com quem deixar o irmão. Lia, também, jornais e revistas emprestados por uma vizinha chamada Dona Marta, muito amiga de sua mãe. Acompanhava as notícias e ficava sabendo um monte de coisas, mas preferia os livros, principalmente os de poesia e os de histórias. Também inventava umas histórias para contar ao Zé e à Lilica. O Zé não tinha muita paciência, no meio de uma já pedia para ela “contar outra”. Mas Lilica, não. Ouvia tudo, do início ao fim, e sempre demonstrando muito contentamento. Pensava até que poderia começar a escrever histórias, virar uma escritora quando estivesse maiorzinha: – Você acha que eu poderia ser escritora, Lilica? Você gosta, se diverte, se emociona ou se impressiona com as histórias que eu conto? “Sei lá, depois eu decido. Agora é melhor dormir”, pensou, fechando o livro, dando um beijo na boneca e apagando a luz do quarto.

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2 Talvez eu pudesse ser escritora de poesia, Lilica. Ser poeta. E me esforçar muito para um dia escrever uns poemas que nem os que eu acabo de ler em um livro que Dona Marta me emprestou. É de um moço chamado Carlos Drummond de Andrade. Ele escreveu um poema que eu senti vontade que fosse meu, e que eu tivesse escrito para minha mãe e pudesse entregar a ela no Natal ou no dia do seu aniversário. Mas foi o Carlos Drummond que escreveu, e acho que foi feito para a mãe dele, porque diz assim: “Eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça, todas as mães se reconheçam e que fale como dois olhos”. Coisa mais linda de bonita, não é, Lilica? Fiquei só um pouquinho embatucada com os versos que ele escreve, e que dizem “fale como dois olhos”. E não entendi direito, mas acho que um dia vou entender. Como diz a minha mãe, “paciência, que o mundo não foi feito em um dia”. Minha mãe também é muito sabida, quase tanto quanto o Seu Drummond. E eu tenho um carinho enorme por ela.

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Um dia a mãe ficou doente, de não poder mais trabalhar fora. Inventou um trabalho em casa, mas continuava precisando muito da ajuda da filha. Agora, Cisca frequenta uma escola pública à tarde, perto de sua casa. De noite, depois que os filhos dormem, a mãe vai para o fogão preparar as guloseimas, pois sempre foi muito boa nesse ofício. De manhã bem cedo, ela arruma o tabuleiro com os quindins, brigadeiros, bolo de milho, manjar e cocadas, os quais a menina vende nas ruas durante o dia. Cisca pega o ônibus na rua pequena. O ônibus atravessa o bairro inteiro e a deixa bem em frente ao prédio enorme que tem no centro da grande cidade. O porteiro do prédio, o Juarez, é seu amigo, um homem prestativo, que tem um sorriso bondoso e puxa de uma perna. Ele falou com o síndico do prédio, que também deve ser um bom sujeito, e conseguiu autorização para Cisca armar o tabuleiro de doces em frente à portaria do prédio. Então a menina fica sentada ali, em um banquinho de madeira, com a sacola de pano costurada pela mãe especialmente para guardar o dinheiro que recebe dos fregueses. Ela nem precisa levar e trazer o banquinho de madeira, pois o porteiro o guarda num canto de depósito sob uma escada. Pela manhã entrega para ela, recolhe após o almoço. Todos os dias.

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O edifício é comercial, cheio de salas de escritórios, de advogados, de médicos, de empresas de informática. Cisca quer fazer um curso de informática. Ainda não tem computador, mas tem loucura por ele e diz que um dia vai comprar um. A freguesia é grande, porque todo mundo gosta dos doces que a menina vende. Quase todo dia ela tem que dar essas respostas: – Muito bons os seus docinhos. – Obrigada. – Quem faz? – Minha mãe. – Como é o nome dela? – Teresa. – E o seu? – Francisca. – Nome bonito. – Obrigada. Mas todo mundo me chama de Cisca, que foi o nome que o meu irmão botou em mim. Não fica chateada, não. Já aprendeu que faz parte da atividade. Fica mesmo é orgulhosa do talento culinário de sua mãe, e, também, do bom gosto que ela e o pai demonstraram na hora de escolher o seu nome. Quando volta para casa com o tabuleiro vazio, a mãe fica muito feliz e sempre diz: – Obrigada, minha filha. Você é um amor e Deus vai lhe recompensar. 11


Francisca arruma a mochila e dá um beijo na mãe e outro no Zé, que sempre pergunta: – Pra onde você vai, Cisca? – Para a escola. – Vai não. – Vou sim. – Você nunca mais ficou comigo. – Sábado e domingo eu fico. Agora só posso fazer companhia a você nos finais de semana. – Por quê? – Você sabe, Zé. Porque estudo e trabalho. – Sábado você me leva ao parque? – Levo. – Domingo você me leva ao jogo? – Claro. – E me leva à praia? – Nos dois, não. Você escolhe, ou no jogo ou na praia. Depois pega o caminho da escola. Sempre disposta, nem parece que passa a manhã inteira vendendo doces na rua. O irmão fica chateado e se queixa: – Por que ela tem que ficar o tempo todo fora de casa? A mãe fica orgulhosa e responde: – Porque tem que trabalhar para nos sustentar. E porque tem que estudar para ser uma moça sabida. – Cisca já é uma moça sabida – diz Zé. 12


– Para ser mais ainda. – E eu, mãe, sou um menino sabido? – ele pergunta. – Claro, meu filho. Puxou a sua irmã. O irmão entende, ou não entende, mas não faz mais perguntas.

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Dois carinhos geralmente se procuram, mas nem sempre se encontram. Quando isto acontece, ĂŠ uma felicidade. A menina Cisca estĂĄ aĂ­ para comprovar.


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