HISTÓRIA DA CIÊNCIA NO CINEMA 5

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História Históriada daCiência Ciênciano noCinema Cinema





História da Ciência no Cinema 5

ORGANIZAÇÃO

Ana Carolina Vimieiro Gomes Ely Bergo de Carvalho


Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Ana Carolina Vimieiro Gomes, Ely Bergo de Carvalho Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

cip-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj H58 v.5 História da Ciência no Cinema 5 / organização Ana Carolina Vimieiro Gomes , Ely Bergo de Carvalho. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2014. 220 p. : il. ; 23 cm. (Scientia ; 26) ISBN 978-85-8054-227-1 1. Ciência - História. 2. Ciência no cinema - História e crítica. 3. Filmes de ficção científica - História e crítica. I. Gomes, Ana Carolina Vimieiro. II. Carvalho, Ely Bergo de. III. Série. 14-16010 CDD: 791.435 CDU: 791.43-2

conselho editorial

Coleção Scientia

Bernardo Jefferson de Oliveira | UFMG Gilberto Hochman | FIOCRUZ Maria Amélia Dantes | USP Maria de Fátima Nunes | UNIVERSIDADE DE ÉVORA Mauro Lúcio Leitão Condé | UFMG Olival Freire | UFBA

Fino Traço Editora ltda. Av. do Contorno, 9317 A | 2o andar | Barro Preto | CEP 30110-063 Belo Horizonte. MG. Brasil | Telefone: (31) 3212 9444 finotracoeditora.com.br


Apresentação  7 1  A invenção de uma enfermidade: o caso da histeria | Pablo Ariel Scharagrodsky  11 2  Augustine, a perfeita histérica − construção da histeria como a doença feminina do século XIX | Rita de Cássia Marques, Eliza Teixeira de Toledo   23 3  XXY: intersexualidade, corpo e desejo | Silvana Vilodre Goellner, Carla Lisboa Grespan  43 4  Vera Drake: aborto, moralidade e injustiça social | Ilana Löwy  61 5  Che Guevara e os leprosos: vidas marcadas | Luciano Marcos Curi  75 6  Aquecimento Global: verdade inconveniente ou teoria falsa? | Tiago Ribeiro Duarte  93 7  Elysium: será o mundo melhor? | Samira Peruchi Moretto  111 8  Ficção científica e a manipulação do corpo pela ciência: uma leitura de A Ilha e Elysium | Jean Luiz Neves Abreu  121 9  A ciência no controle da vida e da morte: discursos e práticas científicas em O Ilusionista | Gabriel Verdin de Magalhães  135 10  Do místico ao médico: o gabinete do Dr. Caligari e a legitimação do saber médico-psiquiátrico por meio do cinema | Francismary Alves da Silva, Marcelo Sabino Martins  151 11  A revolução de maio: modernidade e comunicações | Maria Fernanda Rollo, Maria Inês Queiroz  169 12  Quando os pincéis encontram a floresta: um retrato da ilustradora botânica Margaret Mee | Valéria Mara Silva  187 13  A ciência e a história em A Viagem | Bráulio Silva Chaves  199



Apresentação

Eis que vem a público mais um volume da coletânea História da Ciência no Cinema. É com satisfação que apresentamos este novo volume, fruto do sucesso, interesse e aceitação deste projeto de divulgação científica dos pesquisadores do Grupo Scientia – Grupo de Teoria e História das Ciências – da Universidade Federal de Minas Gerais. Este projeto de divulgação científica foi iniciado em 2005 pelo Prof. Dr. Bernardo Jefferson de Oliveira e, nos três volumes subsequentes, diferentes pesquisadores conduziram o projeto.1 Para este quinto volume, com o propósito de ampliar o universo de temáticas e variar as discussões históricas e epistemológicas sobre a ciência, mais uma vez nos esforçamos para contar com a colaboração de pesquisadores vinculados a várias instituições brasileiras e a instituições estrangeiras, de países como Portugal, Argentina e França. Ora, se o cinema já nasceu e é científico, ou seja, atrelado aos avanços científicos e tecnológicos desde o século XIX, temos justamente mobilizado, nesta série de publicações, o imaginário e as representações sociais da ciência na produção cinematográfica, espetáculo e entretenimento, como meio de se refletir sobre a ciência e seu lugar na sociedade, no passado e no tempo presente. Nossa intenção continua a ser divulgar a história das ciências (e a própria produção científica) por meio da narrativa fílmica, para atingir e sensibilizar um público de professores, estudantes do ensino superior e médio e o público em geral, acerca de reflexões que tratam a ciência e as 1. Os quatro volumes anteriores da série História da Ciência no Cinema foram publicados em 2005, 2007, 2010 e 2012. Os dois primeiros foram organizados pelo Prof. Dr. Bernardo Jefferson de Oliveira. O terceiro, pelas professoras doutoras Betânia Gonçalves Figueiredo e Anny Jacqueline Torres Silveira. O quarto volume, além das professoras doutoras Ana Carolina Vimieiro Gomes e Betânia Gonçalves Figueiredo, contou com a colaboração do pesquisador mexicano César Carrillo Trueba (Universidade Nacional do México – UNAM) em sua organização.

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dimensões do fazer científico como uma construção sociocultural. Temos apostado na linguagem e estética cinematográficas, não simplesmente pela dimensão ora factual, ora ficcional, mas como possibilidade de fruição e experiência de novos olhares, inquietações e indagações sobre as múltiplas facetas do fenômeno científico. O livro que aqui lhes apresentamos é uma reunião de treze artigos. “Mostra de cinema” com representações da ciência em vários momentos do século XX e início do século XXI. Um diferencial deste livro são os artigos que abordam problemáticas relacionadas ao gênero e ciência, em especial, a mulher e a medicina. Natureza, meio ambiente, sexualidade, saúde pública, magia, vida e morte, moralidade, política e utopia são exemplos de outros temas, a partir dos variados filmes, que foram mobilizados pelos autores como fios condutores para as discussões teóricas sobre a dimensão sociocultural da ciência. Apesar de heterogêneos, os artigos foram articulados de modo a proporcionar uma tessitura à coletânea. O livro abre-se aos leitores com quatro artigos que tratam de gênero, ciência e medicina. Dois deles trazem análises sobre a história da construção médico-científica da histeria como patologia típica da mulher, a partir dos filmes Histeria e Augustine. Em seguida há uma análise do filme argentino XXY, propondo uma discussão sobre gênero, sexualidade e discursos científicos normalizadores, segundo a trama sobre a vida de uma adolescente intersex. Com o filme O segredo de Vera Drake, somos convidados a refletir sobre a história das práticas abortivas, legais e ilegais, populares e médicas, com suas consequências morais, econômicas e políticas, no passado e no presente. Acompanhando uma viagem pela América do Sul de Che Guevara e seu amigo Alberto no filme Diários de Motocicleta, podemos ainda seguir nas discussões sobre medicina e aspectos morais, porém, no que diz respeito às contradições nos cuidados e tratamento de leprosos. Uma discussão acerca das relações entre os avanços da ciência, tecnologia e previsões escatológicas, como as questões relacionadas ao risco e às catástrofes ambientais, pode ser apreciada com a análise do documentário Uma Verdade Inconveniente e do filme de ficção científica Elysium. Este último é abordado como possibilidade de se refletir sobre o futuro dos avanços científico e tecnológico: suas consequências boas e más e os possíveis custos 8


de avanços não atrelados a um desenvolvimento social. Elysium também é mobilizado, junto a outro filme de ficção científica A Ilha, para uma reflexão sobre a manipulação dos corpos e o controle da vida e da morte pela biotecnologia, como a genética e a clonagem, e seus reflexos sobre a humanidade. Ciência, magia e misticismo são tratados nos filmes O Ilusionista e no clássico O Gabinete do Dr. Caligari. A partir do primeiro, é analisado o uso da ciência pelos prestidigitadores, articulando-se uma discussão sobre explicações racionais e irracionais no domínio da vida e da morte. Com o segundo, numa incursão no universo da estética expressionista alemã dos anos 1920, são debatidos os poderes, mesmo que insólitos, da psiquiatria para tratar a loucura. Em outro filme de início do século XX, mas de Portugal, A Revolução de Maio, temos uma leitura histórica sobre a mobilização de referências ao desenvolvimento tecnológico e científico como meio de modernização do Estado Novo português. Na sequência, adentramos ao universo do mundo natural com o documentário Margaret Mee e a Flor da Lua, para nos aproximar do entrecruzamento entre arte e ciência no processo de construção de uma cultura visual da botânica. E, ao fim e ao cabo, o livro se encerra em A viagem, com uma reflexão teórica sobre tempo, história e a ciência no tempo e na história. História da Ciência no Cinema 5 contou com o apoio financeiro do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, com recursos da CAPES/PROEX. Ana Carolina Vimieiro Gomes Ely Bergo de Carvalho Agosto de 2014.

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A invenção de uma enfermidade: o caso da histeria Pablo Ariel Scharagrodsky1

O filme Histeria narra a história do inventor do vibrador, o doutor Mortimer Granville (Hugh Dancy), que no século XIX, logo depois de perder o emprego em um hospital de Londres – por ser favorável a “teoria dos germes” –, consegue trabalho no consultório privado do doutor Robert Dalrymple (Jonathan Pryce), o maior especialista em medicina feminina da capital inglesa. Especialista no tratamento de uma enfermidade antiga, denominada “histeria” (do grego hystera, útero), o doutor Dalrymple observa afluir ao seu consultório uma alarmante “epidemia”, da qual padecem principalmente mulheres burguesas e/ou afluentes e de meia-idade, com uma grande variedade de sintomas, incluindo choro, ninfomania, frigidez, melancolia, ansiedade, depressão, mania, tédio, animação excessiva, insônia, retenção de líquidos, inchaço abdominal, espasmos musculares, irritabilidade, perda de apetite, entre outras muitas manifestações consideradas “anormais” e patológicas no discurso médico hegemônico da época. Confrontado com tais “desordens” corporais, a cura proposta pelo doutor Dalrymple é a massagem manual, procedimento incrivelmente eficiente e eficaz. Trata-se de uma massagem na região pélvica e vaginal, a fim de induzir suas pacientes a ter um “paroxismo histérico”, e, assim, conseguir a libertação dos “humores uterinos corruptos e venenosos”. Um método, de acordo com o discurso médico dominante à época, que não estava associado com o prazer sexual feminino. 1. Doutor em Ciências Sociais e Humanidades pela Universidade Nacional de Quilmes. Atualmente é docente-investigador na Universidade Nacional de Quilmes e na Universidade Nacional de La Plata, Argentina. Tradução de Ely Bergo de Carvalho.

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O futuro do doutor Mortimer Granville era promissor: seu compromisso amoroso com uma das filhas do dono do consultório (Emily Dalrymple), assim como a possibilidade de administrar os negócios, apontavam um caminho profissional exitoso e lucrativo. No entanto, o trabalho duro com as supostas “doentes” e os problemas de câimbras em suas mãos devido ao esforço das longas e repetidas massagens, impediram-no, depois de algum tempo, de “curar” suas pacientes, o que ocasionou uma nova perda de emprego. Nesse contexto, o doutor Mortimer Granville recorre ao seu amigo de toda a vida, o milionário e pragmático Edmund St. John-Smythe (Rupert Everett). Edmund, obcecado com a nova ciência da eletricidade e com a tentativa de inventar um espanador elétrico, inspira em Mortimer Granville uma ideia reveladora e engenhosa: a invenção de um massageador vaginal elétrico. Graças ao citado invento, Granville recupera o trabalho e o amor de Emily, sua prometida. Contudo, sofre um revés e se apaixona pela “revolucionária” irmã de Emily chamada Charlotte, uma mulher com ideias políticas e uma vida bastante diferente das de Emily. O filme mostra, de forma um tanto quanto esquemática, dois posicionamentos sociais e de ideias bem diferentes. Charlotte era feminista, sufragista e sexualmente liberada. Saía à noite, andava de bicicleta, bebia álcool, não respeitava horários, questionava seus pais e usava roupas indecorosas, para os críticos burgueses da época. Ainda, dirigia uma casa de assistência a pobres e indigentes, sendo uma forte e tenaz crítica da desigualdade social. Emily, pelo contrário, representava a conservadora virtude inglesa feminina da época: guardiã da honra, defensora moral da família – e, por conseguinte, do império inglês – e futura esposa do cidadão. Emily estava sempre vestida de “gala”, respeitava as formalidades e os horários, era pontual, recatada, decorosa, pudica, não questionava a autoridade paterna, era admiradora da música clássica, exímia pianista e especialista em frenologia. Um incidente entre a feminista Charlotte Dalrymple e um agente policial, durante a festa de noivado de Mortimer Granville e Emily Dalrymple, desvia a história de amor e apresenta uma das cenas de mais sucesso do filme: o julgamento de Charlotte por desacato à autoridade, com sua elegante ironia contra a ordem patriarcal desigual, incluindo a histeria como uma artimanha discursiva recorrentemente utilizada para manter a citada ordem injusta para 12


com as mulheres, com o testemunho do perito médico: doutor Mortimer Granville quem, pela primeira vez no filme, põe em dúvida seu saber, sua posição profissional e a própria histeria como uma enfermidade feminina. Indubitavelmente o filme, estreado em 2011, condensa várias histórias “verídicas”. Ainda que a história da invenção do consolo esteja no centro da narrativa, outros relatos, discursos e processos sociais e políticos se mesclam e se articulam. Entre eles destacam-se os movimentos feministas do final do século XIX e sua crítica à ordem patriarcal moderna; os processos de modernização do século dezenove com seu caráter normativo, inegável; o peso do discurso e da corporação médica como legitimadora de certos comportamentos sociais; o lugar preponderante do discurso científico novecentista – encabeçado pela ginecologia e pela obstetrícia – como a voz autorizada na hora de explicar e prever o funcionamento normal dos corpos e das emoções das mulheres; a fascinação “inventiva” tão típica do final do século XIX, em que a eletricidade tornou-se um dos tópicos centrais do citado processo; a preocupação – em alguns casos obsessão –, do imaginário masculino heteronormativo pelos corpos femininos, incluindo seus prazeres, emoções e desejos, e a invenção de certas enfermidades, supostamente exclusivas das mulheres.

Toda doença é doença social O filme Histeria problematiza e, ao mesmo tempo, mostra que a doença é impossível de ser pensada e conceitualizada sem a marca da cultura, da linguagem, dos saberes, dos discursos, dos lugares e momentos históricos, das relações de poder e dominação, das instituições e dos agentes individuais e coletivos que agenciam certos significados particulares excluindo outras alternativas possíveis de ressemantizar os corpos e suas funções. O significado de toda doença condensa as inquietudes, temores, fobias e ansiedades sociais e políticas acerca dos padrões de comportamento social – e, por extensão, de um determinado estilo de vida “saudável” – que tomam como aceitável e, ao mesmo tempo, do que são considerados indesejados por certos grupos sociais, em um determinado lugar e em certa época. Qualquer doença tem um componente social e cultural, irredutível ao fenômeno “patológico” ao qual faz referência, e que sempre incluem 13


as respostas subjetivas dos pacientes e dos juízos diagnósticos dos profissionais, ou seja, da corporação médica e seus interesses econômicos, políticos e ideológicos, como grupo profissional. Como afirma o clássico trabalho de Turner: “ter uma doença é o efeito de processos diagnósticos e juízos profissionais, os quais, por sua vez, são o produto de determinações históricas e sociais”. “A infecção não constitui um fato, e sim uma relação, e a relação é fruto de processos classificatórios” (Turner, 1989: 222, 251). A linguagem sobre as doenças, gerada pelo discurso médico, nunca é neutra, asséptica, objetiva, imparcial ou politicamente desinteressada, mas, bem pelo contrário, uma vez que “as enfermidades carregam um repertório de práticas e construções discursivas que refletem a história intelectual e institucional da medicina, apresentam uma oportunidade para desenvolver e legitimar políticas públicas; canalizam ansiedades sociais de todo tipo; facilitam a justificação e o uso de certas tecnologias; descobrem condições materiais de existência e aspectos das identidades individuais e coletivas; sancionam valores culturais e estruturam a interação entre enfermos e os que fornecem a atenção a saúde. O filme Histeria nos convida a refletir e a questionar, a partir da história, a suposta cientificidade objetiva e neutra do discurso médico, já que (...) a história sociocultural da enfermidade aborda a medicina como um terreno incerto onde o biomédico está penetrado tanto pela subjetividade humana como pelos fatos objetivos [...] estudando os processos de profissionalização, medicalização e disciplinarização, as dimensões culturais e sociais da doença, das condições de vida e seus efeitos na morbidade e mortalidade, o papel do Estado (...) (Armus, 2002: 12-13).

A histeria – como a anorexia, o onanismo ou a agorafobia – são enfermidades de subordinação sexual, e a linguagem destes padecimentos é fundamentalmente política (Didi-Huberman, 2003). Defendeu-se que o onanismo e a espermatorreia eram categorias médicas que expressavam ansiedades dos pais cuja autoridade sobre os subalternos estava sendo questionada pelos novos ordenamentos sociais. A histeria era uma metáfora da subordinação social das mulheres, em especial das mulheres de classe média que estavam tentando manifestar sua independência individual por meio da profissionalização. A agorafobia simbolizava uma incerteza do 14


espaço urbano; o medo do espaço aberto mantinha as mulheres em casa, e, também, confirmava a capacidade econômica do marido para conservar uma esposa doméstica. Definitivamente, muitas das “enfermidades das mulheres têm uma causa importante em comum: elas são, pelo menos sociologicamente, produtos da dependência: histeria, depressão, melancolia, agorafobia, anorexia, etc”. “É, em última instância, a expressão psicossomática de ansiedades emocionais e sexuais que se formam na separação do mundo público da autoridade com o mundo privado do sentimento”. “Como categorias diagnósticas, essas enfermidades manifestam as inquietudes masculinas em torno da perda de controle sobre os subordinados: uma mulher deixava a casa para trabalhar e se achava, supostamente, exposta às seduções públicas” (Turner, 1989: 148). Deve ser dito, convertia-se em uma potencial histérica.

A histeria como ficção Embora houvesse muitas doenças que circulavam no final do século XIX, como a tuberculose e a escrofulose – enfermidades ligadas à debilidade orgânica no imaginário de fin de siécle ocidental, e que às vezes, podiam fazer estragos nas gerações futuras – a que primeiro, no discurso médico, referiuse às mulheres foi a histeria. No filme, uma voz autorizada da medicina, o Dr. Robert Dalrymple, afirma: “a histeria converteu-se em uma verdadeira epidemia. A metade das mulheres de Londres está infectada e nos úteros hiperativos está a causa deste terrível mal”. Tal enfermidade não era nova, remontava à antiguidade, mais precisamente a dois milênios antes de Cristo. Ademais de certos matizes, a histeria, durante milênios, foi representada como uma perturbação cuja origem provinha do útero. A noção básica da medicina antiga concernente à histeria é a do organismo itinerante, considerado como um animal que vive no corpo da mulher, ativo e bisbilhoteiro. Faminto, deslocava-se com uma espécie de ansiedade motriz empurrando os demais órgãos com seu deslocamento: aperta os pulmões e com isso desencadeia sufocamento, suores; golpeia o coração e desencadeia palpitações; sobe à garganta e forma uma bola (Chauvelot, 2001: 10-11). 15


De fato, “até o século XIX, todos os sintomas que se agruparam sob o nome de histeria foram imputados unicamente ao útero. Ou seja, foi a enfermidade de um órgão, sendo sua origem sexual e especificamente feminina”. Por sua vez, “o útero desencadeava a doença porque se achava em estado de inanição, vale dizer, não tinha o que desejava”. Enfim, “manifestava seu descontentamento deslocando-se de maneira intempestiva” (Chauvelot, 2001: 10). A princípio a histeria foi circunscrita às classes altas, representadas no filme por mulheres ricas e ou em boa condição social, que acudiam ao consultório do Dr. Robert Dalrymple. Logo, quando as mulheres subversivas (feministas, socialistas, anarquistas, comunistas, etc.) reclamaram outro tipo de ordem social e sexual, “casualmente”, também foram imputadas de sofrer essa “terrível epidemia”. Como assinala, no filme, Charlotte, a filha “crítica” do Dr. Robert Dalrymple: “há uma revolução social gestando-se. Mulheres! Já não nos será negado o lugar que nos corresponde. Experimente, você pode sim! Não descansaremos até que sejamos bem-vindas nas universidades, nas profissões e nas cabines eleitorais”. A resposta do Dr. Dalrymple diante de sua “irreverente” filha foi o recorrente e pouco original: “esta mulher está histérica!!!”. Na verdade, a histeria esteve relacionada com as incipientes mudanças no lugar social sofridas pela mulher, no final do século XIX. Frente às reclamações e às reinvindicações de muitas mulheres e, dado que uma das funções normalizadoras da medicina girava em torno da definição dos papéis sexuais e da saúde da família nuclear, a comunidade médica diagnosticou uma epidemia de histeria entre as mulheres, causada teoricamente por excessos sexuais (relações pré-matrimoniais, masturbação), pelo luxo (roupas, maquiagem), pela fadiga cerebral derivada da frequência a lugares públicos (teatros, passeios, bailes, assembleias operárias, manifestações) e pelos esforços intelectuais, supostamente incompatíveis com a predisposição inata do sexo frágil à enfermidade e seus delicados órgãos genitais (Nouzeilles, 1999). Contudo a histeria foi não somente um argumento para evitar que as mulheres adquirissem o controle de suas próprias vidas, mas, também, para reafirmar como único e “verdadeiro” um modelo de masculinidade normativa, representada por uma serena força, a robustez e o autocontrole. 16


Desta forma, a histeria funcionou como uma metáfora médico-política que controlou não só as “mulheres dissidentes”, como também os “homens impostores” –aqueles machos débeis, nervosos, “irritáveis” e afeminados, que colocavam em questão a masculinidade normativa – excluindo e patologizando todos eles (Mosse, 1996). O nervosismo “natural” das mulheres e suas paixões pouco controláveis serviram de contraponto para a imagem da masculinidade hegemônica autocontrolada, vale dizer, as qualidades condensadas da masculinidade normativa e hegemônica moderna foram o oposto da caracterização da histérica. A caracterização de uma mulher histérica foi variada: rápido desenvolvimento do cérebro; talento precoce; gosto refinado e culto; vivacidade fascinante; impressionabilidade e exagerada sensibilidade; fraqueza do sistema muscular; marcada predisposição a sofrer de doença nervosa e doenças dos órgãos genitais; hábitos sedentários; caráter volátil; paixão; desequilíbrio nervoso; mentirosas, exageradas e à beira da loucura. Não eram loucas, mas ficavam na fronteira de tal região incerta. Sobre esta caracterização de histeria emergiu um conjunto bem diverso de manifestações: palpitações; agitação; distúrbios menstruais; hipocondria; dores de cabeça; inchaço; alucinações; asfixia; perda de apetite; calor; frio; espasmos; convulsões; mudanças bruscas de caráter e, em alguns casos, perversão de todos os sentidos. Diante de um universo tal de sintomas, Charlotte – filha “crítica” do Dr. Dalrymple – assinala com ironia a questão: “histeria parece cobrir tudo, desde a insônia até a dor de dente”. No entanto, continuou Charlotte, muitas das causas dessas manifestações estão na condição que muitas mulheres têm de reclusão, compulsória e injusta, à esfera doméstica e em “seus maridos egoístas que estão relutantes ou incapazes de fazer amor apropriadamente”. Em tal “contexto corporal” incerto, alterado e confuso – legitimado a partir da perspectiva falocêntrica – prescreveram-se distintos tratamentos contra a histeria: administração de psicofármacos; isolamento; cirurgia ginecológica (ovariotomia, salpingo-ooforectomia,2 raspagem); sugestão hipnótica e/ou massagens. Alguns desses procedimentos valiam-se de técnicas absolutamente invasivas, penetrantes e quase pornográficas, no marco 2. Cirurgia que remove ambos os ovários e as duas trompas de falópio.

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de fantasias eróticas e epistemológicas de possessão, por parte do médico homem, sobre o corpo da sua paciente mulher. A massagem recomendada desde o discurso médico se converteu em uma terapia (re)causadora dessa linguagem corporal anômala e desordenada. Seu objetivo não foi só acalmar as contrações corporais confusas e irregulares, e sim o significado sexual que colocava em circulação, produção e transmissão. O Dr. Dalrymple e o Dr. Granville insistiam em que “o prazer físico não tinha nada a ver com isso. Era somente um tratamento que estimulava o sistema nervoso”. Charlotte provocava a todos ao afirmar que: “deve ser difícil ‘satisfazer’ à metade das mulheres da cidade”. Certamente que, na episteme médica dominante, as vinculações entre o sistema nervoso e o aparato genital não eram novas. Tais relações foram consideradas, no final do século XIX, como mais sensíveis e desenvolvidas nas mulheres. A relação, supostamente estreita, entre os órgãos – o cérebro e o útero – deu base a um conjunto de inferências cujo desencadeamento “natural” estiveram ligados com a histeria e, em alguns casos, com a loucura e/ou a demência. Contudo, as verdadeiras razões da histeria giravam em torno da necessidade social e política de apaziguar nas mulheres a excitação, a imaginação e o prazer, além de regular seu estilo de vida, controlando seus supostos “excessos”. Enfim, levar à “calma de espírito”, que foi algo mais que controlar a sexualidade feminina, evitando subversões e possíveis desvios sexuais e, sobretudo, desvios políticos. Como afirma o Dr. Dalrymple: “é necessário uma pressão sutil, porém firme, suave e circular; uma massagem vulvar para que o útero regresse a seu lugar” e a mulher volte metaforicamente ao lugar simbólico e materialmente assinalado para ela pela ordem social e sexual do século XIX.

A aliança entre o discurso médico e o discurso jurídico A última parte do filme condensa a trama epistêmica que legitima a histeria como uma ficção e, por vezes, como uma metáfora cujo principal sentido foi o controle do corpo, do desejo e da sexualidade feminina avaliada desde o discurso médico. As mulheres histéricas não somente foram

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as mulheres burguesas. As mulheres histéricas foram as que questionaram as relações de poder, a divisão “sexual” do trabalho e as injustas divisões de tarefas. A mulher histérica foi a que teve coragem de questionar a tradicional moral sexual. A mulher histérica foi a que se converteu em politicamente dissidente: anarquista, socialista, comunista, etc. Aquelas mulheres que se opuseram ao establishment ingressaram no universo do enfermo, do perigoso e, inclusive, do patológico. O dilema para muitas mulheres, no final do século XIX, foi de difícil solução: ou bem se convertiam em mulheres “autênticas e renunciavam a toda forma de realização pessoal e de desenvolvimento de suas faculdades conformando-se em ser meras reprodutoras e mães, ternas e amorosas; ou, caso elegessem o desenvolvimento profissional e político, teriam que renunciar a serem “mulheres” e se convertiam em dissidentes, enfermas, loucas e histéricas. O julgamento de Charlotte Dalrymple, decorrente de seu questionamento da ordem patriarcal e também por atingir um policial, condensa grande parte dessa problemática. Por um lado, o discurso médico convertendo-se em juiz, julgando aqueles/aquelas que resistem à autoridade e violam a lei, vale dizer, aqueles/aquelas que questionam as injustiças sociais e a ordem patriarcal. Por outro lado, o discurso jurídico validando sua própria ação e o estabelecimento das penas a partir da grade interpretativa proveniente dos saberes médicos da época. Vejamos sinteticamente o que o filme relata. Quando Charlotte defende-se com veemência frente às acusações dos defensores da ordem e da lei – todos, aliás, homens –, estes últimos lhe dizem que “seus sintomas estão aparecendo” e que ela “sofre de erráticas, agressivas e violentas emoções, uma histeria incurável”. Para avaliar esta suposta patologia é chamado ao tribunal o Dr. Granville, especialista no campo da histeria. O Dr. Granville caracteriza Charlotte como “errática, volátil e às vezes fisicamente agressiva”. Ademais, assinala que “é a mulher mais irritante que ele conheceu”. Diante de tais afirmações, a pronta recomendação do promotor é torná-la reclusa em um instituto de criminosos mentais e, também, realizar uma histerectomia. Contudo, o Dr. Granville – a esta altura apaixonado por Charlotte e suas ideias – afirma:

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(...) não terminei. Charlotte é também a mulher mais generosa, compassiva, desinteressada e verdadeira cristã que já havia conhecido. Depois da relação com meus pacientes e de uma longa reflexão, minha opinião profissional é que a histeria é uma ficção. Não é nada mais que um diagnóstico ‘vale tudo’ para as mulheres sem oportunidades, forçadas a passar a vida inteira cuidando das tarefas domésticas, ou maltratadas por egoístas e puritanos maridos que não são capazes de fazer amor apropriadamente, ou com a frequência suficiente”.

Para o Dr. Granville, a “Inglaterra perderia uma mulher devota e única se a encarcerassem e mutilassem”. Finalmente, para o juiz, os argumentos para julgar Charlotte por histeria não foram suficientes, todavia, por resistência à autoridade, foi condenada a trinta dias de cárcere. Em última análise, o filme mostra que, se a histeria foi uma extraordinária forma de controlar e castigar – desde o discurso médico e jurídico, as mulheres, especialmente as dissidentes –, também foi parte de um efeito de resistência corporal e política frente à ordem social e sexual hegemônica. Com o tempo, o invento do massageador portátil foi cada vez mais solicitado para a saúde e a felicidade de muitas mulheres, que conquistaram não apenas novos direitos sobre seus corpos e seus prazeres, como também, um novo lugar na política e na sociedade. Havia que se esperar até 1952 para que o diagnóstico médico referido à histeria oficialmente desaparecesse. Todavia, ainda hoje, uma das formas mais recorrentes de se criticar muitas mulheres continua sendo através da pejorativa e desafortunada frase: “você está histérica!”. O filme nos convida a quebrar estes mitos e estereótipos que ainda continuam gerando situações injustas e desiguais. Esse é um grande desafio, contudo muitas vezes a “ficção” é mais forte que a “realidade”.

Referências ARMUS, D. (ed.) Entre médicos y curanderos. Cultura, historia y enfermedad en la América Latina moderna. Buenos Aires: Norma, 2002. CHAUVELOT, D. Historia de la histeria: sexo y violencia en lo inconsciente. Madrid: Alianza Editorial, 2001. 20


DIDI-HUBERMAN, G. Invention of Hysteria. Charcot and the Photographic Iconography of the Salpêtriere. Cambridge: The MIT Press, 2003. MOSSE, G. The Image of Man: the Creation of Modern Masculinity. Oxford: Oxford University Press, 1996. NOUZEILLES, G. “Políticas médicas de la histeria: mujeres, salud y representación en el Buenos Aires del fin de siglo”. Revista Mora, n. 5, 1999, p. 97-112. TURNER, B. El cuerpo y la sociedad. México: FCE, 1989.

Ficha Técnica Título Original: Hysteria Título em Espanhol: Hysteria. La historia del deseo Título em Português: Histeria País: Reino Unido e Luxemburgo Ano: 2011 Gênero: Comédia romântica Duração: 95 minutos Diretora: Tanya Wexler Roteiro: Stephen Dyer e Jonah Lisa Dyer Elenco: Hugh Dancy, Maggie Gyllenhall, Jonathan Pryce, Rupert Everett, Felicity Jones, Ashley Jensen, Sheridan Smith, Gemma Jones, Anna Chancellor Produção: Sarah Curtis, Judy Cairo e Tracey Becker.

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A série de coletâneas História da Ciência no Cinema tem o propósito de divulgar a história das ciências e o conhecimento científico por meio da narrativa fílmica, buscando atingir e sensibilizar um público de professores, estudantes do ensino superior e médio e o público em geral, acerca de reflexões que tratam da ciência e das dimensões do fazer científico como uma construção sociocultural. A aposta na linguagem e estética cinematográficas não se dá simplesmente pela sua dimensão factual ou ficcional, mas sim em função da possibilidade de fruição e experiência de novos olhares, inquietações e indagações sobre as múltiplas facetas do fenômeno científico. História da Ciência no Cinema 5 é uma “mostra de cinema” e representações da ciência em vários momentos do século XX e início do século XXI.


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