Uma História Brasileira das Doenças Vol. 6
ORGANIZAÇÃO
Sebastião Pimentel Franco Dilene Raimundo do Nascimento Anny Jackeline Torres Silveira
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CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj H58 Uma história brasileira das doenças, volume 6 / organização Sebastião Pimentel Franco, Dilene Raimundo do Nascimento, Anny Jackeline Torres Silveira. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2016. 364 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8054-306-3 1. Doenças - Brasil - História. I. Silveira, Anny Jackeline Torres. II. Nascimento, Dilene Raimundo do. III. Franco, Sebastião Pimentel. 16-35493 CDD: 616.00981 CDU: 614(81)(09)
con se lh o e d itorial Cole ção
História
Alexandre Mansur Barata | UFJF Andréa Lisly Gonçalves | UFOP Gabriela Pellegrino | USP Iris Kantor | USP Junia Ferreira Furtado | UFMG Marcelo Badaró Mattos | UFF Paulo Miceli | UniCamp Rosângela Patriota Ramos | UFU
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Apresentação 7
1 História das doenças e epidemiologia: encontros e desencontros 23 Diana Maul de Carvalho
2 Ouvindo histórias e memórias: o depoimento oral como fonte 53 Tânia Fernandes
3 “Eu gostaria que estas cartas fossem tudo num jornal, para todo o povo saber...”: a escrita epistolar como fonte para a história da loucura 73 Yonissa Marmitt Wadi
4 Poliomielite: da emergência aos desafios da erradicação 99 Eliseu Alves Waldman
5 Poliomielite: as estratégias de controle e erradicação da doença no Brasil (1960-1990) 119 Dilene Raimundo do Nascimento
6 Dirty places and dangerous things: Space and place in the history of Polio 139 Naomi Rogers
7 “O Refúgio dos Rejeitados”: literatura e lepra em Goiás 153 Leicy Francisca da Silva
8 A gripe espanhola em imagens e versos publicados nos jornais diários 179 Liane Maria Bertucci
9 O anjo exterminador que flagela o povo: representações sobre o cólera no interior do Ceará em meados do XIX 197 Jucieldo Ferreira Alexandre
10 O cólera no Espírito Santo pela lente do Correio da Vitória (1855-1856) ou quando as epidemias viram notícia 223 André Nogueira
11 Surtos epidêmicos de varíola na Província do Espírito Santo: século XIX 247 Sebastião Pimentel Franco
12 Combate Das febres em Goyas: as recomendações do Dr. Netto Carneiro no Oitocentos 277 Sônia Maria de Magalhães
13 “Pela saúde pública”: educação sanitária e difusão dos princípios higienistas em Uberlândia (1930-50) 295 Jean Luiz Neves Abreu
14 Médicos, senhores e escravos nas ‘plantations’ cafeeiras do Vale do Paraíba fluminense, século XIX 315 Keith Barbosa
15 Processos de cura em Casas de Santo do Rio de Janeiro 335 Fernando Sergio Dumas dos Santos Stephanie Godiva Santana de Souza
Apresentação
É com prazer que trazemos ao leitor um novo volume de Uma História Brasileira das Doenças. No seu sexto número, a coleção é um verdadeiro retrato da variedade e da riqueza de temas e abordagens oferecidos por esse campo de investigação. A presença de novos pesquisadores e novas experiências históricas nas páginas que se seguem é ainda um bom termômetro do interesse e o sucesso que a temática tem alcançado entre os pesquisadores brasileiros, contribuindo para dar publicidade a resultados de pesquisas levadas a cabo nas últimas três décadas. Como é tradição nesse campo de investigação, os trabalhos aqui reunidos abordam as doenças e suas histórias para além de uma perspectiva eminentemente biológica, propondo enxergá-las como resultado de uma interação que congrega manifestações patológicas e os sentidos sociais a elas atribuídos historicamente. Como já bastante discutido pela historiografia, sendo a um só tempo resultado de processos patológicos ocorridos no âmbito do organismo, e experiência vivenciada por indivíduos culturalmente inseridos, a doença é um lugar de fronteira que exige um tipo de abordagem dialógica, ou interdisciplinar. A característica interdisciplinar desse campo de pesquisa é o tema de discussão do texto que abre nossa coletânea: História das doenças e epidemiologia: encontros e desencontros, de autoria de Diana Maul de Carvalho. Médica epidemiologista, Diana Maul nos propõe um diálogo entre os métodos e conceitos manejados pelo campo médico e aqueles próprios do mundo da história para a construção desse saber denominado História das Doenças. Sua proposta é examinar formas pelas quais a história e a epidemiologia podem contribuir para a elaboração de um entendimento e a possibilidade de construção de uma narrativa sobre as doenças através dos tempos. Mais do que um simples escambo e aplicação de técnicas e métodos de abordagem, 7
oriundas de um ou outro campo do saber, Diana Maul propõe algo mais complexo: entender como e por que o olhar do outro se organiza de determinada maneira. Não ter consciência desse aspecto fundamental pode levar a grandes equívocos. Afinal, como afirma: “Ao tentar a transposição de métodos e técnicas, desenvolvidos em outros caminhos que não aqueles que estamos habituados a trilhar, é necessário entender seus pressupostos e condições de uso para que qualquer tentativa de fusão não se transforme apenas em confusão metodológica”. Assim, Diana Maul argumenta sobre como a elaboração de um entendimento histórico sobre as doenças impõe a construção de interfaces entre a clínica, a epidemiologia e a própria história. Uma abordagem histórica das doenças não pode prescindir da discussão sobre as diferentes formas de conceituação desses fenômenos, o seu caráter transitório e os limites que tais conceitos suscitam. Ignorar os sinais e sintomas da clínica, os pressupostos da fisiologia, as evidências e padrões estabelecidos pela epidemiologia, as relações ecológicas envolvidas na determinação dos estados patológicos podem levar a proposições interpretativas equivocadas de determinadas experiências históricas. Do mesmo modo, excluir a temporalidade histórica e as transformações que ela implica também pode comprometer profundamente a análise em que se propõe abordar as doenças no transcurso da história das sociedades. Na sequência encontram-se dois textos voltados para a discussão sobre metodologias e fontes utilizadas nesse campo de pesquisa. O primeiro, Ouvindo histórias e memórias: o depoimento oral como fonte, de autoria de Tânia Fernandes, examina as possibilidades oferecidas pela História Oral na exploração de determinadas temáticas e problemas levantados pelas pesquisas do universo da História das Doenças. Além de discutir a importância da História Oral como instrumento de pesquisa, abordando questões relativas à sua prática e à sua justificativa teórica, Tânia Fernandes também reafirma sua utilidade no âmbito dos estudos associados ao tema das doenças, “onde os sujeitos e suas narrativas podem se configurar como fontes analíticas em potencial”. A autora elenca diferentes questões desse campo específico que podem ser tratadas através da produção e análise do depoimento oral, sejam elas 8
relativas a vivências individuais ou coletivas: a perspectiva do doente e a experiência do adoecimento, como os sentimentos e as implicações consequentes do diagnóstico, da cura, da morte; a inserção do doente em grupos sociais como família, escola, trabalho, cidade; as instituições representativas de categorias profissionais, de doentes e de seus familiares; a constituição de políticas públicas de saúde; a produção de saberes e de protocolos de intervenção relacionados às doenças. Além de oferecer uma valiosa contribuição na atribuição de sentidos para essas questões, a História Oral também se configura como um meio para a construção de conjuntos documentais que apóiem e viabilizem a atividade dos pesquisadores nelas interessados. O texto seguinte aborda as potencialidades de uma tipologia de fonte relativamente ainda pouco explorada nos estudos brasileiros sobre a experiência do adoecimento: as narrativas (auto) biográficas, ou narrativas de si. Em Eu gostaria que estas cartas fossem tudo num jornal, para todo o povo saber...: a escrita epistolar como fonte para a história da loucura, Yonissa Wadi propõe através do uso de narrativas pessoais – cartas, diários, blogs – aproximar-se das impressões, opiniões e pontos de vista expressos por sujeitos que em determinada altura de suas existências foram diagnosticados como sendo portadores de alguma doença mental. A narrativa dos loucos, e dos doentes de um modo mais geral, é então instrumento por meio do qual esses indivíduos buscam explicar suas ações, expressar sentimentos, necessidades, negociar possibilidades, contar o dia a dia, realizar algum tipo de catarse, resistir, compartilhar com outrem suas mazelas, enfim, expressar pontos de vistas. Discutindo a inserção dessas novas fontes nos debates suscitados pelas abordagens contemporâneas da História da Psiquiatria – ou História da Loucura – aponta sua utilidade na discussão do próprio conceito de loucura, enquanto uma construção cultural e social que varia conforme o tempo e a sociedade em questão. Tais fontes também lançam novas luzes para a problematização de outras variadas questões, como a experiência da institucionalização, o estabelecimento de diagnósticos, o estigma da “doença” e dos “doentes”, os processos de negociação e resistência estabelecidos entre loucos, médicos e famílias entre outros. Interessante mesmo observar, na argumentação apresentada pela autora, as transformações históricas operadas na própria forma de apropriação 9
desse tipo de relato. Se em meados do século XIX, o incentivo médico na elaboração de tais narrativas pode ser justificado pelo interesse no seu uso como ferramenta para o estabelecimento ou confirmação de diagnósticos preestabelecidos, no final do século XX elas se tornam meio pelo qual a psiquiatria busca entender e agir sobre o que se classifica de loucura. Uma vez que a chamada pós-psiquiatria considera que a origem da loucura pode ser de caráter biológico, sociológico, psicológico ou cultural, as narrativas biográficas assumem então papel fundamental no entendimento do que seja a definição e a descrição da experiência da loucura. Seu texto é assim um convite para repensarmos, a partir desses novos vestígios, algumas proposições mais tradicionais e estabelecidas, quer da História da Psiquiatria, quer da própria História das Doenças. Esse volume dá um destaque especial à História da Poliomielite, visto que 2016 marca as comemorações de 22 anos de erradicação da doença no Brasil. No primeiro texto dedicado à doença, Poliomielite: da emergência aos desafios da erradicação, Eliseu Alves Waldman apresenta um pequeno histórico da doença, abordando desde suas primeiras aparições no mundo antigo até o caráter epidemiológico assumido pela pólio na primeira metade do século XX. Diferentemente do observado em relação às outras doenças infecciosas, que passaram a apresentar uma redução considerável nas taxas de mortalidade e morbilidade nos países desenvolvidos – associada então com a melhoria das condições de vida de suas populações – a poliomielite registrava ocorrências epidêmicas cada vez mais extensas e com uma expressiva ampliação das faixas etárias atingidas. No restante do texto, o autor dá destaque às questões científicas envolvidas no entendimento do comportamento epidemiológico da doença assim como no estabelecimento das estratégias para seu controle e erradicação. Eliseu Waldman sinaliza para o amplo alcance dos impactos originados pela produção de conhecimento científico sobre a doença – especialmente no âmbito da virologia molecular – enfatizando, porém, aquelas associadas às tecnologias de imunização. Ele relaciona as descobertas epidemiológicas sobre a doença na primeira metade do século XX aos avanços do conhecimento na área do laboratório. Em seguida aborda os desdobramentos científicos que levaram ao estabelecimento dos dois tipos de vacina contra a doença 10
na década de 1950: a vacina de vírus inativado, desenvolvida por um grupo de pesquisadores liderados por Jonas Salk, na Universidade de Pittsburgh; e a vacina de vírus vivo atenuado, finalmente estabelecida na sequência de outros estudos preliminares, pelo grupo de Albert Sabin. O autor avança sua análise discutindo o êxito dessas duas iniciativas de controle, apontando, porém, as vantagens da vacina de vírus atenuado para a implantação de um Plano Global de Erradicação da Poliomielite. Por fim, afirma a complexidade desse projeto, diante da reintrodução do vírus em certas regiões do globo e as questões político-sociais implicadas neste novo cenário. Em Poliomielite: as estratégias de controle e erradicação da doença no Brasil (1960-1990), Dilene Raimundo do Nascimento revela como o processo histórico de controle da doença no país esteve associado ao “desenvolvimento e legitimação de políticas públicas nacionais e internacionais, à incorporação de novas tecnologias e às práticas e construções discursivas da medicina”. A autora apresenta algumas breves considerações sobre a etiologia e transmissão da doença, o estabelecimento das vacinas Salk e Sabin na década de 1950, e as epidemias da doença verificadas no país até meados do século XX, verticalizando sua análise em torno das decisões do governo brasileiro na escolha e no estabelecimento de uma estratégia de controle da doença a partir da década de 1970. Os debates e experiências sobre o recurso à vacina no controle da doença já circulavam entre a comunidade médica e autoridades de saúde do país desde a década anterior, entretanto, foram iniciativas de abrangência mais ou menos reduzida e/ou sem continuidade. Nos anos 1970, o governo brasileiro instituiu o Plano Nacional de Controle da Poliomielite, primeira estratégia de âmbito nacional no controle da doença apoiada em campanhas de vacinação, abandonado a partir de 1974 em favor do Programa Nacional de Imunizações, que passou a basear sua atuação na vacinação de rotina pela rede básica de saúde. Uma resposta efetiva ao problema da poliomielite veio apenas na década de 1980, com a criação do Dia Nacional da Vacinação, cuja estratégia baseava-se na vacinação em massa em curto período de tempo e por todo território nacional de menores entre 0-5 anos, duas vezes ao ano. Como mostra a autora, as condições para o controle e erradicação da pólio no Brasil demandaram a existência de um conjunto de circunstâncias que 11
incluíam desde a aquisição de novas tecnologias laboratoriais, passando pelo estabelecimento da vigilância epidemiológica como instrumento de saúde pública, até o desenvolvimento de uma logística para atender à demanda pelo suprimento e distribuição da vacina, mas especialmente negociação e vontade política para a escolha e implementação de uma estratégia de combate à doença. O texto seguinte, Dirty places and dangerous things: Space and place in the History of Polio, de autoria de Naomi Rogers, amplia a abordagem da poliomielite tanto no aspecto espacial, referindo-se à doença nos diversos continentes, como também no temporal, analisando epidemias da doença desde o final do século XIX – Escandinávia, nas décadas de 1880/1890, até manifestações mais recentes, como as epidemias ocorridas na África e na Índia, durante os primeiros anos do século XXI. A autora sugere a possibilidade de estabelecermos a existência de certos fatores comuns às experiências epidêmicas da doença que perpassam diferentes tempos e lugares. Examinando o modo como as autoridades públicas, médicos e a população em geral entendem, explicam e interferem no curso da doença, Naomi Rogers afirma a permanência de uma associação entre a doença e lugares sujos e insalubres e, ainda, coisas/objetos/grupos vistos como intermediários na transmissão da doença e, portanto, potencialmente perigosos. O texto discute brevemente a natureza da doença e traça um pequeno histórico das epidemias durante o século XX, passando pelas duas propostas de imunização lançadas a partir de 1950, pelo projeto de erradicação da doença organizado por organismos internacionais, até as manifestações da doença, existentes ainda nas primeiras décadas de 2000. Naomi Rogers argumenta que a atenção dispensada a aspectos como origem étnica dos indivíduos infectados, os problemas sanitários observados em certas regiões e a presença de insetos vetores, eram na verdade o resultado da recusa em se considerar os fatores epidemiológicos que faziam da pólio uma doença bastante diferente de outras experiências epidêmicas – como, por exemplo, a tuberculose ou a febre tifóide. Ao contrário do que se supunha e, portanto, do que orientavam as abordagens feitas para seu controle, a pólio era uma doença pouco usual, uma doença da limpeza, uma vez que seus impactos e transmissão eram observados especialmente nas áreas que apresentavam 12
melhor grau de saneamento urbano e entre aqueles que experimentavam condições de vida mais favoráveis. Expostos à doença desde cedo e com mais frequência, as populações pobres adquiriam imunidade à pólio, o que não se verificava entre as classes mais ricas, cujos filhos não tinham contato com o vírus durante os primeiros anos de vida. Assim a autora explora as mudanças e as permanências relativas às abordagens e às experiências com pólio. As doenças infecciosas são ainda objeto de outros estudos que compõem essa coletânea, como é o caso do trabalho de Leicy Francisca da Silva, que aborda o imaginário em torno da lepra em O Refúgio dos Rejeitados: literatura e lepra em Goiás. Considerada uma das doenças mais estigmatizantes da história – característica à qual a autora recorre como hipótese para explicar o pequeno número de referências sobre ela na literatura produzida no estado de Goiás – a lepra alcançou grande visibilidade nas últimas décadas, especialmente em função da mudança dos protocolos a serem seguidos diante do diagnóstico da doença, assim como do tratamento dispensado às vítimas do “mal de Hansen”, como, por exemplo, as práticas de isolamento social a que estes estiveram submetidos durantes séculos. Dessa forma, o texto em questão vem somar a um amplo conjunto de trabalhos que tomam a lepra como objeto de investigação – alguns deles presentes em outros volumes desta coleção. Partilhando uma perspectiva de análise que entende a literatura como espaço de produção e expressão de experiências coletivas, capaz de comunicar passado e presente, Leicy Silva explora inicialmente algumas referências literárias mais gerais – José de Alencar (1872), Visconde de Taunay (1872) e Fagundes Varela (1880) – para discutir algumas percepções construídas em relação à doença e aos doentes e às práticas postas em curso frente a ambos: a incurabilidade, a condenação, a proscrição, a violência, a culpa, o anseio pela morte, o (auto)isolamento e a caridade. Práticas que, como defende, continuarão fazendo parte destas representações, mesmo depois de a microbiologia operar uma transformação no modo como a medicina abordava a moléstia até finais do século XIX – substituindo a hipótese da hereditariedade pelo contágio na explicação sobre sua transmissão. Tomando como fontes o livro Tropas e boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos (1917), e o conto de Bernardo Élis, As morféticas (1944), Leicy Silva revela como 13
aquelas velhas percepções encontravam eco no que poderíamos chamar de um “imaginário” – persistente – sobre a lepra e os seus doentes. A autora argumenta por fim que o poder dessas permanências pode ainda ser observado na construção de uma memória e de uma autoimagem entre os próprios doentes, como mostra A vida é um engenho de passagens, de Eguimar Chaveiro, egresso da Colônia Santa Marta. Outra doença de natureza infecciosa focalizada no volume é a pandemia de influenza que flagelou o mundo em fins de 1918, objeto da análise de Liane Maria Bertucci, em A gripe espanhola em imagens e versos publicados nos jornais diários. A autora tem uma extensa reflexão sobre a história da epidemia na cidade de São Paulo, focalizando seus impactos econômicos, sociais e políticos. Neste texto em particular, Liane Bertucci aborda a epidemia a partir de uma perspectiva cultural, discutindo a forma como a experiência da gripe espanhola foi tratada e retratada através de alguns jornais paulistas. Sua análise pauta-se em algumas das proposições feitas por Jean Delumeau (1989), em seu estudo sobre a experiência do medo na sociedade ocidental, com destaque para a ideia de que certas reações provocadas por eventos nos quais a existência social se vê ameaçada podem ser observadas em diferentes experiências epidêmicas através dos tempos. Portanto, as páginas dos periódicos da capital paulista teriam reeditado o que chama de “percepções seculares” em torno de eventos desta natureza, (re)elaborando-as, no dizer da autora, a partir das experiências socioculturais daqueles tempo e espaço. Dentre as imagens analisadas por Liane Bertucci está a identificação da doença como algo estrangeiro, uma ameaça que vem de fora, provocada pelo outro, comum diante destas situações desestruturantes. Essa imagem do “agente externo”, por sua vez, se associa à metáfora militar, bastante manejada na época pelos estudos da bacteriologia e da imonulogia. Termos como inimigo, invasor, marcha, resistência, isolar, combate, foram repetidos à exaustão pelos textos médicos, periódicos e autoridades públicas, assim como pela publicidade. A autora chama a atenção para o fato de que essa linguagem de guerra também combinava com perfeição com a experiência da sociedade paulista naquele ano de 1918. As condições de existência dessa sociedade paulista podiam ser observadas ainda em charges e versos publicados pelos jornais do período, como aqueles da lavra de Miguel Meira, que 14
chamavam a atenção para as condições em que parte da população pobre da cidade vivia, e reproduziam o discurso-médico científico da época que associava saúde e higiene, reforçando ainda o imaginário em construção da medicina como único saber capaz de intervir de forma eficaz na marca da(s) doença(s). O mesmo tema das representações suscitadas pela experiência epidêmica é explorado por Jucieldo Ferreira Alexandre em “O anjo exterminador que flagela o povo: representações sobre o cólera no interior do Ceará em meados do XIX”. O texto é aberto pela referência a uma “matança generalizada de porcos” observada na cidade do Crato nos primeiros dias de fevereiro de 1856. A notícia, divulgada pelo jornal O Araripe – utilizado como fonte privilegiada nessa aproximação com a sociedade cearense de meados do século XIX – associava a ação contra os suínos com a perseguição aos judeus durante a inquisição portuguesa. Assim como o povo judeu foi tomado como bode expiatório dos temores da ira divina pela sociedade portuguesa daquele tempo, os porcos – em sua associação com a imundície e a sujeira – foram identificados como produtores e dissipadores de emanações miasmáticas deletérias, fundamento de uma das teorias correntes sobre a origem das doenças. Como aponta o autor, os eventos observados no Crato repetiam certas práticas violentas contra animais – apontadas por Jean Delumeau (1989) – observadas na Europa durante algumas manifestações da peste negra. Além de reafirmar a ideia de que a doença é mais que um evento biológico ou natural, de que a doença tem historicidade – assumindo os sentidos que a sociedade lhe atribui – o exemplo também sinaliza para as “percepções seculares” apontadas pela historiografia como elemento característico das experiências epidêmicas. Outros ótimos exemplos dessas percepções seculares podem ser observados na transcrição de preces divulgadas através do periódico, com invocações aos santos – como São Roque, São Sebastião e a Virgem Maria – a fim de que intercedessem aplacando a ira divina. Além de ler as referências sobre a epidemia publicadas pelo O Araripe, pelo viés das chamadas “permanências culturais”, o autor também explora o modo como a experiência epidêmica é uma ferramenta capaz de nos revelar questões que vão além do mundo da saúde. Mostra como é o caso das disputas políticas colocadas em 15
evidência, por exemplo, através das críticas dirigidas pelo jornal Pedro II – libelo dos conservadores – ao então presidente da Província, José Bento da Cunha de Figueiredo Junior, cuja atuação foi prontamente defendida nas páginas de O Araripe. A epidemia de cólera de meados do século XIX é também o tema de André Luis Nogueira no texto A epidemia de cólera no Espírito Santo pela lente do Correio da Victória (1855-1856) ou de quando as doenças viram notícias. Como revela o título, o interesse do autor é perceber o modo como aquele periódico abordou essa experiência da epidemia e temas a ela relacionados, como as ações de saúde pública, as teorias médicas em circulação, as hipóteses explicativas sobre o caráter e a origem da doença, as receitas e conselhos populares para livrar-se ou remediar o mal. André Nogueira ancora sua análise em algumas proposições de Charles Rosenberg relativas ao estudo da história das doenças, como a noção de framing – que pressupõe o enquadramento da doença em um determinado contexto histórico para uma efetiva compreensão do seu significado. Dito de outra forma, a percepção de certos “entroncamentos e interações entre o ‘biológico’ e o ‘social’ para a análise das enfermidades como entidades socialmente forjadas, adquirindo especificidades que passam a ser concebidas como reais e particulares numa dada época e contexto social”. Outra proposição de sua análise é entender o jornal – ou aqueles envolvidos em sua criação – como agente político cultural, que tem por função disseminar e construir certas opiniões, percepções ou visões de mundo. Uma vez caracterizado como um jornal de perfil conservador, “‘a serviço’ das elites e do ‘status quo’ político da província”, as notícias veiculadas pelo Correio da Victória necessitam passar pelo crivo de pesquisador, que deve tomar os textos publicados não como dados da realidade, mas filtrados a partir de certas escolhas. Mais do que refletir o que foi a experiência do cólera na província naqueles meados do século XIX, o que as páginas do periódico revelam são as percepções e opiniões informadas pelos interesses dessa camada conservadora. É esse partidarismo que explica a mudança de tom verificada nas páginas do periódico, transitando de uma ênfase no caráter extraordinário e assombroso assumido pela expansão da epidemia quando esta se restringia aos outros continentes, para uma postura me16
nos dramática, até mesmo moderada, quando a doença se aproximava dos arredores da província – postura que se coaduna com outra proposição de Charles Rosenberg, relativa aos atos que compõem o que denomina a dramaturgia epidêmica – nesse caso, o ato da negação do mal. O texto de André Nogueira ainda discute as opiniões emitidas pelas autoridades médicas imperiais, enfatizando a relação da doença com a sujeira, sugerindo que só era vítima da doença aqueles que ignorassem os conselhos dos senhores doutores, sinalizando uma crença difundida na capacidade da medicina em dar resolutibilidade àquela ameaça. O Espírito Santo é ainda cenário para o exame da experiência de outra doença epidêmica: a varíola. No texto Surtos epidêmicos de varíola na Província do Espírito Santo: século XIX, Sebastião Franco Pimentel faz uma breve síntese dos episódios de varíola que flagelam o estado no período, acompanhando as primeiras referências à varíola entre os colonizadores do território capixaba, e aprofundando a análise dos dados relativos às epidemias ocorridas no período Imperial. Baseando-se especialmente na documentação produzida pelas autoridades administrativas imperiais – correspondências da presidência da província e da Inspetoria de Higiene Pública, relatórios de saúde pública, relatórios de presidentes provinciais e documentação depositada no Arquivo Público Estadual do Espírito Santo – o autor desvela como os episódios da doença repercutiram entre as autoridades e a sociedade capixaba, iluminando também alguns aspectos relacionados à difusão da vacinação antivariólica entre a população – a organização do serviço de vacinação e as reações por ele despertadas. Assim, além das epidemias em si, os dados coletados pela pesquisa deixam antever as condições de saúde e de atenção à doença/doentes que prevaleciam na província durante o período imperial, como o número reduzido de médicos, o baixo engajamento daqueles cidadãos designados para o serviço de propagação da vacina, a percepção das autoridades sobre os comportamentos populares frente à obrigatoriedade da vacina, dentre outros. Interessante observar através do texto, como muitas das questões apontadas pelas autoridades capixabas em relação ao medo e resistência popular à vacinação parecem repetir as experiências vivenciadas em outras províncias do império. Comparadas com outros estudos que tematizam 17
a varíola em outras regiões do império brasileiro, é possível afirmar que os dados e questões discutidos pelo autor sugerem mesmo certo padrão quanto à descrição feita pelas diferentes autoridades provinciais a respeito da experiência da epidemia, às dificuldades encontradas por essas autoridades na organização do serviço de vacinação contra a doença, e também quanto à avaliação que fazem da percepção popular sobre doença e sobre a propagação da vacina. A experiência prática no exercício do ofício da cura e as crenças em torno da etiologia e da terapêutica das doenças professadas por um típico médico do interior na segunda metade do século XIX compõem a narrativa de Sônia Maria Magalhães em Das febres em Goyas: as recomendações do Dr. Netto Carneiro no Oitocento. Nascido na cidade goiana de Catalão, em 1851, Netto Carneiro formou-se em medicina na faculdade de Salvador, tendo estagiado em Paris por certo período. Retornando ao Brasil, assentou clínica na cidade de Goiás, onde além da medicina exerceu outros misteres: de militante pelo “saneamento e civilização” do “sertão”, autoridade de saúde municipal à cronista de jornal, de onde surge o manual Das febres em Goyas, compilação de suas crônicas publicadas em 1897. Explorando as opiniões e conselhos divulgados pelo Dr. Carneiro – no que ele próprio chama de “manual”, que visa esclarecer os leitores a respeito da febre palustre que dominava boa parte do território da província e dos métodos para evitá-la e curá-la – Sônia Magalhães nos mostra não apenas as percepções dos contemporâneos sobre as condições de salubridade que reinavam na região de Goiás, mas também as teorias e proposições que embasavam o pensamento médico na segunda metade do século XIX. Aponta ainda para outras questões, como o acesso (escasso) e a crença (baixa) que a população da região tinha em relação aos tratamentos propalados pela ciência médica; os procedimentos médicos realizados naquele período; as disputas que opunham médicos e outros curadores pelo monopólio da cura; as formas de sociabilidade engendradas entre doutores e a sociedade; o imaginário que envolvia os profissionais médicos, reforçando vários elementos do cenário que a historiografia sobre a saúde e a medicina vem estabelecendo nos últimos anos.
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Esse alistamento da classe médica nas fileiras em prol da saúde e do desenvolvimento do país é também o tema examinado em “Pela saúde pública”: educação sanitária e difusão dos princípios higienistas em Uberlândia (1930-50), de Jean Luiz Neves Abreu. Em seu texto, o autor focaliza o papel da educação sanitária como instrumento para levar aos rincões do Brasil a agenda política de saneamento implementada no país após a década de 1930. Tal agenda, como tem mostrado a historiografia, visava o estabelecimento de uma política sanitária que ultrapassasse as fronteiras e os interesses regionais, como prevalecia até então; uma política sanitária destinada à coletividade nacional, abarcando para além das circunscrições estaduais, o território de norte a sul, leste a oeste, capilarizando-se até os municípios. E são os ecos dessa agenda pública de saúde na região do triângulo mineiro que o autor ilumina com sua pesquisa. A política de saúde nascida após a implantação do governo Vargas, em especial após a criação do Ministério da Educação e da Saúde, caracterizouse por uma ação mais sistemática e coordenada no combate aos males que afetavam o país. Essa ação pautou-se em duas frentes: o combate às doenças infecciosas e endêmicas que grassavam pelo território brasileiro – lepra, malária, tuberculose, difteria – através da criação dos serviços especiais; e a disseminação dos preceitos de saúde e higiene através da educação sanitária da população. Para essa última forma de atuação foi mobilizado um conjunto diverso de estratégias objetivando a disseminação de saberes e também o controle dos hábitos da população. Dentre tais estratégias de “comunicação” e difusão dos preceitos considerados saudáveis e higiênicos, o autor dá destaque à imprensa local, que revelando como esta funcionava como meio de articulação entre as elites e as populações locais às diretrizes então emanadas das autoridades sanitárias nacionais. O texto seguinte também examina a elaboração de estratégias em prol da conservação da saúde, movendo-se, porém, do âmbito público para o privado e do século XX para o século anterior. Em Médicos, senhores, e escravos nas ‘plantations’ cafeeiras do Vale do Paraíba fluminense, século XIX, Keith Barbosa no oferece um rico painel de como as questões de saúde dos escravos mobilizaram os grandes proprietários do café em Cantagalo, região serrana da província fluminense. Em sua opinião, a assistência à saúde dos escravos 19
foi uma entre outras estratégias elaboradas pelos grandes proprietários da região no sentido de manter a produtividade de seus plantéis depois de cessado o tráfico em meados daquele século. Edificação de pequenos hospitais, contratação de médicos, cirurgiões e barbeiros, recurso a medicamentos produzidos em boticas e farmácias estiveram entre os arranjos orquestrados pelos senhores da região para assegurar a produtividade. Como nos aponta Keith Barbosa, identificar esse tipo de comportamento entre os senhores não permite inferir uma maior ou menor crueldade do sistema de exploração ao qual esses escravos estavam expostos, mas sim a complexidade alcançada pela sociedade escravocrata envolvida no sistema das grandes lavouras. Ainda segundo a autora, o estudo sobre as questões envolvendo a assistência e a saúde dos escravos também ajuda a iluminar algumas estratégias dos próprios escravos na manutenção da sobrevivência diante da exploração a qual estavam submetidos. Mais que a apresentação de dados quantitativos ou especulações sobre os diagnósticos então realizados, o exame sobre as doenças e as formas de assistência examinados no texto servem como um novo prisma, através do qual se busca refletir sobre a experiência da escravidão e as dinâmicas de sobrevivência engendradas pelos diferentes atores nela envolvidos. Fechando esta coletânea temos o trabalho de Fernando Sergio Dumas dos Santos e Stephanie Godiva Santana de Souza, Processos de cura em Casas de Santo do Rio de Janeiro, que tematiza os saberes e práticas terapêuticas vinculadas às religiões afrodescendentes brasileiras. Os autores defendem que estas religiões conformam um patrimônio cultural no qual se inscreve um sistema de cura, ou sistema médico, envolvendo costumes, crenças, ações e estratégias que são acionadas para o enfrentamento de problemas ligados à saúde da população. Uma vez originado a partir da experiência histórica sincrética vivenciada por essas comunidades religiosas, esse sistema e seu arsenal terapêutico são pensados então dentro dos marcos da medicina tradicional ou do que podemos considerar um sistema de medicina popular, no qual os limites para o entendimento da doença e da cura ultrapassam os aspectos biológicos e ecológicos, envolvendo também a organização política, social e as trocas culturais que perpassam essas sociedades.
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Diferentemente de outros sistemas de medicina, que priorizam o corpo humano no exame sobre o adoecimento e a cura, os sistemas religiosos focalizados pelo trabalho apontam a existência de interferências exteriores – o espírito – o que acaba ampliando significativamente o arsenal de práticas terapêuticas acionado pelos “pais de santo”. Como defendem os autores, a cura é então decorrente de “um equilíbrio entre a espiritualidade (comandada e orientada pelos orixás) e a vida, compreendida como todas as experiências vivenciadas pelo indivíduo ao longo de sua trajetória”. Fernando Santos e Stephanie Souza refletem sobre estes e outros argumentos explorando um variado conjunto de narrativas recolhidas em vídeo histórias produzidas com babalorixás, ialorixás e outros praticantes de diferentes terreiros de umbanda e candomblé do Rio de Janeiro. De modo semelhante ao que podemos observar nos volumes anteriores, as narrativas contidas nesta nova coletânea permitem ao leitor uma visão panorâmica sobre problemas, documentos, métodos, conceitos, escolhas analíticas que têm mobilizado os pesquisadores, ajudando a traçar esse universo variegado de que se compõe a história das doenças. Convidamos então os leitores a explorarem essas diferentes facetas que os estudos dedicados à História das Doenças nos oferecem. Anny Jackeline Torres Silveira Dilene Raimundo do Nascimento Sebastião Pimentel Franco
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História das doenças e epidemiologia: encontros e desencontros Diana Maul de Carvalho1
Introdução O estudo da história das doenças tem se voltado tradicionalmente para a descrição da ocorrência de determinadas doenças em diferentes momentos e em sociedades diversas, especialmente aquelas que ocorrem de forma epidêmica, ou ainda, pela busca de “sinais de antiguidade” de algumas doenças.2 Muitos trabalhos apontam para o papel relevante desempenhado pelas doenças na história dos homens e se referem a esforços direcionados ao seu controle. Com frequência a história das doenças se confunde com o estudo da história da medicina e da terapêutica. Segundo Le Goff (1985), a doença pertence à história porque não é mais do que uma ideia, certo abstrato numa complexa realidade empírica, e pertence não só à história superficial dos progressos científicos e tecnológicos como também à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades. Esta nova história rompe com a hierarquia de fontes que privilegia os registros oficiais e examina todas as evidências disponíveis: todos os documentos, evidências visuais e orais. Amplia o olhar na incorporação dos movimentos coletivos trazendo novas questões metodológicas que permitem 1. Professor Associado do Departamento de Medicina Preventiva - Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2. Ver, por exemplo, COCKBURN,A. The evolution and eradication of infectious diseases Baltimore, Johns Hopkins Press, 1963, e HOPKINS,D.R. Princes and peasants: smallpox in history Chicago, The University of Chicago Press, 1963.
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o diálogo com a epidemiologia e sua análise das doenças nas populações humanas. A consideração de novas fontes traz problemas novos para a historiografia. A história oral, as imagens, os objetos, têm sido fontes utilizadas por outras disciplinas, cujos métodos vêm sendo incorporados à história. O crescimento e difusão de métodos quantitativos é outro aspecto novo e polêmico destas abordagens. Traçamos aqui o esboço de alguns problemas metodológicos da abordagem de um objeto - a doença -, tentando contribuir para a construção de interfaces entre a história e a epidemiologia. Um dos mais famosos textos na história das doenças é a descrição da chamada “peste de Atenas” por Tucídides (1982), general ateniense então no exílio e ele próprio vítima da doença. O momento é o da Guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta, e seus respectivos aliados. Este relato até hoje intriga os médicos e o debate sempre aceso sobre o diagnóstico tem dado origem a inúmeros artigos em revistas especializadas. Li e reli Tucídides muitas vezes para tentar entender o que me parecia sempre um pouco deslocado no seu relato da peste de Atenas. Certamente que não o quadro clínico, descrito de forma brilhante por quem não era médico, mas observador treinado a captar e valorizar detalhes que diferenciam a situação observada de outras superficialmente semelhantes. Também não era a descrição da forma de ocorrência no espaço e no tempo, igualmente fascinante. O que parecia estranho? Reli o texto todo esquecendo meu interesse primeiro no diagnóstico da doença. E consegui ver o que me intrigava. Parece ser quase consenso entre os autores médicos que comentaram esta obra, considerar a peste como um dos fatores decisivos para a derrota ateniense. Tucídides certamente contribui para isso deixando a impressão de uma quase catástrofe, de uma doença de alta letalidade. Algo capaz de ter impacto demográfico. Mas passada a peste, Atenas tem homens válidos suficientes para prosseguir em guerra e com capacidade ofensiva por alguns anos. Invade a Sicília, o que mostra que tinha homens. Aparentemente erra ao fazê-lo, e a partir daí, e não da peste, perde a guerra. Para Tucídides certamente a peste foi uma catástrofe. Mas qual seria a letalidade de uma doença epidêmica que surpreenderia então um ateniense? Possivelmente nada semelhante à letalidade das grandes epidemias medievais ou da influenza, cólera, varíola, tuberculose das cidades do início 24
da industrialização. As hipóteses que levantamos sobre a letalidade modificam as hipóteses diagnósticas. A leitura do quadro clínico nos autoriza a formular uma série de hipóteses. Mas é a leitura do desenrolar da guerra do Peloponeso que nos autoriza a formular hipóteses sobre a letalidade. Se tivesse abordado o texto considerando métodos e técnicas dos historiadores possivelmente não precisaria ler tantas vezes para observar coisas tão óbvias. Ao tentar a transposição de métodos e técnicas desenvolvidos em outros caminhos que não aqueles que estamos habituados a trilhar é necessário entender seus pressupostos e condições de uso para que qualquer tentativa de fusão não se transforme apenas em confusão metodológica. Vivemos hoje um momento de crise que atinge a produção científica na área da saúde. As imensas expectativas geradas pela revolução do conhecimento no final do século dezenove não se concretizam para grande parte dos homens. A ciência parece ter exaurido sua capacidade de gerar uma terapêutica eficaz tanto no plano coletivo como no individual, pelo menos na dimensão que todos esperavam. A reversão de expectativas no controle de grandes endemias de doenças infecciosas ou não; a surpresa da AIDS que nos faz temer novamente a próxima peste - o Ebola? Outros novos vírus? A desilusão progressiva com cuidados médicos individuais de custos crescentes e resultados nem tanto. Tudo parece sinalizar a necessidade de repensar a prática e seus fundamentos. De recolocar questões referentes à mediação entre o biológico e o social. Poder analisar melhor os determinantes das doenças nas populações humanas. Boas razões para aproximar a epidemiologia da história.
Algumas questões teóricas e metodológicas A construção de interfaces de disciplinas científicas enfrenta, entre outras questões, problemas específicos de “tradução” de enunciados. Para se construir um discurso comum é necessário explicitar o significado de conceitos centrais a essa construção sob pena da polissemia originar um discurso aparentemente complexo, mas com muita frequência, apenas confuso e nulo de potencial analítico. A história da medicina e a discussão das doenças numa perspectiva histórica impõem a construção de um diálogo entre os discursos da clínica, da epidemiologia e da história. 25
Entrevistas Referências Entrevista com D. Hercília, realizada em 14 de Abril de 2010, em Santa Cruz, Rio de Janeiro. Entrevista com D. Maria, realizada em 14 de Abril de 2010, em Santa Cruz, Rio de Janeiro. Entrevista com o Sr. Rubem Confete realizada em 15 de Abril de 2010, no Centro Cultural Pequena África, no Rio de Janeiro. Entrevista com o Sr. José Carlos Gentil da Silva realizada em 03 de dezembro de 2010, na Federação Brasileira de Umbanda, no Rio de Janeiro. Entrevista com Pai Luiz D’Omolu realizada em 10 de junho de 2011, em Cosmo, Rio de Janeiro. Entrevista com Pai Yango d’Obaluaê realizada em 14 de junho de 2011, em Anchieta, Rio de Janeiro. Entrevista com Mãe Celina realizada em 29 de agosto de 2011, no Centro Cultural Pequena África, Rio de Janeiro. Entrevista com a Sra. Ely Arcanjo realizada em 26 de setembro de 2011, na Tijuca, Rio de Janeiro. Entrevista com o Sr. Miguel Arcanjo realizada em 26 de setembro de 2011, na Tijuca, Rio de Janeiro. Entrevista com o Pai Elson realizada em 28 de setembro de 2011, na Penha, Rio de Janeiro. Entrevista com o senhor Benedito Sergio de Almeida Alves em 28 de setembro de 2011, no Rio de Janeiro.
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FORMATO: 15,5cm x 22,5cm | 360 p.
TIPOLOGIAS: Minion Pro, Myriad Pro PAPEL DA CAPA: Supremo 250g/m2
PAPEL DO MIOLO: Chambril Avena 80g/m2 AUXILIAR DE PRODUÇÃO EDITORIAL: Marina Oliveira DIAGRAMAÇÃO: Peter de Andrade
PROJETO GRÁFICO DE CAPA: www.ideiad.com.br REVISÃO DE TEXTOS: Cláudia Rajão