AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O CINEMA VOLUME 2: ESTADO E CONFLITOS INTERNACIONAIS

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As Relações Internacionais e o Cinema Volume 2: Estado e Conflitos Internacionais

ORGANIZAÇÃO

Cristine Koehler Zanella Edson José Neves Júnior


Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Cristine Koehler Zanella, Edson José Neves Júnior Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj R321 v.2 As relações internacionais e o cinema, volume 2 : estado e conflitos internacionais / organização Cristine Koehler Zanella , Edson José Neves Júnior. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2016. 328 p. : il. ; 23 cm. (As relações internacionais e o cinema ; 2) ISBN 978-85-8054-312-4 1. Cinema - História. 2. Cinema - Aspectos políticos. 3. Relações internacionais. 4. Poder (Ciências sociais). I. Zanella, Cristine Koehler. II. Neves Júnior, Edson José. III. Série. 16-35401 CDD: 306.4 CDU: 392.6

Con se lh o e d itorial Cole ção Re laçõe s In te rn acion ais Tullo Vigevani | UNESP Shiguenoli Miyamoto | UNICAMP Carlos Moneta | Universidad Tres de Febrero, Argentina Janina Onuki | USP Francisco Monteoliva Doratioto | UNB

Fin o Traço Ed itora ltd a . Rua Nepomuceno 150 | Casa 3 | Prado | CEP 30411-156 Belo Horizonte. MG. Brasil | Telefone: (31) 3212-9444 finotracoeditora.com.br


Os autores deste volume  9 Prefácio - Cinema, Literatura e Política  15 Eiiti Sato Apresentação  31 Conquista Espacial, Robótica e as Guerras

1  “Gravidade”: a exploração do espaço e a disputa pela fronteira final  43 Cristine Koehler Zanella

2  “RoboCop”: digitalização, segurança e robôs militares no século XXI  69 Thiago Borne Diego Canabarro Economia, Cidadania e a Guerra Contemporânea

1  “Elysium”: a relação entre tecnologia militar, conscrição e cidadania em um futuro distópico  93 Edson José Neves Júnior João Arthur da Silva Reis

2  “O Batalhão Perdido”: a Grande Guerra e a mudança na face da batalha contemporânea  117 Érico Esteves Duarte Guerras de um Passado Distante

1  “Rastros de ódio”: a ‘guerra selvagem’ na história dos Estados Unidos  131 Arthur Lima de Avila

2  “A Batalha de Argel” e o cinema agente da história: luta revolucionária e transformação social  145 Alexandre Maccari Ferreira


Guerras de um Passado Recente

1  “Iluminados pelo fogo”: a guerra das Malvinas no cinema argentino  163 Maurício Santoro

2  “007 contra SPECTRE”: uma avaliação à luz da teoria realista ofensiva de cooperação em defesa  177 Lucas Pereira Rezende Inteligência, Propaganda e as Guerras

1  “A vida dos outros”: instituições totais e a (des) humanização dos sujeitos  199 Roberto Goulart Menezes Ana Tereza Reis da Silva

2  “A Conquista da Honra”: imagens para vencer a guerra  215 Nilo André Piana de Castro Identidade, Cultura e os Conflitos Internacionais

1  “Drácula de Bram Stoker” e o horror ao estrangeiro  245 Silvia Ferabolli

2  “O dia em que o Brasil esteve aqui”: uma reflexão sobre poder brando, operações de paz e política externa brasileira  257 Danilo Marcondes de Souza Neto Fim da Guerra Fria e as Novas Dinâmicas Securitárias

1  “5 Dias de Guerra” para além do cliché hollywoodiano: uma análise dos impactos no jogo político internacional  281 Larlecianne Piccolli

2  “O Senhor das Armas”: o fim da Guerra Fria e os conflitos africanos  303 Alessandra Scangarelli Brites Mamadou Alpha Diallo


À Jaqueline Maissiat e à Valquíria Camboim Edson À Maria Carolina Beraldo Cristine



Os autores deste volume

Eiiti Sato. Formado em Economia pela FAAP/SP, Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Cambridge (U.K.) e Doutor em Sociologia pela USP. É professor do Instituto de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (IREL/UnB) onde exerceu a Direção de 2006 a 2014. Atualmente chefia a Assessoria Internacional da UnB. Foi o primeiro Presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI, de setembro de 2005 a julho de 2007. Cristine Koehler Zanella. Doutora em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Doutora em Ciências Políticas pela Universidade de Gent (UGent), Bélgica. Mestre em Integração Latino-Americana, bacharel em Direito e em Economia, todos pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professsora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisadora associada do Departamento de Direito Público da Universidad Bernardo OHiggins (UBO), Chile. Edson José Neves Júnior. Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais, Mestre em Relações Internacionais, Especialista e Graduado em História, todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como professor de Relações Internacionais na Universidade Vila Velha (UVV), no Espírito Santo. Alessandra Scangarelli Brites. Graduada em jornalismo (2007) e especialista em Política Internacional (2010) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais (2013) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Concentrou seus estudos na política externa da Rússia e da China, além das relações estabelecidas entre o grupo BRICS. Atualmente trabalha na área do audiovisual, objetivando realizar projetos que envolvam as Relações Internacionais e a Mídia. 9


Alexandre Maccari Ferreira. Docente do curso de História do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), onde também atua no curso de Jornalismo. Pesquisador de História do Cinema,possui Mestrado em Integração Latino-Americana (UFSM, 2008), Especialização Literatura Brasileira (UNIFRA, 2002), Graduação em História (UFSM, 2006) e em Letras Português (UNIFRA, 2000). Organiza a coleção “Uma História a cada Filme”, que já conta com 4 volumes de artigos de autores que dedicam reflexões à sétima arte. Ana Tereza Reis da Silva. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (FE/PPGE/UnB). Desenvolve pesquisas em: Pluralismo epistêmico e diálogo de saberes; Interculturalidade e pensamento decolonial; Currículo, diversidade, identidade e diferença; Educação em Direitos Humanos. Arthur Lima de Avila. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É mestre e doutor em História pela mesma universidade. Sua tese de doutorado, “Território Contestado: a reescrita da história do Oeste norte-americano (c.1985-c.1995)” obteve o Prêmio CAPES de melhor tese em História defendida em 2010. Danilo Marcondes de Souza Neto. Doutorando no Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de Cambridge e bolsista da CAPES/ Cambridge Trust. Danilo é bacharel e mestre pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/ PUC-Rio) onde foi professor entre 2010 e 2012. Suas áreas de interesse incluem: política externa brasileira, operações de paz e cooperação Sul-Sul. Diego Canabarro. Doutor em Ciência Política, mestre em Relações Internacionais e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisa nos campos de política Internacional, governança digital e governança da Internet. É pesquisador do GT Governança Digital do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (CEGOV) da UFRGS. Atualmente, trabalha na Diretoria de Assessoria ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto br (NIC.br).

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Érico Esteves Duarte. Professor de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi pesquisador visitante do Centro Corbett de Estudos sobre Política Marítima do Joint Services Command and Staff College do Reino Unido (2016), do Instituto para Estudos de Paz e Políticas de Segurança da Universidade de Hamburgo (2015) e ocupou a Cátedra Rui Barbosa de Estudos Brasileiros da Universidade de Leiden, Holanda (2013). Doutor (2009) e Mestre (2003) em Ciências da Engenharia da Produção pela Universidade do Brasil, Coppe/ UFRJ, Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (1999). João Arthur da Silva Reis. Mestrando do Programa de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2015/02). Atualmente é bolsista CAPES e pesquisador associado do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE). Já atuou como bolsista de Iniciação Científica e de Extensão do CNPq. Larlecianne Piccolli. Mestre e doutoranda em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEEI/ UFRGS). Bacharel em Relações Internacionais pela Faculdade América Latina/FAL e em Turismo pela Universidade de Caxias do Sul/UCS. Pesquisadora associada do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE). Realiza estudos sobre Política Externa e de Segurança da Rússia. Tem interesse nas áreas de Segurança Internacional, Política Internacional e Estudos Estratégicos. Lucas Pereira Rezende. Doutor em Ciência Política (UFRGS), mestre e bacharel em Relações Internacionais (PUC Minas). É professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC. No biênio 2014-2016 é Secretário-Executivo da Associação Brasileira de Estudos de Defesa e Editor-Chefe da Revista Brasileira de Estudos de Defesa (RBED). É autor de artigos em periódicos e de livros na área de Relações Internacionais, Ciência Política e Estudos de Defesa.

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Mamadou Alpha Diallo. Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (2015) e mestre em ciências Políticas (2011) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui graduação em Administração de Empresas (2008) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor Adjunto de Relações Internacionais e Integração da Universidade Federal de Integração Latino-Americana. Coordenador adjunto do Curso de Especialização em Relação Internacional Contemporânea. Maurício Santoro. Doutor em Ciência Política pelo Iuperj e professor-adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi pesquisador-visitante na Universidade Torcuato di Tella (Buenos Aires) e na New School University (Nova York). É autor do livro “Ditaduras Contemporâneas” e tem mais de trinta artigos publicados em coletâneas e revistas acadêmicas. Nilo André Piana de Castro. Doutor em Ciência Política pela UFRGS, possui licenciatura e bacharelado em história pela UFRGS e mestrado em história pela PUCRS. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: Cinema e História; Cinema e Ensino de História; Televisão. História e Política. É professor de História no Colégio de Aplicação da UFRGS Roberto Goulart Menezes. Doutor em Ciência Política (USP), professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais (PPGRI-UnB) e Coordenador de Graduação do Curso de Relações Internacionais/IREL-UnB e do Núcleo de Estudos Latino-Americanos. É membro da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo. Silvia Ferabolli. Doutora em Política e Estudos Internacionais pela School of Oriental and African Studies, SOAS, University of London. É autora dos livros Arab regionalism: a post-structural perspective (Routledge Studies in Middle Eastern Politics 2014) e Relações Internacionais do Mundo Árabe (Juruá 1ªed. 2009; 2ªed. 2013). Concentra sua agenda de pesquisa nos estudos de regionalismo árabe e interregionalismo árabe-sul americano.

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Thiago Borne. É doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Formou-se bacharel em Relações Internacionais e mestre em Ciência Política pela mesma instituição. Além disso, é pesquisador do GT Políticas de Defesa, Inteligência e Segurança e do GT Governança Digital do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (CEGOV) da UFRGS. Pesquisa na área de segurança internacional, com ênfase em segurança cibernética e sistemas militares robóticos.

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Prefácio Cinema, Literatura e Política Eiiti Sato1

Ao receber o convite de Cristine K. Zanella e Edson J. Neves Jr., organizadores deste 2º Volume de As Relações Internacionais e o Cinema, para escrever um prefácio, o primeiro sentimento, obviamente, foi de grande satisfação. Para qualquer professor é uma alegria ver-se reconhecido por seus pares e poder acompanhá-los em uma jornada acadêmica feita de entusiasmo e gosto pelo conhecimento. Embora não tenha tido a felicidade de conhecer todos os demais participantes que escreveram ensaios para este volume, sei que a maioria é jovem e entusiasta da ideia de que, ser professor, é mais do que comparecer à sala de aula e ministrar seus ensinamentos sobre conceitos e teorias. É preciso também ensinar a olhar e apreciar o mundo com suas belezas e suas mazelas, a partir de seu campo do conhecimento, como tem feito Roberto Goulart Menezes, meu colega aqui na UnB e que, neste volume, escreveu, juntamente com Ana Tereza Reis da Silva, o ensaio sobre o filme A Vida dos Outros. Com esse espírito concluí que a melhor forma de iniciar minha apresentação seria tornando público meu reconhecimento a quem um dia me chamou a atenção para pensar na arte do cinema como um valioso acervo para ser explorado e desfrutado. Na época, estudante de graduação na Universidade de Brasília, Veronika Miranda foi quem chamou minha atenção para o valor e a utilidade da arte cinematográfica para o campo de estudo das relações internacionais. Conversamos sobre o assunto e Veronika propôs a realização de uma série na qual seriam exibidos filmes que pudessem suscitar reflexões interessantes sobre política internacional, da mesma forma que os organizadores 1. Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

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desta obra em dois volumes o fizeram. A série foi denominada “Política e Pipoca” e, após cada exibição, algum especialista ou simplesmente algum convidado, observador arguto da política, discutia com os estudantes as facetas mais interessantes e sugestivas que ligavam o filme a fenômenos passados ou presentes nas relações internacionais. A série “Política e Pipoca” acabou se tornando uma disciplina associada ao curso, passou a se chamar “Cinema, Literatura e Política” e ganhou também o concurso do professor Luiz Daniel Jatobá, recém chegado na UnB, que também viu na iniciativa todo o potencial pedagógico e analítico da iniciativa. Além da valiosa contribuição intelectual, o professor Daniel Jatobá deu mais regularidade e sistematicidade ao programa. É importante notar que a iniciativa foi de uma aluna de graduação que, com sua inteligência atenta, seu senso de iniciativa e sua vontade de avançar seus conhecimentos, era sempre um estímulo aos professores para que melhorassem suas formas de ensinar e de refletir sobre seu objeto de estudo. Depois da UnB, Veronika fez Mestrado em “Integrated Water Management” na Universidade de Queensland, na Austrália, e hoje faz doutorado na Universidade de Boston em “Global Governance and Human Security”. Ao receber a incumbência de prefaciar esta obra, pensei em assistir (ou rever) os filmes constantes desta interessante série e, em seguida, discutir um pouco as apresentações escritas para cada um dos filmes, no entanto, pensando melhor, concluí que seria melhor deixar aos leitores que percorressem as páginas do livro e desfrutassem, eles próprios, os comentários escritos pelos autores; todos muito instrutivos e notavelmente sugestivos. Penso que a ideia da obra é que os leitores realmente comparem suas próprias visões com os autores dos ensaios que compõem a presente obra. Assim, como introdução, me pareceu mais interessante compartilhar com os leitores algumas reflexões sobre a arte do cinema em suas múltiplas conexões com o mundo em que vivemos, onde a política internacional vai se tornando cada vez mais relevante para os indivíduos e para as sociedades. A variedade de culturas continua sendo uma marca relevante da realidade internacional, mas a interação econômica, social e, consequentemente política, tornou regiões e culturas distantes muito mais próximas e mais familiares umas às outras.

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Neste mundo em que a globalização se aprofunda, a arte cinematográfica revela-se notável por sua capacidade de retratar em imagens tanto os aspectos positivos dessa aproximação de povos e culturas quanto o lado problemático desse fenômeno. Dessa forma, essa faceta do cinema constitui o objeto deste breve ensaio.

O cinema como instrumento de reflexão e de humanização da política Por várias razões o emprego do cinema como ferramenta de aprendizado e de reflexão se afigura interessante e útil para todos os campos do conhecimento, sendo notavelmente eficaz para o caso das Relações Internacionais. A primeira razão reside no fato óbvio, mas nem sempre adequadamente percebido, de que as grandes questões da política internacional estão longe de se constituírem em fenômenos lineares. Fenômenos como a formação de alianças, o desencadeamento de conflitos, o jogo de interesses ou a ocorrência de fluxos migratórios são sempre fenômenos muito complexos, envolvendo percepções e fatores culturais que vão muito além das motivações políticas e econômicas, embora frequentemente apontadas pelos analistas como fatores decisivos. Há, com efeito, muitos casos em que a análise construída sobre hipóteses teóricas e dados estatísticos não se revela suficiente para se entender adequadamente um problema em questão. O Professor Russell Mead, em conferência ministrada recentemente na Universidade de Brasília, dizia que o jovem, quando começa a estudar política internacional, tende a dar muita ênfase às teorias, mas à medida que vai conhecendo melhor a história – ou seja, os fatos – a teoria já não parece suficiente para lhe dar tanta certeza em suas análises.2 As mudanças que ocorrem continuamente no cenário internacional e os elementos imponderáveis parecem crescer de importância como fatores capazes de influenciar o curso dos acontecimentos reforçando, assim, a necessidade de se desenvolver a capacidade de discernimento, que é uma faculdade que depende tanto do estoque de conhecimentos teóricos acumulados quanto 2. A conferência foi proferida no dia 1o de junho por Walter Russell Mead cujo tema era a crise mundial corrente.

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da sensibilidade em perceber nuances e particularidades difíceis de serem captadas adequadamente apenas pelas formulações teóricas. Pode-se dizer que enquanto as teorias procuram identificar lógicas gerais que estariam orientando os fatos, as artes mostram o que há de individual, de único, nos acontecimentos. Em suma, se a teoria procura extrair dos fenômenos o que há de mais geral e de mais essencial nas motivações que podem explicar os processos envolvidos e as consequências geradas, pode-se dizer que a arte, em larga medida, percorre o caminho inverso, isto é, mostra o que há de particular, de único, em seus processos e em seus personagens a partir do que, nosso entendimento compara os fatos com possíveis conclusões gerais. Assim, as artes – em especial o cinema – ajudam a compreender melhor essa região difusa situada entre a esfera individual e os eventos e as transformações sociais e políticas que marcam e condicionam a existência das pessoas. Ou seja, entre os aspectos mais notáveis do cinema como instrumento de reflexão, pode-se dizer que é a sua capacidade de mostrar a dimensão humana dos fenômenos internacionais. A história registra inúmeros casos em que, em nome de ideologias que prometiam felicidade geral neste mundo ou em um mundo próximo, tiranias foram estabelecidas e nações foram levadas ao conflito, a liberdade foi suprimida e, por anos a fio, a população foi condenada a viver na miséria. De uma forma geral, pode-se dizer que a teoria, assim como as ideologias, alimenta-se de construções lógicas que explicam visões acerca da grandeza ou da felicidade dos povos, mas a vida humana tem seu próprio curso e seu próprio ritmo, e as obras de arte têm a faculdade de exibir a realidade em sua individualidade, que é o verdadeiro domínio da condição humana. Por outro lado, é preciso considerar também que as ideologias, assim como as teorias, são inerentes à natureza humana. Mesmo um indivíduo bastante simplório, ainda que intuitivamente, não pode deixar de construir para si algum tipo de sistema lógico que coloque a si e ao seu mundo dentro de algum tipo de ordem mais geral. Dessa forma, conciliar essas duas realidades é uma necessidade e, uma vez que o estudante, o pesquisador, vive essencialmente no mundo das teorias, as artes – e o cinema em particular – têm a virtude de chamar a atenção para o que é humano e, portanto, individual.

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Em um filme, para que seja verossímil, o comportamento dos personagens deve apresentar a riqueza e a dramaticidade da vida das pessoas reais, que são atormentadas por medos, apreensões, desejos e até por frustrações acumuladas ao longo dos anos, que marcam a condição humana na vida real. Há histórias que envolvem personagens heroicos ou vilões extremamente maus, no entanto, nesses casos, o próprio leitor irá interpretar o sentido e o significado figurado das ações de tais personagens. O escritor romeno Constantin Virgil Gheorghiu dizia que, na existência humana, o heroísmo não passa de um acidente, e os homens não são autênticos nos acidentes.3 Os acidentes geralmente revelam o caráter e a condição das pessoas, que podem comportar-se como heróis, como covardes, ou ainda serem indiferentes, mas as pessoas não vivem nos acidentes. Em seu diaadia, as pessoas estudam, trabalham, formam famílias, vivem seus sonhos e suas decepções, mas podem ter o curso de suas vidas alterado radicalmente por acontecimentos acidentais que as obrigam a reagir. O mundo da política é pródigo em produzir acidentes que, na maioria das vezes, acabam por se tornar palcos onde os homens são levados a exibir suas fraquezas, temores e por vezes, ainda que involuntariamente, atos heroicos. Em outras palavras, os acidentes produzidos pela política nacional ou internacional transcendem a esfera do indivíduo condicionando sua existência e suas perspectivas. Na Síria, hoje conflagrada, as tragédias humanas se sucedem. O proprietário de um pequeno negócio que dava sustento à sua família, repentinamente se vê desprovido de tudo e, do mesmo modo, grandes empreendedores perdem seus negócios e deixam de absorver dezenas ou centenas de trabalhadores de todos os níveis, enquanto jovens estudantes não encontram em seu país nem motivação e nem oportunidade para seguir seus estudos pensando em aplicar futuramente seus conhecimentos. Jovens estudantes ou experimentados profissionais, não importa, diante do “acidente” produzido pela política, passam a visualizar o abandono de seu país e, por vezes, da sua própria família, como única saída. No Direito Internacional, tem sido recorrente a discussão sobre a caracterização do indivíduo como objeto de Direitos. Esse problema tem ganhado importância especialmente dentro da 3. C. VIRGIL GHEORGHIU, A Casa de Petrodava. Livraria Bertrand, Lisboa, 1961 (p. 216).

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temática dos Direitos Humanos.4 No limite, a política e as instituições são construídas por indivíduos e com o objetivo de prover o indivíduo, chamado de cidadão, de mecanismos que o proteja tanto das intempéries quanto de problemas originados da convivência em sociedade. O paradoxo é que, se de um lado, políticas que resultam em atrocidades são conduzidas por indivíduos e por lideranças que ocupam as posições de comando de governos, de outro lado, o indivíduo é, em última instância, o beneficiário ou a vítima da aplicação das normas nacionais e internacionais. Com certeza, os acontecimentos mais recentes na Síria e seus desdobramentos sobre a política europeia hão de servir de tema para filmes que irão mostrar algumas tragédias vividas por indivíduos de carne e osso e que, certamente, irão impactar nossas percepções e nossas consciências, e também algumas visões teóricas que procuram explicar a natureza e os fundamentos das partes envolvidas no conflito. A cinematografia exibe uma quantidade notável de filmes que mostram essa difícil relação entre a esfera da política, a esfera do indivíduo e o mundo das explicações teóricas.

O cinema, o teatro e a literatura As artes têm a faculdade de exercitar e desenvolver a sensibilidade das pessoas ao trazer as emoções e o senso estético para compor o quadro das percepções. A relação entre a verdade, o bem e a beleza, é uma noção que desde a Grécia de Platão tem ocupado a mente dos filósofos. Os poetas românticos do século XVIII e XIX diziam que, diante de uma situação, nem sempre é fácil distinguir o certo do errado, entre o bem e o mal, e, ainda pior, como fazer a escolha entre dois ou mais bens desejáveis? A resposta seria: escolha o mais belo. Assim, as artes têm essa virtude de aprimorar o que costumamos chamar de discernimento, que é uma faculdade rara, mas essencial na vida dos indivíduos e das sociedades. O discernimento permite 4. A Corte Interamericana de Direitos Humanos vem construindo uma vasta jurisprudência sobre a proteção dos direitos de indivíduos diante das instâncias estatais. Mesmo na Corte Internacional de Justiça (Haia), uma instância fortemente voltada para as questões que emergem entre Estados, a figura do indivíduo tem se tornado cada vez mais relevante na construção de suas decisões. Ver A. A. CANÇADO TRINDADE. El Ejercicio de la Función Judicial Internacional - Memorias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 3rd ed., Belo Horizonte/Brasil, Edit. Del Rey, 2013.

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que o caminhante, diante de um lago de aparência aprazível, perceba que sob a superfície tranquila das águas existe um mundo diferente e que pode representar perigos desconhecidos. O lendário Ulisses formulou o estratagema que venceu Troia. Sua hipótese era a de que, após dez anos de cerco e de tentativas de invasão frustradas, as muralhas da cidade deveriam ser reconhecidas como intransponíveis e, em consequência, era preciso entender que os troianos só poderiam ser derrotados em seu discernimento. Era preciso considerar que para além das muralhas havia pessoas que não poderiam agir de outra forma a não ser como seres humanos com todas as suas virtudes e fraquezas. Dessa forma, por orgulho ou por negligência, o grande cavalo de madeira, mandado construir por Ulisses, foi levado pelos próprios troianos para dentro das muralhas. Conforme a lenda, de dentro do cavalo, à noite, saíram os soldados que iriam abrir os portões da cidade para os exércitos gregos que, sorrateiramente, aguardavam do lado de fora. O poema de Homero, cheio de elementos simbólicos, nos permite também interpretar, figurativamente, que o estratagema do cavalo de madeira foi uma maneira de penetrar as defesas visíveis dos troianos. Além da muralha, a força moral, as habilidades guerreiras e a bravura da resistência troiana só poderiam ser vencidas pela astúcia de um Ulisses que era capaz de ver para além das aparências. Nesse quadro, as artes – em especial o cinema – ajudam a captar a complexidade dos fenômenos internacionais que, tal como tudo que se refere à natureza humana, são feitos de desenvolvimentos cheios de ambiguidades e até de contradições. Na medida do possível, como Ulisses, é preciso ir além das muralhas aparentes e conhecer o que se esconde por debaixo das manifestações mais visíveis e, nesse esforço, nada mais útil e eficaz do que a literatura e o cinema. Aliás, o cinema, tal qual o teatro é uma arte que caminha pari passu com a literatura. Na literatura, alguns autores como Walter Scott, na Inglaterra, e Alexandre Herculano, em Portugal, inauguraram o romance histórico como gênero literário. Nesse gênero, o autor cria personagens e histórias ambientando-as em contextos históricos reais minuciosamente estudados como Ivanhoe, ambientado na Inglaterra de João Sem Terra e Ricardo III, e Eurico, o Presbítero, um personagem que se move na Península Ibérica do século VIII, 21


quando os muçulmanos desencadearam a invasão da Espanha e de Portugal derrotando os visigodos que, séculos antes, tinham se instalado na península vindos do leste e do norte da Europa. Com toda certeza, muitos leitores se emocionaram e se identificaram com os personagens, vivendo suas angústias e também suas vitórias e, por essa razão, por meio dessas obras, entenderam melhor os tempos de Ricardo Coração de Leão e o impacto da chegada dos muçulmanos na Península Ibérica. Os livros de História stricto sensu, são escritos de forma fria sem o sabor humano de personagens como Ivanhoe, Lady Rowena, Brian de Bois-Gilbert, Isaac de York e sua filha Rebecca, ou como Eurico, Teodorico e Hermengarda que amam, que sentem medo e que se beneficiam ou sofrem as consequências de práticas e de instituições que governavam a vida das pessoas naqueles tempos. Maurice Druon escreveu sua série “Os Reis Malditos” contando a história do rei Felipe o Belo, e de sua descendência como um alentado romance sem, contudo, deixar de ser um historiador bastante criterioso em suas fontes e em suas descrições de fatos, lugares e personagens.5 Nessa obra, além de Felipe o Belo, figuras centrais na história da França e da Inglaterra como o templário Jacques de Molay, os reis Eduardo II e Eduardo III, a rainha Isabel de França, o Conde D’Artois, os Tolomei, o Conde Roger Mortimer, o Conde Jean de Hainaut, a família Cressay, entre tantos outros, formam um verdadeiro elenco de personagens, todos muito humanos em suas virtudes e fraquezas, em torno dos quais se forma o quadro político que, afinal, desemboca na Guerra dos Cem Anos. É impossível ler a obra de Druon sem se emocionar com o sofrimento e o desespero de Jacques de Molay, abandonado pelo Papa Clemente, torturado e depois queimado como herege diante do palácio real. Também é impossível deixar de pensar na posição da mulher na sociedade daqueles tempos, quando se acompanha as angústias de Isabel de França, filha de Felipe o Belo e que, muito mais do que seus três irmãos, foi a verdadeira herdeira da personalidade e dos talentos para as questões de Estado, que fizeram de seu pai um dos grandes reis de França. Apesar de tudo, na França do início do século XIV, a Lei Sálica fora recuperada e não permitia que a mulher fizesse parte da linha de sucessão real. Isabel foi, assim, forçada a casar-se 5. M. DRUON, Os Reis Malditos, Editora Bertrand Brasil, R. de Janeiro (7 vols.), 4ª. Edição 2007 (Paris 1955-1977).

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com o rei Eduardo II, que era homossexual e sem nenhuma das virtudes requeridas para o estadista. Pode-se dizer que o cinema complementa a literatura com imagens. De certa forma ao ler obras como as de Walter Scott, Alexandre Herculano e Maurice Druon, é impossível evitar que nossa imaginação voe dando formas vivas e candentes a personagens, a lugares e a cenas de batalha. Assim, logo os produtores de cinema perceberam a similitude e a complementaridade entre a arte da literatura e a arte cinematográfica. Com efeito, em sua maioria, os filmes são derivados de “novels”, que são histórias e obras literárias escritas em prosa e alguns dos filmes mais notáveis foram feitos a partir de livros de grandes autores como Rudyard Kipling, Mark Twain, Victor Hugo, Charles Dickens, Jane Austen e as irmãs Brontë. Alguns autores tiveram sua popularidade substancialmente aumentada depois que seus livros foram transformados em filme como foi o caso de Robert Louis Stevenson (A Ilha do Tesouro, várias versões), Herman Melville (Moby Dick, 1956, 2010) e Margareth Mitchell (E o Vento Levou, 1940). Há casos em que o filme tornou-se um grande sucesso, embora o autor da obra literária que lhe serviu de base tenha permanecido relativamente na sombra, como foram os casos de Murray Burnett & Joan Alison (Casablanca, 1944), Samuel A. Taylor (Sabrina, 1955, 1995), Colette (Gigi, 1959), Pierre Chordelos de Laclos (Ligações Perigosas, 1988). O trabalho do roteirista, que faz a adaptação da obra literária ao cinema, é essencial para o bom resultado da transposição da obra literária para as telas. O roteirista não pode simplesmente transportar a obra escrita para o cinema, inclusive porque a história escrita pelo autor em centenas de páginas deverá ser contada para o espectador em cerca de duas horas de projeção. Cenas e diálogos devem acompanhar a história original, mas procurando aproveitar todo o potencial que as técnicas cinematográficas oferecem. Mesmo nos casos de peças escritas para o teatro, o trabalho de adaptação é essencial. O cinema não pode ser entendido como um teatro filmado. Ninguém nega as virtudes de Tennessee Williams como dramaturgo, ganhador de vários prêmios por ter produzido peças como Um Bonde Chamado Desejo (1948) e A Rosa Tatuada (1952). Apesar de tudo, sua peça Gata em Teto de Zinco Quente (1955), que foi levada para o cinema em 1958, 23


ficou muito longe do sucesso obtido pela peça encenada na Broadway. Por outro lado, a peça Pygmalion escrita por Bernard Shaw em 1912, embora tenha sido levada para o cinema em 1938 com roteiro escrito pelo próprio Bernard Shaw, o grande sucesso no cinema dessa obra veio bem mais tarde, em 1964, na forma do musical My Fair Lady, adaptado por Alan Jay Lerner. Apesar de tudo, não é possível creditar o sucesso apenas à feliz adaptação feita por Alan Jay Lerner, pois contou também com a competente direção de George Cukor, à trilha musical verdadeiramente antológica de Frederick Loewe e foi estrelada por uma Audrey Hepburn no auge de seu carisma e um Rex Harrison, um perfeito professor inglês, de fonética e linguística. O fato é que o filme conquistou nada menos do que 8 (oito) Oscars, incluindo o de melhor filme. De uma forma geral, a força dramática da arte cênica, tradicionalmente, tem sido percebida como parte integrante do que se pode chamar de discussão e reflexão sobre a realidade social e política e da própria condição humana. Há mais de dois milênios as tragédias gregas criticavam a política e a sociedade e discutiam os paradoxos da condição humana. Na saga de Édipo, em meio ao intrincado jogo da política emerge o homem, fadado a viver seu destino cruel e irrevogável de um ser em busca de uma felicidade que só pode ser encontrada em momentos efêmeros e em meio a desejos insatisfeitos. O debate das grandes questões humanas e sociais iria continuar até nossos dias numa longa trajetória que incluiu Shakespeare, Racine, Molière, Bjornson, Ibsen, Anton Tchekov, Strindberg e tantos outros. Quando surgiu o cinema, em certa medida, o público não diferia muito do teatro. No entanto, com o passar do tempo essa distinção foi aumentando e, rapidamente, os recursos oferecidos pelo cinema tanto como diversão quanto como recurso pedagógico e como forma de reflexão revelaram-se infindáveis. Numa área como a Astronomia, alguns documentários notáveis foram e continuam sendo produzidos. As imagens do Universo, dos planetas e das estrelas distantes obtidas por satélites e por telescópios poderosos são impressionantes e dificilmente um livro conseguiria descrever com palavras os detalhes e a beleza desses corpos celestes e a própria imensidão do Universo. Ou seja, como se costuma dizer na sabedoria popular “uma boa imagem fala mais do que mil palavras” e o cinema é, caracteristicamente, 24


uma forma de arte feita de imagens. A importância da imagem é tão grande para os filmes comentados no segmento “Espaço, tecnologia e robótica nas disputas internacionais” onde as visões do espaço e de um possível futuro são construídas e mostradas, quanto para outros segmentos como o das “Guerras de um passado distante”, onde a reconstrução do “oeste selvagem” é fundamental para a percepção mais acurada das angústias que moviam a busca pelo ente querido levado pelos índios num ambiente inóspito e desconhecido. No filme “A Batalha de Argel”, são as imagens extraídas de noticiários da época é que ajudam a visualizar e a perceber em que ambiente se desenvolvia a luta de um país por sua independência política. Cabe destacar também a importância da evolução do cinema como forma de expressão artística. Os imensos recursos de linguagem do cinema foram sendo mais bem explorados à medida que a tecnologia permitiu tornar a produção cinematográfica cada vez mais realista e, ao mesmo tempo, cada vez mais imaginativa. Antes do advento do cinema, em larga medida, o teatro cumpria esse papel de trazer à vida personagens simbólicos ou reais, assim como os cenários em que narrativas de dramas humanos e políticos se desenrolavam. Máscaras, maquiagem carregada e outros artifícios eram usados para que sentimentos de tristeza, alegria, dúvida ou indignação fossem representados para o público. As percepções de tempo, de movimento e de distância também dependiam da maestria com que atores e produtores das representações teatrais jogavam com a imaginação do espectador. Por essa razão, peças de teatro de grandes mestres da Antiguidade, do Renascimento e mesmo da Modernidade, precisavam valer-se dos diálogos para dar mais vida e mais colorido aos cenários e aos ambientes. Usava-se também o apoio de coros ou de um bardo que recitava ao fundo o que se movia na mente dos personagens ou no ambiente político e social da época. Nesse sentido, o cinema trouxe tantos novos recursos a ponto de torná-lo uma nova forma de arte chamando-a “Sétima Arte”. Isto é, embora tenha uma base semelhante à do teatro, produzir cinema revelou-se, cada vez mais, uma forma distinta de expressão. Com o avanço da tecnologia essa distinção acentuou-se ainda mais. Esse fato é muito visível quando, por exemplo, se assiste à versão cinematográfica de “Henrique V”, de Shakespeare, dirigido e produzido por Kenneth Branagh comparando-a à produção e interpretação de Laurence 25


Olivier realizada em 1944. Tanto Branagh quanto Olivier foram formados na mesma tradição clássica da dramaturgia “shakespeareana”, mas Olivier, que morreu por coincidência no mesmo ano em que a versão de Branagh foi lançada (1989), apesar de seu carisma e de sua reconhecida maestria, não tinha os recursos tecnológicos de que Branagh podia valer-se na ambientação do “Dia de São Crispim”. No período de meio século que separa as duas produções a tecnologia levada e desenvolvida especificamente para o cinema não apenas abria novas possibilidades técnicas para a engenharia de imagem e de som, mas influía também na própria arte da interpretação. O cinema firmou-se, assim, mais do que nunca, como uma modalidade distinta da arte teatral. Outro caso interessante a ser lembrado, que ilustra bem a importância da evolução da tecnologia para o cinema, é o da obra de J. R. R. Tolkien, na qual a imaginação tem um papel destacado. Ao escrever suas sagas, Tolkien recorreu a lendas e narrativas extraídas de livros antigos como a Bíblia e aos mitos escandinavos, germânicos e célticos e, sobre elas, deixou sua imaginação livre para voar ao sabor de acontecimentos num mundo de seres fantásticos. Para transformar tal obra em filme, foi preciso esperar meio século para que a tecnologia permitisse que o cinema não frustrasse as expectativas dos espectadores que, ao ler O Senhor dos Anéis, deixavam sua imaginação caminhar entre seres e cenários fantásticos sem os quais a história contada perdia muito de seu encanto.6 Hoje, com os recursos da tecnologia da informação e da computação gráfica, não há dúvida de que o cinema constitui uma forma distinta de arte.

O cinema como expressão do nosso tempo: uma visão pessoal Outra dimensão interessante na qual as artes se revelam notáveis para o estudo e a reflexão sobre as relações internacionais é o fato de que elas nos ajudam a compreender nosso próprio tempo. Os românticos alemães introduziram o termo zeitgeist para designar o “espírito de uma época”, 6. O maior sucesso de J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis, foi escrito entre 1937 e 1949 e publicado em 1954-55.

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isto é, o ambiente intelectual, cultural e político de uma época.7 Em nosso tempo, esse conceito pode ajudar a compreender um fenômeno como a guerra fria que foi notavelmente marcante e se manifestava não apenas no jogo da política internacional, mas também nas artes, no ambiente intelectual e no comportamento das organizações e até dos indivíduos. Políticas eram produzidas e implementadas tomando-se como ponto de partida o entendimento de que havia uma disputa permanente por poder e por áreas de influência entre os EUA, de um lado, com sua ideologia e seus aliados e, de outro, a aliança formada em torno da ideologia comunista e da União Soviética. Nesse Ambiente polarizado era muito difícil argumentar que algo poderia ser feito fora dessa dicotomia. Até mesmo o chamado Movimento dos Países Não-Alinhados, ao negar o “alinhamento”, não deixava de ser um tributo à guerra fria.8 Um exemplo local de como o zeitgeist influencia os padrões de comportamento e a própria estética é a arquitetura de Brasília, que só pode ser compreendida pela inexistência da temática ambiental no zeitgeist dos anos 1950. O traçado da cidade, voltado para o uso de automóveis, e os edifícios, embora elegantemente leves, funcionalmente demandam enorme dispêndio de energia. Brasília foi inaugurada em 1961 e, ainda na segunda metade da década de 1960, em países como o Brasil, o uso do petróleo significava, acima de tudo, modernização e desenvolvimento, despertando entusiasmo generalizado. Naquela época, o consumo de petróleo e de aço eram indicadores de desenvolvimento, isto é, eram vistos como elementos positivos. O entusiasmo era tão grande que, nas grandes cidades, substituiu-se toda a rede de transporte público constituída por bondes e ônibus elétricos por ônibus movidos a óleo diesel. Apenas nos fins da década de 1960 a poluição e a preservação dos recursos ambientais começaram a se constituir em 7. J. G. HERDER foi quem pela primeira vez usou o termo zeitgeist ao discutir a obra Genius Seculi de C. A. KLOTZ, que em latim significa “gênio do século” ou “espírito do século”. A popularização da expressão, no entanto deveu-se mais a HEGEL, que o explica em sua Filosofia da História. 8. O Movimento dos Não-Alinhados surgiu na Conferência de Bandung em 1955 (Indonésia) e indicava que os países participantes não iriam se alinhar nem com a URSS e seus aliados e nem com a aliança liderada pelos Estados Unidos. O Brasil participou desse arranjo apenas como observador.

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importante elemento do zeitgeist dominante até que, no início da década seguinte, o tema do meio ambiente foi assumido pela agenda internacional. No início da década de 1970, o Primeiro Relatório do Club de Roma e a realização da Primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano em Estocolmo, seguidos pela crise do petróleo, constituíram marcos importantes no processo de inclusão das preocupações ambientais como parte do zeitgeist do último quarto do século XX.9 Historicamente, uma das mudanças mais notáveis no zeitgeist do mundo foi a Renascença. Quando Jules Michelet e Jakob Burckhardt trouxeram para a reflexão histórica e sociológica o termo renascimento, estavam se referindo ao fato de que, ao longo de vários séculos, a civilização eurocêntrica havia deixado de valer-se da ciência laica e da arte como forma de expressar seus anseios, seus valores e suas percepções da realidade.10 Obviamente, formas de arte jamais deixaram de existir desde que os conceitos de civilização e cultura passaram a ser associados aos grupos humanos organizados, no entanto, estudiosos como Michelet e Burckhardt observavam que, após o período Greco-Romano, por séculos, as artes deixaram de ser utilizadas, em toda sua plenitude, como forma de expressão dos anseios e das vicissitudes das sociedades e dos homens. O termo renascimento teria como uma de suas marcas centrais esse caráter de reavivamento da arte como forma de expressão do pensamento, dos sentimentos e das visões acerca da divindade, do homem, e do mundo que forma a realidade na qual vivem os homens. O Renascimento foi marcado por humanistas como Erasmo de Rotterdam, Thomas More e Giordano Bruno, que repensaram a condição humana diante da sociedade e de Deus. Também são lembradas as contribuições de pensadores como Maquiavel e Galileu que influenciaram fortemente o pensamento 9. O Club de Roma foi criada em 1968 na Accademia dei Lincei (Roma, Itália) pelo industrial italiano Aurélio Peccei e pelo cientista escocês Alexander King, aos quais se juntaram cientistas, a maioria jovens, de renomadas instituições de pesquisa do mundo. O Primeiro Relatório do Club de Roma, intitulado “The Limits to Growth” (1972) e assinado por Donella & Dennis Meadows, W. Behrens e J. Randers causou enorme impacto mundial ao argumentar que o crescimento econômico tinha limites e que o mundo estava fadado a viver em breve uma era de escassez de matérias primas fundamentais, como o petróleo, e que a terra não poderia absorver de forma ilimitada a produção de dejetos industriais e urbanos. 10. Para JACOB BURCKHARDT, ver A Cultura do Renascimento na Itália, Editora UnB, 1991. Para JULES MICHELET ver “O Povo”, Editora Martins Fontes, 1988. Ver também LUCIEN FEBVRE, Michelet e a Renascença, Editora Página Aberta, 1995.

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científico. Apesar de tudo, foram as artes, especialmente a pintura, que deixaram a marca mais notável do período. Quando alguém faz uma referência ao Renascimento, imediatamente emergem na mente de qualquer um os nomes e as imagens das obras de Da Vinci, Rafael, Michelangelo, Rubens, Botticelli, van Eyck, Vasari, Dürer, Bruegel o Velho, entre tantos outros. Os temas predominantes eram religiosos e apenas mais tarde, sobretudo com a geração de Rembrandt e Vermeer, temas profanos e até triviais passaram a servir de objeto para uma grande quantidade de pinturas.11 Algo parecido pode ser dito de muitos gênios que vieram depois: produziram obras tão marcantes que se tornaram verdadeiramente representativos de seu tempo como ocorreu com Rembrandt e, mais tarde, com os impressionistas na França da segunda metade do século XIX. Pode-se dizer também que, na Inglaterra, um traço marcante do que ficou conhecido como Era Vitoriana foi a literatura. A Rainha Vitória reinou de 1837 a 1901 e, ao longo desse período, uma grande lista de escritores notáveis pode ser lembrada, incluindo-se alguns como Rudyard Kipling que, embora tenha vivido até 1936, sua fama no final do século XIX já era grande e muitos de seus livros retratam como poucos a Inglaterra Vitoriana, centro de um império mundial que reunia povos bastante distantes e exóticos.12 Na França do fim do século XIX e começo do século XX a pintura impressionista era um reflexo do ambiente social e cultural da Belle Époque. As novas invenções tornavam a vida mais fácil e uma classe média emergia formando núcleos urbanos onde a efervescência marcava a cena cultural em cidades como Paris, Viena e Londres. Durante o dia, em Paris, os parques e cafés tornavam-se locais de encontro e de diversão enquanto, à noite, os teatros e restaurantes se enchiam e os cabarés, onde se bebia o absinto, eram passagem obrigatória para artistas e para toda a fina-flor da sociedade. Cada 11. Uma das obras mais notáveis de Paulus Potter (1625-1654) foi um quadro de cerca de 6,0 m2, pintado em 1647, no qual o primeiro plano é ocupado por um touro (Mauritishuis, The Hague). 12. Entre os escritores do período estão Charles Dickens, Robert Louis Stevenson, as Irmãs Brontë, George Eliot, Oscar Wilde, Thomas Hardy e Rudyard Kipling. GILBERT K. CHESTERTON escreveu um livro sobre a literatura na era Vitoriana (The Victorian Age in Literature, Home University Library, 1913) onde faz uma apreciação dos escritores do período que mais se destacaram.

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local público era, na verdade, uma oportunidade para se exibir um novo vestido, um novo estilo de chapéu ou um novo automóvel, que começava a substituir a carruagem. Durante o dia desfilava-se nos parques e cafés enquanto à noite exibia-se sua nova conquista nos teatros, restaurantes e cabarés. As cenas parisienses nos parques e nos cafés foram notavelmente retratadas por artistas como Toulouse-Lautrec, Eduard Manet e Claude Monet. Em nosso tempo o cinema firmou-se como a forma de arte mais representativa da sociedade. Outras formas de arte também são caracteristicamente marcantes deste mundo que emergiu depois da segunda guerra mundial como a música popular, a arquitetura arrojada e o design industrial. No entanto, tudo indica que, no futuro, quando alguém olhar para o nosso tempo irá ver no cinema provavelmente as melhores imagens de como temos vivido, nossas misérias, nossas ambições e também encontrarão imagens de nossas extraordinárias realizações. Nas edificações e nos milhares de produtos industriais também o futuro haverá de ver as marcas de nosso tempo, mas o destaque estará sempre nos objetos e nas construções moldadas pela arte mais refinada. Se existem hoje os Da Vincis, os Rembrandts e os Dante Alighieris – e certamente existem – devem estar empregando sua sensibilidade, seus talentos e até seu senso irônico e crítico no design de formas e de imagens que provocam nossos sentidos e em filmes que aguçam nossa sensibilidade e nosso senso crítico, além de registrar as imagens mais marcantes de nosso tempo. Nada como o cinema para sintetizar a festa de imagens e cores de um tempo verdadeiramente vertiginoso de acontecimentos, como tem sido o nosso tempo. A dúvida, o enigmático, o desejável, os temores, a esperança, as visões de futuro, mas, sobretudo, o belo são temas hoje transformados em poesia na forma de imagens. Provavelmente era sobre essa faceta da arte que pensava o poeta Hölderlin quando, há mais de dois séculos, escreveu “mas o que fica, os poetas o fundam”.13 E. Sato Brasília, junho/2016

13. F. HÖLDERLIN, Poemas. Trad. Paulo Quintela. 2ª. Edição. Ed. Atlântida, Coimbra, 1959 (p. xxxi).

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FORMATO: 15,5cm x 22,5cm | 328 p.

TIPOLOGIAS: Minion Pro, Myriad Pro PAPEL DA CAPA: Supremo 250g/m2

PAPEL DO MIOLO: Chambril Avena 80g/m2 AUXILIAR DE PRODUÇÃO EDITORIAL: Marina Oliveira CAPA & DIAGRAMAÇÃO: Peter de Andrade FOTO DE CAPA: Google images

REVISÃO DE TEXTOS: Cláudia Rajão



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