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O SENTIR DO TRABALHO PARA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL
Sérgio Sampaio Bezerra
Apoio:
Belo Horizonte, 2017
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Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Sérgio Sampaio Bezzerra Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.
FICHA CATALOGRÁFICA
B574s Bezerra, Sérgio Sampaio O sentir do trabalho para pessoa com deficiência intelectual / Sérgio Sampaio Bezerra. – Belo Horizonte, Fino Traço, 2017. 192. p. : il. Inclui bibliografia. ISBN: 9788580543438 1. Incapacidade intelectual. 2. Deficientes - Emprego. 3.Trabalho. I. Título. CDD: 362.3
conselho editorial
CDU: 362.3
Coleção EDVCERE
Alfredo Macedo Gomes | UFPE Álvaro Luiz Moreira Hypolito | UFPEL Dagmar Elizabeth Estermann Meyer | UFRS Dalila Andrade Oliveira | UFMG Diana Gonçalves Vidal | USP Elizeu Clementino de Souza | UNEB Luiz Fernandes Dourado | UFG Wivian Weller | UNB
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Sumário
Agradecimentos 9 Prefácio
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1 A investigação e seu contexto
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As empresas brasileiras e a inclusão da pessoa com deficiência intelectual no trabalho. 28 Outras questões que impactam a inclusão das pessoas com deficiência intelectual no mercado de trabalho. 33 Caracterização dos trabalhadores com deficiência intelectual investigados 38 Caracterização das empresas investigadas
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2 A construção da identidade da pessoa com deficiência intelectual na modernidade 47
3 Quem eram as pessoas com deficiência intelectual
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A importância da família na trajetória de vida da pessoa com deficiência intelectual 84 Vida cotidiana: fragmentos da realidade social da pessoa com deficiência intelectual 88 A velha identidade das pessoas com deficiência intelectual
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4 A vida no trabalho diversificando as relações das pessoas com deficiência intelectual 111
As relações no trabalho 113 O limiar do trabalhador com deficiência intelectual
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5 A nova identidade das pessoas com deficiência intelectual 143 Conclusão 171 Uma Palavra Final
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Referências 179
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Dedico este livro a todas as pessoas com deficiência intelectual e suas famílias, especialmente àquelas com quem tive o prazer de conviver, destacando as que fizeram parte deste estudo e que me receberam tão agradavelmente em suas vidas.
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Agradecimentos
Expressar meus agradecimentos é contar um pouco da minha história com as pessoas com deficiência intelectual, que já dura onze anos, e das pessoas e instituições que dela tomaram parte. Comecei os primeiros contatos com o universo da pessoa com deficiência intelectual por meio do movimento das APAEs, nos idos dos anos 2000, e nesse período tive talvez o maior aprendizado acerca desse universo, sob a orientação, à época, do médico pediatra Eduardo Barbosa, presidente da Federação Nacional das APAEs. Durante essa jornada, uma das coisas que mais me intrigava, à medida que conhecia essas pessoas, era como seria possível sua inclusão nas empresas. Foi com base nessa inquietação que busquei um mestrado em Administração que me permitisse estudar essa questão. Ingressei na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (EBAPE/FGV/RJ), onde tive um vasto aprendizado acadêmico acerca do tema, sob a orientação valiosa do professor Marcelo Milano (in memoriam), a quem sou imensamente agradecido e de quem admiro a coragem por apoiar um projeto tão distinto de sua especialidade e das linhas gerais da Fundação. Cabe aqui destacar a professora Sylvia Vergara, assim como expressar-lhe minha gratidão por me iniciar de forma primorosa no mundo da pesquisa qualitativa. Nessa trajetória, transferi-me para Minas Gerais, atuando como Presidente da Federação das APAEs do Estado de Minas Gerais, da APAE de Belo Horizonte e da de Pará de Minas, onde continuei a me aprofundar tanto no conhecimento acerca da pessoa com deficiência intelectual, como na questão da sua inclusão no mercado formal de trabalho ‒ e, aqui, nesse momento, cabe destacar e agradecer a aprendizagem a mim proporcionada por Darci Fioravante, Marli Duarte e Darneily Pinto Coelho.
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Como no mestrado não consegui esgotar minhas inquietações, saí em busca de novos saberes que me fizessem entender melhor a questão, conhecendo, então, o curso das Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), onde conheci a professora Alessandra Chacham, que desde o início me estimulou a submeter um projeto sobre o tema no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Além desse estímulo, sem o qual esse estudo não teria nem começado, cabe agradecer-lhe pelo valioso aprendizado durante a investigação, principalmente na análise qualitativa da pesquisa. Cabe mencionar também todos os professores do programa que em muito contribuíram para meu aprendizado na complexa teia das Ciências Sociais, em especial a professora Regina Medeiros, a quem sou muito grato pelas provocações que tanto me fizeram aprender. Durante o período de elaboração da pesquisa tive o enorme prazer e por que não dizer, fui agraciado por haver conhecido o professor Carlos Veloso da Veiga da Universidade do Minho/Portugal, que, além de ter sido fundamental para a conclusão desse estudo a partir dos seus vastos conhecimentos sobre o tema, é hoje um grande amigo que tenho além-mar. Esse estudo foi defendido enquanto tese em primeiro de junho de 2017 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-MG, tendo como banca examinadora a Professora Alessandra Chacham (orientadora) e o Professor Carlos Veloso da Veiga (co-orientador), bem como a Professora Regina Medeiros, já mencionados nesse agradecimento. Além desses, participaram as professoras Liliana Pântano da Universidade Católica Argentina (Cidade de Buenos Aires) e Luciana Teixeira de Andrade (PUC-MG), que muito contribuíram com suas observações para a melhoria dessa publicação originada a partir da minha tese de doutoramento. Agradeço à minha pequena grande família, Daniel Alejandro Gill, pelo esforço em abrir mão da minha companhia, o que me permitiu terminar este estudo, bem como à amiga inseparável no doutorado Cristiane Natalício, com quem compartilhei todas as angústias e vitórias nesse processo. E também aos grandes amigos: Tiago Cruvinel, com quem tive acalorados debates sobre os nossos respectivos objetos de pesquisa de doutoramento, sem os quais
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não seria possível a consolidação das ideias aqui apresentadas; e Ramon Vieira, o amigo que me tirava de casa quando o estresse chegava ao seu ponto máximo, reabastecendo-me para continuar na construção desta tese. Por fim, minha gratidão a Fernanda Rios, Jesus Luiz dos Santos, Wagner de Oliveira, Denise Chaves, Pablo Cândido e Myriam Sassaki, que em momentos cruciais desta pesquisa foram fundamentais. E a Dra. Carmem Manzzilli, meu anjo da guarda que possibilitou minha saúde física e emocional para conclusão deste estudo.
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Prefácio
O meu primeiro contato com Sérgio Sampaio aconteceu precisamente quando de uma estadia em Belo Horizonte, precisamente na Pontífica Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Justamente no dia 5 de outubro de 2012, dia em que ali proferi uma breve palestra sobre a inclusão profissional das pessoas com deficiência intelectual no mercado de trabalho, a convite da Professora Luciana Andrade e da coordenação do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. Entre os muito atentos ouvintes da minha palestra encontrava-se o Sérgio Sampaio. Recordo-me que no final da palestra vários dos presentes colocaram-me questões sobre o assunto tratado, mas não me recordo se o próprio autor colocou-me alguma questão em particular. Seja como tenha sido, foi, sem dúvida, uma hora feliz, já que, alguns meses mais tarde, fui surpreendido por um convite para proferir uma palestra sobre a temática da inclusão das pessoas com deficiência intelectual no XII Congresso da Rede Mineira das APAE que se realizou em outubro de 2013. Tal honroso convite, que muito me sensibilizou, percebi posteriormente que foi iniciativa daquele atento ouvinte da palestra proferida um ano antes na PUC Minas, onde o Sérgio Sampaio era aluno do Curso de Doutorado em Ciências Sociais. Da feliz coincidência de lugar e de interesses nasceu a amizade que desde então mantivemos. Depois, claro, tive o privilégio de ser coorientador da sua tese de doutorado, agora aqui publicada sob a forma de livro. E ainda bem que o está sendo. Apraz-me registar que desde 2013 estamos em franca frutífera colaboração pessoal e institucional. Na verdade, é de relevante interesse que se dê a conhecer os frutos de um autor que soube despir a pele de profissional, dirigente e ativista da causa da inclusão das pessoas com deficiência intelectual no Brasil e vestir a pele do investigador em ciências sociais, de qual se exige sobretudo distanciamento crítico da 13
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realidade vivida, comprometimento com a verdade científica e neutralidade axiológica. Creio que Sérgio Sampaio conseguiu fazer a sempre difícil ruptura epistemológica que se exige a quem está profunda e afetivamente envolvido na realidade social de que se é parte integrante. Ora bem, então o que se pode dizer sobre “Sentir do trabalho para a pessoa com deficiência intelectual” tão bem expresso neste livro de Sérgio Sampaio? Antes de mais, convém destacar a sua originalidade e o seu rigor científico e, não menos relevante, a sua novidade no panorama dos estudos sociais da deficiência até hoje realizados, sobretudo no Brasil, onde não creio tenha até à data sido realizada pesquisa semelhante abordando a inclusão social das pessoas com deficiência intelectual. Pessoas essas a quem o autor tomou como principais protagonistas da sua pesquisa, mergulhando não apenas no domínio das suas vidas profissionais mas também nas próprias dinâmicas das suas vidas quotidianas. Esse arrojo do autor permitiu dar-nos a compreender como a inclusão profissional das pessoas com deficiência intelectual não produz somente efeitos em termos de melhoria da sua renda, acarreta consigo outras consequências tão ou mais necessárias que o incremento monetário adquirido. Sérgio Sampaio mostra-nos que a inclusão profissional vale a pena, que acresce valor às pessoas com deficiência intelectual, que lhes permite sonhar com novas aspirações sociais ou mesmo ressinigficar algumas das velhas aspirações, as quais em nada diferem das aspirações dos seus concidadãos. Ou seja, que afinal de contas as pessoas com deficiência intelectual são apenas pessoas como todas as outras, que aspiram a viver uma vida com qualidade, a usufruírem do direito a estar e sentir-se socialmente incluídas. E que nesse caminho a obtenção e manutenção de um emprego no mercado de trabalho é fator determinante, se bem que, infelizmente, como fica demonstrado na pesquisa, por ora, a saída da situação anterior de exclusão apenas as tenha levado à designada “condição limiar”, a despeito de terem um posto de trabalho relativamente assegurado nas organizações onde trabalham. Sérgio Sampaio mostra à evidência que as pessoas sobre quem recaiu a pesquisa passaram a viver numa estado de suspensão social, na medida em que não estão “nem verdadeiramente
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vivas, nem verdadeiramente mortas, nem verdadeiramente excluídas, nem verdadeiramente incluídas” (Ravaud e Stiker). A pesquisa segue verdadeiramente a visão da inclusão da pessoa com deficiência como sinônimo de qualidade vida, visão esta que está em desenvolvimento na atualidade com base no direito das pessoas com deficiência a uma vida com qualidade, independente, socialmente participada e assente em livres escolhas. O autor baseia-se, portanto, na ideia de que é necessário transformar estruturalmente as condições de vida das pessoas com deficiência. Digamos que Sérgio Sampaio chama a atenção para a necessidade dos processos de inclusão profissional deverem ser técnica e socialmente avaliados com base na melhoria da qualidade de vida que proporcionam às pessoas com deficiência. Sérgio Sampaio apresenta-se assim como “torcedor” do paradigma biopsicossocial, ao intentar a síntese entre o individual e o social. Adota um sistema teórico eclético onde as atitudes e as condições do meio ambiente surgem como fatores tão importantes (facilitadores ou barreiras) quanto as (in)capacidades das pessoas na definição da situação de desvantagem social, que decorre da sua condição de pessoas com deficiência. Julgo que também estaremos certos se considerarmos que Sérgio Sampaio, enquanto militante da causa das pessoas com deficiência intelectual, defende que, para a inclusão efetivamente ocorrer, as políticas públicas brasileiras e as práticas das organizações reabilitadoras (e não só) devem privilegiar ações direcionadas para a promoção das acessibilidades, competências e atitudes sociais que conduzam a oportunidades de participação e a interações positivas entre as pessoas e o meio ambiente; concebe a deficiência como um condição complexa, multideterminada e multifacetada que provoca limites à participação nas relações sociais e nos bens e serviços socialmente disponíveis. Para terminar, creio estar o autor enviando uma importante mensagem aos atores sociais, profissionais e políticos do campo da deficiência (técnicos, dirigentes, pessoas com deficiência e suas famílias). Justamente a mensagem que a pesquisa social é realmente importante para a dinâmica do campo, sua inovação e transformação. Que, tal como nos mostra nas recomendações finais desta obra, tais atores têm de se interessar em gastar algum do seu
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tempo e outros recursos, participando e/ou apoiando projetos de pesquisa que alavanquem o conhecimento sobre as consequências das regras e dos recursos envolvidos nos processos de inclusão; que devem chamar à cooperação os pesquisadores do campo acadêmico para com eles trabalharem em conjunto, unindo esforços em novas e importantes parcerias, sobretudo com universidades e centros de investigação nacionais e internacionais; que devem apostar na abertura das suas portas a jovens estudantes das ciências sociais para fomentar o seu interesse científico pelos estudos sociais da deficiência. Talvez, este livro, por tudo o que nos mostra sobre a inclusão profissional das pessoas com deficiência intelectual e pelas questões a que não pôde dar resposta, sirva também para iluminar o caminho para a criação de um Centro Nacional de Pesquisas Sociais em Deficiência e Reabilitação, que permita organizar e orientar a produção e a difusão da investigação que se faz ou se poderá fazer no Brasil, a partir da cooperação estratégica entre as organizações, como as APAE, e os centros de investigação dos institutos e universidades brasileiros. Seria “oiro sobre azul”.
Carlos Veloso da Veiga Universidade do Minho, Braga, Portugal.
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Introdução [...] ser capaz de mirar lo que no se mira, pero que merece ser mirado, las pequeñas, las minúsculas cosas de la gente anónima, la gente que los intelectuales suelen despreciar. Ese micromundo donde yo creo que deberá se alimentar la grandeza del universo y al mismo tiempo ser capaz de contemplar el universo desde el ojo de la cerradura, o sea, desde las cosas chiquitas a sumarse a las cosas que son más grandes; a los grandes misterios de la vida, al misterio del dolor humano, también al misterio de la humana persistencia de esta manía, a veces inexplicable, de pelear por un mundo que sea la casa de todos y no la casa de poquitos […]. (Eduardo Galeano, escritor uruguaio, programa “Sangue Latino”, Canal Brasil, 2009)
Neste estudo, busco compreender o sentir do trabalho para a pessoa com deficiência intelectual, lançando um olhar sobre a sociedade a partir das “formas que tomam os grupos de homens, unidos para viver uns ao lado dos outros, ou uns para os outros, ou então uns com os outros” (SIMMEL, 1983: p.47) e parto do paradigma de que a transição da sociedade “tradicional” para a sociedade “moderna” levou à diferenciação das identidades e ao surgimento de novas formas de sociabilidade baseadas no trabalho e não mais na família (FORTIN, 1994). Ademais, este estudo se articula em torno do interesse pelo mundo dos detalhes ou dos acontecimentos infinitesimais, considerando o indivíduo como fundamental para o entendimento da sociedade. Mas não é o indivíduo que importa, e sim os microrrelacionamentos, as múltiplas relações difusas e infinitesimais que se produzem entre os indivíduos ou neles próprios (as pequenas repetições/imitações, oposições/ hesitações e adaptações/invenções) e que remetem não aos indivíduos, mas sim ao fluxo e às ondas de crenças e desejos, pois o que se imita, opõe-se
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ou se adapta, em matéria social, são sempre disposições de crenças e de desejos (TARDE, 1907). Segundo Vargas (2000), essa teoria da imitação concretiza uma noção extremamente plástica do sujeito humano que questiona radicalmente a unidade e a identidade do eu, devendo-se antes de tomar as similitudes, semelhanças ou identidades da vida social como dadas a priori, partir de sua problematização, desnaturalizando-as e buscando saber como foram produzidas por meio do mundo dos detalhes (dos relacionamentos infinitesimais), tentando dar conta, simultaneamente, das regularidades e das singularidades dos fenômenos sociais, deixando de tomar [...] os grandes e vagos fenômenos de superfície ou raros conjuntos volumosos e aparentes como pontos de partida, e iniciar as análises pelos pequenos conjuntos, pelos fenômenos elementares, pelos detalhes precisos e profundos, pelas finas nuanças sempre infinitamente numerosas e difíceis de serem percebidas (Vargas, 2000: p.198).
Ainda segundo esse autor, não se deve entender esse universo microssocial como uma simples miniaturização dos fenômenos macrossociais, não se deve confundi-lo com o plano dos indivíduos, mas sim entendê-lo como outro domínio, um domínio irredutível que instaura novos tipos de relação, pois para se dar conta tanto das regularidades, quanto das singularidades dos fatos sociais, o único caminho é o da análise microscópica. O fato social é produto de vínculos, de laços sociais, não tendo, portanto, nada de natural. São adaptações sempre inventivas trazidas pela consciência de que tal crença ou tal desejo é partilhado, num mesmo momento, por um grande número de homens (Vargas, 2000), pois “nenhuma interferência mental se iguala à de um desejo e de uma crença” (Tarde, 1907: p.50) e a sua propagação dá-se pela repetição imitativa, onde a imitação é:
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[...] uma ação à distância, de um cérebro sobre outro. Ela pode ser consciente ou inconsciente, voluntária ou involuntária, vaga ou precisa, unilateral ou recíproca, mas não pode deixar de ser produzida à distância, em uma espécie de “geração à distância”, pois assim perderia sua especificidade (Vargas, 2000: p. 226).
Para Tarde (1907), as sociedades não são concebidas como dados da natureza previamente organizada e, também, não podem ser consideradas uma espécie de organismo complexo, cuja realidade está à parte daqueles indivíduos que a compõem (Vargas, 2000), devendo se preocupar, entre outras coisas, em dar destaque ao lado puramente social dos fatos humanos, abstraindo do que há neles de simplesmente vital ou físico. Se olharmos os fatos sociais de perto e sob certo ângulo, eles podem se apresentar sob a forma de séries de pequenos fatos similares ou de fórmulas que resumem essas séries. No entanto, ainda segundo esse autor, é preciso ter em vista que o social não é menos social porque é cerebral ou mental; pelo contrário, esses elementos são próprios dos fenômenos sociais. Contudo, nem toda ação mental ou cerebral é, por si só, social; pois para que ela o seja, é necessário ser transmitida a outrem. Segundo Vargas (2000), essa repetição imitativa do mundo social se deve ao fato de o ser social ser imitador por essência. Ademais, toda repetição procede de uma inovação qualquer, sendo as crenças e os desejos, as forças plásticas e as forças funcionais que animam a vida social. A oposição nada mais é do que uma forma singular de repetição, e a adaptação é onde tudo começa e onde tudo desemboca, pois quando uma coisa é diferente da outra se produz entre elas uma coadaptação, o que implica na criação de algo que não existia, ou seja, uma invenção que gera uma nova diferença. As imitações, oposições e invenções criam os fluxos de crenças e desejos. As imitações os propagam, as oposições os binarizam e as invenções os conectam. E a fonte desses fluxos está abaixo do mundo social, no mundo vivo. O que me interessa neste estudo são essas relações cerebrais e infinitesimais, deslocando a sociologia para uma análise dos fenômenos infinitesimais de onde tudo parte e para onde tudo retorna.
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No entanto, toda interação dotada de alguma estabilidade ou regularidade assume um caráter organizacional e produz um sistema que pode ser definido como um complexo de elementos de interação mútua e ser aplicado ao indivíduo, à família, à empresa ou mesmo à sociedade. Cada sistema pode se constituir de subsistemas e estar inserido em outros sistemas maiores; no entanto, de acordo com Brito (1989), apesar desse intercâmbio entre sistema e indivíduo, o primeiro exige que o indivíduo se adapte a ele e execute os seus papéis frente a necessidade do todo, mas um sistema existe em um ambiente em constante mutação que independe do próprio sistema, exigindo desse uma constante reorientação de suas possibilidades, pondo à prova sua capacidade e habilidade de adaptação para uma continuidade. A análise de um sistema consiste na observação dos padrões reais de interações e relações de suas partes com o seu meio buscando compreender o desempenho dele próprio na sociedade. Deve-se observar os fluxos de atividades (inputs/entrada e outputs/saídas) para dentro e para fora do sistema, correspondendo ao modo de como esse sistema está modificando e sendo modificado por seu ambiente (Brito,1989). Nessa perspectiva, quando se discute a inclusão social da pessoa com deficiência intelectual por meio do trabalho, deve ser considerado os sistemas (sociedade, família, grupos de pertença e de referência, empresa etc.) nos quais ela está inserida. E o ambiente de trabalho é um desses sistemas, no qual as pessoas com deficiência intelectual encontram-se com muitas outras pessoas dentro e fora da empresa, sendo o trabalho, portanto, uma forma de relação de sociabilidade aqui entendida como a relação do indivíduo com os demais, composta pelas relações sociais e pelas relações de interação que ocorrem na vida cotidiana (Forsé, 1981), tais como: relações de amizade, relações familiares, relações de vizinhança, relações com os colegas de trabalho e chefias diretas e relações amorosas. Com esse olhar meu estudo parte do fato de que existem atualmente nas empresas brasileiras pessoas avaliadas com deficiência intelectual que estão empregadas, com suas carteiras de trabalho assinadas conforme manda a legislação trabalhista e realizando de forma produtiva atividades dentro
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dessa empresa ‒ e é isso que entendo como mercado formal de trabalho ao longo dessa pesquisa. Aqui não considero os que trabalham por conta própria ou os que estão em práticas de trabalho de alguma forma protegidas. Além disso, parto do entendimento de deficiência intelectual da Associação Americana de Deficiência Intelectual e Desenvolvimento (AADID) ‒ segundo a qual, essa deficiência se caracteriza pela limitação significativa no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo, originando antes dos 18 anos de idade ‒ e ancoro-me na segunda geração do modelo social da deficiência, segundo a qual existem pessoas gravemente deficientes que jamais serão independentes, produtivas ou capacitadas para o trabalho, não importando quais ajustes atitudinais, arquitetônicos ou relativos a transporte sejam feitos. Portanto, nesta pesquisa estou discutindo a colocação no mercado de trabalho de pessoas avaliadas com deficiência intelectual e que têm condições produtivas para trabalhar. E, também, este trabalho tem como universo de pesquisa aqueles trabalhadores com deficiência intelectual que têm uma moderada estabilidade no emprego, pois na revisão dos trabalhos realizados acerca da inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho, constatei que o fato de estarem trabalhando, ou seja, de ingressarem em uma empresa, não significa se sentirem incluídas. Este estudo, então, tem como foco a inclusão social da pessoa com deficiência intelectual no mercado formal de trabalho, independentemente da modalidade de colocação empregada, sejam aquelas definidas na legislação brasileira (colocação competitiva ou colocação seletiva) ou na nova metodologia de emprego apoiado. E, não discutirei se a deficiência intelectual é ou não uma condição diagnosticada, já que existe um debate acadêmico acerca dessa questão sob várias abordagens (psicológica, funcional, sócioantropológica). Também não discutirei a preparação das empresas para recebê-los. Parto do pressuposto de que essas pessoas já estão colocadas e permanecem no mercado formal de trabalho, sendo identificadas como pessoas com deficiência intelectual; portanto, tampouco me preocupo em discutir a aplicação da Lei de Cotas. Preocupo-me em discutir não como foi a chegada desse trabalhador ao mercado formal de trabalho, e sim o que aconteceu em seu cotidiano
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a partir disso. Os trabalhadores com deficiência intelectual entram nas empresas (inputs) de uma dada maneira (aspirações/identidade), sofrem os efeitos da presença (relações sociais e de interação) e saem com novas aspirações e as antigas ressignificadas, o que leva à formação de uma nova identidade (outputs). Figura 1: Fluxograma da hipótese do estudo Antecedente formal de trabalho
Ingresso no mercado
Fonte: Elaborada pelo autor.
Para tanto foram utilizadas técnicas de coleta de dados que são próprias da metodologia qualitativa e compreensiva, pois o objeto desse estudo caracteriza-se por um aprofundamento nas relações de sociabilidade (de amizade, de conhecimento ou amorosas) que ocorrem com base nas relações de trabalho, tentando compreender e explicar como elas contribuem para o desenvolvimento de velhas aspirações (pessoais, familiares, comunitárias) e o aparecimento de novas, constituindo-se em fatores potenciais de transformação social para a recomposição da identidade das pessoas com deficiência intelectual. E, ao me propor a compreender e explicar como as pessoas com deficiência intelectual percebem, descrevem e propõem uma definição da sua situação após sua inclusão no mercado formal de trabalho, opto pela etnometodologia, que consiste na busca empírica dos métodos empregados pelos indivíduos para dar sentido e, ao mesmo tempo, realizar suas ações de todos os dias: comunicar-se, tomar decisões, raciocinar (Coulon, 2005). Além disso, ao considerar neste estudo que a vida social se constrói por meio da linguagem da vida cotidiana e capta-se através do discurso dos autores e da observação de suas práticas, onde o significado de algumas 22
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palavras, por si mesmo, é incompleto e somente pode se completar dentro de um contexto, de uma situação, dentro do mundo social que está disponível e que pode ser descrito, relatado e analisado. Isto se deve à compreensão de Coulon (2005), para quem o significado de uma palavra ou de uma expressão provém de fatores contextuais, tais como a biografia do locutor, sua intenção imediata, a relação única que mantém com seu ouvinte e as conversações passadas. Ademais, quando falamos, estamos construindo o sentido, a ordem e a racionalidade do que estamos fazendo em determinado momento. Captar o ponto de vista dos trabalhadores com deficiência intelectual não consiste simplesmente em escutar o que dizem nem em pedir para que expliquem o que fazem, e sim situar suas descrições em um contexto, considerando as informações desses como instruções de investigação, pois a estratégia etnometodológica se apoia na ideia de que:
[…] la vida social es metodicamente realizada por los miembros. En las características de estas realizaciones residen las propiedades de los hechos sociales de la vida cotidiana: el carácter repetitivo, rutinario, standarizado, transpersonal y trans-situacional de los modelos de la actividad social desde el punto de vista del miembro (Coulon, 2005: p. 96).
Diante disso, este estudo busca mostrar que o fenômeno social da inclusão da pessoa com deficiência intelectual no mercado formal de trabalho é objeto de uma construção social e, para tanto, adoto a estrutura como descrita a seguir. Além desta introdução, no primeiro capítulo, trago a contextualização dessa investigação caracterizando o universo da pesquisa e revisitando os principais trabalhos publicados acerca do tema no Brasil. No capítulo 2, traço um paralelo entre a identidade das pessoas com deficiência intelectual e os elementos da modernidade nos dias atuais. Posteriormente, no capítulo 3, busco mapear as interações e as relações das pessoas com deficiência intelectual que fazem parte deste estudo, antes do seu ingresso no mercado formal de trabalho, desde o momento da des-
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coberta da deficiência pelos seus pais, passando pelas suas rotinas diárias, suas relações no lazer, na escola, na vizinhança, na família, com os amigos e as relações amorosas, identificando a rede de sociabilidade construída e suas consequências para as aspirações e as identidades dessas pessoas nesses momentos de vida. No capítulo 4, analiso as interações e as relações ocorridas com essas pessoas nas empresas onde trabalham ‒ as relações de amizade, com os colegas de trabalho, com as chefias diretas e as relações de namoro ocorridas a partir do ambiente de trabalho ‒ e busco, no capítulo 5, compreender e explicar como essas interações e relações contribuem com o surgimento de novas aspirações e reformulação das antigas, moldando uma nova identidade para essas pessoas. Por fim, apresento minhas conclusões e uma palavra final onde trago as recomendações e sugestões para estudos sob outras perspectivas fundamentais para a questão da inclusão da pessoa com deficiência intelectual no trabalho não tratadas nesta obra.
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