OS AMIGOS DA MENTIRA

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Luciano de Samósata (autor do séc. II d.C.)

Traduzido e adaptado por Jacyntho Lins Brandão Ilustrado por Luis Matuto


Texto © Jacyntho Lins Brandão Ilustrações © Luis Matuto Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora.

Cip-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

S18a

Os amigos da mentira / Luciano de Samósata (autor do séc. II d.C.) ; traduzido e adaptado por Jacyntho Lins Brandão ; ilustrações Luis Matuto. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2014. 66 p. : il. ; 21cm. (Traço Jovem ; 5) Tradução de: Philopseudés ISBN 978-85-8054-195-3 1. Ficção infantojuvenil italiano. I. Matuto, Luis. II. Brandão, Jacyntho Lins. III. Título. 14-11693 CDD: 028.5 CDU: 087.5 29/04/2014 05/05/2014

Produção e coordenação editorial Maíra Nassif e Cláudia Rajão Revisão de textos Erick Ramalho Projeto gráfico e diagramação Ana C. Bahia

Fino Traço Editora Ltda. Av. do Contorno, 9317 A | Barro Preto Belo Horizonte - MG - Brasil Telefone: (31) 3212 - 9444 finotracoeditora.com.br


Apresentação 5 Os amigos da mentira 9 Êucrates e seus amigos 16 De médico e louco todo mundo tem um pouco 19 O encantador de serpentes 23 O mago hiperbóreo 27 O sírio da Palestina 31 As estátuas ambulantes 33 O quinto dos infernos 39 O quase-morto 44 As sandálias da defunta 47 A casa mal-assombrada 49 O aprendiz de feiticeiro 57 Mentiras sem fim 61



Apresentação A história que você vai ler foi escrita há mil e oitocentos anos por um autor que viveu no Império Romano, Luciano de Samósata. Nós sabemos muito pouco sobre a sua vida, apenas aquilo que ele mesmo nos informa em escritos em que é difícil separar o que é biografia do que é ficção. Samósata, sua cidade natal, ficava na Síria, na fronteira oriental do Império de Roma, às margens do Rio Eufrates, um lugar em que as pessoas tinham como língua materna o aramaico, mas falavam também grego. Luciano nasceu por volta do ano 115, numa família modesta, tendo vivido até depois de 180. De início, seus pais mandaram que ele aprendesse escultura, pois assim poderia começar logo a ganhar dinheiro, sustentar-se e até mesmo ajudar a família. Depois de um início desastrado na oficina de escultura de seu tio materno – ele quebrou uma placa de mármore que devia polir e por isso levou umas boas cacetadas –, Luciano ingressa numa escola em que, de acordo com o modelo da época, estuda literatura e retórica, tornando-se advogado e orador. 5


Viaja então pelo Império, vivendo na Itália e na Gália (a atual França), onde se fica famoso e ganha muito dinheiro. Mas por volta dos quarenta anos, após ouvir, em Roma, o filósofo Nigrino, abandona a vida de advogado, muda-se para Atenas e, enfronhando-se na filosofia, escreve a parte maior e mais importante de sua obra. Nela, Luciano usa o riso para denunciar crenças, comportamentos e costumes que considera sem sentido, simples frutos da tolice e falta de sensatez que parecem tão arraigadas na natureza humana. Pode-se dizer, sem medo de errar e usando suas próprias palavras, que ele de fato se propôs esta missão: ridicularizar os vícios humanos como um “cão que morde rindo”. Como você verá, é isso que ele faz em Os amigos da mentira. Ele põe em cena um intelectual rico (Êucrates), seu médico (Antígono) e seus amigos filósofos. Todos eles são pessoas cultas, mais que isso, são pessoas que pertencem à camada mais culta da sociedade, o que se pode dizer de modo especial com relação aos filósofos. É preciso lembrar que na época em que Luciano viveu os próprios imperadores de Roma, como Adriano e Marco Aurélio, se dedicavam à filosofia. Nesse contexto, ser filósofo representa muito em termos do que se espera de uma pessoa 6


e de quanto ela é socialmente respeitada. Êucrates e seus amigos se mostram inteiramente conscientes de sua importância e têm orgulho disso. Mas o que Luciano nos mostra é como sua cultura não passa de um verniz, pois eles estão cheios de crendices e não conseguem conduzir-se de um modo racional, não só contando mentiras como também acreditando nelas. Luciano sabe que as “mentiras” de que suas personagens são “amigas” fazem parte da cultura dos gregos, incluindo-se nisso os mitos e os monumentos que tornam a Grécia famosa. Então, não são as histórias fantásticas em si que ele condena. Do que ele ri é dos que acreditam nelas de um modo ingênuo. Algo assim: histórias de fantasmas são boas de ouvir e contar, desde que não se pense que existem fantasmas. Como diz Tiquíades – a personagem que ridiculariza Êucrates e seus amigos –, uma pessoa sensata deve pensar como o filósofo Demócrito, que foi o primeiro a defender que o mundo é constituído de átomos e regido por leis naturais: prodígios, demônios e assombrações não passam de brincadeira de crianças. Então você poderá entender melhor a intenção de Luciano. De um lado, ele quer sim que você ria bastante das baboseiras em que Êucrates e seus amigos acreditam, 7


o que é mais ridículo por se tratar de pessoas que estudaram tanto. Mas, por outro lado, ele quer também que as várias histórias mirabolantes que aqui são contadas, sendo lidas por você, fiquem preservadas do esquecimento. Você reconhecerá como algumas nos parecem familiares (a da casa assombrada, por exemplo), algumas outras tendo ficado famosas: a do aprendiz de feiticeiro virou um desenho animado de Walt Disney, em que o papel desempenhado por Êucrates ficou a cargo do Mickey Mouse. Isso mostra como, além do mais, você tem em mãos a obra de um dos mais importantes escritores de nossa cultura, que influenciou muita gente depois dele. Sendo assim, não se incomode se, lendo com gosto essa coleção de histórias extraordinárias, você descobrir que não deixa de ser também um “amigo das mentiras”. É que se pode dizer que todos nós somos um pouco. Afinal, é próprio da natureza humana necessitar de uma dose diária de ficção e é para isso que existe literatura, teatro, cinema, novela – e, é claro, os contadores de casos, como Luciano. Bom proveito!

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Os amigos da mentira Dois amigos se encontram numa cidade localizada no oriente do Império Romano. Cai a tarde: - Você pode por acaso me dizer, Fílocles, por que é que a maioria das pessoas gosta de mentiras e fica contente em dizer e prestar o máximo de atenção em histórias de prodígios, demônios e assombrações? - São muitas as razões, Tiquíades. - Diga uma então. - Muita gente mente para se dar bem. - Isso não tem anda a ver com o assunto. - Como não tem? - Eu não estava falando de quem mente por alguma necessidade. Esse tipo de gente pode ser desculpada e até elogiada. - Elogiada? - Por exemplo, quem numa guerra engana os inimigos, ou então quem usa da mentira como remédio para salvar a si mesmo ou aos amigos, quando acontece de estarem em perigo. 9


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- Como assim? - O que fez Ulisses enganando o ciclope para salvar a própria vida e garantir o regresso para casa de seus companheiros. Você conhece essa história: quando o ciclope Polifemo perguntou como ele se chamava, em vez de Ulisses ele disse que seu nome era Ninguém. Depois, quando ele furou o único olho que o Ciclope tinha no meio da testa, o monstro, que tinha ficado cego, chamou seus companheiros para que prendessem Ulisses. Tão logo cada um deles chegava e lhe perguntava: “Por que você está gritando, Polifemo? Quem foi que te machucou?”, o ciclope feito bobo respondia: “Ninguém me machucou!” Com isso, os outros ciclopes foram embora e Ulisses e seus amigos conseguiram fugir. - Ele foi um cara esperto! - Mas não é disso que estou falando e sim das pessoas que sem nenhuma necessidade gostam muito mais de mentiras que da verdade e sentem tanto prazer com isso que gastam um tempo enorme contando umas para as outras histórias mirabolantes. Isso é o que eu queria entender. - Por acaso você conhece gente assim? - Conheço muitos! 11


- Só pode ser gente ignorante, se escolhe o pior em lugar do melhor. - Não é nada disso, Fílocles. Tem muitas pessoas inteligentes e ajuizadas que, não sei como, são fisgadas por esse mal e com tanta força que acabam se tornando autênticos amigos das mentiras! É isso que me incomoda: ver gente assim excelente em tudo enganando-se a si mesma e a quem encontra. - De quem você está falando? - Em primeiro lugar, dos historiadores. - De que historiadores? - Você é claro que conhece as histórias de Heródoto e Ctésias de Cnido, em que existe muita coisa inventada misturada com o que de fato aconteceu. - Isso é mesmo estranho. - Mas mais mentirosos que os historiadores são os poetas e o próprio Homero, que escreveu muita coisa fabulosa sobre a Guerra de Troia. - Nisso você tem razão. - Pois então, são todos homens famosos que nos seus escritos lançaram mão de mentiras e, desse modo, enganaram não só seus contemporâneos mas todo o

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mundo, até a nossa época, já que sua mentira ficou preservada em poemas e versos que todos sabem e admiram. - Eu mesmo gosto muito das histórias que eles contam. - E quem poderia não gostar? Mas muitas vezes eu fico com vergonha do que eles dizem nos seus poemas, por exemplo, quando Hesíodo conta que o Céu, que era o primeiro senhor dos deuses, foi castrado por seu filho Crono, ou então que Prometeu, por roubar o fogo dos deuses para dar de presente à humanidade, foi preso por ordem de Zeus, ou ainda que os gigantes fizeram guerra contra Zeus e tudo que dizem que acontece com os mortos no reino subterrâneo do deus Hades... - São histórias muito estranhas e difíceis de acreditar. - E quando contam que, por estar apaixonado, Zeus se tornou um touro ou um cisne, a fim de transar com as mulheres que desejava, ou então como uma fulana qualquer se converteu em pássaro ou urso? Põe também na lista os Pégasos, as Quimeras, as Górgonas, os Ciclopes e tudo desse tipo, umas lendas capazes de enfeitiçar as almas de crianças que ainda têm medo de lobo-mau e bicho-papão...

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- A lista vai acabar ficando enorme... - Mas pior que esse tipo de invencionice dos poetas e escritores é quando cidades e povos inteiros mentem. - Como assim? - Os cretenses, por exemplo, não têm vergonha de mostrar o túmulo de Zeus. Os atenienses contam que Erictônio nasceu do esperma do deus Hefesto, que jorrou sobre a terra quando ele tentava fazer sexo com a deusa Atena – e que, então, os primeiros habitantes de Atenas nasceram do solo como se fossem couves. - Dá mesmo vontade de rir... - Mas os atenienses são mais dignos de respeito que os tebanos, que contam como houve em Tebas uns guerreiros, chamados espartos, que surgiram dos dentes do dragão que foi morto por Cadmo, o fundador daquela cidade. E ai de quem acha que tudo isso é digno de riso, por não ser verdadeiro, e tem o bom senso de pensar que só mesmo gente ingênua pode acreditar em tais lendas – por exemplo, que Triptólemo andava pelos ares em cima de dragões alados, que o deus Pã veio da Arcádia para lutar como aliado dos gregos, contra os persas, na Batalha de Maratona, ou que Oritia foi raptada pelo vento Bóreas! 14


- São mesmo histórias incríveis... - Mas ai de quem duvidar delas, pois vai ser acusado de ateu e estúpido por não acreditar em coisas tão evidentes e verdadeiras! Veja a que ponto é poderosa a mentira. - Mas os escritores e as cidades poderiam ser desculpados, Tiquíades. Os escritores, porque misturam em seus escritos aquilo que de mais agradável há no mito e é o mais atraente, cativando assim os seus leitores. Já os atenienses, tebanos e os outros povos, ao contar essas histórias fazem suas pátrias ficarem mais famosas. Se essas invencionices fossem tiradas da Grécia, os guias de turismo iam morrer de fome, pois os estrangeiros não iam querem ouvir a verdade nem de graça!

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Êucrates e seus amigos - Você tem razão, Fílocles. Mas é que eu acabo de sair da casa de Êucrates e você não imagina a quantidade de coisas incríveis e inventadas que ouvi lá! O exagero era tanto que eu fui embora na metade da conversa, porque não aguentava mais. Contando aquele monte de casos estranhos, eles na verdade me expulsaram, como se fossem as Erínias, essas deusas furiosas! - Mas Êucrates é uma pessoa de respeito, Tiquíades! - É o que eu também pensava... - Ninguém poderia supor que, do alto dos seus sessenta anos, com aquela barba espessa e muito entendido em filosofia, ele suportasse ouvir alguém mentindo em sua presença ou, o que é pior, que ele próprio ousasse fazer isso! - Você é que não sabe, meu amigo, que coisas ele disse, como acreditava nelas e como jurou que tudo era verdade, apresentando seus filhos como testemunhas! - É mesmo difícil de acreditar...

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