Roberta Giannubilo Stumpf
Os cavaleiros do ouro e outras trajet贸rias nobilitantes nas Minas Setecentistas Roberta Giannubilo Stumpf
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cip-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj S926c Stumpf, Roberta Giannubilo Os cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes nas Minas Setecentistas / Roberta Giannubilo Stumpf. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2014. 416 p. : il. ; 23 cm. (História ; 47) ISBN 978-85-8054-221-9 1. Minas Gerais - História - Século XVIII. I. Título. II. Série. 14-15364 CDD: 981.51 CDU: 94(815.1)
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Agradecimentos 11 Prefácio 13 Abreviaturas 21 Introdução 23 1. As Nobrezas do reino e das conquistas 29 2. A sociedade da capitania das Minas Gerais 99 3. A Nobreza de serviços 185 4. O Ouro Nobilitante 265
Considerações finais 361 Referências bibliográficas 367 Anexo 403
Índice de tabelas Tabela 1: Pedidos de hábito das Ordens militares nas Minas (1700-1808) 188 Tabela 2: Quantidade de arrobas de ouro entregue nas Casas de Fundição 282 Tabela 3: Período em que as arrobas de ouro foram entregues nas Casas de Fundição 289 Tabela 4: Data da habilitação 290 Tabela 5: Idade em que foram habilitados 294 Tabela 6: Qualidade dos serviços 296 Tabela 7: Tempo de duração das provanças (em meses) 300 Tabela 8: Pedidos para renunciar ao hábito feito por suplicantes que realizaram uma segunda entrega do ouro, já tendo sido habilitados pela primeira contribuição 304 Tabela 9: Localização das Casas de Fundição onde as arrobas de ouro foram introduzidas 306 Tabela 10: Naturalidade dos suplicantes 308 Tabela 10.1: Local de nascimento dos suplicantes reinóis 311 Tabela 11: Conexões prévias existentes 320 Tabela 12: Primeira ocupação dos suplicantes reinóis nas Minas 323 Tabela 13: Entrada dos suplicantes reinóis nas Minas Gerais 325 Tabela 14: Posses e cabedal dos suplicantes em suas trajetórias nas Minas Gerais 329 Tabela 14.1: Período de aquisição das terras auríferas 329 Tabela 15: Percurso de enriquecimento na capitania de Minas Gerais 331
Tabela 16: A trajetória dos suplicantes nas Minas: o provimento de cargos e o desempenho de atividades econômicas 333 Tabela 17: Proporção de cargos camarários entre os suplicantes que serviram na administração civil 344 Tabela 18: Porcentagem de ocupação dos postos camarários em relação às atividades econômicas 345 Tabela 19: Provimento de patentes militares 346 Tabela 20: Provanças: parecer final 357 Tabela 21: Natureza dos impedimentos 358
Ă€s minhas irmĂŁs, por engrandecerem a casa.
Agradecimentos
Este trabalho que agora apresento ao público mais amplo se iniciou em 2005 quando integrei o curso de doutoramento na Universidade de Brasília. Apesar de ter sido concluído em Abril de 2009, julguei desnecessário fazer maiores alterações, limitando-me a incorporar as importantes sugestões das professoras que integraram a banca examinadora. Sendo assim, começo por lhes agradecer: professoras Maria Fernanda Baptista Bicalho, Tereza Cristina Kirschner, Maria Filomena Pinto da Costa Coelho e Teresa Cristina de Novaes Marques. Antes da finalização desta pesquisa, um longo itinerário foi percorrido, e neste ínterim encontrei o apoio de outras tantas pessoas a quem desejo expressar meu sincero agradecimento. À professora Diva do Couto Gontijo Muniz, antes de tudo, por me incentivar a retornar à academia, após ter me ausentado alguns anos para me dedicar com exclusividade à atividade docente. A ela agradeço a convivência agradável e enriquecedora e a disposição para ler com tanto cuidado os meus escritos sobre as Minas. Meu especial agradecimento ao professor István Jancsó, por ter acompanhado minha trajetória acadêmica com o entusiasmo que lhe era característico. Por ter aceitado o convite para integrar a banca de qualificação, presenteando-me com seus comentários instigantes e indispensáveis. Há muito deste saudoso amigo neste meu trabalho. À professora Maria Filomena Pinto da Costa Coelho e ao professor Celso Silva Fonseca pela interlocução permanente que me permitiu trilhar caminhos que estavam longe do meu horizonte quando iniciei esta pesquisa. À professora Tereza Cristina Kirschner, desta vez, pela participação na banca de qualificação na qual me forneceu importantes indicações bibliográficas e sugestões primorosas. Aos amigos, Andréa Slemian e João Paulo Garrido Pimenta, sempre prontos a me auxiliar com a bibliografia que não encontrava nas bibliotecas 11
e livrarias do cerrado. A Íris Kantor, pela conversa amigável, que muito me ajudou a pensar o projeto desta pesquisa. Aos meus antigos colegas e professores da União Pioneira de Integração Social, pelo convívio harmonioso ao longo dos quatro anos em que ali lecionei. Também, aos meus alunos, agradeço pela paciência com que me ouviram falar, com tanta frequência, das Minas Setecentistas, das sociedades do Antigo Regime, sobretudo quando meu entusiasmo nos levava a fugir do tema das aulas. À minha querida amiga Teresa Martha Pressotti Guimarães por insistir na importância de aprofundar os estudos em Lisboa, quando este parecia um passo ousado por faltar apenas um ano para a conclusão de minha tese. Ao professor Nuno Gonçalo Monteiro, pela ajuda indispensável de quem conhece, mais do que ninguém, destes assuntos nobiliárquicos. Aos amigos que encontrei ao longo de minha estada em Portugal, professores Mafalda Soares da Cunha, Fernanda Olival e, em especial, Pedro Cardim por me disponibilizar sua biblioteca pessoal. Às professoras Leonor de Freire Costa e Rita Martins de Sousa, por me permitirem consultar seu banco de dados. Ali, distante de meu país, convivi também com muitos professores brasileiros, Fernanda Bicalho, Virginia Valadares e Maria de Fátima Silva Gouvêa. Com esta última partilhei de perto a finalização deste trabalho que infelizmente não pode ver concluído. Aos funcionários do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, com os quais convivi ao longo de seis meses e à minha amiga Teresa Maria Soares de Albergaria Abrantes, que me acolheu em sua casa durante este período. À Capes, pela bolsa de estudo que viabilizou esta pesquisa. Já nesta fase final da publicação, agradeço, mais uma vez, à professora Maria Fernanda Baptista Bicalho e à professora Júnia Ferreira Furtado pelas palavras que, conjuntamente com a tese, integram este livro. Ao Centro de História d´Aquém e d´Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa (CHAM/UNL), instituição a qual pertenço como investigadora, pela participação na edição desta obra. E por fim, aos meus pais, às minhas irmãs e ao Nuno que, de formas distintas, me incentivam neste meu percurso.
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Prefácio
Nas últimas décadas uma nova história social e política vem ganhando terreno no seio da historiografia brasileira, ao mesmo tempo em que esta vem se renovado a partir de um profícuo diálogo com novos paradigmas historiográficos. Um dos pontos altos desta renovação encontra-se nas análises que privilegiam a reiteração e a constante atualização – apesar das muitas ‘traduções’, reinvenções e especificidades – de uma cultura e de práticas políticas de Antigo Regime na América portuguesa. Entre os inúmeros trabalhos que não apenas defendem, mas comprovam por meio de acurada pesquisa documental, este argumento, destaca-se o presente livro de Roberta Giannubilo Stumpf, Os Cavaleiros do Ouro e outras trajetórias nobilitantes nas Minas Setecentistas. Com grande sensibilidade e argúcia, calcada em sólida investigação em arquivos brasileiros e portugueses, e em instigante interlocução com a historiografia dos dois lados do Atlântico, Roberta Stumpf descortina a história e a trajetória de mais de uma centena de homens que, ‘assistentes’ nas Minas Setecentistas, requereram hábitos das Ordens Militares como estratégia de ascensão social e veículo de nobilitação. Seu trabalho contesta os argumentos de uma historiografia que defende a irredutível singularidade da sociedade mineradora, se comparada a outras regiões da América portuguesa, como as capitanias litorâneas. Nestas, como demonstram os trabalhos de Stuart Schwartz e A. R. J. Russell-Wood sobre a Bahia, de Evaldo Cabral de Mello e José Antônio Gonsalves de Mello sobre Pernambuco, e, mais recentemente, de João Fragoso sobre o Rio de Janeiro, tanto as elites quanto sua dinâmica social e política estruturam-se em valores e práticas do Antigo Regime português. Entre tantas outras contribuições, o que este livro vem demonstrar é que também na região mineradora o modelo societário, assim como as estratégias e aspirações de grande parte de suas
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elites, calcavam-se e reproduziam parâmetros e estratégias de nobilitação correntes em Portugal, embora com ritmos e entonações próprias. Roberta Stumpf reitera, sempre em diálogo com uma produção de ponta sobre Portugal e seu império ultramarino, a inescusável centralidade do centro e o caráter estruturante da ‘economia da mercê’ na conformação da monarquia pluricontinental portuguesa, para usar o conceito forjado por Nuno Gonçalo Monteiro. O patrocínio régio e a justiça distributiva são dispositivos que os historiadores têm destacado como a principal estratégia de incorporação das elites locais às dinâmicas de ascensão e de mobilidade nas monarquias europeias e em seus domínios na América, na África e na Ásia. A conquista ultramarina abriu, sem dúvida, novo campo de possibilidades de prestação de serviços à monarquia e de remuneração dos mesmos pela Coroa. O imperativo do dar criava uma cadeia de obrigações recíprocas: disponibilidade para servir o rei, retribuição aos serviços prestados, reconhecimento por parte dos agraciados, reforço dos laços de submissão, lealdade e vassalagem e renovada disposição para prestar mais e maiores serviços. A ‘economia da mercê’, profundamente vincada na cultura política de Antigo Regime, ao distinguir o monarca como instância máxima de classificação social, desempenhou papel central na hierarquização da sociedade colonial, ao fomentar uma ‘nobreza’ cujos feitos iam desde a conquista propriamente dita, até a disponibilização de seus cabedais nos muitos dos projetos da Coroa. Por meio da distribuição de mercês e privilégios, o monarca não só retribuía o serviço dos súditos ultramarinos na defesa dos interesses da Coroa e do bem comum. Reforçava igualmente os laços de sujeição e o sentimento de pertença dos vassalos à dinâmica política da monarquia e do império, garantindo coesão e governabilidade. O ponto de partida de Os Cavaleiros do Ouro é compreender quem integrava a ‘nobreza’ das Minas, porque eram reconhecidos como nobres e como conquistaram este reconhecimento e sua destacada posição no topo da hierarquia social. Em sua minuciosa pesquisa documental, Roberta Stumpf analisa os pedidos de hábitos das Ordens Militares e, com base nos 134 requerimentos que consultou, traça com maestria as histórias de vida, as trajetórias ascendentes e os critérios de hierarquização naquela sociedade.
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Discute, com grande erudição, o significado de ‘ser nobre’ no reino, recorrendo à historiografia sobre o tema, à legislação e às Ordenações, destrinchando de forma criativa a obra Privilégios da Nobreza em Portugal, publicada em 1808, por Luiz da Silva Pereira de Oliveira. Dedica-se especialmente à segunda metade do século XVIII, quando a política regalista da Coroa levou a importantes mudanças no sistema de mercês e recompensas, não mais consideradas ‘direitos’, e sim ‘regalias’. Foi um período, segundo a autora, de ‘inchaço da nobreza civil’, que teve como contrapartida – a confirmar o argumento de Fernanda Olival de que a ‘economia da mercê’ gerava um verdadeiro ‘círculo vicioso’1 – o engrandecimento do poder real. Na sociedade mineradora, assim como em outras regiões da colônia, o pombalismo traduziu-se na ampliação da natureza dos serviços e numa maior flexibilidade dos critérios de nobilitação. Os potenciais candidatos às mercês régias – entre elas ofícios e hábitos das Ordens Militares – passaram a incluir aqueles cuja ascensão, senão impossível, era anteriormente rara, como comerciantes de grosso trato e cristãos novos. Porém, uma das questões mais instigantes e inovadoras deste livro é a discussão sobre os critérios de classificação das ‘nobrezas americanas’. A autora questiona o uso indiscriminado do conceito – e não apenas do vocábulo – de ‘nobreza da terra’ para se referir às elites ou grupos dominantes na colônia. Considera que recentes estudos sobre esse segmento social nas diversas regiões do Brasil se apropriaram e disseminaram o termo com o qual os homens principais de Pernambuco se autodesignavam. Evaldo Cabral de Mello em várias de suas obras e, de forma exemplar em Rubro Veio, afirma ter sido na segunda metade do século XVII que os descendentes dos restauradores passaram a reivindicar o estatuto de uma ‘nobreza da terra’, a ponto de, nos começos da centúria seguinte, os naturais de Pernambuco serem acusados de se quererem quase todos inculcar por nobres. O historiador pernambucano depara-se com o termo ‘nobre’ na documentação do período holandês, utilizado no sentido de demonstrar ou conferir coesão e solidariedade aos ‘nobres de Pernambuco’. Com o fim da 1. Olival, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001.
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dominação batava, ‘nobreza da terra’ tornou-se o novo coletivo adotado pelos descendentes dos antigos ‘homens principais’, uma vez que a açucarocracia passou a apostar na promoção estamental como forma de legitimar seu protagonismo social e político na capitania. Nesse sentido, a autodesignação ‘nobreza da terra’ abrangia, segundo o autor, a dupla origem social da açucarocracia, a de ‘nobreza do reino’ transplantada para Pernambuco desde a conquista duartina, e a de nobreza gerada em Pernambuco durante o século e meio da sua colonização, mediante a seleção social dos filhos e netos de indivíduos que, embora destituídos da condição de ‘nobres do reino’, participaram das lutas contra os holandeses, eram senhores de engenho e exerceram ofícios civis e militares, ‘cargos honrados da República’. Portanto, para Evaldo Cabral de Mello, a conquista de Pernambuco e sua posterior restauração foram dois dos principais mecanismos de constituição da ‘nobreza da terra’ naquela capitania. Também o fato de dispor de uma clientela, de um séquito de homens livres e escravos, além do exercício de cargos na câmara atribuiu às famílias de senhores de engenho status e condição equivalentes.2 Não só em Pernambuco, mas em outras capitanias, como no Rio de Janeiro, estudos recentes, como os de João Fragoso, discutem a constituição de uma ‘nobreza da terra’ baseada na conquista, e sua interferência, por meio da câmara, no governo da res publica. Em Portugal, em seus trabalhos sobre a nobreza e, também, sobre as câmaras, Nuno Gonçalo Monteiro, com quem Roberta Stumpf dialoga, demonstra que a categoria ‘nobre’ assumiu uma conotação excepcionalmente ampla, distinta da de ‘fidalgo’, incluindo uma multiplicidade de ofícios e funções. Diante do progressivo alargamento dos estratos terciários urbanos e da correspondente ampliação do conceito de nobreza, corria-se o risco de uma banalização e descaracterização deste estado, ao mesmo tempo em que se reforçava a estrutura hierárquica e nobiliárquica da sociedade. Para atribuir um estatuto diferenciado aos titulares destas novas funções sociais, a doutrina jurídica criou, ao lado dos estados tradicionais, um ‘estado intermédio’ ou ‘privilegiado’ equidistante entre a antiga nobreza e o povo mecânico. 2. Mello, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p.153-167.
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Forjava-se assim o conceito de ‘nobreza civil ou política’, abarcando aqueles que, embora de nascimento humilde, conquistaram um grau de enobrecimento devido a ações valorosas que obraram ou a cargos honrados que ocuparam, mormente os postos da ‘república’, diferenciando-se da verdadeira nobreza derivada do sangue e herdada dos avós. Este novo conceito, largamente incorporado à literatura jurídica, acabaria por se impor na prática de muitas instituições portuguesas do Antigo Regime, contribuindo para a distinção entre nobreza e fidalguia, esta última mais restrita.3 Da mesma forma, Joaquim Romero Magalhães considera a nobreza constitutiva das câmaras portuguesas, uma classe social formada dentro da ordem ou estado popular que, por sua conduta, modo de vida e exercício do governo concelhio, conseguiu chegar às bordas da ordem da nobreza. A seu ver, estes ‘nobres’, também denominados ‘cidadãos’, assumiam valores, padrões de conduta e o modo de ‘viver ao estilo da nobreza’.4 Na América, assim como nos demais domínios ultramarinos da monarquia portuguesa, o acesso aos cargos camarários surgia como objeto de disputas entre grupos social e economicamente influentes nas localidades. Estas disputas vêm sendo analisadas por historiadores brasileiros como um dos fatores que indicam a centralidade destes ofícios não apenas como espaço de distinção e hierarquização das elites coloniais, mas e principalmente, de negociação com a Coroa. Em Os Cavaleiros do Ouro, Roberta Stumpf vai além destas considerações. Discute, particularmente nas Minas – embora seu trabalho motive uma reflexão sobre as demais regiões da América portuguesa –, os diferentes significados e atributos das ‘nobrezas’ coloniais. Nos sertões mineiros, a ocupação tardia e a expulsão dos primeiros desbravadores paulistas fizeram com que nos pedidos de mercês, o ‘ideário da conquista’ e a antiguidade das famílias fossem alegações menos presentes, sobretudo na segunda metade do século XVIII, período privilegiado nas páginas deste livro. Por outro lado, a detenção de ofícios régios e a ocupação de cargos concelhios e militares 3. Monteiro, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes. A casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1998. 4. Magalhães, Joaquim Romero. O Algarve econômico (1600-1733). Lisboa: Editorial Estampa, 1988.
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conferiam prestígio e status de nobreza identificados localmente. Não que não fossem importantes, na medida em que o reconhecimento público entre pares garantia a hierarquização de indivíduos e de grupos sociais. No entanto, sua abrangência era eminentemente local, pois o ingresso nas câmaras e no oficialato das Ordenanças não estava, a princípio, condicionado à indicação do poder real, dependendo, ao contrário, da inserção dos eleitos em redes de poder estabelecidas regionalmente. Roberta Stumpf demonstra com argumentos seguros e de forma inovadora em relação aos trabalhos dos historiadores citados acima, que no interior da ‘nobreza’ na colônia existiam vários níveis de honra, status e poder, o que nos alerta para a impropriedade de atribuir uma homogeneidade aos indivíduos e aos grupos que se viam – e são hoje vistos por nós – como nobres. A verdadeira ‘nobreza’ na colônia se diferia dos nobres ‘de sangue e geração’ de Portugal, era reconhecida e conferida pelo centro, por meio de mercês régias, dentre as quais se destacam os hábitos das Ordens Militares. Ser cavaleiro da Ordem de Cristo, de Santiago ou de Avis significava ser nobre em Minas, na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em Luanda, em Goa e em Lisboa, ou seja, ‘ser nobre’ não apenas na colônia, mas em todos os quadrantes da monarquia pluricontinental portuguesa. Significava, enfim, ser efetivamente nobre de acordo com os padrões do Antigo Regime. São estes os homens que povoam as páginas deste livro e que têm suas histórias de vida, suas trajetórias e suas estratégias nobilitantes analisadas com maestria pela autora. Homens cuja riqueza, amealhada em fainas e negócios de uma capitania que tinha na extração aurífera sua primeira, embora não única razão de ser, e que, apesar de suas origens humildes, foram pródigos em solicitar e receber do rei hábitos das Ordens Militares portuguesas. Valores e práticas que, na feliz expressão de István Jancsó citada pela autora, tornaram-se simultaneamente comuns e singulares, ‘replicantes’ e ‘desviantes’ dos paradigmas europeus. Portanto, voltando a uma das teses centrais do livro enunciada no início deste prefácio, apesar das inúmeras especificidades da sociedade mineradora, o embate e a aliança entre honra e dinheiro não foram exclusivos daquela região. As Minas e seus Cavaleiros do Ouro faziam parte do
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conjunto de transformações em curso na Europa da modernidade. Como afirma Roberta Stumpf, os mais distintos e distantes rincões do império português reproduziram parâmetros societários reinóis em conformidade com as circunstâncias locais, apresentando, cada um a seu modo, embora todos dependentes da inegável centralidade e preeminência da figura régia, uma forma singular de ser não apenas português, mas igualmente nobre. Descobrir os que eram reconhecidos como nobres, como conquistaram este reconhecimento e sua destacada posição na hierarquia social das Minas Setecentistas é o desafio enfrentado corajosamente pela pesquisa e interpretação desenvolvidas pela autora; além de um convite feito a quem deseja se aventurar por um passado que, embora muito frequentado, vem sendo reelaborado por trabalhos que, como este, constituem uma bela e madura argumentação sobre práticas e representações de Antigo Regime nos dois lados do Atlântico. Maria Fernanda Bicalho Universidade Federal Fluminense Janeiro de 2010
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Este livro é um contributo inestimável para o conhecimento da América portuguesa, pois permite conhecer um aspecto fundamental da sua história: a remuneração dos serviços prestados e as dinâmicas de nobilitação no contexto da capitania das Minas Gerais. Numa época em que tanta importância se concedia à nobreza como elemento de ordem comunitária e de diferenciação, Roberta Stumpf mostra que a sociedade das Minas, em interacção com as autoridades coloniais, desenvolveu formas peculiares de distinção social, sem jamais perder de vista o modelo de ordenamento social que vigorava no reino. É disso que trata o presente estudo, assente numa sólida investigação que proporcionou resultados originais e muito inovadores.
Pedro Cardim Centro de História D’Aquém e D´Além-mar, Universidade Nova de Lisboa/Universidade dos Açores